Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
94/15.4T8VVD.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DE PATERNIDADE
LEGITIMIDADE ACTIVA
TERCEIRO
PRESUNÇÃO DE PATERNIDADE
Data do Acordão: 09/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DA FAMÍLIA / FILIAÇÃO / ESTABELECIMENTO DA FILIAÇÃO.
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / SENTENÇA.
Doutrina:
- Estrela Chaby, “Código Civil” Anotado (Coord. de Ana Prata), Vol. II, 754.
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa” Anotada, Vol. I, 4.ª ed., 462.
- Guilherme Oliveira, Curso de Direito da Família (Pereira Coelho-Guilherme Oliveira), Vol. II, Tomo I (2006), 52, 94, 126 e 127; Estabelecimento da Filiação, 90.
- Jorge Miranda e Rui Medeiros, “Constituição Portuguesa” Anotada, Tomo I, 284 e 285.
- Maria José Capelo, Interesse Processual e Legitimidade Singular nas Acções de Filiação, 75.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, Vol. V, 201.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1817.º, 1826.º, N.º 1, 1835.º, N.º 1, 1838.º, 1839.º, 1841.º, 1842.º, 1869.º, 1870.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 278.°, Nº 1, AL. D), 316.º, 576.°, 577.°, AL. E), 578.°, 595.°, N.° 1, AL. A), 608.°, N.º 1.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 12.º, 13.º, 18.º, N.º 2, 26.º, N.ºS 1 E 3, 36.º, N.ºS 1 E 4, 67.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

-N.ºS 589/2007, 446/2010, 441/2013 E 309/2016, EM WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT .
Sumário :
1. A legitimidade para impugnar a paternidade do filho, nascido na constância do matrimónio, apenas pertence, directa e autonomamente, ao marido, à mãe e ao filho.

2. O terceiro, pretenso progenitor, não tem legitimidade, ex novo, para afastar a presunção de paternidade do marido da mãe, só podendo intervir processualmente através do Ministério Público.

3. É essencialmente o interesse da protecção da família conjugal que explica o referido regime legal de impugnação da paternidade, confinando-a à disponibilidade directa dos membros da família.

4. Esta afectação negativa do direito do pretenso progenitor, mas sem vedar intoleravelmente a possibilidade de exercício jurisdicional desse direito, não é desadequada, desnecessária ou desproporcionada.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:

I.

AA propôs esta acção declarativa, sob a forma comum, contra BB, CC e DD.

Pediu que:

- se reconheça e declare que o réu CC não é o pai biológico do menor DD;

- se declare a nulidade e/ou se decrete a anulação do registo de paternidade declarada e/ou presumida do réu CC, constante do assento de nascimento n°00042 do ano de 2013 da Conservatória do Registo Civil de …, e ordenar-se a respectiva rectificação ou cancelamento da paternidade desse réu CC, bem como as menções correspectivas atinentes aos avós paternos e ao apelido "G…", no supra referido assento de nascimento;

- se reconheça e se declare que o menor DD é filho do autor e que este é pai biológico daquele, com todos os inerentes efeitos legais, e, consequentemente, ordenar-se as alterações de registo civil necessárias, nomeadamente, ordenar-se no assento de nascimento e nos livros competentes a menção/inscrição/averbamento da identidade de AA como pai do menor DD e o apelido "P…" como apelido do menor.

Os réus foram citados (o menor DD na pessoa do seu curador especial nomeado, EE).

Contestaram os réus CC e BB, impugnando a versão do Autor e excepcionando com a alegada caducidade da demanda.

Foi então proferido despacho de aperfeiçoamento, no sentido de que o autor precisasse "a sua legitimidade activa, causa de pedir e pedido, atentando nas normas vigentes".

Em novo articulado o autor veio dizer, em síntese, o seguinte:

A presente acção não é uma típica acção de impugnação da paternidade.

Trata-se, antes, de uma acção complexa, com dupla natureza quanto ao fim: de simples apreciação, simultaneamente negativa (declarar que o réu CC não é o pai biológico do menino DD) e positiva (reconhecer-se e declarar-se que o menino DD); e constitutiva/extintiva (declarar a nulidade/anulação do registo de paternidade ...; ordenar a menção/inscrição/averbamento da identidade de AA como pai ...).

Em face do exposto, e salvo melhor opinião, não são aplicáveis à presente acção as limitações de regime e/ou legitimidade previstas nos arts. 1838°, 1839°, 1848°, 1861° e 1869°, todos do Código Civil.

O interesse em agir e a legitimidade activa do Autor advém de princípios fundamentais de direito consagrados na lei fundamental – a Constituição da República Portuguesa designadamente: o direito à identidade biológica e/ou verdade genética, o princípio da universalidade, o princípio da igualdade e o princípio da proibição de discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (cfr., respectivamente, arts. 26°, nºs 1 e 3, 12°, 13° e art. 36°, nº4, ambos da CRP).

Mas, tal direito há-de, necessariamente, contemplar o correspectivo e implícito direito ao conhecimento da identidade dos filhos.

Ao Autor assiste o direito potestativo inalienável, com consagração constitucional, entre outros nos artigos 11°, 12° e 26° da CRP, de ser reconhecido judicialmente como pai biológico do menino DD, e de ver averbado no assento do nascimento do filho a paternidade em relação a ele (autor), bem como o seu apelido "P…".

Na qualidade de pai, assiste-lhe também o direito potestativo inalienável de, em representação do seu filho, ver reconhecida judicialmente a filiação biológica verdadeira, tudo nos termos do disposto nos citados artigos 12°, 13° e 26° da Constituição da República Portuguesa. (...) o alegado na petição inicial é suficiente para fundamentar a causa de pedir e suportar os pedidos formulados.

Realizada a audiência prévia e por o processo o permitir, foi proferida decisão que julgou o autor parte ilegítima e absolveu os réus da presente instância.

Discordando desta decisão, dela interpôs recurso o autor, per saltum, tendo apresentado as seguintes conclusões:

1. (…)

2. Contrariamente ao sufragado na douta decisão recorrida, o autor tem legitimidade em demandar os Réus na presente acção, legitimidade essa que lhe advém de princípios fundamentais de direito, de valor constitucional ou supraconstitucional, positivados na Constituição da República Portuguesa, uns, e nas leis ordinárias, outros.

3. De facto, o aqui Autor, pai biológico, tem "direito à identidade pessoal", no qual se insere o "direito ao conhecimento da descendência biológica", ou seja, o direito ao conhecimento da identidade dos filhos, enquanto direito fundamental (art. 26º nº 1 da CRP).

4. Acresce a este o "direito de constituir família" (art. 36° da CRP), direito fundamental previsto na Constituição, do qual deriva o direito fundamental do pai e mãe biológicos não se verem privados dos filhos (n° 6), só sendo permitida tal separação em casos taxativamente previstos na lei.

5. O aqui Autor, por um lado, e o menor DD, por outro, têm direito a saber a verdade da identidade biológica desta criança.

6. Atenta a factualidade vertida na petição inicial, factualidade essa que indicia fortemente que o Réu CC é o pai biológico do menino DD, corre-se o risco, a manter-se a decisão impugnada, de a verdadeira identidade biológica desta criança só vir a ser conhecida quando esta atingir a sua maioridade, com danos irreparáveis para o menor e para o pai biológico.

7. Momento em que esta criança, já adulto, tem grande probabilidade de vir a olhar para a sua infância com tristeza, ressentimentos, e até revolta, pois foi privado da convivência e de estabelecer laços familiares com o seu verdadeiro pai por causa, por um lado, do conluiado "embuste" entre o pai presumido e a mãe biológica, e ainda por causa de alegadas "ilegitimidades processuais".

8. O Autor é a única pessoa a quem assiste o direito de peticionar que seja evitado tal evento catastrófico na vida de uma pessoa, e de lutar indirectamente pelos direitos desta criança, determinando quem é o verdadeiro pai biológico desta através de realização de exames de ADN no âmbito do presente processo.

9. Defender a ilegitimidade do Autor significa contra os mais elementares princípios fundamentais de direito, de valor constitucional, designadamente o princípio estatuído no art. 2°, nº 2 do CPC, segundo o qual: "A todo o direito corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo ... ".

10. O direito de liberdade geral de acção do Autor ou de qualquer outra pessoa tem de ser constitucionalmente justificado, necessário e proporcional, sendo que não vemos justificação para tamanha limitação ao direito do Autor de aferir se o aqui Réu DD realmente é seu filho ou não.

11. Acresce ainda que, a fundamentação de que o estipulado no art. 1838° do C.C. não permite a impugnação da paternidade fora dos casos previstos no CC e de que se verifica a caducidade da acção de impugnação nos termos do art. 1841° do CC, não procedem.

12. Na sociedade em que actualmente vivemos, o vínculo de filiação deve assentar na verdade biológica, devendo prevalecer sobre tal monopólio e sobre quaisquer princípios, tais como o da segurança jurídica, estabilidade familiar e matrimonial, ou qualquer outro que possa ser invocado.

13. A incerteza jurídica quanto à paternidade de qualquer criança existe mesmo que se defenda acerrimamente que o pai biológico só poderia lançar mão do mecanismo previsto no art. 1841° do CC, basta atendermos aos prazos estipulados no art. 1842° do CC, e ainda à corrente jurisprudencial maioritária que tem vindo a ser seguida no sentido da imprescritibilidade dos prazos de caducidade.

14. De facto, também no presente caso, a determinação da verdade sobre a descendência biológica do Autor, à historicidade pessoal deste, deverá prevalecer sobre o prazo de caducidade previsto no nº 2 do art. 1841° do CC.

15. Segundo o Ac. STJ do passado 25 de Março (sendo relator o ilustre Conselheiro Hélder Roque), "... se o filho pode impugnar a paternidade, sem limitação de prazo, também, a impugnação do presumido progenitor pode sempre ser intentada, sob pena de inaceitável discriminação de um dos elos da relação jurídico-filial" (in www.dgsi.pt).

16. Por outro lado, esta diferença de tratamento, perante o código civil, entre o pretenso pai biológico e o pai presumido, a se estabelecerem prazos distintos de caducidade e até de legitimidade de actuação, é injustificada, gerando uma violação clara do princípio da igualdade e proporcionalidade previsto no art. 13° e 18° da CRP.

17. Se fizermos uma análise comparativa entre o caso retratado no Ac. do Tribunal Constitucional nº 546/2003 de 14 de Outubro, e o nosso caso, dúvidas não existem de que também no nosso caso estamos perante um "sacrifício extraordinário", e uma "restrição excessiva e desproporcionada ao direito à identidade pessoal do aqui pai biológico, do aqui autor!".

18. As particulares condições do presente caso concreto têm especial relevância e peso, sendo suficientes para defender-se a inconstitucionalidade do estipulado no art. 1838° do C.C., quando interpretado no sentido de não permitir a impugnação da paternidade no presente caso, e ainda a inconstitucionalidade do prazo constante no art. 1841° do CC.

19. Não temos dúvidas em afirmar que ao Autor assiste o direito potestativo inalienável, com consagração constitucional, entre outros nos artigos 11°, 12º e 26° da CRP, de ser reconhecido judicialmente como pai biológico do menino DD e de ver averbado no assento do nascimento do filho a paternidade em relação a ele (Autor), bem como o seu apelido "P…".

20. Na qualidade de pai, assiste-lhe também o direito potestativo inalienável de, em representação do seu filho, ver reconhecida judicialmente a filiação biológica verdadeira, tudo nos termos do disposto nos citados artigos 12°,13° e 26° da Constituição da República Portuguesa.

21. A prescritibilidade da acção de averiguação oficiosa para impugnação da paternidade presumida, por parte de quem se declarar pai biológico do filho, é, pois, inconstitucional, sendo inaplicável.

22. Assim, assiste ao aqui Recorrente legitimidade para ter intentado a acção, demandando os Réus nos termos já descritos.

23. De resto, como se disse e aqui se reitera, é materialmente inconstitucional, por violação dos princípios da universalidade (art. 12º da CRP), da igualdade (art. 13° da CRP), da identidade pessoal e genética (art. 26°, nºs 1 e 3 da CRP), da proibição da discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (art. 36°, nº 4 da CRP), do direito a procriar e a constituir família (art. 36° da CRP), da proporcionalidade (art. 18º da CRP) e da tutela pública [a todo o direito corresponde uma acção]  (art. 2° do CPC e art. 20° da CRP), a interpretação restritiva dos arts. 1838° e 1841°, ambos do Cód. Civil, sufragada na douta decisão recorrida, segundo a qual "o art. 1838° do Código Civil estabelece imperativamente que fora dos casos previstos nos arts. 1839° e ss. está proibida a impugnação da paternidade presumida, o que constitui a base da demanda do Autor", e, ainda, segundo a qual "a legitimidade activa para impugnar a visada paternidade apenas é deferida ao Ministério Público, ao marido da mãe ou ao filho, nos termos limitados dos arts. 1839°/1841° do Código Civil", inconstitucionalidade essa que se requer seja apreciada, decidida e decretada no caso em apreço.

24. Consequentemente, deve ser revogada a douta sentença recorrida e, por via disso, ser substituída por outra que reconheça ao autor legitimidade activa para a propositura da presente acção e para a formulação dos pedidos que dela constam, prosseguindo os autos os seus ulteriores termos.

Termos em que deverá conceder-se provimento ao presente recurso e, consequentemente, a final, revogar-se a douta sentença recorrida, a qual deve ser substituída por outra que reconheça e declare o autor, aqui recorrente, como parte legítima para demandar os réus, prosseguindo a presente demanda contra os réus.

Contra-alegou o Exmo Magistrado do MºPº, concluindo pela improcedência do recurso.

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.

Questões a resolver:

Trata-se de saber se o autor tem legitimidade para demandar os réus, impugnando a paternidade presumida do menor DD.

E se a resposta negativa a essa questão colide com os princípios e normas constitucionais invocados pelo recorrente.

O recorrente suscita ainda a questão da constitucionalidade do art. 1841º do CC, no que respeita ao prazo de caducidade nele estabelecido.

III.

A fundamentação da sentença recorrida é deste teor:

Sendo certo que o art. 2°, nº 2, do Código de Processo Civil, estipula que, excepto quando a lei estipule o contrário, a todo o direito corresponde a acção adequada, tal não é o caso da demanda do Autor.

Antecipando a falta de sustento da sua demanda, é o Autor que reconhece que as suas pretensões não têm cabimento nas normas substantivas que regulam expressamente a matéria fundamental, de direitos pessoais, em apreço (cf. art. 1826° e ss., do Código Civil): o estabelecimento da paternidade biológica e/ou a sua impugnação.

E não têm mesmo!

Mais, o art. 1838° do Código Civil, estabelece imperativamente que fora dos casos previstos nos seus arts. 1839° e ss., está proibida a impugnação da paternidade presumida, a base da demanda do Autor, i.e, não só este não tem, reconhecidamente, positivado, o direito que sustenta a sua demanda processual alegadamente atípica, como tal lhe está expressamente vedado.

Concretizando, o Autor carece de legitimidade activa para impugnar a visada paternidade, que é deferida apenas ao Ministério Público, ao marido da mãe ou ao filho, nos termos limitados dos arts. 1839°/1841°, do Código Civil.

O Autor não tem igualmente legitimidade para ver reconhecida a sua alegada paternidade sobre a criança em causa, porque os arts. 1869° e 1970°, do mesmo Código, apenas a deferem à própria ou à mãe.

Inexiste ainda qualquer litisconsórcio voluntário ou necessário para, como pretende o Autor, provocar a intervenção do Ministério Público a título principal, nos termos do art. 316°, do Código de Processo Civil, que é sim mais uma forma inventiva de contornar as limitações da lei para obter uma coligação virtual forçada do Ministério Público que, aliás, já intervém nos autos acessoriamente e nunca poderia viabilizar uma acção há muito caduca pelos ditames do citado art. 1841°.

De resto, não encontramos o sustento constitucional da demanda do Autor para, na prática, ver reconhecido o pretenso direito de ser declarado pai de determinada criança.

Os fundamentais arts. 12° (princípio da universalidade), 13° (princípio da igualdade) e 26°, nºs 1 e 3, (direito à identidade pessoal ou genética), 36°, nº 4 (da proibição da discriminação dos filhos nascidos fora do casamento), da Constituição da República Portuguesa, nada têm a ver com esse alegado novo direito do Autor à identidade abrangendo outros, alegados seus descendentes, nem este se pode arrogar representante desses direitos, estejam eles ou não na esfera deste filho nascido dentro do matrimónio dos Réus CC e BB!

A ser admitida a demanda do Autor estaria sim em causa essa identidade, já estabelecida, da criança em apreço e, potencialmente, a de todos os cidadãos que, cronologicamente, pudessem ser, em tese, descendência biológica do mesmo e ele se lembrasse de impugnar/reconhecer.

De resto, este direito do DD permanece na sua esfera, nos termos do art. 1817° e 1842°, do Código Civil.

Em suma, o Autor carece de legitimidade para demandar os Réus, o que por si só basta para impedir o Tribunal de conhecer dos pedidos formulados por si e extinguir a instância, nos termos das normas conjugadas dos arts. 278°, nº 1, al. d), 576°, 577°, al. e), 578°, 595°, n° 1, al. a), 608°, nº 1, do Código de Processo Civil.

Sem prejuízo, dessa conclusão, reafirma-se que o Autor invoca direito fundamental/pessoal que não lhe assiste no ordenamento Constitucional, que existe sim na esfera jurídica do menor em causa - a identidade pessoal que com o simples surgimento desta acção foi posta em causa e que o legislador ordinário e Constitucional não quis pôr em crise nos termos aqui pretendidos.

Fica, portanto, prejudicado o conhecimento dos restantes argumentos debatidos pelas partes.

Conforme dispõe o art. 1826º, nº 1, do CC[2], presume-se que o filho nascido ou concebido na constância do matrimónio da mãe tem como pai o marido da mãe.

Consagra-se, assim, a regra pater is est quem nuptias demonstrant: a atribuição da paternidade ao marido assenta na forte probabilidade de ele ser autor da procriação, segundo juízos objectivos de experiência; é o que resulta da normalidade de o pai ser o marido da mãe.

Como sublinha Guilherme Oliveira, "a atribuição da paternidade fundada nas regras de experiência e num juízo de probabilidade exprime-se juridicamente através de uma autêntica presunção legal, e a profunda exigência de verdade neste domínio grave do estado das pessoas e a circunstância de os juízos de probabilidade que geram a presunção legal admitirem, por sua própria natureza, um risco de erro, levam a que consideremos esta presunção iuris tantum, para que se admita livremente a prova do contrário do facto presumido"[3].

Esta paternidade presumida é a paternidade verdadeira, enquanto não for provado o contrário, ilidindo-se a presunção em que assenta; deve constar, obrigatoriamente, do registo de nascimento do filho, não sendo admitidas menções que o contrariem, salvo o disposto nos arts. 1828º e 1832º - art. 1835º, nº 1.

A paternidade presumida do marido da mãe pode, pois, ser impugnada, mas apenas nos termos previstos nos arts. 1838º e segs..

Dispõe o art. 1839º, nº 1 que têm legitimidade para essa acção de impugnação o marido da mãe, a mãe, o filho e o Ministério Público, este a requerimento de quem se declare pai do filho, nos termos do art. 1841º.

A acção tem como fundamento a prova de que, de acordo com as circunstâncias, a paternidade do marido da mãe é manifestamente improvável (art. 1839º, nº 2).

Nos termos do art. 1841º, nº 1, a acção de impugnação de paternidade pode ser proposta pelo Ministério Público a requerimento de quem se declare pai do filho, se for reconhecida pelo tribunal a viabilidade do pedido.

Guilherme Oliveira justifica assim este regime[4]:

"A nossa lei não acha curial a impugnação autónoma e incontrolada do terceiro porque a concessão de uma legitimidade plena significaria sempre a intromissão de um estranho, co-autor do adultério da mulher casada, no seio da família, intervenção sempre grave, mesmo quando acabasse por ser considerada improcedente. Porém, já se considerou admissível a mera iniciativa dele fortemente condicionada por uma averiguação prévia, feita pelo tribunal sobre a viabilidade da acção impugnatória, acção esta intentada e mantida pelo Ministério Público. O papel do terceiro, reduzido à simples iniciativa de todo o processo, não repugna, e o controle feito pelos órgãos jurisdicionais garante a família conjugal contra a possível leviandade ou a má fé. Assim, a legitimidade activa que o art. 1841º confere ao Ministério Público surge como um expediente, um modo de atenuar ou anular os inconvenientes resultantes de uma legitimidade formal e plena atribuída ao terceiro que se declara pai do filho cujo estado pessoal se discute e a quem o legislador, por outro lado, quis conferir algum poder de iniciativa nessa discussão".

Este regime, na opinião do referido Autor, parece aceitável, uma vez que:

"Abre uma via de procura da verdade no estabelecimento da filiação e, ao mesmo tempo, rodeia a intervenção do terceiro de cautelas tendentes a evitar prejuízos inúteis à família conjugal, cautelas que, por outro lado, não vão ao ponto de obstar a uma impugnação que seja justificada; e é ainda aceitável porque reconhece ao pai natural o interesse e o direito de ver reconhecida a sua paternidade verdadeira em substituição da paternidade falsa presumida"[5].

Optou assim a lei por uma "solução de compromisso, estabelecendo a necessidade de uma fase prévia para aquilatar da suficiência das provas e atribuindo a legitimidade para a propositura da acção de impugnação propriamente dita ao Ministério Público que, comprovada previamente a viabilidade do pedido, age também em vestes de defensor do interesse público da correspondência entre a verdade registal e realidade"[6].

Tendo em consideração o regime legal exposto, a decisão recorrida não poderia, parece-nos, enveredar por solução diferente quanto à legitimidade do autor para intentar esta acção.

Aliás, como se vê pelas conclusões do recurso, o recorrente não se apoia evidentemente nesse regime para fundamentar a sua legitimidade activa; o que defende é que essa legitimidade lhe advém de princípios fundamentais de direito, de valor constitucional, como sejam o "direito à identidade pessoal", no qual se insere o "direito ao conhecimento da descendência biológica", e o "direito de constituir família", direitos consagrados constitucionalmente (arts. 26º, nº 1, e 36º da CRP); e invoca a inconstitucionalidade material dos arts. 1838º e 1841º, na interpretação acolhida na sentença recorrida, por "violação dos princípios da universalidade (art. 12º da CRP), da igualdade (art. 13° da CRP), da identidade pessoal e genética (art. 26°, nºs 1 e 3 da CRP), da proibição da discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (art. 36°, nº 4 da CRP), do direito a procriar e a constituir família (art. 36° da CRP), da proporcionalidade (art. 18º da CRP) e da tutela pública [a todo o direito corresponde uma acção]  (art. 2° do CPC e art. 20° da CRP)".

Vejamos, então, a questão nesta perspectiva.

Tem vindo a ser reconhecido que o princípio da verdade biológica assume hoje, inegavelmente, um peso bem superior ao que lhe era anteriormente atribuído. A prova pericial, com o avanço científico, possibilita uma identificação segura, positiva ou negativa, do vínculo de sangue e, por outro lado, vem-se acentuando o relevo jurídico-constitucional de direitos fundamentais da personalidade, como a identidade pessoal e o desenvolvimento da personalidade.

O princípio da verdade biológica "exprime a ideia de que o sistema de «estabelecimento da filiação» pretende que os vínculos biológicos tenham uma tradução jurídica fiel, isto é, pretende que a mãe juridicamente reconhecida e o pai juridicamente reconhecido sejam realmente os progenitores, os pais biológicos do filho"[7].

Trata-se de um princípio estruturante de todo o sistema legal, não lhe sendo, porém, reconhecida dignidade constitucional autónoma, não podendo fundamentar, por si só, um juízo de inconstitucionalidade[8].

Apesar disso, o apuramento da paternidade biológica constitui uma "dimensão do direito fundamental à identidade pessoal", entendendo-se que tal direito "não actua só em sentido positivo, como direito de cada um conhecer e ver juridicamente reconhecido aquilo que é, mas também em sentido negativo, como direito de cada indivíduo de excluir, como factor conformador da identidade própria, aquilo que não é"[9].

O direito à identidade pessoal tem o sentido de "garantir aquilo que identifica cada pessoa como indivíduo, singular e irredutível" e abrange, "além do direito ao nome, um direito à historicidade pessoal"[10], o que inclui "a identidade genética própria e os vínculos da filiação"[11].

A atribuição do direito à identidade pessoal, como se refere no citado Acórdão nº 309/2016, "pressupõe e visa em primeira linha satisfazer os interesses próprios da pessoa que pretende conhecer a identidade dos seus progenitores e constituir o respectivo vínculo de filiação correspondente à verdade biológica"; mas "também pode ser titulado pelas pessoas que pretendem destruir o vínculo jurídico de filiação formado por presunção legal, com base num juízo de probabilidade, mas que não é correspondente à verdade biológica".

No art. 26º, nº 1, da CRP consagra-se também o direito ao desenvolvimento da personalidade, que "assegura uma tutela mais abrangente da personalidade" e inclui "duas diferentes dimensões: (a) um direito à formação livre da personalidade, que envolve a liberdade de acção de acordo com o projecto de vida e capacidades pessoais próprias; (b) a protecção da integridade da pessoa em vista à garantia da esfera jurídico-pessoal no processo de desenvolvimento. Neste plano, o desenvolvimento da personalidade comporta uma liberdade de autoconformação da identidade, da integridade e da conduta do indivíduo, e nele se pode incluir, além de muitos outros elementos, um direito ao conhecimento da paternidade e da maternidade biológica"[12].

A estes direitos pode associar-se o direito de constituir família, consagrado no artigo 36º, nº 1, da Constituição, que abrange, ao lado da família conjugal, a família natural, resultante do facto biológico da geração, e que compreende o direito a estabelecer as correspondentes relações de paternidade e maternidade.

São estes direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade e de constituir família, no sentido apontado, que servem de fundamento à legitimidade para a acção de impugnação da paternidade presumida e, assim, para impugnar os vínculos jurídicos contrários à verdade biológica.

Legitimidade que apenas pertence, directa e autonomamente, aos membros da família – marido, mãe e filho (art. 1839º, nº 1) – e já não ao terceiro, pretenso progenitor. Este, como se referiu, não tem legitimidade, ex novo, para afastar a presunção de paternidade do marido da mãe, só podendo intervir processualmente através do Ministério Público.

É esta limitação ao exercício do direito do terceiro que aqui está em causa, pondo-se a questão de saber se esse regime viola os direitos constitucionais referidos, como defende o recorrente.

Na perspectiva da conformidade constitucional dessa limitação, a análise não se esgota, porém, nesses direitos fundamentais do pretenso progenitor.

As normas que estabelecem tais limitações envolvem a ponderação de outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos, exigindo uma tarefa de harmonização dos interesses em oposição ou mesmo a sua restrição (cfr. art. 18º, nº 2, da CRP).

Nessa ponderação e conflituando com os direitos do autor, pretenso progenitor, assume aqui especial relevo o interesse da protecção da família constituída (cfr. art. 67º da CRP): "o interesse geral da estabilidade das relações sociais e familiares e o sentimento de confiança em que deve basear-se a relação paternal, quando se trate de filhos nascidos na vigência do matrimónio"[13]; a necessidade de acautelar a tranquilidade e paz familiar conjugal, até contra afirmações eventualmente infundadas ou feitas de má fé[14].

É essencialmente este interesse de protecção da família conjugal que explica o referido regime legal de impugnação da paternidade, confinando-a à disponibilidade directa dos membros da família – só o marido, a mãe e o filho estão autonomamente legitimados a intentar a acção[15].

Acentuando o interesse da protecção da família conjugal, afirma-se no citado Acórdão nº 309/2016 que "a paternidade legal, fundada em juízos de probabilidade, é susceptível de gerar uma vivência afectiva, familiar e social que não pode deixar de ser considerada no momento em que se pretende ilidir a presunção".

"A atribuição da paternidade com base na regra geral de que o pai é o marido da mãe, baseada em juízos de normalidade e probabilidade, leva à constituição de uma relação de filiação que tem relevo no plano constitucional. A Constituição reconhece relevância específica à família, não apenas na dimensão individual-subjectiva dos direitos fundamentais dos membros que a integram, mas também como instituição que deve ser protegida, enquanto elemento estruturante da vida em sociedade. Assim, nesta dimensão institucional, também a família constituída entre pais e filhos, resultante do funcionamento da regra pater is est quod nuptias demonstrant constitui um «elemento fundamental da sociedade» e um espaço de desenvolvimento da personalidade dos seus membros que deve ser protegida pelo Estado e pela sociedade".

Acrescente-se que não será também de desconsiderar o eventual interesse daquele que é tido como filho em manter esse estatuto. Sobretudo, como se diz no citado Acórdão nº 446/2010, "quando o vínculo jurídico tem tradução consistente no «mundo da vida» familiar e social, gerando, como é normal, laços afectivos, a destruição retrospectiva desse vínculo acarreta (ou agrava) a perda de sentido de uma componente nuclear da memória e da historicidade pessoais, da auto-representação de si, por parte de quem é filho (…). Outros factores de identidade pessoal podem sobrepor-se, na óptica do filho, aos de ordem genética, não podendo ser dado por seguro que o seu interesse, mesmo excluindo dimensões patrimoniais, corresponda sempre à coincidência entre o vínculo jurídico e o biológico".

A este respeito, aliás, será de salientar que, estando aqui em causa o direito de terceiro, pretenso progenitor, é o direito à identidade pessoal deste que deve ser ponderado e não o direito fundamental do filho ao apuramento da respectiva filiação biológica. Este direito é objecto de tutela específica, através de acção para a qual o filho está pessoalmente legitimado (art. 1842º, nº 1, al. c)).

Assim, ponderando também estes direitos e interesses constitucionalmente protegidos, deve reconhecer-se que a afectação negativa do direito do recorrente, mas sem vedar intoleravelmente a possibilidade de exercício jurisdicional desse direito, não parece desadequada, desnecessária nem desproporcionada (art. 18º, nº 2, da CRP).

Pode concluir-se, por conseguinte, que a interpretação dos arts. 1838º, 1839º, nº 1 e 1841º, sufragada na sentença recorrida – no sentido de que o recorrente, pretenso progenitor, não tem legitimidade ex novo para afastar a presunção de paternidade do marido da mãe e obter o reconhecimento da sua paternidade, só podendo intervir processualmente através do Ministério Público e depois de previamente reconhecida a viabilidade do pedido – não viola os preceitos e princípios constitucionais invocados pelo recorrente.

Ficam prejudicadas as demais questões invocadas no recurso – art. 608º, nºs 1 e 2, do CPC.

IV.

Em face do exposto, nega-se a revista, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente.

                                                 Lisboa, 12 de setembro de 2017

Pinto de Almeida – Relator

Júlio Gomes

José Rainho

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[1] Proc. nº 94/15.4T8VVD.S1
F. Pinto de Almeida (R. 185)
Cons. Júlio Gomes; Cons. José Rainho
[2] Como todos os preceitos legais adiante citados sem outra menção de origem.
[3] Curso de Direito da Família (Pereira Coelho-Guilherme Oliveira), Vol. II, Tomo I (2006), 94.
[4] Ob. Cit., 126 e 127.
[5] Como refere também Maria José Capelo, foram sobretudo os valores da protecção da esfera íntima e da paz familiar que motivaram as cautelas do legislador, ao conceder legitimidade ab initio apenas à mãe, ao marido e ao filho (Interesse Processual e Legitimidade Singular nas Acções de Filiação, 75).
[6] Estrela Chaby, Código Civil Anotado (Coord. de Ana Prata), Vol. II, 754.
[7] Guilherme Oliveira, Ob. Cit., 52.
[8] Cfr., entre outros, os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 589/2007, 446/2010, 441/2013 e 309/2016, em www.tribunalconstitucional.pt.. Estes Acórdãos, apesar de se debruçarem sobre a questão da caducidade do direito de acção de impugnação dos vários legitimados directos, têm também, em vários pontos da sua fundamentação, manifesto interesse para a nossa questão.
[9] Cfr. Acórdãos citados.
[10] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª ed., 462.
[11] Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 284 e 285.
[12] Acórdão do Tribunal Constitucional nº 589/2007.
[13] Acórdão do Tribunal Constitucional nº 589/2007.
[14] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. V, 201.
[15] Referindo-se à intervenção do Ministério Público, afirma Guilherme Oliveira (Estabelecimento da Filiação, 90) que "o Estado só age, para corrigir a atribuição de paternidade falsa, quando um interesse particular relevante o estimula. Trata-se, afinal, de uma das manifestações do respeito pela intimidade da vida familiar conjugal".