Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2636/17.1T8SNT.L2.S2
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: RAIMUNDO QUEIRÓS
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PESSOA SINGULAR
COMERCIANTE
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 04/30/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – DISPOSIÇÕES INTRODUTÓRIAS / RECURSOS / PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO / FINALIDADE E NATUREZA DO PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / DECISÕES QUE COMPORTAM REVISTA.
Doutrina:
- Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Volume I, Introdução, Atos de comércio, Comerciantes, Empresas, Sinais distintivos, 11.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, p. 119, 151, 220, 288 a ss., 336, 337 e 340 a 342;
- Ricardo Costa, Gestão das sociedades em contexto de ‘crise de empresa’”, V Congresso Direito das Sociedades em Revista, Almedina, Coimbra, 2018, p. 176 a 177.
Legislação Nacional:
CÓDIGO COMERCIAL (CCOM): - ARTIGO 13.º.
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 14.º, N.º 1 E 17.º-A.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 629.º E 671.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 07-03-2017, PROCESSO N.º 1224/16.4T8VNG.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I- As pessoas que exercem profissionalmente uma actividade comercial só são comerciantes quando a exerçam em nome próprio (pessoalmente ou através de representantes).

II- O Recorrente, não tendo demonstrado que exerceu uma actividade comercial em nome próprio, não pode arrogar-se da qualidade de comerciante para efeitos do disposto no artigo 13º do Código Comercial. 

III- A nova redacção do artº 17º-A do CIRE, introduzida pelo DL nº 79/2017 de 30 de Junho, veio restringir o âmbito subjectivo de aplicação do PER, no sentido de que este se aplica apenas às empresas ou pessoas singulares agentes económicos e não também a pessoas singulares tout court.

IV- Esta posição, no sentido de que o PER não é aplicável a pessoas singulares que não exerçam a sua actividade profissional como agentes económico-empresariais, tem sido constante e pacífica nesta 6ª secção do Supremo Tribunal de Justiça.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I- Relatório

 AA propôs processo especial de revitalização.

Por despacho datado de 09/02/2017, entendeu o Tribunal de 1ª instância que o caso dos autos preenchia os requisitos constantes do art.17.°-A e 17.°-C, n.° 1 e 2 do CIRE, pelo que declarou iniciado o processo especial de revitalização. E, por sentença datada de 29/11/2017, o Tribunal homologou o plano de revitalização do Revitalizando, ora Recorrente.

Porém, o credor Banco BB, S.A. e o credor CC, S.A. interpuseram recurso da sentença homologatória, alegando, designadamente, a inadmissibilidade da aplicação do processo especial de revitalização a pessoas singulares; a falta de documentos comprovativos da qualidade de empresário do Revitalizando, ora Recorrente e de indicação da data de início da sua actividade; e a falta de documentos comprovativos da sua situação financeira, nomeadamente, a respectiva declaração de IRS.

Por decisão singular, datada de 12/02/2018, o Tribunal da Relação de Lisboa considerou que as normas que regem o processo especial de revitalização devem ser objecto de uma interpretação restritiva conducente à sua aplicação exclusiva às pessoas singulares que sejam comerciantes, empresários ou que desenvolvam uma actividade económica por conta própria, julgando parcialmente os recursos interpostos, e determinou que o ora Recorrente juntasse aos autos prova documental atinente à demonstração de que é empresário, comerciante ou que desenvolve uma actividade económica por conta própria, bem como a data de início da sua actividade e declaração de IRS, sob pena de não homologação do plano de revitalização.

Juntos os documentos, o Tribunal de 1ª instância proferiu decisão, com o seguinte teor:

“Os documentos juntos aos autos pelo devedor não são passíveis de comprovar a sua qualidade de empresário ou comerciante, aquando da entrada dos presentes autos em juízo.

Assim sendo, na sequência da Douta decisão Sumária do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, revogo a homologação do Plano e determino o encerramento dos autos.”

Inconformado com tal decisão o ora Recorrente interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.

A credora Banco BB S.A apresentou contra alegações, pronunciando-se pela improcedência do recurso.

O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 15 de Novembro de 2018, julgou improcedente o recurso e manteve a decisão recorrida.

Desta decisão o Requerente interpôs recurso de revista excepcional por oposição de acórdãos, a qual não foi admitida pela Formação a que alude o artigo 672°, n° 3 do CPC, tendo ordenado a remessa dos autos a esta 6ª secção, para conhecimento como Revista normal.

O Recorrente formulou as seguintes conclusões:

“1. O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão datado de 15/11/2018, julgou improcedente o recurso de apelação e, por consequência, confirmou a decisão recorrida que tinha revogado a homologação do plano de revitalização e determinado o encerramento dos autos.

2. O Tribunal da Relação de Lisboa aplicou erradamente as regras decorrentes do art.º 1.º, n.º 2, art.º 2.º, n.º 1 e art.º 17.º-A, n.º 1 e 2, todos do CIRE, na redação em vigor à data de entrada dos autos em juízo (07/02/2017), o que o levaria, por um lado, a julgar os documentos juntos aos autos pelo Recorrente insuscetíveis de comprovar a respetiva qualidade de empresário ou comerciante e, por outro, a julgar o PER inaplicável a pessoas singulares que não fossem comerciantes ou empresários ou que não exercessem uma atividade económica por conta própria.

3. O presente recurso tem por objeto o referido acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa por consubstanciar uma errada aplicação da Lei,

4. Porquanto nos termos da Lei e da jurisprudência, os factos demonstrados através dos documentos juntos aos autos pelo Recorrente integram a qualidade de empresário e, ainda que assim não se entendesse - o que não se concede e só se admite por mero dever de patrocínio -, sempre o PER seria aplicável a pessoas singulares que não fossem comerciantes ou empresários ou não exercessem, por conta própria, qualquer atividade económica.

⎯ DA ADMISSIBILIDADE LIMINAR DO PRESENTE RECURSO

5. O acórdão recorrido está em oposição com o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 16/12/2015, no âmbito do processo n.º 2112/15.7T8STS.P1 (“acórdão fundamento” - cfr. Doc. n.º 1), sem que exista jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça conforme ao primeiro (cfr. art.º 14.º, n.º 1 do CIRE e art.º 686.º e 687.º do CPC ex vi art.º 14.º, n.º 1 do CIRE).

6. Proferidos no domínio da mesma legislação, tais acórdãos decidiram de forma divergente as mesmas questões fundamentais de direito:

• Contrariamente ao acórdão recorrido, o Tribunal da Relação do Porto, no acórdão fundamento, julgou factos idênticos aos demonstrados através dos documentos juntos aos autos pelo Recorrente como integrantes da qualidade de “empresário”; e

• Também contrariamente ao acórdão recorrido, o mesmo Tribunal, no mesmo acórdão, julgou o PER aplicável a pessoas singulares que não sejam comerciantes ou empresários, nem exerçam, por conta própria, qualquer atividade económica.

⎯ DA QUALIDADE DE EMPRESÁRIO DO RECORRENTE

7. Andou mal o Tribunal da Relação de Lisboa, ao julgar que os documentos juntos aos autos pelo Recorrente não são passíveis de comprovar a sua qualidade de empresário, aquando da entrada dos presentes autos em juízo.

Senão vejamos:

8. O Recorrente dedicou toda a sua vida à atividade empresarial e assim se apresentou nos presentes autos na qualidade de empresário (cfr. requerimento inicial de apresentação a PER e demais requerimentos subsequentes).

9. O Recorrente foi fundador e titular de inúmeras empresas, dedicando-se ao negócio e industrialização das mesmas de forma profissional e delas retirando o principal sustento para si e para a sua família (cfr. requerimento inicial de apresentação a PER),

10. Tanto que a crise económica e financeira, ao ter impacto na sua atividade empresarial, conduziu, também, à situação económica difícil do Recorrente, cujo principal passivo decorreu, pois, da recessão sofrida pela sua atividade empresarial (cfr. requerimento inicial de apresentação a PER e respetivo anexo III).

11. Assumindo, ao longo da sua vida, a responsabilidade máxima pela sua gestão e administração, o Recorrente já foi sócio e gerente da DD, Lda. (de notar que além do Recorrente, o outro sócio era a EE, S.A., da qual o Recorrente era administrador único); administrador único da EE, S.A.; sócio e gerente da FF, Lda.; sócio e gerente da GG, Lda.; sócio e gerente da HH, Lda.; gerente da II, Lda. (de notar que o seu sócio único era a EE, S.A., da qual o Recorrente era administrador único); e sócio e gerente da JJ Portugal, Lda., conforme ficou demonstrado nos presentes autos (cfr. requerimento inicial de apresentação a PER, respetivo anexo III e Docs. n.º 8, n.º 9, n.º 3, n.º 4, n.º 10, n.º 11 e n.º 7 do Recurso de Apelação).

12. Os próprios contratos de sociedade das acima referidas empresas consagravam o papel fundamental dos membros da gerência e da administração (cfr. contrato de sociedade da sociedade GG, Lda. junto como Doc. n.º 12 do Recurso de Apelação).

13. Para além das mencionadas sociedades comerciais, o Recorrente era no momento da entrada dos presentes autos em juízo e continua, ainda, a ser hoje, o responsável máximo pela gestão e administração da sociedade KK, S.A., da qual é acionista e presidente do conselho de administração, assumindo-se como a sua “alma mater”, ditando, enquanto seu gestor de “direito” e de “facto”, os caminhos da mesma (cfr. requerimento apresentado pelo Recorrente em 22/02/2018, respetivo Doc. n.º 1, Docs. n.º 13 e n.º 14 do Recurso de Apelação e, ainda, contrato de sociedade da KK, S.A. junto como Doc. n.º 14 do Recurso de Apelação).

14. Além das ações da KK, S.A. detidas pelo próprio Recorrente, as restantes foram subscritas pela EE, SGPS, S.A. da qual o Recorrente era administrador único (cfr. Doc. n.º 13 do Recurso de Apelação), donde resulta o monopólio do Recorrente do controlo daquela sociedade.

15. O Recorrente ainda é, atualmente, sócio único e gerente e, por isso, o responsável máximo pela gestão e administração, da sociedade comercial por quotas LL, Unipessoal, Lda. (cfr. requerimento apresentado pelo Recorrente em 22/02/2018, respetivo Doc. n.º 1 e Doc. n.º 15 do Recurso de Apelação).

16. Contrariamente ao decidido no acórdão recorrido, a detenção de participações sociais, bem como a titularidade de órgãos sociais no momento da entrada dos presentes autos em juízo (no caso, a qualidade de acionista e de presidente do conselho de administração da sociedade KK, S.A.) atribuem, no caso dos presentes autos, a qualidade de “empresário” ao Recorrente.

17. Assim decidiu Tribunal da Relação do Porto no acórdão fundamento (cfr.transcrição supra).

18. O património do Recorrente sempre integrou, em todos os momentos, uma empresa, pelo que, com o presente PER, visa a revitalização do substrato empresarial de que é titular.

19. O Recorrente, agindo em prol das acima identificadas empresas, perseguindo a finalidade de lucro das mesmas, agiu também em nome próprio para o seu comércio, nomeadamente, prestando avales e demais responsabilidades.

20. Entre as responsabilidades do Recorrente inerentes ao exercício da atividade empresarial, estava, nomeadamente, o pagamento de salários aos trabalhadores.

21. Ainda que assim não se entendesse, o que não se concede e só se admite por mero dever de patrocínio, sempre se diria que o facto de o Recorrente ter sido, em data imediatamente anterior à entrada dos presentes autos em juízo, sócio e gerente de inúmeras sociedades comerciais, assim como também o facto de se ter tornado, em data imediatamente posterior, sócio único e gerente da sociedade comercial LL, Unipessoal, Lda., sempre lhe confeririam a qualidade de empresário, sob pena de inconstitucionalidade normativa por violação do princípio da igualdade consagrado no art.º 13.º da CRP, que exige positivamente um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diverso de situações de facto diferentes.

22. Uma interpretação ainda que restritiva da “ratio legis” da aplicação do regime do PER, limitada à manutenção do devedor / agente económico no giro comercial (de modo a evitar o seu desaparecimento e consequente empobrecimento do tecido económico nacional conducente ao desemprego e à extinção de oportunidades comerciais) nunca poderia deixar de contemplar o caso dos presentes autos, que cabe dentro do espírito normativo subjacente ao escopo do regime do PER.

23. O Recorrente assumiu diversas obrigações relacionadas com a sua atividade empresarial, incluindo a subscrição de avais, que foram, entretanto, exigidas do Recorrente, colocando-o também numa situação económica difícil (cfr. lista supra).

24. O Recorrente é responsável por dívidas à Autoridade Tributária e Aduaneira e ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P. de várias sociedades comerciais correndo contra ele inúmeros processos de reversão (cfr. lista supra), donde resulta que o Recorrente exercia efetivamente funções de administração e de gestão de enorme relevância nos destinos das empresas para ser considerado subsidiariamente responsável.

25. Todos estes factos descritos integram a qualidade de “empresário”.

26. Assim também decidiu o Tribunal da Relação do Porto no acórdão fundamento (cfr. transcrição supra) em cujo caso subjacente o devedor se limitou apenas a alegar a sua qualidade de “empresário”, o facto de sobre ele recair o pagamento de salários aos funcionários das empresas que detinha, de ter contraído empréstimos para fazer face às despesas resultantes dos compromissos assumidos, de manter a sua empresa ativa e de se encontrar em “situação económica difícil.

27. Todos os referidos factos alegados no caso subjacente ao acórdão fundamento se verificam no caso dos presentes autos, sendo certo que o Tribunal da Relação do Porto, contrariamente ao acórdão recorrido, julgou que daqueles factos não resultavam dúvidas de que o devedor integrava a qualidade de empresário!

28. Acresce que, atenta a finalidade e as características do PER, que é um processo negocial extrajudicial do devedor, o Tribunal deve abster-se de verificar a existência de requisitos materiais de acesso ao PER, sendo-lhe permitido apenas debruçar-se sobre a existência dos requisitos formais (requerimento inicial de apresentação a PER e conteúdo da declaração de vontades de devedor e de pelo menos um credor em encetarem negociações conducentes à revitalização daquele).

29. Neste sentido, também decidiu o Tribunal da Relação do Porto, no acima mencionado acórdão fundamento (cfr. transcrição supra).

Subsidiariamente,

⎯ DA ADMISSIBILIDADE DO PER A PESSOAS SINGULARES QUE NÃO SEJAM COMERCIANTES OU EMPRESÁRIOS, NEM EXERÇAM, POR CONTA PRÓPRIA, QUALQUER ATIVIDADE ECONÓMICA

30. Também andou mal o Tribunal da Relação de Lisboa, ao julgar que o PER era inaplicável às pessoas singulares que não fossem comerciantes ou empresários, nem exercessem, por conta própria, qualquer atividade económica.

Senão vejamos,

31. À data de entrada do requerimento de apresentação do Recorrente a PER (07/02/2017), o art.º 1.º, n.º 2, o art.º 17-A, n.º 1 e 2, todos pela referência ao termo “devedor”, bem como a inserção sistemática das então normas constantes dos arts.17°-A a 17.º-I do CIRE no título das "Disposições introdutórias" permitiam concluir pela ausência de qualquer limitação ao disposto no art.° 2.º (sujeitos passivos da declaração de insolvência), cuja norma, em virtude da correspondente inserção sistemática, se projeta no PER.

32. Também a então redação do art.° 17.°-D, n.º 11 do CIRE incluía no âmbito de aplicação do PER o devedor pessoa singular ao estabelecer que "O devedor, bem como os seus administradores de direito ou de facto, no caso de aquele ser uma pessoa colectiva (...)". (sublinhado nosso)

33. Face à redação das normas acima referidas, existia, ao tempo da entrada em juízo dos presentes autos, uma corrente jurisprudencial e doutrinária a favor da submissão a PER de uma pessoa singular que não fosse empresário, nem comerciante ou não exercesse, por conta própria, nenhuma atividade económica, caso se encontrasse em situação económica difícil ou de insolvência iminente e ainda fosse suscetível de recuperação.

34. Tem aqui importância a letra da lei que deve ser o ponto de partida para a sua interpretação (cfr. art. 9.º do Código Civil).

35. Presume-se, pois, que o legislador soube consagrar na lei o seu pensamento, donde resulta que onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir.

36. A favor da aplicação do regime do PER às pessoas singulares que não fossem comerciantes ou empresários, nem exercessem, por conta própria, qualquer atividade económica, decidiu o Tribunal da Relação do Porto, no acima mencionado acórdão fundamento (cfr. transcrição supra).

37. No mesmo sentido, entre outros, também os acórdãos do Tribunal da Relação de Évora, datados de 09/07/2015 (proc. n.º 1518/14.3T8STR.E1), de 10/09/2015 (proc. n.º 1234/15.9T8STR.E1), de 05/11/2015 (proc. n.º 371/15.4T8STR.E1) e de 21/01/2016 (proc. n.º 1279/15.9T8STR.E1), bem como do Tribunal da Relação de Lisboa, datados de 16/06/2015 (proc. n.º 811/15.2T8FNC-A.L1-7) e de 13/07/2016 (proc. n.º 13693/16.8T8LSB.L1), e, ainda, do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 07/04/2016 (proc. n.º 3876/15.3T8ACB.C1).

38. A presente tese, além de difundida pela jurisprudência, foi também amplamente sustentada pela doutrina, bem como pelo Centro de Estudos Judiciários, conforme nos dá inclusivamente conta o Tribunal da Relação do Porto, no acima mencionado acórdão fundamento (cfr. transcrição supra).

39. Face ao exposto, ainda que se entendesse que o Recorrente não detinha, no momento da entrada dos presentes autos em juízo, a necessária qualidade de empresário, o que não se concede e só se admite por mero dever de patrocínio, sempre se diria que, uma vez cumpridos os requisitos legais do PER previstos nos então art.º 17.º-A a 17.º-I do CIRE, os quais em lado nenhum limitavam a sua aplicação a pessoas coletivas ou equiparadas, sempre teria que se admitir que qualquer devedor - ainda que não pessoa empresária - se poderia submeter a PER.

40. Além disso, não pode distinguir-se a situação de empresas ou pessoas singulares empresárias ou comerciantes da situação das pessoas singulares não empresárias ou comerciantes, sob pena de violação da “ratio legis” do PER e do princípio da igualdade consagrado no art.º 13.º da CRP, que exige positivamente um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diverso de situações de facto diferentes.

41. Até porque a discrepância sobre esta matéria em sede jurisprudencial acarretou decisões totalmente distintas e um tratamento desigual em situações cujos devedores pessoas singulares se encontram, entre si, em situação semelhante, sendo que uns conseguem obter o deferimento do seu PER, enquanto outros são obrigados a recorrer à insolvência, quando a sua situação ainda era suscetível de recuperação.

42. De modo que a decisão, objeto do presente recurso, incorreu num vício de inconstitucionalidade normativa na medida em que, face à existência de outras interpretações normativas menos lesivas dos direitos do Recorrente e mais consentâneas com uma interpretação conforme à CRP, optou por aplicar a norma jurídica extraída da interpretação do art.º 1.º, n.º 2 e 17.º-A, n.º 1 do CIRE no sentido de que o regime do PER não é aplicável a pessoas singulares não empresárias ou comerciantes.

Por conseguinte,

43. Ao negar a qualidade de empresário do Recorrente, bem como ao negar a aplicabilidade do PER a pessoas singulares que não fossem comerciantes ou empresários, nem exercessem por conta própria uma atividade económica, o Tribunal da Relação de Lisboa violou as disposições conjugadas do art.º 1.º, n.º 2, art.º 2.º, n.º 1 e art.º 17.º-A, n.º 1 e 2, todos do CIRE, na redação em vigor à data de entrada dos autos em juízo (07/02/2017),

44. Porquanto deveriam as normas jurídicas decorrentes de tais disposições ter sido interpretadas e aplicadas pelo Tribunal da Relação de Lisboa no sentido de reconhecer a qualidade de empresário do Recorrente e, subsidiariamente, reconhecer a aplicabilidade do PER a pessoas singulares que não sejam comerciantes ou empresários, nem exerçam por conta própria uma atividade económica.

45. Razão pela qual deverá a decisão, objeto do presente recurso, ser substituída por outra que mantenha, na sequência da correta interpretação das acima referidas normas, a homologação do plano de revitalização do Recorrente”.

O recorrente abona em defesa da sua tese a oposição entre o acórdão ora recorrido e o acórdão fundamento proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 16/12/2015, no âmbito do processo n.º 2112/15.7T8STS.P1.

Não foram produzidas contra-alegações.

Cumpre, antes de mais apreciar a admissibilidade da presente revista

O regime de recurso estabelecido no artigo 14.º, n.º 1, do CIRE é um regime especial, aplicável no âmbito do processo de insolvência e do PER, que afasta definitivamente, nos casos por ela abrangidos, a revista excepcional.

Dispõe-se na norma que “não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ela conforme”.

A interposição de recurso ao abrigo desta norma não prescinde, naturalmente, dos pressupostos gerais de admissibilidade de recurso (cfr., designadamente, os artigos 629.º e 671.º do CPC) e depende sempre da demonstração de uma oposição de julgados.

Analisados os autos constata-se que efectivamente o acórdão recorrido está em oposição com o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 16/12/2015, no âmbito do processo n.º 2112/15.7T8STS.P1 (acórdão fundamento), sem que exista jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça conforme ao primeiro (cfr. art. 14º, nº 1 do CIRE e arts. 686º e 687º do CPC ex vi artigo 17º do CIRE).

Deste modo, admite-se a revista.

II- Apreciação do Recurso 

1. Objecto do recurso

        Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir, in casu, são as seguintes:

      

- Da qualidade de empresário ou comerciante;

- Da aplicabilidade do processo especial de revitalização às pessoas singulares que não sejam comerciantes, ou empresários, nem exerçam por si mesmos qualquer actividade económica.

2. Fundamentação

2.1 Da matéria de facto

Os elementos relevantes para a decisão são os constantes do relatório supra referido.

2.2 O Direito

2.2.1 Analisemos, primeiramente, a questão da invocada qualidade de empresário ou comerciante.

Entende o Recorrente que o Tribunal a quo andou mal, ao julgar que os documentos por si juntos aos autos não são passíveis de comprovar a sua qualidade de empresário ou comerciante, aquando da entrada dos presentes autos em juízo. Conclui que como "empreendedor, dedicou toda a sua vida à actividade empresarial, sendo fundador e titular de inúmeras empresas, detendo nelas participações sociais. Recorrente foi e é membro de órgãos sociais em diversas empresas, assumindo, ao logo da sua vida, a responsabilidade máxima pela correspondente gestão e administração.  Enquanto responsável pela sua gestão e administração, dedicou-se, de forma reiterada, ao negócio e industrialização das respetivas empresas, fazendo disso a sua profissão." Invoca, assim, ter demonstrado a sua qualidade de empresário e de comerciante.

Importa, por isso, analisar se a participação em sociedades na qualidade de sócio assim como o exercício da gerência e/ou administração em diversas sociedades implica a atribuição ao Recorrente da qualidade de empresário ou de comerciante para os efeitos de lhe poder ser aplicável o processo especial de revitalização.

Vejamos:

Nos termos do disposto no art. 13.° do Código Comercial: 

“São comerciantes:

1.º As pessoas que, tendo capacidade para praticar actos de comércio, fazem deste profissão;

2.º As sociedades comerciais.”

Logo, no que interessa, o art. 13° do Código Comercial exige, para a qualificação de pessoa singular que a pessoa, tendo capacidade para praticar actos de comércio, faça profissão dessa prática.

Como bem refere o acórdão recorrido, “Esta exigência de profissionalidade supõe o exercício do comércio em nome próprio, como geralmente se entende, porque só em nome próprio se exerce uma profissão. É, pois, comerciante "quem exercer profissionalmente o comércio, sendo este um tipo de actividade económica que essencialmente se caracteriza por ser uma actividade de interposição nas trocas, isto é, de mediação entre a oferta e a procura."

"A circunstância de ser sócio e gerente de uma sociedade, só por si, não garante a qualidade de comerciante. (…) quem exerce o comércio é a própria sociedade, não os sócios.

(…)

E isto é igualmente válido até com mais acuidade, no caso de um administrador de uma sociedade anónima, já que o administrador pode nem sequer ser acionista.

Por conseguinte, se fosse o caso, o plano de recuperação haveria de ser aplicável à sociedade que se encontrasse nas condições previstas na lei para o efeito e não em relação ao gerente ou administrador”.

Efectivamente, na linha da fundamentação do acórdão recorrido, apesar de o Recorrente ter sido sócio fundador e titular de participações sociais em diversas sociedades, assim como administrador e gerente nos respectivos órgãos de administração e representação, tal facto não lhe confere a qualidade de comerciante. Na verdade, quem exerce a actividade comercial é a própria sociedade e não os seus sócios ou gerentes e administradores, que formam e exprimem vontade juridicamente imputável à sociedade[1]. É a sociedade que, se for comercial, é comerciante nos termos do art. 13º, 2º, do Código Comercial, e, se assim for, titular/exploradora de empresa comercial[2].

Como refere Coutinho de Abreu[3], “para serem comerciantes, as pessoas têm de exercer uma atividade comercial ou praticar atos de comércio com profissionalidade, isto é, de modo habitual ou sistemático (não é comerciante quem pratique esporadicamente atos mercantis). (…)

 Deve acrescentar-se que as pessoas que exercem profissionalmente uma atividade comercial só são comerciantes quando a exerçam em nome próprio (pessoalmente ou através de representantes); dizendo de outra maneira: é comerciante a pessoa que exerce pessoalmente e a título profissional o comércio ou em cujo nome ele exercido”.

Neste mesmo entendimento, em caso semelhante, pode ler-se no acórdão do STJ de 07/03/2017, processo 1224/16.4T8VNG.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt:

“De facto, o Recorrente não exerce, a se, qualquer actividade económica enquanto agente económico, não obstante, como o mesmo alega, seja administrador de duas empresas, que desenvolvem uma actividade comercial/industrial, não sendo aquele que está comprometido, mas antes sociedades suas representadas, sem embargo de o mesmo poder recorrer ao plano de pagamentos aludido nos artigos 249º a 251° do CIRE, caso se verifiquem os respectivos pressupostos, expediente este mais célere e expedito, destinado a ser utilizado, precisamente, por pessoas singulares não empresárias e titulares de pequenas empresas.

(…)

A circunstância de o Recorrente ter sido sempre, como aventa, a alma mater das empresas, exercendo actividade económica de relevo, agindo em nome próprio para o seu comércio, interagindo directamente em todas as démarches necessárias e nesse pressuposto, em nome próprio e em prol das referidas empresas, prestou vários avales e demais responsabilidades. Com as quais se vê, hoje, confrontado e que representam, na integra, todo o seu passivo, não equivale, nem pode equivaler, ao desempenho de uma actividade empresarial em nome próprio: o Recorrente não é, nem poderá ser, considerado comerciante. No que tange às responsabilidades por si assumidas, enquanto administrador e/ou gerente das sociedades de que é sócio, foram a titulo pessoal e por isso só a si poderão ser assacadas e não a si próprio enquanto, quiçá, «entidade empresarial» sui generis, englobante das sociedades que gere naquela qualidade”.

Do mesmo modo, é a sociedade que se assume (como pessoa colectiva) a titular e a exploradora da empresa como “objecto-instrumento de sujeito para o exercício de actividade económica” e “estrutura produtivo-económica objecto de direitos e obrigações”[4]. Não é do sócio ou administrador ou gerente da sociedade a titularidade da empresa objectiva (também organização de meios), pelo que, também por esta via, não se pode arrogar a qualidade de “empresário” (titular de empresa) por efeito dessas qualidades societárias para efeitos de aplicação dos artigos 1º, nº 2, e 17º-A, nos 1 e 2, do CIRE.

Assim, não tendo o Recorrente exercido uma actividade comercial em nome próprio não pode arrogar-se da qualidade de comerciante para efeitos do disposto no artigo 13º do Código Comercial.

Por outro lado, também ficou demonstrado que o Recorrente não exerceu, a se, qualquer actividade económica enquanto agente económico ou empresarial.

Deste modo, nesta parte, improcede a revista.

2.2.3 Importa, por fim, analisar se o processo especial de revitalização (PER) é aplicável a pessoas singulares que não sejam comerciantes ou empresários, nem exerçam, por conta própria, qualquer actividade económica.

Para solução desta temática, subscrevemos integralmente a fundamentação e posição exarada no citado acórdão do STJ de 07/03/20, processo nº 1224/16, no qual se escreveu:

“Como já foi decidido por este mesmo Colectivo no processo 3377/15.0T8STR.E1.S1, Acórdão de 21 de Junho de 2016 e passamos a transcrever:

«(…)  O PER constitui uma profunda alteração introduzida pela Lei 16/2012, resultante das negociações com a Troika, cujos princípios orientadores constam, de uma maneira geral da Resolução do Conselho de Ministros 43/2011 e cuja consagração legal, decorre agora dos artigos 17º-A a 17º-I do CIRE.

Nesses normativos veio-se a consagrar dois processos especialíssimos, urgentes, antecipatórios do estado de insolvência do devedor, com vista à sua obstaculização: o primeiro, prevenido nos artigos 17º-A a 17º-H, destinado à obtenção de um acordo entre o devedor e os credores, com vista à sua conclusão para recuperação daquele; o segundo, prevenido no artigo 17º-I, é o processo que visa a homologação do acordo havido entre o devedor e os credores extrajudicialmente, quer dizer, enquanto no primeiro dos procedimentos se recorre desde logo ao Tribunal, através da declaração conjunta do devedor e de pelo menos um dos seus credores, na qual manifestam a intenção de encetarem negociações conducentes à revitalização daquele e através de um plano de recuperação, artigo 17º-C, nº1, no segundo dos procedimentos, o acordo é efectuado extrajudicialmente entre o devedor e os credores que representem, pelo menos a maioria dos votos a que se alude no artigo 212º, nº 1, acompanhado dos documentos referidos no artigo 24º (relação de credores, relatórios de actividades e de exercícios, etc), levando à prolação de um despacho de homologação ou de não homologação no prazo de dez dias, artigo 17º-I, tratando-se de um procedimento mais expedito e simplificado que leva a uma tramitação processual mais abreviada ainda.

A estrutura destes dois processos é híbrida (hibrid procedures do direito inglês), porque fazendo apelo à autonomia privada do devedor e dos credores, deixa-lhes uma grande margem de manobra, com vista à composição dos respectivos interesses, embora sempre pautados pelos princípios orientadores, maxime, da boa fé, da cooperação, da igualdade e da transparência e com a intervenção das autoridades judiciárias na respectiva aprovação, obtêm a garantia do seu cumprimento, desde que o devedor se encontre numa situação económica difícil, ou em situação de insolvência eminente, mas que seja ainda possível a sua recuperação, o que pressupõe e impõe que o devedor tenha uma condição económica que não indicie um passivo superior ao activo nem esteja numa situação que já não lhe seja permitido satisfazer quaisquer dos seus compromissos, porque se assim for, este processo especialíssimo não se lhe pode aplicar, aplicando-se antes o processo de insolvência.

Como se vê, estes dois procedimentos apresentam-se na sua estrutura em relação ao processo de insolvência, como se de uma verdadeira providência cautelar antecipatória se tratasse, destinada à manutenção da estrutura económica do devedor, permitindo a continuação da sua actividade, evitando-se o desmantelamento da empresa, desfecho inultrapassável em processo de insolvência, com todas as consequências daí advenientes, nomeadamente, com a consequente extinção de postos de trabalho.

Referimos «da empresa», porquanto entendemos que este especifico procedimento se aplica apenas às empresas ou a pessoas singulares agentes económicos e não também a pessoas singulares «tout court», muito embora a Lei não estabeleça qualquer exclusão, esta verifica-se tendo em atenção os elementos históricos, sistemáticos e teleológicos orientadores da introdução do PER no nosso ordenamento jurídico, o que parece defluir inequivocamente da Exposição de Motivos da Proposta da Lei 39/XII, de 30 de Dezembro de 2011, que esteve na origem da Lei 16/2012, de 20 de Abril, que alterou o CIRE e criou o Processo Especial de Revitalização, uma vez que como aí se refere «(…) o principal objectivo prosseguido por esta revisão passa por reorientar o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas para a promoção da recuperação, privilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial, relegando-se para segundo plano a liquidação do seu património sempre que se mostre viável a sua recuperação, (…)», afastando-se, desta sorte, a ideia inicial do CIRE, primariamente orientada para o desmantelamento da empresa e por isso «(…) O processo especial de revitalização pretende assumir-se como um mecanismo célere e eficaz que possibilite a revitalização dos devedores que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente mas que ainda não tenham entrado em situação de insolvência actual. A presente situação económica obriga, com efeito, a gizar soluções que sejam, em si mesmas, eficazes e eficientes no combate ao “desaparecimento” de agentes económicos, visto que cada agente que desaparece representa um custo apreciável para a economia, contribuindo para o empobrecimento do tecido económico português, uma vez que gera desemprego e extingue oportunidades comerciais que, dificilmente, se podem recuperar pelo surgimento de novas empresas. Este processo especial permite ainda a rápida homologação de acordos conducentes à recuperação de devedores em situação económica difícil celebrados extrajudicialmente, num momento de pré-insolvência, de tal modo que os referidos acordos passem a vincular também os credores que aos mesmos não se vincularam, desde que respeitada a legislação aplicável à regularização de dívidas à administração fiscal e à segurança social e observadas determinadas condições que asseguram a salvaguarda dos interesses dos credores minoritários.(…)», in www.dgpj.mj.pt.

É óbvio que esta posição de princípios, explanada de forma deficitária face ao que também se deixou consignado naquela mesma Exposição de Motivos sic «(…). Na mesma linha, é criado o processo especial de revitalização (artigos 17.º-A a 17.º-I), lançando-se a primeira pedra deste processo logo no n.º 2 do artigo 1.º, explicitando-se, em traços muito largos, quais os devedores que ao mesmo podem recorrer. O processo visa propiciar a revitalização do devedor em dificuldade, naturalmente que sem pôr em causa os respectivas obrigações legais, designadamente para regularização de dividas no âmbito das relações com a administração fiscal e a segurança social (…)», apenas tem sentido se aplicada a sujeitos economicamente activos, isto é, que façam do comércio e/ou da indústria, a sua actividade habitual e profissional, o que resulta, como aí se precisou, em traços muito largos, do articulado enformador do novo procedimento de recuperação, evitando-se o anátema resultante do recurso a um plano de insolvência sempre após a declaração desta, cfr a este propósito Ana Maria Peralta, Os “novos créditos” no PER e SIREVE: conceito e regime, in III Congresso da Insolvência, 279/312.

A doutrina e a jurisprudência não são unívocas quanto a este entendimento, cfr inter alia na doutrina, contra aquela posição, Catarina Serra, in O Regime Português da Insolvência, 5ª edição, 176; Maria do Rosário Epifâneo, O Processo Especial de Revitalização, 2015, 16; Isabel Alexandre, Efeitos Processuais da Abertura do Processo de Revitalização, in II Congresso de Direito da Insolvência, 235/254; Luís M. Martins, Recuperação de Pessoas Singulares, Vol I, 2ª edição, 15; Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 461; a favor, Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição, 142/143; Paulo Olavo Cunha, Os deveres dos gestores e dos sócios no contexto da revitalização de sociedades, in II Congresso de Direito da Insolvência, 209/234; Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis, PER, O Processo Especial De Revitalização, 13 (embora estes autores defendam uma quase terceira posição ao sustentarem que apenas as pessoas singulares, pessoas colectivas e os patrimónios autónomos que exerçam uma actividade económica - não necessariamente lucrativa – poderão aceder ao PER). A jurisprudência das Relações tem andado dividida no que tange ao melhor entendimento a adoptar.

Num intuito de esclarecer e de harmonizar os diferentes entendimentos, foi produzido o primeiro Ac. do STJ neste sentido em 10 de Dezembro de 2015, no proc. 1430/15.9.T8STR.E1.S1 (Relator Pinto de Almeida, aqui primeiro Adjunto) – que constitui o Acórdão fundamento -, sendo que, posteriormente, foi publicado um outro, em 12 de Abril de 2016 (Relator Salreta Pereira), este como aquele in www.dgsi.pt, os quais traduzem a posição desta 6ª secção do STJ, especializada nesta problemática insolvencial, além do mais.

Ambos os Acórdãos se debruçaram sobre a temática, pondo o assento tónico na Exposição de Motivos que supra se referenciou, a qual constitui a pedra angular para as interpretações a efectuar à legislação sobre o PER e suas eventuais correcções.

O legislador, nas alterações introduzidas no CIRE, a propósito do processo de recuperação, não foi feliz no articulado, encontrando-se o mesmo eivado de imprecisões, omissões e intercorrências obscuras, sendo que, cabe à doutrina e à jurisprudência encontrar as melhores escolhas nas interpretações e aplicações a fazer, tendo em atenção que o direito é a vida, como nos diz Cabral de Moncada in Filosofia do Direito e a ordem jurídica constitui um todo complexo que funciona num sistema de vasos comunicantes.

Assim sendo e se é certo que a Lei não distingue entre devedores pessoas singulares, agentes económicos ou não agentes económicos, tendo em atenção a intenção do legislador, reflectida na motivação formulada, parece-nos acertada esta nossa leitura redutora do PER, a qual, sempre s.d.r.o.c., se mostra a mais consentânea com os propósitos equacionados naquela Exposição, mormente, o apelidado combate ao desaparecimento dos agentes económicos, que justifica a se a interpretação restritiva que ensaiamos, na esteira do sustentado no Aresto apresentado como fundamento.

Por outra banda, não conseguimos vislumbrar na doutrina assinalada como desenvolvendo a posição ex adverso, qualquer razão adicional para além de a mesma se encontrar sustentada na letra da Lei (sem qualquer interpretação correctiva utilizando-se apenas a máxima ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus), cfr artigo 17º-A, nº1 «O processo especial de revitalização destina-se a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação.». Só que, esse argumento, o de a Lei se referir ao devedor, em termos genéricos, tem de ter a leitura que decorre do disposto no artigo 10º, nº1 do CCivil «A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.», o que nos conduz, sem sombra de dúvida, fazendo apelo aos elementos essenciais à prognose interpretativa (elementos históricos, sistemáticos e teleológicos), para aquela apontada conclusão de o PER se dirigir apenas e tão só a devedores agentes económicos, tendo sido estes e apenas estes, que originaram a introdução no nosso sistema jurídico desta nova realidade procedimental, com vista a debelar o seu desmantelamento em cadeia, originado por uma crise económica em germinação e que mesmo actualmente ainda não tem fim à vista. (…)».

Esta tese, no sentido de que o PER não é aplicável a pessoas singulares, que não exerçam a sua actividade profissional como agentes económico-empresariais, tem sido constante e pacífica nesta 6ª secção, à qual estão distribuídos os recursos sobre questões de comércio, nos termos do disposto no artigo 54º, nº 2, da LOSJ, e não vemos razões para dela discordar.

E se dúvidas existiam, a situação ficou clarificada, no sentido da interpretação supra referida, com a publicação do DL nº 79/2017 de 30 de Junho.

Com efeito, o art. 3º deste diploma veio alterar, juntamente com a alteração do art. 1º, nº 2 (“ Estando em situação económica difícil, ou em situação de insolvência meramente iminente, a empresa pode requerer ao tribunal a instauração de processo especial de revitalização, de acordo com o previsto nos artigos 17.º-A a 17.º-J.”) , a redacção do art. 17º-A do CIRE, modificação que entrou em vigor em 1 de Julho de 2017, passando a dispor:

“1 – O processo especial de revitalização destina-se a permitir à empresa que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos  credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização.

2 – O processo referido no número anterior pode ser utilizado por qualquer empresa que, mediante declaração escrita e assinada, ateste que reúne as condições necessárias para a sua recuperação e apresente declaração subscrita, há não mais de 30 dias, por contabilista certificado ou por revisor oficial de contas, sempre que a revisão de contas seja legalmente exigida, atestando que não se encontra em situação de insolvência atual, à luz dos critérios previstos no artigo 3.°.”

Importa salientar que a nova redacção do art. 17º-A do CIRE passou a ser aplicável, a partir da sua entrada em vigor, aos processos pendentes, como resulta expressamente da norma transitória, constante do seu art. 6º.

Com a alteração introduzida desapareceu o termo “devedor”, sendo substituído pelo termo “empresa”. Ou seja onde antes se lia “O processo especial de revitalização destina-se a permitir ao devedor (…)”, passou a ler-se “O processo especial de revitalização destina-se a permitir à empresa (…)”.

Assim, no que respeita à questão de a pessoa singular não comerciante e/ou sem empresa estar ou não integrada no âmbito de aplicação do PER, a alteração legislativa veio restringir esse âmbito subjectivo de aplicação, consagrando literalmente que é a “empresa” o núcleo dessa aplicação – apenas devedores titulares (da propriedade e/ou exploração) de empresa, comercial ou não (tendo em conta o art. 5º do CIRE, que só refere “actividade económica”; logo, comerciantes ou não, pois as atividades podem ser jurídico-mercantis ou não, desde que empresários naquele sentido), que estejam em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente.[5]

O que reforça a posição que adoptamos, no sentido de que este específico procedimento se aplica apenas às empresas ou a pessoas singulares agentes económicos e não também a pessoas singulares tout court.

Assim, também nesta, parte improcede a revista.

III- Decisão

Deste modo, acorda-se em negar a revista, mantendo-se o acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente

Lisboa, 30 de Abril de 2019

Raimundo Queirós (Relator)

Ricardo Costa

Ana Paula Boularot

___________________

[1] Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Volume I, Introdução, Atos de comércio, Comerciantes, Empresas, Sinais distintivos, 11ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, nt. 332 – p. 151.
[2] Sobre as diferentes titularidades das “empresas do sector privado”, v. igualmente Coutinho de Abreu, Curso…, volume I cit., p. 288 e ss.
[3] Curso…, volume I cit., p. 119.
[4] Coutinho de Abreu, Curso…, volume I cit., p. 220.
[5] Neste sentido, v. Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Volume I, Introdução, Atos de comércio, Comerciantes, Empresas, Sinais distintivos, 11ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, p. 336-337, 340-342; Ricardo Costa, “Gestão das sociedades em contexto de ‘crise de empresa’”, V Congresso Direito das Sociedades em Revista, Almedina, Coimbra, 2018, nt. 12 – p. 176-177, referindo: “Com as alterações do DL 79/2017 (e a partir da sua entrada em vigor), os n.os 2 e 3 do art. 1.º do CIRE passaram a delimitar subjectivamente o PER como processo pré-insolvencial dos devedores exploradores de empresas (harmonizando-se nessa altura com o SIREVE entretanto revogado) e o novo PEAP (processo especial para acordo de pagamento) como processo pré-insolvencial para os devedores (incluindo pessoas colectivas) sem exploração de empresa e com a apresentação das mesmas situações de situação económica difícil e insolvência eminente (arts. 222º-A e ss, CIRE, aditados pelo art. 4º do DL 79/2017)”.