Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
742/11.5TACTX.E1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA MENDES
Descritores: RECURSO PENAL
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CÚMULO JURÍDICO
CONHECIMENTO SUPERVENIENTE
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
IMAGEM GLOBAL DO FACTO
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
ILICITUDE
CULPA
DOLO DIRECTO
COMPRESSÃO
Data do Acordão: 12/02/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Área Temática:
DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - RECURSOS.
Doutrina:
- Eduardo Correia, autor do Projecto do Código Penal, no seio da respectiva Comissão Revisora, Acta da 28ª Sessão realizada em 14 de Abril de 1964.
- Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 290/292.
- Jescheck, Tratado de Derecho Penal Parte General (4ª edição), 668.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 400.º, N.º1, ALÍNEA F), 414.º, N.º2, 417.º, N.º3, 420.º, N.º 1.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 77.º, N.ºS 1 E 2.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 29.º, N.º5.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 08.03.05, 09.11.18 E 13.05.22, PROFERIDOS NOS PROCESSOS N.ºS 114/08, 702/08. 3GDGDM. P1.S1 E 392/10.3PCCBR.C2.S1, RESPECTIVAMENTE.
-DE 08.11.13, 09.09.23 E 10.06.23, PROFERIDOS NOS PROCESSOS N.ºS 3381/08, 27/04.3GGBTMC.S1 E 1/07.8ZCLSB.L1.S1, RESPECTIVAMENTE.
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ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA N.º 3/09, DE 09.02.18, PUBLICADO NO DR, I SÉRIE, DE 09.03.19.
Sumário :

I - A pena conjunta ou única, pena através da qual se pune o concurso de crimes, segundo o texto do n.º 2 do art. 77.° do CP, tem a sua moldura abstracta definida entre a pena mais elevada das penas parcelares e a soma de todas as penas em concurso, o que equivale por dizer que no caso a respectiva moldura varia entre o mínimo de 5 anos de prisão e o máximo legal de 25 anos de prisão.
II - Segundo preceitua o n.º 1 do art. 77.º do CP, na medida da pena única são considerados em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que significa que o cúmulo jurídico de penas não é uma operação aritmética de adição, nem se destina, tão só, a quantificar a pena conjunta a partir das penas parcelares cominadas.
III -Com efeito, a pena única ou conjunta deve ser encontrada a partir do conjunto dos factos e da personalidade do agente, tendo-se em atenção, em primeira linha, se os factos delituosos em concurso são expressão de uma inclinação criminosa ou apenas constituem delitos ocasionais sem relação entre si, sem esquecer a dimensão da ilicitude do conjunto dos factos e a conexão entre eles existente, bem como o efeito da pena sobre o comportamento futuro do delinquente, sendo que a «autoria em série» deve considerar-se, em princípio, como factor agravante da pena.
IV - No caso, os factos praticados pelo recorrente, com excepção ao crime de detenção de arma proibida, encontram-se conexionados em maior ou menor grau, constituindo um complexo delituoso de gravidade ímpar. O ilícito global, composto por 234 crimes de violação agravada, 10 crimes de abuso sexual de crianças agravado, 3 crimes de violência doméstica e 1 crime de detenção de arma proibida, todos eles praticados com dolo directo, reiteradamente, ao longo de 4 anos, revela com clareza inclinação criminosa. Por outro lado, a violência inerente à prática da grande maioria dos factos, violência exercida sobre as vítimas, mulher e enteadas menores, sem que o recorrente denote qualquer arrependimento, assumindo uma postura de ausência de auto crítica, revela uma total indiferença pelos direitos dos seus semelhantes, evidenciadora de uma personalidade desconforme para com o direito.
V - A autoria em série deve considerar-se, em princípio, como factor agravante da pena, o que no caso se verifica, tanto mais que o recorrente é portador de tendência criminosa. Sopesando todas estas circunstâncias, a natureza dos bens jurídicos violados, a gravidade de cada uma das penas singulares impostas e o efeito futuro da pena conjunta sobre o recorrente, tendo também presente a sua primariedade, é de desagravar a pena de 25 anos de prisão fixada pelo tribunal recorrido para 23 anos de prisão, medida esta ainda compatível com a defesa do ordenamento jurídico.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

No âmbito do processo comum com intervenção do tribunal colectivo n.º 742/11.5TACTX, da comarca do Cartaxo, AA, com os sinais dos autos, foi condenado na pena conjunta de 25 anos de prisão[1].

Na sequência de recurso interposto pelo arguido para o Tribunal da Relação de Évora, recurso que visou o reexame da matéria de facto e da matéria de direito, foi integralmente confirmada a decisão de 1ª instância.

O arguido interpõe agora recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

É do seguinte teor o segmento conclusivo da respectiva motivação[2]:

«1ª - O pedido de alteração da decisão sobre a matéria de facto não poderia ter deixado de ser apreciado, sem que antes ao recorrente fosse formulado convite para cumprir o ónus a que se refere o art. 412°, nº 3, do CPP;

2ª - Ao não formular tal convite, a efectuar pelo respectivo relator, ofenderam-se as garantias de defesa do recorrente;

3ª - A pena única aplicada ao recorrente afigura-se exagerada e desproporcionada;

4ª - Para a determinação da mesma deve ter-se em conta a apreciação conjunta dos factos e da personalidade do agente;

5ª - A referida pena única é determinada autonomamente face às penas parcelares;

6ª -Na verdade, no acórdão recorrido percebeu-se que o aí decidido quanto à determinação daquela se deixou influenciar pelo número de crimes imputados ao recorrente;

7ª - Sendo certo que, o número daqueles não deve influir na determinação daquela, já que a pena a determinar é autónoma.

8ª - Sob pena de se subverter a intenção do legislador ao definir os pressupostos a presidirem à determinação da pena conjunta».

Na contra-motivação apresentada o Ministério Público formulou as seguintes conclusões:

«1 - A falta de convite ao recorrente para cumprimento do ónus da impugnação especificada não fere qualquer garantia de defesa deste quando o tribunal ad quem conheceu do pedido de modificação da matéria de facto.

2 - Não é de efectuar tal convite quando o incumprimento do ónus da impugnação especificada previsto nos nºs 2 a 5 do artigo 412° resulta na própria motivação porquanto tal aperfeiçoamento não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação – cfr. art° 417 nºs 3 e 4 do CPP.

3 - Cometidos vários crimes antes do trânsito em julgado da condenação, como é o caso, há que aplicar uma pena única que importe uma valoração conjunta daqueles e sua relação com a personalidade do agente.

4 - Também no concurso a medida concreta da pena é determinada em função da culpa do agente e da prevenção, agora, por referência ao conjunto dos factos e à sua personalidade.

5 - Na aplicação da pena única que também visa a protecção de bens jurídicos importará ponderar a sua hierarquia e dimensão.

6- A aplicação de uma pena de 25 anos de prisão, limite máximo absoluto permitido no nosso ordenamento jurídico, estará reservada para situações extremas, como é o caso de violação de bens jurídicos da maior dimensão na respectiva hierarquia, de punição de vários crimes com penas parcelares elevadas e ou/ainda em casos de alta criminalidade.

7- O limite intransponível dos 25 anos de prisão estabelecido no nº 2 do art° 77 do C P vem dar corpo ao princípio da proporcionalidade que deve nortear, também, o critério de individualização da pena única.

8- Esse princípio da proporcionalidade tem uma dimensão transprocessual.

9- No caso, a medida da pena única encontrada peca por exagerada, falhando em termos comparativos ferindo o já indicado princípio da proporcionalidade.

10- Por isso, deve ser comutada in melius».

São do seguinte teor as conclusões extraídas pela assistente DD da contra-motivação apresentada:

«Louvamo-nos na profícua, eloquente e bem elucidativa motivação e fundamentação do Mui Douto Acórdão proferida pelos Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora, que escalpelizou de forma exaustiva toda a matéria de facto, e de Direito, pouco ou nada deixando de ser dito agora nesta sede.

Sem mais considerações, que seriam despiciendas, a Assistente considera que o mui douto acórdão agora alvo de recurso não merece qualquer reparo, nem o Tribunal a quo proferiu qualquer decisão que consubstancie violação das normas legais vigentes naquela matéria, não devendo ser por via disso objecto de alteração ou modificação, motivo pelo qual e dando-se aqui como reproduzido tudo o que antes se deixou dito».

Neste Supremo Tribunal o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:


«I Do objecto do recurso:
a) Como decorre das respectivas conclusões, são duas as questões submetidas a reexame:
- Omissão de apreciação do pedido de alteração da decisão sobre a matéria de facto, sem prévio convite para cumprimento do ónus a que se refere o artigo 412.º, n.º 3 do CPP;
- Medida da pena única.
 Quanto à primeira, alega que o «pedido de alteração da decisão sobre a matéria de facto não poderia deixar de ser apreciado, sem que antes fosse formulado convite para cumprir o ónus a que se refere o art. 412º, nº 3, do CPP».
 No que respeita à segunda, considera que o tribunal «se deixou influenciar pelo número de crimes imputados ao recorrente», «Sendo certo que o número daqueles não deve influir na determinação daquela, já que a pena a determinar é autónoma…». Propõe, a final, a redução da pena para limite não superior a 10 anos de prisão.
b) Respondeu o Ministério Público (1402-1407), alegando que «A falta de convite ao recorrente para cumprimento do ónus da impugnação especificada não fere qualquer garantia de defesa desde quando o tribunal ad quem conheceu do pedido de modificação da matéria de facto». Por outro lado, sustenta que «A aplicação de uma pena de 25 anos de prisão, limite máximo absoluto…, estará reservada para situações extremas, como é o caso de violação de bens jurídicos da maior dimensão na respectiva hierarquia, de punição de vários crimes com penas parcelares elevadas e ou/ainda em casos de alta criminalidade…
 No caso a medida da pena única encontrada peca por exagerada, falhando em termos comparativos ferindo o já indicado princípio da proporcionalidade… Por isso deve ser comutada in mellius
c) Respondeu, de igual modo, a assistente (1408-1413), referindo que «a decisão proferida sobre a matéria de facto não foi devidamente impugnada nos termos do disposto no artigo 412.º n.º 3 alínea b) e c) do CPP… Porquanto não indicou o Recorrente as provas que impunham decisão diferente da recorrida nem indicou as provas que deveriam ser renovadas.»
 Considerou finalmente que «A gravidade dos factos e da sua patente e acentuada ilicitude, bem como os elementos desfavoráveis da personalidade do arguido…, por um lado, (…) E, por outro, os limites mínimos e máximos para a determinação da concreta pena única a aplicar…, A pena de prisão de 25 anos efectiva mostra-se justa, adequada e proporcional...».
II
a) Como decorre do acórdão recorrido, a Relação de Évora, após ter definido a questão submetida a reexame como “Erro de Julgamento”, dado que o recorrente pretendia que determinados factos não fossem dados como provados por, na sua perspectiva, ter ocorrido uma incorrecta valoração dos depoimentos das ofendidas, decidiu, além do mais:
 «(…) E é exactamente porque o recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto …, que se impõe, ao recorrente, o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos constantes do n.º 3 do Artº 412 do Código de Processo Penal.
 Assim, impõe-se-lhe a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, especificação esta que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que considera incorrectamente julgado.
 Mais se lhe atribui a especificação das concretas provas que impõe decisão diversa da recorrida, o que se traduz na anotação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que acarreta decisão diversa da recorrida, acrescendo a necessidade de explicitação da razão pela qual essa prova implica uma diferente decisão…».
 E remata:
 «Postos estes considerandos e sem os olvidarmos, decorre das alegações de recurso que o recorrente não cumpriu com estas exigências legais, plasmadas… nos nsº 3 e 4 do Artº 412 do CPP.
 De facto, a impugnação da matéria de facto efectuada no recurso em análise, não se prende, em bom rigor, com a contradição de testemunhos produzidos em Audiência de Julgamento, mas, ao invés, na oposição que se verifica entre os depoimentos prestados pelas ofendidas perante a CPCJ do Cartaxo e os que posteriormente foram efectuados nos autos.».
 Finalmente, depois de reproduzir a motivação da decisão de facto, apreciou criticamente a aplicação do princípio da livre apreciação da prova efectuada pela 1.ª instância, concluindo que a mesma
«foi proferida com base numa interpretação e valoração que se mostra suficientemente fundamentada, quer nas provas produzidas, quer na livre convicção por elas criada no espírito do julgador, só podendo ser alterada, se contra si se apresentassem meios de prova irrefutáveis, existentes nos autos e que tivessem sido desconsiderados, ou se a mesma se configurasse como altamente irrazoável, contrária às mais elementares regras de experiência ou ao sentido das coisas.
 Mas nenhuma destas condições é o caso sub Júdice…
 Inexistindo, assim, qualquer erro na avaliação da prova por banda do tribunal a quo e por consequência, qualquer violação do disposto no Artº 127 do CPP, ter-se-á que finalizar pela improcedência do recurso nesta parte.».
 Vale por dizer que o acórdão recorrido, em consonância com os termos em que o recorrente delimitou a questão, considerou não ter sido cumprido o ónus constante do n.º3 do artigo 412.º do CPP, salientando que o mesmo, com fundamento na contradição dos depoimentos das ofendidas, pretendia, essencialmente, que fosse avaliada a correcção da decisão, nomeadamente por violação do princípio consignado no artigo 127.º do CPP.
 E assim apreciou e decidiu o recurso, não merecendo qualquer reparo a decisão em causa.
 Não há, pois, lugar ao convite ao aperfeiçoamento das conclusões da motivação, porquanto a impugnação da matéria de facto não cumpre minimamente o ónus do n.º 3 do art. 412.º do CPP.
 E, acompanhando-se a fundamentação do acórdão de fixação de jurisprudência n.º 3/2012, entendemos que só se imporá tal convite, quando o recorrente indica os pontos concretos da matéria de facto que considera erradamente julgados e indica as provas que impõem decisão diversa (embora não indique concretamente as passagens das gravações em que funda a impugnação).
 Foi, de resto, o sentido da alegação que efectuamos a este propósito nos autos de recurso extraordinário para fixação de jurisprudência n.º 224/02.6TASRT.C1-D.S1, que aguarda acórdão do pleno do STJ.
 No caso, tendo havido pronúncia sobre a pretensão de alteração da matéria de facto fundada na desvalorização dos depoimentos das ofendidas, não ocorre qualquer nulidade.
 Improcede, pois, de forma manifesta, o recurso neste segmento, o que dita a sua rejeição.
b) Fica-nos a medida da pena única.

 Contrariamente ao alegado pelo recorrente, temos por seguro que o número de crimes deve “influir na determinação” da pena única.

 No nosso sistema de pena única, em que o limite mínimo da moldura atendível é constituído pela pena parcelar mais grave, a pluralidade de crimes deve agravar a pena concreta, por conferir uma maior dimensão ao ilícito global. Como refere Figueiredo Dias, deverá proceder-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verificam.

 E para a avaliação da personalidade do agente, importa, sobretudo, determinar se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (...) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade.
 No caso, acompanhamos a fundamentação do acórdão recorrido (1348-1357), divergindo-se da tese expressa pela Ex. ma Procuradora-Geral Adjunta, na sua resposta.
 A pena máxima de 25 anos de prisão poderá, sem dúvida, ser a adequada pela singular violação de um único bem jurídico que se situe na hierarquia superior da tipologia legal de crimes, como também para a violação reiterada de outros bens que não atinjam aquele nível.
 E é, para nós, impressiva a dimensão dos crimes cometidos contra as menores, durante cerca de 4 anos e meio (ofendida BB), iniciados quando esta tinha apenas 10 anos de idade. Aliás, idêntico prólogo ocorreu com a menor CC, então e igualmente, com 10 anos.
 E, além destes, há que considerar, igualmente, os de violência doméstica.

 Por outro lado, estando estes crimes normalmente associados a características da personalidade do agente, é acrescido o risco de reincidência.

 Finalmente, não é despiciendo reiterar que o recorrente não revelou qualquer arrependimento.

III De todo o modo, e pelo exposto, na ponderação conjunta do ilícito global e personalidade do arguido, com um desvio acentuado no domínio sexual, projectada nos crimes praticados, admitimos que a pena única seja desagravada, para limites na proximidade dos 20 anos, ainda adequada à sua culpa e exigências de prevenção geral e especial, muito elevadas».

O recorrente não respondeu.

No exame preliminar deixou-se consignado que o recurso deve ser parcialmente rejeitado, tendo-se relegado para a conferência, por razões de economia e de celeridade processual, a respectiva decisão.

Colhidos os vistos, cumpre agora decidir.

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São duas as questões que o recorrente AA submete à apreciação deste Supremo Tribunal:

- Nulidade resultante de omissão do dever de convite previsto no n.º 3 do artigo 417º do Código de Processo Penal, omissão essa relativa ao segmento das conclusões da motivação de recurso na parte em que foi impugnada a decisão proferida em 1ª instancia sobre a matéria de facto;

- Desajustada dosimetria da pena conjunta.

Oficiosamente cumpre conhecer a questão suscitada no exame preliminar concernente à rejeição parcial do recurso.

As instâncias consideraram provados os seguintes factos:


«1. O arguido AA viveu maritalmente com DD desde Fevereiro de 2007 a 03 de Novembro de 2011, data em que esta abandonou a residência comum do casal sita no B… M… de C… n.º XX, V… C… de O…, nesta comarca do Cartaxo.

2. Da relação supra descrita nasceram duas filhas comuns ao casal, EE e FF sendo que, DD já tinha duas filhas de uma relação anterior, BB e CC, residindo todas na mesma habitação acima identificada.

3. BB nasceu em 26 de Maio de 1997 e CC em 04 de Junho de 2001.

4. No período compreendido entre Março de 2007 até 03 de Novembro de 2011, o arguido, por diversas ocasiões, em datas e horas não concretamente apuradas, de forma reiterada e regular, forçou BB a ter relações sexuais com ele, umas vezes no barracão anexo à residência, “galinheiro”, outras vezes nos veículos automóveis de sua propriedade com as matrículas XX-XX-XX e XX-XX-YY, e outras vezes no quarto do arguido.

5. Os comportamentos supra descritos, tanto se traduziam em relações de cópula completa, em que o arguido introduzia o seu pénis na vagina de BB, como também de coito oral e anal.

6. Numa primeira fase, o arguido, aproveitando-se do facto de BB se encontrar sozinha com ele no barracão anexo à referida residência, “galinheiro”, a dar de comida aos animais, apalpou-a por cima da roupa nos seios, vagina e rabo.

7. Estes concretos factos ocorreram durante cerca de um mês, e começaram em meados do mês de Fevereiro até meados do mês de Março de 2007, sendo que tinham uma periodicidade de duas vezes por semana.

8. A partir dessa altura o arguido passou a apalpar BB por baixo da roupa, nos seios, vagina e rabo, e dizia-lhe para não contar a ninguém senão ela, a irmã CC e a mãe sofriam as consequências.

9. Nessas alturas BB dizia ao arguido que não queria que lhe fizesse aquilo, procurando impedi-lo com empurrões, mas este, para conseguir alcançar os seus intentos tapava-lhe a boca e segurava-lhe as mãos.

10. Tais comportamentos foram-se adensando, passando o arguido, mediante o uso da força e utilizando expressões da mesma natureza da supra descrita, a forçar BB a manter relações sexuais de cópula completa com ele, baixando-lhe as calças e as cuecas, introduzindo-lhe o pénis na vagina,

sendo que, outras vezes a forçava a manter relações de sexo oral introduzindo-lhe o pénis na boca.

11. Noutras ocasiões, no período de tempo compreendido entremeados Março de 2007 e 03 de Novembro de 2011, o arguido chamava BB para ir ao seu quarto dizendo-lhe que a queria na sua companhia, altura em que lhe mexia na vagina, lhe pedia para que lhe tocasse e mexesse no pénis dele

12. Ainda no decurso do período supra descrito e de noite, o arguido levava a menor BB, numa das viaturas acima descritas (carrinha mercadorias e carrinha de passageiros), para locais ermos, isolados e sem residências por perto, em Vila Chã de Ourique e, lá chegado, agarrava-a nos braços e no interior dos veículos despia-lhe as roupas e forçava-a a manter relações sexuais com ele, introduzindo-lhe o pénis na vagina.

13. Normalmente saía das carrinhas e acabava por ejacular fora das mesmas.

14. Também nestas ocasiões a forçava a fazer-lhe sexo oral, introduzindo-lhe o pénis na boca e, em duas das situações ocorridas nas carrinhas, ele acabou por forçá-la a fazer sexo anal com ele, introduzindo-lhe o pénis no ânus.

15. Pese embora a constante e reiterada recusa por parte da menor BB em manter tais relações com o arguido, este prendia-lhe as mãos, impedindo-a de se defender e forçava-a dessa forma a mantê-las.

16. Os comportamentos supra descritos ocorreram no período compreendido entre Março de 2007 a 03 de Novembro de 2011, uma vez por semana.

17. Como consequência directa e necessária de tais comportamentos, ao nível da região genital e peri-genital, BB ficou com “soluções de continuidade cicatrizadas às 2, 4, 6, 8 e 12h de um mostrador de relógio, medindo cada uma delas cerca de cinco milímetros de comprimento” e com “permeabilidade de bordo livre himenial irregular, ostíolo himenial é permeável aos dois dedos justapostos do perito que procedeu ao exame.”

18. Em data e hora não concretamente apuradas, mas que se situa no início do ano lectivo de 2011, ou seja, em Setembro de 2011, o arguido chamou CC para ir ao quarto dele, fazendo-a deitar na sua cama, por baixo dos lençóis, onde o mesmo a esperava totalmente despido e, acto contínuo, agarrou-lhe na mão colocando-a em cima do seu pénis.

19. Posteriormente, em datas não concretamente apuradas, mas que se situam no período de tempo compreendido entre Setembro de 2011 a 03 de Novembro de 2011, o arguido, para além de forçar a menor CC a mexer-lhe no pénis, passou a mexer-lhe nos seios e na vagina por baixo das cuecas, dizendo-lhe: “Se contares alguma coisa à tua mãe, eu bato-te.”

20. No decurso do período de tempo supra descrito o arguido sempre andou nu na residência conjunta e sempre forçou as ofendidas a fazerem o mesmo.

21. O arguido estava ciente que tinha um ascendente sobre BB e CC, por ser ele a figura paterna daquele agregado familiar e quem lhes providenciava o sustento.

22. O arguido conhecia as idades de BB e CC, que à data do início de tais comportamentos que a cada uma dizem respeito, contavam apenas com 9 e 10 anos de idade, respectivamente, sabendo ainda que a sua conduta cerceava a liberdade de movimentos das ofendidas e que atentava contra a liberdade, dignidade e autodeterminação sexual das menores ofendidas e que igualmente punha em causa o normal e livre desenvolvimento da personalidade daquelas na esfera sexual.

23. Sabia ainda o arguido que as ofendidas menores não tinham capacidade para avaliar e entender o significado dos actos que estava a fazê-las suportar e que, mediante recurso à força física e psicológica as mesmas a eles se submetiam contrariadas, forçadas e com medo das suas reacções.

24. Por diversas vezes, no período de tempo supra identificado (Fevereiro de 2007 a 3 de Novembro de 2011) pelo menos duas vezes por semana, na dita residência, o arguido, sem que nada o fizesse prever e sem qualquer motivo para tal, dirigindo-se a DD, BB e CC desferiu-lhes chapadas, murros, pontapés, puxões de cabelos, puxões de orelhas, empurrões, pancadas com tubos de ferro e com fios finos, agressões essas que as atingiram em diversas partes do corpo como a face, a cabeça, os braços, as pernas, as mãos e outras.

25. Tais agressões, em regra, ocorriam na sequência de discussões que o arguido iniciava com as ofendidas, por vezes motivadas, apenas por terem deixado um qualquer objecto fora do local que o arguido entendia como o correcto, ou por fazerem alguma coisa que o arguido não gostava, e concretamente, no caso de BB e CC também por não fazerem correctamente os trabalhos de escola ou demorarem muito tempo a terminarem as refeições.

26. Em outras ocasiões, sempre no período supra descrito, o arguido fechava BB e CC no barracão já referido, “galinheiro”, por um período de tempo indeterminado, até que cada uma, respectivamente e em separado, resolvessem os trabalhos de casa que traziam da escola, sendo que chegaram a lá permanecer fechadas por períodos de 2 a 3 dias, sem comer.

27. Em datas e horas não concretamente apuradas mas que se situam no período de tempo supra descrito, o arguido, com o intuito de castigar a menor CC, colocou-a no quintal, de noite e ao relento, para terminar as suas refeições junto ao cão.

28. No período de tempo supra descrito, em dia não concretamente apurado, na dita residência, após a menor BB ter vomitado comida de que não gostava, o arguido obrigou-a a ir para o quintal comer o que tinha vomitado.

29. No período de tempo supra descrito, em dia não concretamente apurado, na dita residência, o arguido, munindo-se de um martelo, de uma espátula e de uma colher de pedreiro, desferiu diversas pancadas em várias zonas do corpo de DD.

30. Em dia e hora não concretamente apurado, mas que se situa no período de férias escolares da Páscoa de 2007, o arguido, na sequência de uma discussão com a mãe de DD que foi à residência do casal ver as netas, disse-lhe:”podes ir com a tua mãe, mas não te esqueças que eu vou atrás de ti e mato-te, mato a tua mãe e as tuas filhas.”

31. Quando DD estava grávida de EE, o arguido chegou a desferir-lhe murros e pontapés na barriga.

32. Em dia e hora não apurado, o arguido munindo-se de um tubo em ferro, desferiu várias pancadas no corpo de DD que a atingiram nas pernas e costas, quando esta tinha EE, ainda bebé, ao seu colo.

33. No dia 31 de Dezembro de 2008, por DD manifestar uma opinião contrária à do arguido face a um programa de televisão que assistiam, o arguido desferiu-lhe um murro com tanta força que partiu o próprio braço.

34. Sempre que agredia DD o arguido também a chamava de “puta, vaca, cabra e porca”.

35. Em consequência de tais agressões as ofendidas DD, BB e CC, ficaram com hematomas e ferimentos nas partes do corpo onde eram atingidas, sendo que, não recebiam tratamento hospitalar porque o arguido não permitia que DD se ausentasse de casa a não ser na sua companhia.

36. Em dia não concretamente apurado, mas nos finais de Junho de 2008, na residência supra descrita, o arguido, empunhando uma faca, deferiu um corte no braço direito de DD.

37. Em consequência de tal comportamento DD teve necessidade de tratamento médico no Hospital Egas Moniz em Lisboa, onde foi suturada a ferida e, submetida a cirurgia, tendo sido posteriormente acompanhada no Hospital de Santarém.

38. Tal agressão causa directa e necessária de “ferida aberta no antebraço complicada de lesão tendinosa”, “edema marcado da mão e antebraço direito” e “compromisso de mobilidade dos dedos da mão direita.”

39. Em data não concretamente apurada mas ainda no período de tempo supra descrito, o arguido forçou-a a permanecer em casa por 6 meses, impedindo-a de sair à rua, controlando-lhe as chamadas telefónicas que efectuava, permitindo-lhe apenas manter contacto telefónico com a sua mãe mas só na sua presença.

40. Nas mesmas circunstâncias supra descritas, procurando evitar que DD denunciasse tais comportamentos, dizia-lhe frequentemente: “um dia se fugires hei-de ir atrás de ti e mato-te, se alguma vez apresentes queixa, mato-te. Descubro onde estiveres, nem que seja no fim do mundo e mato-te.”

41. No dia 03 de Novembro de 2011, na dita residência, o arguido desferiu uma chapada na face de DD, tendo esta tido necessidade de tratamento médico que recebeu no Hospital de Torres Novas.

42. Tais comportamentos vieram a cessar nesse dia 3 de Novembro de 2011 quando DD abandonou a residência supra identificada.

43. Ao actuar de tal forma tinha ainda o arguido o propósito de molestar física e psicologicamente as ofendidas DD, BB e CC e, afectá-las na sua dignidade pessoal, segurança, liberdade, honra e bem-estar, propósito esse que logrou alcançar porquanto aquelas temem e receiam seriamente pela sua saúde, liberdade, integridade física e vida.

44. Na sequência de uma busca domiciliária efectuada no dia 20 de Dezembro de 2011 à residência do arguido, apurou-se que este guardava na sua posse os seguintes objectos, que lhe foram apreendidos:

-uma arma de fogo longa (espingarda);

-um cartucho com bala para caça;

-um cartucho de zagalote para caça;

-um cartucho de caça e,

-uma mira telescópica.

44. O arguido não é titular de licença de detenção, uso e porte de arma e a espingarda não se encontra manifestada.

45. O arguido conhecia as características da arma de fogo supra descrita e das munições, e ainda assim, previu e quis ter consigo os aludidos objectos (arma e munições), bem sabendo que não é titular de documento que o habilite à detenção, uso e porte de tais armas.

46. O arguido agiu sempre voluntária e conscientemente, conhecendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, e actuou com a liberdade necessária para se determinar segundo essa resolução.

47. O arguido é o mais novo de 7 irmãos tendo crescido até aos 22 anos de idade no interior de um agregado familiar de origem que se dedicava à agricultura, descrito como socioeconomicamente sustentável.

48. Referiu que após o falecimento do pai, começou a existir uma relação conflituosa entre os vários irmãos, que se foi acentuando e agudizando com o tempo e que deu origem a um afastamento relacional do arguido com os mesmos.

49. A prisão de dois dos irmãos do arguido originou uma imagem negativa do arguido e da sua família no meio residencial, sendo conotados com condutas de agressividade.

50. Em termos escolares somente concluiu a antiga 4.ª classe, vindo a abandonar os estudos com cerca de 12/13 anos de idade para começar a trabalhar como aprendiz de serralheiro até aos 14 anos de idade.

51. Exerceu actividade profissional a partir dos 14 anos de idade, primeiro como servente e depois como operário da construção civil até aos cerca de 32 anos de idade; depois trabalhou como empregado de mesa e como vendedor até se dedicar à actividade laboral de sucateiro a partir de 2009.

52. A nível afectivo, o arguido casou com 18 anos de idade com uma rapariga mais nova; permaneceu no agregado familiar de origem e o casamento durou somente 6 meses; com 22 anos iniciou uma relação marital que terminou algum tempo depois com o abandono da casa por parte da companheira, da qual nasceram as duas filhas mais velhas que residem em Bragança com a mãe e com quem não mantém contacto desde 1998.

53. No período de tempo que antecedeu a sua privação da liberdade, o arguido residia sozinho, exercendo a actividade laboral como sucateiro, descrevendo uma situação socioeconómica sustentável e uma dinâmica familiar intra – familiar com alguns conflitos conjugais mas não significativos, tendendo a transmitir uma má imagem de DD.

54. Actualmente o arguido beneficia essencialmente do apoio de um amigo e de uma irmã, verificando-se algum isolamento familiar.

55. O arguido revela uma atitude de ausência de autocritica, considerando ser vítima de um plano traçado por familiares da assistente DD para o prejudicar; não denota preocupação sobre o desfecho do processo.

56. No estabelecimento prisional tem revelado uma atitude consonante com as regras e normas institucionais.

57. O arguido não tem antecedentes criminais.

58. A assistente DD, na sequência dos factos descritos, teve necessidade de acompanhamento psicológico semanal por ter exteriorizado instabilidade emocional, baixa auto – estima e isolamento.

59. A assistente DD tem feito progressos significativos contribuindo para esse facto o bom suporte/estrutura familiar (mãe e filhas) de que beneficia.

60. A assistente DD necessita, ainda, de acompanhamento psicológico não se prevendo, neste momento, quando o mesmo possa cessar.

61. A ofendida BB encontra-se a ser acompanhada por uma psicóloga, a pedido da CPCJ, desde Janeiro de 2012 por se mostrar uma criança com baixa auto – estima, muito receosa, não só em relação a si própria, mas também relativamente à mãe e às irmãs e porque se isolava.

62. A menor CC tem vindo a ser acompanhada em termos psicológicos, de início semanalmente e actualmente de forma quinzenal.

63. A menor CC é uma criança doce, sensível e mantém com a mãe, a assistente DD, uma relação muito próxima, sendo este o seu principal pilar.

64. Quando iniciou o acompanhamento psicológico, a menor CC apresentava uma baixa autoestima, acentuados níveis de ansiedade e insegurança.

65. A mudança e a integração num novo contexto têm sido essenciais na reabilitação emocional da CC.

66. Actualmente ainda se sente frágil em termos de autoestima, mas denotam-se algumas melhorias a esse nível.

67. Em consequência dos factos praticados pelo arguido, o Hospital Distrital de Santarém prestou assistência hospitalar a DD, em 25 de Junho de 2008.

68. A assistente DD deu entrada novamente naquele Hospital em 27 de Junho de 2008, onde ficou internada até ao dia 30 de Junho de 2008.

69. Em virtude da assistência hospitalar prestada a DD foi emitida a factura n.º12003649, no montante de 1 937,74 €».

                                         *

Questão a decidir em primeiro lugar é a oficiosamente suscitada atinente à rejeição parcial do recurso.

Decidindo, dir-se-á.

A lei adjectiva penal manda rejeitar o recurso sempre que seja manifesta a sua improcedência, se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do n.º 2 do artigo 414º e o recorrente não apresente, complete ou esclareça as conclusões formuladas e esse vício afecte a totalidade do recurso nos termos do n.º 3 do artigo 417º – n.º 1 do artigo 420º.

Primeira causa de não admissão do recurso prevista no n.º 2 do artigo 414º é a da irrecorribilidade da decisão.

De acordo com o preceituado no artigo 400º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 48/07, de 29 de Agosto, não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos, o que significa, como este Supremo Tribunal de Justiça vem entendendo, de forma constante e pacífica, só ser admissível recurso de decisão confirmatória da relação no caso de a pena aplicada ser superior a 8 anos de prisão, quer estejam em causa penas parcelares ou singulares quer penas conjuntas ou únicas resultantes de cúmulo[3].

No caso de sucessão de leis processuais, em matéria de recursos, é aplicável a lei vigente à data da decisão de 1ª instância, entendimento a que este Supremo Tribunal chegou no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 3/09, de 09.02.18, publicado no DR, I Série, de 09.03.19.

No caso vertente estamos perante decisão condenatória de 1ª instância confirmada pelo Tribunal da Relação, sendo todas as penas parcelares aplicadas não superiores a 8 anos, conquanto a pena conjunta cominada ultrapasse aquele patamar situando-se nos 25 anos de prisão.

Deste modo, certo é ser irrecorrível a decisão impugnada no que respeita às penas parcelares aplicadas, consabido que a decisão de 1ª instância foi prolatada após a publicação e entrada em vigor da Lei n.º 48/07, de 29 de Agosto, a significar que relativamente à condenação do recorrente AA pelos duzentos e quarenta e oito crimes em concurso está este Supremo Tribunal impossibilitado de exercer qualquer sindicação, sindicação que só é admissível no que tange à pena conjunta cominada, ou seja, no que concerne à operação de formação ou determinação da pena única[4].

Com efeito, estando o Supremo Tribunal impedido de sindicar o acórdão recorrido no que tange à condenação pelos duzentos e quarenta e oito crimes em concurso, obviamente que está impedido, também, de exercer qualquer censura sobre a actividade decisória prévia que subjaz e conduziu à condenação do recorrente por cada um desses crimes. A verdade é que relativamente aos duzentos e quarenta e oito crimes em concurso o acórdão recorrido transitou em julgado, razão pela qual no que a eles se refere se formou caso julgado material, tornando definitiva e intangível a respectiva decisão em toda a sua dimensão, estando pois a coberto do caso julgado todas as decisões que antecederam e conduziram à condenação pelos crimes em concurso, ou seja, que a jusante da condenação se situam.

De outra forma estar-se-ia a violar o princípio constitucional non bis in idem (n.º 5 do artigo 29º da Constituição), concretamente na sua dimensão objectiva, que garante a segurança e a certeza da decisão judicial, através da imutabilidade do definitivamente decidido.

Há pois que rejeitar o recurso na parte em que o recorrente argúi nulidade resultante de omissão do dever de convite previsto no n.º 3 do artigo 417º do Código de Processo Penal, omissão essa relativa ao segmento das conclusões da motivação de recurso em que foi impugnada a decisão proferida em 1ª instância sobre a matéria de facto, com isso pretendendo que este Supremo Tribunal declare nulo o acórdão recorrido e ordene ao Tribunal da Relação proceda à sua notificação para corrigir as conclusões que extraiu da motivação de recurso no segmento em quem impugnou a decisão de facto proferida em 1ª instância, tendo em vista o posterior reexame da matéria de facto.

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Sob a alegação de que a pena única não constitui um somatório das penas singulares impostas, devendo ser fixada a partir de uma completa valoração dos factos e da personalidade do agente, avaliação essa conjunta, entende o recorrente AA dever ser a pena que lhe foi imposta reduzida para pena não superior a 10 anos de prisão, uma vez que é primário, o que a seu ver afasta imediatamente o juízo de tendência criminosa, para além de que as penas singulares foram fixadas nos mínimos legais.

Apreciando, dir-se-á.

A pena conjunta ou única, pena através da qual se pune o concurso de crimes, segundo o texto do n.º 2 do artigo 77º do Código Penal, tem a sua moldura abstracta definida entre a pena mais elevada das penas parcelares e a soma de todas as penas em concurso, não podendo ultrapassar 25 anos, o que equivale por dizer que no caso vertente a respectiva moldura varia entre o mínimo de 5 anos de prisão e o máximo de 25 anos de prisão. Segundo preceitua o n.º 1 daquele artigo, na medida da pena única são considerados em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que significa que o cúmulo jurídico de penas não é uma operação aritmética de adição, nem se destina, tão só, a quantificar a pena conjunta a partir das penas parcelares cominadas[5]. Com efeito, a lei elegeu como elementos determinadores da pena conjunta os factos e a personalidade do agente, elementos que devem ser considerados em conjunto.

Como esclareceu o autor do Projecto do Código Penal, no seio da respectiva Comissão Revisora[6], a razão pela qual se manda atender na determinação concreta da pena unitária, em conjunto, aos factos e à personalidade do delinquente, é de todos conhecida e reside em que o elemento aglutinador da pena aplicável aos vários crimes é, justamente, a personalidade do delinquente, a qual tem, por força das coisas, carácter unitário, de onde resulta, como ensina Jescheck[7], que a pena única ou conjunta deve ser encontrada a partir do conjunto dos factos e da personalidade do agente, tendo-se em atenção, em primeira linha, se os factos delituosos em concurso são expressão de uma inclinação criminosa ou apenas constituem delitos ocasionais sem relação entre si, sem esquecer a dimensão da ilicitude do conjunto dos factos e a conexão entre eles existente, bem como o efeito da pena sobre o comportamento futuro do delinquente, sendo que a “autoria em série” deve considerar-se, em princípio, como factor agravante da pena.

Posição também defendida por Figueiredo Dias[8], ao referir que a pena conjunta deve ser encontrada, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique, relevando, na avaliação da personalidade do agente sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade, sem esquecer o efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro daquele, sendo que só no caso de tendência criminosa se deverá atribuir à pluriocasionalidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura da pena conjunta.

Adverte no entanto que, em princípio, os factores de determinação da medida das penas singulares não podem voltar a ser considerados na medida da pena conjunta (dupla valoração), muito embora, «aquilo que à primeira vista possa parecer o mesmo factor concreto, verdadeiramente não o será consoante seja referido a um dos factos singulares ou ao conjunto deles: nesta medida não haverá razão para invocar a proibição de dupla valoração»[9].

Daqui que se deva concluir, como concluímos, que com a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto, (e não unitariamente) os factos e a personalidade do agente. Como doutamente diz Figueiredo Dias, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado.

Importante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos[10], tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso, tendo presente o efeito dissuasor e ressocializador que essa pena irá exercer sobre aquele[11].

Analisando os factos verifica-se que todos eles, com excepção do relativo à detenção de arma proibida, se encontram conexionados em maior ou menor grau, constituindo um complexo delituoso de gravidade ímpar. O ilícito global, composto por duzentos e trinta e quatro crimes de violação agravada, dez crimes de abuso sexual de crianças agravado, três crimes de violência doméstica e um crime de detenção de arma proibida, todos eles praticados com dolo directo, reiteradamente, ao longo de quatro anos, revela com clareza inclinação criminosa. Por outro lado, a violência inerente à prática da grande maioria dos factos, violência exercida sobre as vítimas, mulher e enteadas menores, sem que o recorrente denote qualquer arrependimento, assumindo uma postura de ausência de autocrítica, revela uma total indiferença pelos direitos dos seus semelhantes, evidenciadora de uma personalidade desconforme para com o direito.

Na fixação da pena conjunta, como atrás se deixou consignado, a autoria em série deve considerar-se, em princípio, como factor agravante da pena, o que no caso vertente manifestamente se verifica, tanto mais que o recorrente AA é portador de tendência criminosa.

Sopesando todas estas circunstâncias, a natureza dos bens jurídicos violados, a gravidade de cada uma das penas singulares impostas e o efeito futuro da pena conjunta sobre o recorrente, tendo também presente a sua primariedade, entende-se desagravar a pena para 23 anos de prisão, medida esta ainda compatível com a defesa do ordenamento jurídico.

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Termos em que se acorda rejeitar o recurso na parte em que o recorrente argúi nulidade resultante de omissão do dever de convite previsto no n.º 3 do artigo 417º do Código de Processo Penal, concedendo-lhe parcial provimento quanto à impugnação da medida da pena conjunta, pena que se reduz para 23 (vinte e três) anos de prisão.

Sem tributação.

Supremo Tribunal de Justiça, 02 de Dezembro de 2013

Oliveira Mendes (relator)
Maia Costa



[1] - São os seguintes os crimes em concurso e as penas singulares impostas:
- Duzentos e trinta e quatro crimes de violação agravada, sendo de 5 anos de prisão a pena imposta a cada um;
- Dez crimes de abuso sexual de criança agravado, sendo de 2 anos de prisão a pena aplicada a cada um;
- Três crimes de violência doméstica, sendo de 3 anos e 6 meses de prisão a pena cominada a dois deles e de 3 anos de prisão a pena imposta ao restante;
- Um crime de detenção de arma proíbida, sendo de 1 ano de prisão a pena aplicada.

[2] - O texto que a seguir se transcreve, tal como os demais que mais adiante se irão transcrever, correspondem ipsis verbis aos constantes dos autos.
[3] - Entre muitos outros, os acórdãos de 08.11.13, 09.09.23 e 10.06.23, proferidos nos Processos n.ºs 3381/08, 27/04.3GGBTMC.S1 e 1/07.8ZCLSB.L1.S1
[4] - Aliás, sendo todas as penas singulares impostas não superiores a 5 anos de prisão, a irrecorribilidade resulta, também, do disposto na alínea e) do artigo 400º.

[5] - O nosso legislador penal não adoptou o sistema da absorção (punição com a pena concreta do crime mais grave), o sistema de acumulação material (soma das penas com mera limitação do limite máximo), nem o sistema da exasperação ou agravação da pena mais grave (elevação da pena mais grave, através da avaliação conjunta da pessoa do agente e os singulares factos puníveis, elevação que não pode atingir a soma das penas singulares nem o limite absoluto legalmente fixado), tendo mantido todas as opções possíveis em aberto.

[6] - Acta da 28ª Sessão realizada em 14 de Abril de 1964.

[7] - Tratado de Derecho Penal Parte General (4ª edição), 668.

[8] - Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 290/292.

[9] - Proibição de dupla valoração defendida por Eduardo Correia no seio da Comissão Revisora do Código Penal e ali maioritariamente aceite, ao ser rejeitada proposta apresentada pelo Conselheiro Osório no sentido de os critérios gerais de determinação da medida da pena serem também aplicáveis à determinação da pena única – acta já atrás referida.
[10] - Personalidade referenciada aos factos, ou seja, reflectida nos factos, visto que estes, como resultado da vontade e actuação do delinquente, espelham a sua forma de pensar e o seu modo de ser, o seu temperamento, carácter e singularidade, isto é, a sua personalidade.

[11] - Tem sido este o entendimento por nós assumido, como se pode ver, entre muitos outros, nos acórdãos deste Supremo Tribunal de 08.03.05, 09.11.18 e 13.05.22, proferidos nos Processos n.ºs 114/08, 702/08. 3GDGDM. P1.S1 e 392/10.3PCCBR.C2.S1.