Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
324/14.0TELSB-EU.L1-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: EDUARDO LOUREIRO
Descritores: ESCUSA
IMPARCIALIDADE
JUIZ NATURAL
SUSPEIÇÃO
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 12/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA/ RECUSA
Decisão: IMPROCEDÊNCIA/ NÃO DECRETAMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

I. Nos termos do art.º 43.º n.os  4 e 1 do CPP, o juiz pode requerer escusa de intervir «quando ocorrer o risco de [a sua intervenção] ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade».

II. O fundamento da escusa deve ser objectivamente analisado, não bastando um mero convencimento subjectivo, devendo basear-se em uma razão séria e grave, da qual ou na qual resulte inequivocamente um estado de forte verosimilhança (desconfiança) sobre a imparcialidade do juiz (propósito de favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro).

III. Estando em causa a decisão de recurso de despacho que indeferiu pedido de admissão como assistente de um, alegado, ofendido em inquérito criminal em que se averiguam factos do, comummente, conhecido por caso "…", relativamente a cujos interesses e interessados a Senhora Desembargadora peticionante da escusa não evidencia conexão de maior proximidade e efectividade do que a de também (poder) ter sido por eles  patrimonialmente prejudicada, mas em montante de pequeno significado e sem que em momento ou procedimento algum tenha assumido formalmente a qualidade de lesada, accionando ou reclamando em vista do ressarcimento do pertinente prejuízo, não se concebe como na percepção do homem médio se possa formar suspeita, séria e objectiva, de que Senhora Magistrada se possa mover por interesses patrimoniais próprios ou empatias ou malquerenças relativamente a intervenientes processuais ou, até, terceiros, e de que, desse modo, ponha em risco a sua imparcialidade naquele  julgamento, colidindo com o comportamento isento e independente que se espera e exige do julgador, e ferindo a confiança dos interessados e da comunidade na administração da justiça.

IV. E, de seu lado, a circunstância de ter sido a própria magistrada a suscitar a sua escusa, numa atitude que só pode ser qualificada de escrupulosa, é penhor bastante de que sempre manterá a sua imparcialidade em tal julgamento.

V. Se, em recurso em incidente de constituição de assistente de um dos milhares, de ofendidos no, denominado, caso … a Juíza Desembargadora relatora, também ela patrimonialmente lesada naquele caso suscita ela própria a sua escusa

Decisão Texto Integral:
Autos de Escusa
Proc. n.º 324/14.0TELSB-EU.L1-A.S1
5ª Secção


acórdão

I. relatório.
1. A Senhora Juíza Desembargadora Dra. AA, em exercício de funções na ... Secção … do Tribunal da Relação ..., veio aos autos de recurso penal em epigrafe apresentar requerimento do seguinte teor:
─ «Exmos Senhores Juízes Conselheiros
Supremo Tribunal de Justiça
[…]
 
AA, […] vem, respeitosamente, requerer a V. Exªs que a escusem de intervir nos autos de recurso identificados, cujo objecto é a admissibilidade, ou não, da intervenção nos autos de um lesado do …, o que faz nos termos seguintes:
1. Por óbito de seu Pai, … BB, ficou a ora requerente com um lote de 1247,00 acções que faziam parte da carteira de que o mesmo era titular.
2. Com a chamada queda do …, veio a requerente a perder o valor das acções.
3. Nessa medida, pode ser considerada igualmente, como lesada do ….
4. Ora, a intervenção do Juiz nos autos deve ser reputada de imparcial. Não se trata de confessar uma fraqueza, de vencer ou recalcar questões pessoais, ou de fazer justiça eventual interesse próprio, mas de admitir o risco de não reconhecimento público da imparcialidade pelos motivos que constituem fundamento da suspeição…. Prof . Cavaleiro Ferreira, Curso, I, 237-239.
5. No caso vertente, quer a opinião pública, quer os intervenientes processuais, têm, pela dimensão do mesmo, o direito à chamada imparcialidade objectiva da justiça, no sentido de que a decisão que venha a ser proferida não possa ser questionada pela existência de factores externos à prolacção da mesma.
6. Os autos de recurso foram agora distribuídos à signatária, e o primeiro despacho foi o de mandar abrir apenso para requerer a escusa de intervir, pelo que, salvo melhor opinião, está o pedido em prazo.
Nestes termos, valorado o fundamento do presente pedido de escusa de intervir com base na experiência comum, requer a V. Exas que julguem procedente o presente pedido, e concedam à requerente a escusa de intervir nos autos 324/14.....
[…].».

2. Remetido o expediente, em separado, e distribuído neste Supremo Tribunal de Justiça (STJ) como procedimento de escusa de juiz nos termos dos art.os 43º n.º 4 e 45 do Código de Processo Penal (CPP), providenciou-se pelo completamento da sua instrução, primeiro, notificando-se a Senhora …, para «instruir adequadamente o pedido» – que apenas continha certidão do despacho a anunciar a intenção de suscitação de conflito e o despacho-requerimento de escusa propriamente dito –, e, depois, e ante a insuficiência do suprimento da Senhora Magistrada – que apenas apresentou um documento bancário a indicar a titularidade de 1 247 acções do banco "… …" (…) –, mas para evitar maiores delongas em processo de natureza urgente, obtendo-se a autorização de acompanhamento dos autos (principais) de recurso penal na aplicação CITIUS de modo a aceder-se aos elementos deles necessários à decisão.

3. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir:

II. Fundamentação.

A. Dados de facto relevantes.
4. Com interesse para a decisão colhem-se nestes autos e nos autos principais os seguintes dados:

(1). Nos autos de Inquérito Criminal 324/14.... do Departamento Central de Investigação e Acção Penal, respeitantes a factos do comummente conhecido por caso "…" (…), foi deduzida acusação pública em 14.7.2020 contra os arguidos CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, "…, SA", "…, SA", "…, SA", "…, SA", "… SA", "… Limited" e "… (Portugal)", imputando-lhes a comissão de crimes de associação criminosa, de corrupção activa e passiva no sector privado, de manipulação de mercado, de branqueamento, de falsificação e de burla qualificada, tudo referenciado às operações contabilísticas e financeiras que aí se discriminaram.

(2). Notificado dessa acusação, LL, id. nos autos, requereu em 16.2.2021 a sua admissão como assistente, ao abrigo do art.º 68º n.º 1 al.ª a) e 3 do CPP, «apresentou ACUSAÇÃO SUBORDINADA» ao abrigo do disposto no art.º 284º n.º 1 do CPP, « aderindo, […], em termos genéricos, à acusação pública», e deduziu pedido indemnização civil, invocando neste caso os prejuízos sofridos pela perda do valor de mercado de 32 500 acções ordinárias, escriturais, nominativas, emitidas pelo Banco …, SA, que adquirira em oferta pública de venda de aumento de capital em 2014 pelo valor total de € 21 901,66.

(3). Em despacho de 28.9.2021, o Senhor Juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal indeferiu esse – e outros – pedido(s) de constituição de assistente nos seguintes termos:
─  «Dos pedidos de constituição de assistente, formulados por […] LL […].
O detentor da acção penal, de deduziu oposição às requeridas constituições como assistentes.
Foi dado cumprimento ao disposto no n.º 4, do art.º 68.º do CPP, conforme despacho de fls. 62680 a 62681.
Vieram […] LL, […] requerer a respectiva constituição como assistente nos termos do art.º 68º n.º 1 al.ª a) e 3 do Código de Processo Penal.
Todos fundamentam o seu pedido (como decorre do pedido de indemnização civil) na aquisição de acções do ….
Porem, verifica-se que, como aduzido pelo titular da acção penal, aquando do encerramento do inquérito, por despacho de 14.07.2020, a fls. 47935 e segs., máxime fls. 48004 a 48006, foi consignado que, com base em queixa apesentada no dia 2.12.2014, havia sido instaurado o processo com o NUIPC 6049/14..., que corre seus termos no DCIAP e cujo objecto se reconduz à apreciação dos factos relacionados com o aumento de capital do …., concretizado em 2014.
Verifica-se que, os factos relatados e que fundamentam o pedido de constituição de assistente não são, pois, objecto destes autos.
Assim, no âmbito do presente inquérito, corroboramos o entendimento sancionado pelo detentor da acção penal de que não têm os requerentes legitimidade para se constituírem assistentes, nos termos e para os efeitos do art.º 68° n° 1 al. a) do Código de. Processo Penal, pelo que se indeferem os respectivos pedidos.
[…].»

(4). O requerente LL interpôs recurso desse despacho para o Tribunal da Relação ..., que veio a ser distribuído, como relatora, à Senhora Desembargadora ora requerente.

(5). Conclusos os autos de recurso à Senhora Desembargadora em 17.11.2021, deduziu, no imediato, o pedido de escusa referido em 1. supra, que aqui se dá por reproduzido.

(6). De acordo com extracto bancário emitido em 16.4.2021 pelo banco "…", relativo ao período de 1.3.2021 a 31.3.2021, a Senhora Magistrada, tinha, à data, em depósito em conta de activos financeiros 1 247 de acções do …, com o valor nominal de € 0,0001 e de mercado de € 0,12.

B. Apreciação.

a. Escusa de juiz – breve enquadramento jurídico.
5. Nos termos do art.º 43.º n.º 4 do CPP [1], o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode requerer ao tribunal competente a sua escusa, a sua dispensa de intervir no processo «quando ocorrer o risco de a sua intervenção ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade» – art.º 43.º n.º 4 e 1 do CPP.
A independência dos juízes constitui «a mais irrenunciável característica do "julgar" e, portanto, da função judicial» [2], só assim se realizando o princípio da separação dos poderes. «Sendo, por conseguinte, os tribunais no seu conjunto – e cada um dos juízes de per si – órgãos de soberania […] e pertencendo a eles a função judicial […], tem por força de concluir-se que a independência material (objectiva) dos tribunais – reforçada pela independência pessoal (subjectiva) dos juízes que os formam – é condição irrenunciável de toda a verdadeira jurisprudência» [3].
Se, por um lado, a característica da independência dos juízes assegura que estejam livres de pressões exteriores, por outro lado, «isto não basta para que fique do mesmo passo preservada a objectividade de um julgamento: é ainda necessário, ao lado e para além daquela segurança geral, não permitir que se ponha em dúvida a "imparcialidade" dos juízes, já não em face de pressões exteriores, mas em virtude de especiais relações que os liguem a um caso concreto que devam julgar. […] E o que aqui interessa […] não é tanto o facto de a final, o juiz ter conseguido ou não manter a imparcialidade, mas sim defendê-lo da suspeita de a não ter conservado, não dar azo a qualquer dúvida, por esta via reforçando a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados» [4].
Na verdade, a lei, ao estabelecer as situações em que o juiz pode pedir a escusa, está a realizar a tarefa de velar «por que, em qualquer tribunal […] reine uma atmosfera de pura objectividade e de incondicional juridicidade. Pertence, pois, a cada juiz evitar, a todo o preço, quaisquer circunstâncias que possam perturbar aquela atmosfera, não – uma vez mais o acentuamos – enquanto tais circunstâncias possam fazê-lo perder a imparcialidade, mas logo enquanto possa criar nos outros a convicção de que ele a perdeu» [5].

Nos termos do art.º 43º do CPP, o juiz pode, então, pedir escusa quando exista risco de a sua intervenção ser considerada suspeita por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade – n.º 4 e 1.
Cláusula aberta, podem-se acolher na condição do n.º 1 do art.º 43º do CPP todas as situações que, casuisticamente analisadas, denotem a existência da suspeição acerca a imparcialidade do juiz, acerca da «equidistância sobre o conflito a resolver, de forma a permitir a decisão justa.» [6]. Ponto sendo que tenham «potencialidade para colidir com o comportamento isento e independente do julgador, colocando em causa a sua imparcialidade, bem como a confiança dos interessados e da comunidade.» [7]. Nelas se podendo incluir – tem o n.º 2 da norma o cuidado de o esclarecer – a sua intervenção noutro processo ou momentos anteriores do mesmo processo fora do caso do art.º 40º [8].

O fundamento da escusa deve ser objectivamente analisado, não bastando um mero convencimento subjectivo, devendo basear-se numa «razão séria e grave, da qual ou na qual resulte inequivocamente um estado de forte verosimilhança (desconfiança) sobre a imparcialidade do juiz (propósito de favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro)» [9].
Até porque o instituto colide com o princípio do juiz natural consagrado no art.º 32º n.º 9 da CRP, um dos pilares da Constituição Processual Criminal, que a todos assegura que «nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior».
E também por isso sendo «evidente que não podem ser razões menores, quantas vezes fruto de preconceitos, quando não de razões pessoais sem qualificação, mas sim razões objectivas que se coloquem de forma séria. Fundamental é a formulação de um juízo hipotético baseado na percepção que um cidadão médio sobre o reflexo na imparcialidade do julgador daquele facto concreto». Pois «do que falamos é do risco da perda de objectividade, do afastamento isento que é indiciado pelo facto objectivo.» [10].

Por último e como a doutrina e a jurisprudência – inclusivamente, do TEDH – vêm sublinhando, o fundamento da suspeição deverá ser avaliado segundo dois parâmetros, um de natureza subjectiva, outro de ordem objectiva.
O primeiro indagará se o juiz manifestou, ou tem motivo para ter, algum interesse pessoal no processo, ficando assim inevitavelmente afectada a sua imparcialidade enquanto julgador.
O segundo averiguará se, do ponto de vista de um cidadão comum, de um homem médio conhecedor das circunstâncias do caso, a confiança na imparcialidade e isenção do juiz estaria seriamente lesada.
Na lição de Pinto de Albuquerque:
«A imparcialidade pode ser apreciada de acordo com um teste subjectivo ou um teste objectivo […]. O teste subjectivo da imparcialidade visa apurar se o juiz deu mostras de um interesse pessoal no destino da causa ou de um preconceito sobre o mérito da causa. Ao aplicar o teste subjectivo a imparcialidade do juiz deve ser presumida e só factos objectivos evidentes devem afastar essa presunção (acórdão do TEDH Piersack v. Bélgica de 1.10.1982, acórdão TEDH Hausschildt v. Dinamarca, de 24.5.1989, e acórdão do TEDH Le Compete, Van Leuven e De Meyere v. Bélgica, de 23.6.1981 (Plenário).
[…]
O teste objectivo da imparcialidade visa determinar se o comportamento do juiz, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, pode suscitar dúvidas fundadas sobre a sua imparcialidade (acórdão do TEDH Piersack v. Bélgica de 1.10.1982).». A perspectiva do queixoso pode ser importante, mas não é decisiva acórdão do TEDH Ferrantelli e Santangelo v. Itália, de 7.8.1998» [11].

b. Mérito do pedido.
6. Está, assim, em causa nestes autos de escusa saber se a Senhora Desembargadora requerente deve, sim ou não, ser dispensada de intervir, como relatora, no julgamento do recurso que lhe foi distribuído, incidente sobre despacho proferido pelo Senhor Juiz do Juízo de Instrução Criminal que indeferiu requerimento de constituição de assistente do recorrente LL.
Revisto o requerimento de escusa, depreende-se – aliás, (muito) mais pelo que se subentende do que pelo (muito) pouco que diz – que o que está em causa para a Senhora Magistrada é a suspeição sobre a sua imparcialidade na vertente objectiva, afirmando, no fim de contas, que aos olhos dos intervenientes processuais e da comunidade em geral, sempre se poderão suscitar justificadas dúvidas sobre se, alguém que, como ela, (também) foi patrimonialmente lesada pela actuação arguidos, conseguirá, como julgador, manter a objectividade e a equidistância relativamente aos interesses e interessados em presença, que lhe permita emitir decisão que não só seja materialmente justa como pareça sê-lo.
E bem se compreende, de resto, que só nessa vertente a Senhora Magistrada ponha a questão que, mesmo podendo ser um dos (muitos) milhares de cidadãos patrimonialmente lesados pelas vicissitudes que conduziram à decisão de resolução do banco "…" em 2014 e à perda de valor de acções e produtos financeiros de que eram titulares, a verdade é que, sempre se estranharia que um prejuízo como o que poderá ter sofrido – que, no seu, quiçá excessivo, laconismo o requerimento (também) não indica, mas que, tomando por referência os valores indicados pelo recorrente [12], não atingirá os € 1 000,00 [13] –, pudesse contender com a imparcialidade vocacional de um juiz.
E assim para além de que, se dúvida ainda houvesse, «sendo o presente processo suscitado por um pedido de escusa do próprio magistrado» sempre estaremos «perante uma atitude que só pode ser qualificada de escrupulosa, a permitir concluir que manteria a sua imparcialidade na decisão do caso» [14].

7. Mas a verdade é que nem na referenciada vertente objectiva poderá haver fundamento, sério e ponderável, para crer que, no concreto recorte da situação, o cidadão comum, ou a comunidade em geral, possam pôr em causa a imparcialidade da Senhora Desembargadora para o julgamento do recurso que lhe foi distribuído.
E valerá, a este este propósito falar, de novo, no praticamente insignificante prejuízo que sofreu – no contexto geral, entenda-se, dos prejuízos globais, alegadamente, causados, na ordem de muito milhões de euros, como a comunicação social vem dando abundante nota –, bem como referir a circunstância de a Senhora Magistrada – tudo o indica, que (também) nada refere sobre o ponto – não ter reclamado judicialmente a sua reparação.
E assim para sublinhar, desta feita, que num tal cenário, nem sequer se concebe como na percepção do homem médio se possa formar suspeita, séria e objectiva, de que a Senhora Desembargadora se possa mover por interesses patrimoniais próprios ou empatias ou malquerenças relativamente a intervenientes processuais ou, até, terceiros, e de que, desse modo, ponha em risco a sua imparcialidade no julgamento do recurso, colidindo com o comportamento isento e independente que se espera e exige do julgador, e ferindo a confiança dos interessados e da comunidade na administração da justiça.
E tanto mais assim quanto, no recurso, nem sequer está em causa qualquer decisão sobre o objecto do procedimento penal, sobre a materialidade dos factos imputados na acusação aos vários arguidos, mas sim e apenas uma questão procedimental, a da admissão, sim ou não, de um determinado interveniente processual como assistente, nos termos dos art.os 68º n.º 1 al.ª a) e e) do CPP.
 
8. Presente, então, tudo o que precede, considera-se que a intervenção da Senhora Juíza Desembargadora nos autos de recurso penal de que estes são dependência não corre risco de ser considerada suspeita, não lançando dúvidas graves e sérias sobre a independência do tribunal.
Por isso que não pode o pedido de escusa deixar de improceder.
Como de seguida se vai decidir.

c. Nota final.
9. A terminar, uma palavra, ainda, que a decisão recentemente proferida no Incidente de Escusa n.º 324/14.... desta mesma ... Secção decerto justificará.
Com efeito:

Em acórdão publicado no dia 9 p. p. – aliás, relatado pelo Senhor Juiz Conselheiro que neste intervém como segundo adjunto –, foi julgado um pedido de escusa formulado por um outro Senhor Juiz Desembargador do Tribunal da Relação ... relativamente à intervenção no julgamento, como juiz adjunto, de um recurso interposto num outro procedimento dependente do mesmo Inquérito Criminal n.º 324/14...., concretamente no Procedimento de Arresto n.º 324/14.....
E aconteceu que, ali, o pedido foi deferido «nos termos das disposições conjugadas dos art.os 43.º, n.ºs 1 e 4 e 44.º do Código de Processo Penal», na consideração de que «existia no caso concreto, na medição de um cidadão médio, um motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do requerente da escusa na participação, como Juiz Desembargador adjunto, no julgamento do recurso do processo n.º324/14…, que corre no Tribunal da Relação ….».

Atalhando perplexidades que a divergência de decisões possa suscitar, diz-se já que ela não se deve a compreensão, aqui, do instituto da recusa diferente da dali que, como facilmente se depreenderá da fundamentação que precede e da que consta daquele outro acórdão, relevam uma outra, essencialmente, da mesma visão dogmática.
Deve-se tal divergência, isso sim, ao muito diferente quadro factual-procedimental em que as decisões se apoiaram: aqui, o julgamento de um recurso em que se discute a admissibilidade como assistente de pessoa que se diz ofendida com relação aos crimes cuja prática a acusação imputa ao arguidos e onde não descortina conexão de natureza pessoal da Senhora Desembargadora com os interesses em discussão de maior proximidade e efectividade do que a de também (poder) ter sido patrimonialmente lesada no caso "…", mas em montante de pequeno significado e sem que em momento ou procedimento algum aí tenha tinha assumido formalmente a qualidade de lesada, accionando ou reclamando em vista do ressarcimento do pertinente prejuízo; ali, o julgamento de um recurso sobre um «arresto decretado/mantido, no que diz respeito a movimentações/operações no âmbito de empresa integrante do Grupo … (…)» onde se integrava, entres outros o banco "… (…)" de que o Senhor Desembargador requerente foi depositante, e relativamente ao que este magistrado apresentava a conexão de natureza pessoal de muito maior proximidade e efectividade de fazer parte do grupo de lesados, formais, do … reclamantes de créditos no processo de liquidação judicial do mencionado "….".
Conexões, assim, de muito diferente densidade e, naturalmente, de muito diferente grau de impressividade «na formulação de um juízo hipotético baseado na percepção que um cidadão médio sobre o seu reflexo na imparcialidade do julgador daquele facto concreto» [15], por isso que a justificarem a divergência de conclusões de um e outro acórdão acerca do fundamento de cada um dos pedidos de escusa.

III. Dispositivo.
10. Termos em que acordam os juízes desta 5ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir o pedido de escusa deduzido pela Senhora Desembargadora Dra. AA nos Autos de Recurso Penal n.º 324/14… da ... Secção Criminal do Tribunal da Relação ....

Sem custas.


*
Digitado e revisto pelo relator (art.º 94º n.º 2 do CPP).
*
Lisboa, 16.12.2021



Eduardo Loureiro (Relator)




António Gama.




Orlando Gonçalves.

_____________________
[1] Segue-se nos passos mais próximos muito de perto o AcSTJ de 28.3.2019 - Proc. n.º 27/16.0YGLSB-B, in www.dgsi.pt.
[2] Figueiredo Dias, "Direito Processual Penal", 1974, p. 303.
[3] Idem, ibidem, pp. 303 a 304.
[4] Idem, Ibidem, p. 315.
[5] Idem, ibidem, p. 320.
[6] AcSTJ de 13.2.2013 - Proc. n.º 1475/11.8TAMTS.P1-A.S1, in www.dgsi.pt.
[7] AcSTJ de 13.2.2013 acabado de citar.
[8] Que, nesses casos, mais do que simples causa de suspeição há motivo de impedimento.
[9] AcSTJ de 13.2.2013 citado.
[10] AcSTJ de 13.2.2013 citado.
[11] "Comentário do Código de Processo Penal", 4ª ed., p. 132 [12] 32 500 acções, com o valor global de mercado de € 21 901,66, à razão unitária de € 0,67.
[13] (€ 21 901,66:32500 acções)x1247 acções = € 840,35.
[14] AcSTJ de 9.11.2011 - Proc. n.º 100/11.1YFLSB.S1, in www.dgsi.pt.
[15] AcSTJ de 13.2.2013 citado.