Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1310/17.3T9VIS.C1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: PROCESSO PENAL
RECURSO PENAL
APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
REFORMA DE ACÓRDÃO
INADMISSIBILIDADE
Data do Acordão: 05/04/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. A aplicação subsidiária, no processo penal, das normas dos artigos 613.º e 616.º, n.º 2, do CPC – que também se aplicam aos recursos de apelação e de revista em processo civil (artigos 666.º, n.º 1, e 685.º do CPC) – exige que, nos termos do artigo 4.º do CPP, se identifique uma lacuna de regulamentação (um “caso omisso”) que não possa ser preenchida por aplicação analógica das disposições do CPP.

II. Não existindo norma equivalente no CPP, há que aplicar o artigo 613.º do CPC quanto ao esgotamento do poder jurisdicional; proferida a sentença penal, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.

III. Na determinação da lacuna há que ter presente que, diferentemente do que sucede em processo civil, vigora em processo penal o princípio geral de recorribilidade das decisões, estabelecido no artigo 399.º do CPP. As exceções de irrecorribilidade, previstas no artigo 400.º, respeitam o direito ao recurso constitucionalmente garantido como componente do direito de defesa (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição).

IV. Em processo penal não ocorre o pressuposto de que depende a possibilidade de reforma da sentença por erro na determinação da norma ou de qualificação jurídica dos factos, ou seja, o pressuposto da irrecorribilidade da decisão (artigo 616.º, n.º 2, do CPC). O que fundamenta a diversidade de regimes.

V. O processo penal dispõe de regime próprio e completo sobre modificabilidade da sentença, nos artigos 379.º e 380.º do CPP, aplicável aos acórdãos proferidos em recurso por força do disposto no artigo 425.º, n.º 4, do mesmo diploma.

VI. Não havendo lacuna, não há lugar à reforma da sentença em processo penal, nos termos do artigo 616.º, n.º 2, do CPC, pelo que é rejeitado o requerimento do arguido.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


I.  Relatório

1. O arguido e recorrente AA vem, nos termos do n.º 2 do artigo 616.º do Código de Processo Civil (CPC), requerer a “reforma” do acórdão de 15 de março de 2023, proferido por este Supremo Tribunal de Justiça, que julgou improcedente o recurso que interpôs do acórdão de 23 de junho de 2021 do Juízo Central Criminal ... (Juiz ...), do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, que lhe aplicou a pena de 9 (nove) anos de prisão pela prática de um crime de tráfico agravado de estupefacientes, previsto e punido nos termos das disposições conjugadas dos artigos 21.º, n.º 1, e 24.º, alínea h), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.

2.  Apresenta requerimento nos seguintes termos:

«O douto acórdão ora posto em crise não é suscetível de recurso sucedendo que o mesmo faz errada qualificação jurídica dos factos julgados provados pelo Tribunal de primeira instância;

Devendo, por consequência ser admitido o presente requerimento de reforma do douto acórdão, nos termos e para os efeitos do art.º 616.º/2 do CPP, aplicável ex.vi art.º 4.º do Código de Processo Penal.

Compulsado o teor do douto acórdão proferido pela presente secção, constata-se que o seu dispositivo fora concebido no pressuposto de que o arguido após ser acolhido no estabelecimento prisional ... para o cumprimento da medida de coação que então havia sido imposta, renovou a sua decisão de procede ao tráfico de substâncias estupefacientes,

Com o que daria início à prática de um novo crime previsto e punido pelo art.º 21 do decreto-lei 15/93, de 22/01.

A decisão de facto concernente ao arguido, não fora em sede de recurso objeto de qualquer reapreciação ou alteração, mantendo-se assim integralmente a decisão proferida pelo Tribunal de primeira instância.

Porém, da decisão de facto proferida em primeira instância, não consta que o arguido tenha renovado ou tomado uma nova decisão de proceder ao trafico de estupefacientes;

Outrossim, consta que logo na data da sua reclusão, o arguido passou a ceder partilhar ou vender haxixe a diversos reclusos;

De onde se impõe concluir que entre a prática delitual apurada nos autos de processo n.º 2684/15.... e a prática delitual consumado nos presentes autos não ocorreu qualquer interrupção;

E bem assim, inexistindo qualquer interrupção da referida prática delitual, inexistirá qualquer decisão de proceder ao trafico de estupefacientes ou qualquer renovação da decisão anteriormente tomada.

O douto acórdão ora posto em crise faz errada interpretação da previsão e estatuição constantes do art.º 29.º/5 da Constituição da República Portuguesa.

Temos assim que, se encontram verificados os requisitos da violação do princípio ne bis in idem;

Em face do que cremos que o douto acórdão ora posto em crise enferma de manifesto erro de julgamento, devendo o mesmo acórdão ser revogado e substituído por outro cujo dispositivo julgue procedente o pedido constante do recurso oportunamente oferecido.»

II. Fundamentação

3. No recurso que interpôs, o arguido AA, invocou violação do princípio ne bis in idem, por, na sua alegação, dado o crime de tráfico de estupefacientes ser um crime de “trato sucessivo”, a condenação no processo n.º 2684/15...., já “integrar” os factos por que vem condenado no acórdão recorrido.

4. Este Tribunal apreciou e decidiu a questão colocada nos seguintes termos (transcrição nas partes essenciais):

«11. Em síntese, o arguido argumenta que, sendo o crime de tráfico de estupefacientes um “crime exaurido”, cuja consumação ocorre com a prática do primeiro ato, tendo a sua atividade criminosa, investigada e julgada no processo 2684/15...., em que lhe foi aplicada uma pena de 6 anos de prisão, ocorrido em datas anteriores a 10.02.2017 (data em que se iniciou a atividade criminosa julgada neste processo, que durou cerca de 7 meses e terminou em 12.09.2017), e não tendo havido qualquer “interrupção” da prática do crime, os factos por que vem condenado neste processo integram, conjuntamente com aqueles, um único crime, consumado com o primeiro ato, por que já foi punido, não podendo, assim, ser-lhe aplicada uma pena pelos factos posteriores a 10.02.2017, por isso de traduzir em violação do princípio ne bis in idem.

12. Recordando os factos dos autos deles resulta que:

- O arguido AA foi detido no dia 08.02.2017, em cumprimento de mandado de detenção pela prática de crime do tráfico de estupefacientes que deu origem ao processo n.º 2684/15...., e, na sequência dessa detenção, foi apresentado ao juiz para primeiro interrogatório judicial no dia 10.02.2017, tendo-lhe sido aplicada a medida de coação de prisão preventiva.

- Esse processo tinha por objeto a atividade de tráfico de estupefacientes empreendida no período compreendido entre data indeterminada de fevereiro ou março de 2016 e o dia 7 de fevereiro de 2017, tendo o arguido AA sido acusado e condenado na pena de 6 anos de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.

- Essa atividade consistia na aquisição de heroína e cocaína, que preparava e, diretamente ou com a colaboração dos outros arguidos, vendia aos consumidores seus clientes, em vários locais da cidade ..., nas circunstâncias descritas nos pontos 207.15 e seguintes da matéria de facto provada.

- Cessou esta atividade no dia 8 de fevereiro de 2017, data em que foi detido pela PSP em execução de mandados de detenção fora de flagrante delito.

- Na sequência do interrogatório judicial de 10.02.2017, com subsequente reclusão e posterior notificação da acusação processo n.º 2684/15...., o arguido AA renovou a decisão e vontade de se dedicar à cedência e venda de produtos estupefacientes (ponto 206 dos factos provados).

- Assim, durante o período compreendido entre 10 de fevereiro de 2017 e 12 de setembro de 2017, o arguido passou a traficar canabis dentro do estabelecimento prisional ..., onde deteve, guardou, cedeu, partilhou gratuitamente e vendeu pelo menos 45 porções de haxixe a diversos reclusos consumidores, no interior desse estabelecimento Prisional (pontos 40 a 52).

- No dia 11 de abril de 2017, detinha vários pedaços de canabis (resina) com o peso líquido de 10,830 gramas, com grau de pureza de 15,3%, suficiente para 33 doses individuais diárias, para consumo e para venda e entre 17.02.2017 e 03.05.2017 partilhou charros de haxixe com o arguido BB e comprou-lhe, pelo menos por 5 vezes, porções de haxixe com cerca de 12.5 gramas (pontos 11 e 12).

- No dia 12 de setembro de 2017, detinha dois pedaços de canabis (resina), suficiente para 5 doses individuais diárias, que lhe pertenciam e que guardava para venda, pelo menos em parte, a outros reclusos (pontos 55 a 58). (…)

15. Como se evidencia dos factos provados, identificam-se claramente dois períodos perfeitamente distintos de atividades de tráfico de diferentes produtos estupefacientes, levada a efeito pelo arguido em locais, contextos e com formas de comparticipação e organização diferentes: o primeiro, até 08.02.2017, que respeita à aquisição, fornecimento e venda de heroína e cocaína a consumidores em diversos locais da cidade ..., interrompido pela intervenção policial, com a detenção do arguido; o segundo, que se inicia após a entrada do arguido no estabelecimento prisional em prisão preventiva, no dia 10.02.2017, respeita à aquisição, fornecimento e venda de canábis a outros reclusos, no interior do estabelecimento prisional, até ao dia 12.09.2017. A realização da primeira resolução criminosa cessou quando o arguido foi detido, em 8.2.2017, seguidamente apresentado ao juiz e colocado em prisão preventiva, e, em consequência, impedido de continuar a praticar os atos de tráfico de heroína e cocaína em que se traduzia a sua atividade criminosa desde fevereiro ou março de 2016. Após ter entrado no estabelecimento prisional, o arguido formulou um novo desígnio criminoso para voltar a praticar atos de tráfico de um produto estupefaciente diferente, no interior do estabelecimento prisional, reorganizando a sua atividade, com os seus colaboradores, de modo a adaptá-la às novas circunstâncias, assim a mantendo durante cerca de 7 meses.

Com a intervenção policial, interrompida a atividade criminosa anterior, foi definitiva e irreversivelmente quebrada qualquer possível continuidade entre as duas atividades de tráfico, independentemente da sua proximidade temporal. Havendo dois processos de decisão de delinquir, duas resoluções criminosas, consumadas em atividades separadas, distintas e autónomas, em contextos diferentes, que imprimem à segunda conduta um grau de ilicitude mais elevado, também por adição de um elemento de especialidade, embora em violação dos mesmos bens jurídicos fundamentais, impõe-se concluir que estas atividades se constituem em duas unidades típicas de ação, devendo, por conseguinte, concluir-se por um sentido de ilicitude plural, ou seja, pela pluralidade de crimes [como se decidiu no acórdão de 12.07.2006 (Armindo Monteiro), Proc. 06P1709, e nos acórdãos de 12.06.2002, Proc. nº 1087/2002, e de 03.07.2002, Proc. nº 1533/02, citados pelo Ministério Público]. Crimes a que correspondem penas distintas, não podendo, por conseguinte, os factos praticados a partir de 10.02.2017 se reconduzirem e compreenderem na unidade típica do ilícito integrado pelos factos cometidos anteriormente a essa data, julgados no processo n.º 2684/15.....

O que, remetendo para a problemática da unidade e pluralidade de crimes, nos termos do disposto no artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal, leva, desde logo, a concluir que os factos que integram estas duas atividades materialmente distintas e historicamente delimitadas, estes dois “substratos de vida”, preenchem, por duas vezes, diferentes tipos de crimes de tráfico de estupefacientes, que normativamente se posicionam, entre si, numa relação de especialidade – um crime de tráfico p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, e um crime de tráfico agravado p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1, e 24.º, al. h), do mesmo diploma, por ter sido cometido em estabelecimento prisional, elemento que afasta, quanto à atividade posterior a 10.02.2017, a aplicação do tipo legal fundamental do artigo 21.º, n.º 1.

Exclui-se, pois, como decidiu o acórdão recorrido e defende o Ministério Público, a possibilidade de violação do princípio “ne bis in idem”, consagrado no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição, segundo o qual ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime e de que resulta que o mesmo facto não pode ser valorado por duas vezes, que a mesma conduta ilícita não pode ser apreciada com vista à aplicação de sanção por mais do que uma vez (assim, acórdãos de 12.10.2022, Proc. n.º 277/08.3TAEVR.S1, e de 9.2.2022, Proc. 21461/21.9T8LSB.S1, em www.dgsi.pt).

16. Convoca, porém, o arguido a figura dos crimes de «trato sucessivo, exaurido e execução permanente» que se caraterizam por «se consumarem através de um só ato de execução», sucedendo que a conduta «se esgote nos primeiros atos de execução», para daí extrair a conclusão de que a anterior condenação no processo n.º 2684/15.... «integra os factos praticados pelo arguido (parágrafo 40º dos factos provados) e que aqui se procuram censurar

17. Como se tem sublinhado, sobretudo a propósito da reiteração de crimes sexuais, a figura do chamado “crime de trato sucessivo” (ou “exaurido”, em referência de identidade não rigorosa), sem consagração na lei, foi criada na jurisprudência para enquadramento das atividades de tráfico no tipo de crime de tráfico de estupefacientes, de modo a permitir considerar como preenchendo um só crime a prática de vários atos típicos, num mesmo e determinado período de tempo, a partir de uma única resolução criminosa. (…)

(…) integram o “crime de trato sucessivo”, segundo a jurisprudência, aqueles casos em que se possa afirmar a existência de uma unidade de resolução criminosa, uma “unidade resolutiva” (pretendendo com esta expressão, em detrimento daquela outra “unidade de resolução”, acentuar a existência de uma pluralidade de resoluções) e uma conexão temporal entre os atos realizados. «Analisando a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, verifica-se que a designação de crime de trato sucessivo começou a ser usada, de modo frequente, relativamente ao crime de tráfico de estupefacientes, logo na década de 80. Na verdade, entendeu-se (…) que estávamos perante “ilícitos que, na nossa doutrina, se tem estado a chamar de «crimes exauridos» (…), tendo-se considerado que o “crime exaurido” “é uma figura criminal em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros atos de execução, independentemente de os mesmos corresponderem a uma execução completa, e em que a repetição dos atos, com produção de sucessivos resultados, é imputada a uma realização única”. A designação de crime exaurido “corresponde àqueles crimes em que, após a realização da conduta que já integra a consumação formal ou típica, ainda pode haver a produção do resultado que ainda interessa à valoração típica porque ligado aos bens jurídicos protegidos pelo tipo; é aquilo que se refere no art. 24.º, n.º 1, do CP, como resultado não compreendido no tipo”.

Esta caraterização levou a que o mesmo entendimento fosse transposto para o crime de tráfico de estupefacientes. (…)

18. O artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, prevê e pune uma pluralidade de atos típicos: «cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações» compreendidas nas tabelas I a III anexas.

É esta pluralidade que a jurisprudência evidencia com a designação de crimes de “trato sucessivo”, que tanto podem dizer respeito a atos sucessivos ou simultâneos, afastando, desde logo, por incompatibilidade, a figura do crime continuado na realização de atos de venda, por conduzir à redução da pena quando a repetição desses atos impõe a agravação (…).

19. Da unificação operada pela figura do crime de “trato sucessivo” ressalvam-se, porém, as situações em que se podem agrupar múltiplos atos em “blocos temporais” distintos e a distância entre estes “blocos”, pela renovação da resolução criminosa, determina a punição por diversos crimes de tráfico (…).

Sendo o crime tráfico de estupefacientes um crime de múltiplos atos, o crime de trato sucessivo define-se na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça como uma “unificação das condutas ilícitas sucessivas, desde que essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, quando existe uma mesma, uma só resolução criminosa, desde o início assumida pelo agente”.

20. (…) é este o entendimento subjacente às duas condenações, neste processo e no processo n.º 2684/15.....

Em ambas as situações, se deparou o tribunal com uma sucessão ou pluralidade de atos típicos, de forma mais ou menos homogénea, que se repetiram ao longo dos períodos temporais em que se desenvolveram as atividades de tráfico em questão e, por essa razão, foi o arguido condenado por um único crime de tráfico em cada um dos processos. Só que os factos deste processo não podem integrar-se na atividade criminosa que constitui o crime objeto do processo n.º 2684/15...., por, no seu conjunto, constituírem, como se viu, um crime distinto daquele.

Pelo que, recorrendo à figura do crime de trato sucessivo (ou exaurido ou permanente, como refere o recorrente), também não se pode concluir que o comportamento global do arguido, documentado em ambos os processos, integra um único crime de estupefacientes.

Acresce que, para além de, para o efeito, ser irrelevante o momento de consumação antecipada pela prática do primeiro ato, que não excluiria da punição os atos subsequentes, tal visão das coisas importaria a completa impunidade dos atos de tráfico praticados a partir de 10.02.2023.

Assim sendo, se impõe concluir pela improcedência do recurso do arguido AA.»

5. Manifestando a sua discordância quanto ao decidido, vem, pois, o arguido, com recurso à figura da reforma da sentença, regulada no artigo 616.º do CPC, insistir na violação do princípio ne bis in idem, invocar “manifesto erro de julgamento” e deduzir uma pretensão que já foi apreciada – a de revogação do acórdão deste tribunal e sua substituição por outro que julgue procedente o recurso –, repetindo o fundamento que, a seu ver, deve conduzir a este resultado.

É uma pretensão que a lei não admite.

6. Nos termos do artigo 613.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, aplicável ex vi artigo 4.º do CPP, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, sendo, porém, lícito ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes.

Sobre a reforma da sentença dispõe o artigo 616.º, n.º 2, do mesmo diploma que, não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz, tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos [al. a)]. Ou seja, saliente-se, não havendo lugar a recurso – que é o meio normal de impugnação das decisões judiciais –, pode o juiz alterar a sentença sob reclamação quando tenha ocorrido lapso manifesto – ou erro grosseiro, noutra formulação – na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos (costumam citar-se os casos de aplicação de uma norma revogada, de omissão de aplicação de norma existente ou de qualificação dos factos com ofensa de conceitos ou princípios básicos e elementares do direito – cfr. Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2, Almedina, 2019, anotação ao artigo 616.º).

7. A aplicação subsidiária destas normas – que também se aplicam aos recursos de apelação e de revista em processo civil (artigos 666.º, n.º 1, e 685.º do CPC) – no processo penal exige que, nos termos do artigo 4.º do CPP, se identifique uma lacuna de regulamentação (um “caso omisso”) que não possa ser preenchida por aplicação analógica das disposições do CPP. Dispõe o artigo 4.º (Integração de lacunas) «Nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo penal.»

Na determinação da lacuna importa desde logo ter presente que, diferentemente do que sucede em processo civil, vigora em processo penal o princípio geral de recorribilidade das decisões, estabelecido no artigo 399.º do CPP, segundo o qual é permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei. As exceções de irrecorribilidade, previstas no artigo 400.º, respeitam o direito ao recurso constitucionalmente garantido como componente do direito de defesa (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição).

O que significa que, em processo penal, não ocorre o pressuposto de que depende a possibilidade de reforma da sentença por erro na determinação da norma ou de qualificação jurídica dos factos, ou seja, o pressuposto da irrecorribilidade da decisão. O que fundamenta a diversidade de regimes.

8. Assim, não existindo norma equivalente no CPP, há que aplicar o artigo 613.º do CPC quanto ao esgotamento do poder jurisdicional. Proferida a sentença – neste caso, o acórdão, em recurso –, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.

O mesmo não sucede, porém, quanto às normas relativas à reforma da sentença em processo penal, que dispõe de regime próprio e completo sobre modificabilidade da sentença, nos artigos 379.º e 380.º do CPP, aplicável aos acórdãos proferidos em recurso por força do disposto no artigo 425.º, n.º 4, do mesmo diploma – é correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso o disposto nos artigos 379.º e 380.º, sendo o acórdão ainda nulo quando for lavrado contra o vencido, ou sem o necessário vencimento, dispõe este preceito.

O artigo 379.º especifica os motivos de nulidade da sentença, entre os quais se inclui a omissão das menções referidas no n.º 2 do artigo 374.º que respeitam à fundamentação, a qual deve conter os motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão.

O artigo 380.º permite ao tribunal que a proferiu proceder, oficiosamente ou a requerimento, à correção da sentença quando, fora dos casos previstos no artigo 379.º, não tiver sido observado ou não tiver sido integralmente observado o disposto no artigo 374.º e quando a sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.

Este regime processual penal, como tem sido notado (assim, Oliveira Mendes, em Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, Almedina, 4.ª ed., 2022 anotação ao artigo 380.º), corresponde, na sua completude, ao de processo civil contido nos artigos 613 a 617.º do CPC, que compreende as situações de retificação de erros materiais, de nulidade e de reforma da sentença.

9. A regra geral de admissibilidade do recurso em processo penal, a cominação de nulidade por omissão de fundamentação e respetivo regime de arguição, nos termos do artigo 379.º do CPP, e a proibição de modificação essencial da sentença por via da retificação, nos termos do artigo 380.º do CPP, que definem um regime autónomo e completo, opõem-se, assim, à aplicação do artigo 616.º, n.º 2, al. a), do CPC (reforma da sentença).

Como se tem afirmado, não existindo lacuna que deva ser suprida por recurso às normas do processo civil, não há que, em processo penal, recorrer à figura da reforma da sentença (artigo 616.º do CPC) [assim, por todos, os acórdãos de 27.11.2014 (Manuel Braz), Proc. 281/07.9GELLE.E1-A.S1, e de 06.09.20012 (Sousa Fonte), Proc. 14127/08.7TDPRT.P1.S1, em www.dgsi.pt].

Termos em que deve ser rejeitado o requerimento de reforma do acórdão.


III. Decisão

10. Pelo exposto, decide-se rejeitar, por inadmissibilidade legal, o requerimento de “reforma” do acórdão de 15 de março de 2023, apresentado pelo recorrente AA.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC, nos termos do artigo 513.º do CPP e da tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

Supremo Tribunal de Justiça, 4 de maio de 2023.


José Luís Lopes da Mota (relator)

Paulo Ferreira da Cunha

Maria Teresa Féria de Almeida