Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
393/14.2TYLSB-L.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
DUPLA CONFORME
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
LEI APLICÁVEL
REGIME TRANSITÓRIO
PROPOSITURA DA AÇÃO
PROCESSO PENDENTE
LEI PROCESSUAL
PODERES DA RELAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
OBJETO DO RECURSO
Data do Acordão: 05/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: NÃO CONHECIMENTO DO OBJECTO DO RECURSO.
Sumário :
I- O acórdão do Tribunal da Relação que se pronuncia em Conferência sobre a admissibilidade do recurso de Apelação, no âmbito do incidente de reclamação do despacho do juiz da 1.ª instancia que não admitiu o recurso interposto (art. 643º, 4, 2.ª parte, 652º, 3, do CPC), julga em definitivo a questão da inadmissibilidade ou da subida do recurso de Apelação (únicos resultados decisórios admitidos pelo art. 643º, 4, 1.ª parte, do CPC), sem que para contrariar essa definitividade decisória possa ser usada a faculdade admitida pelo art. 652º, 5, b), na relação com os arts. 671º, 1 e 2, do CPC.

II- Não preenche o art. 542º, 2, a) e d), do CPC para qualificação como conduta processual de litigância de má fé, que exige culpa qualificada (dolo ou negligência grave), a interposição de revista, alegadamente fundada no art. 671º, 2, do CPC, desse acórdão da Relação, assente numa compreensão do regime recursivo que a permitiria para obter uma posição jurídica diversa daquela que a decisão judicial de 2.ª instância acolhe e ampara, uma vez não demonstrada uma violação grave dos deveres de cooperação, boa fé processual e correcção recíproca (arts. 7º, 1, 8º e 9º, 1, CPC) na relação do recorrente com as demais partes e com o Tribunal.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 393/14.2TYLSB-L.L1.S1
Revista – Tribunal recorrido: Relação de Lisboa, ... Secção


Acordam em Conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I) RELATÓRIO

1. AA intentou acção declarativa de condenação contra «A..., Unipessoal, Lda.» e BB, peticionando que (A) seja declarado nulo o negócio de compra e venda celebrado entre as Rés, bem como o “documento particular de compra e venda” que titula o negócio celebrado, com o consequente cancelamento das inscrições prediais a favor da sociedade Ré sobre o prédio misto descrito. Subsidiariamente, peticiona que (B) seja declarada a simulação de preço estipulado pelas Rés no “documento particular de compra e venda” relativa ao prédio identificado, reconhecendo-se ao Autor o direito de preferência na venda do mencionado imóvel, pelo preço que se vier a provar em julgamento e que vier a constar da sentença a proferir nos autos como sendo o preço real da compra e venda, inferior ao estipulado no contrassto, reconhecendo-se consequentemente a sua qualidade de titular do direito de propriedade sobre o referido prédio. Mais peticionou que (C) fosse concedido o prazo de 15 dias após o trânsito em julgado da sentença a proferir para depositar o preço real da compra e venda, bem como despesas, e se ordenasse o cancelamento das inscrições prediais a favor da sociedade Ré e determinassse a inscrição do prédio a favor do Autor.

A acção foi tramitada no Tribunal Judicial ... e na Instância Central Cível do Tribunal ... e Comarca de Faro sob o n.º 54/13.....

2. A Ré CC apresentou Contestação, pugnando pela improcedência da acção; o Autor apresentou Réplica.

3. Considerando a declaração judicial da insolvência da sociedade Ré, e atravessado nos autos requerimento do Administrador da Insolvência (AI) a solicitar a apensação do processo aos autos de insolvência, foi proferido despacho a ordenar a satisfação da solicitada apensação pelo AI (24/3/2015), transitado em julgado, sendo os autos remetidos para apensação ao processo n.º 303/14...., do ... Juízo de Comércio da Instância Central do Tribunal da Comarca ..., ficando a constar e tramitado como apenso “F”.

4. Citada a Ré insolvente na pessoa do AI, não houve contestação.
Ulteriormente, porém, informou nos autos o AI que o imóvel em discussão nos autos foi adquirido pela sociedade Ré à outra Ré na acção e que o registo da aquisição ficou provisório por natureza em face do registo da presente acção, na qual se pede o reconhecimento do seu direito de preferência na venda feita pela aqui Ré BB.

5. Foi realizada audiência prévia, na qual foi determinado que, após o decurso do prazo de suspensão requerido pelas partes para a composição amigável do litígio e correspondente transação, suspensão essa deferida pelo prazo de 30 dias, e caso não lograssem alcançar acordo quanto aos termos da acção, o Autor procedesse ao depósito do preço devido (a saber, € 245.000) na quinzena subsequente, sob pena de caducidade do direito (ref.ª CITIUS ...47, 29/9/2021).

O Autor interpôs recurso de apelação deste despacho (13/10/2021); foi proferido despacho de não admissão do recurso naquele momento do processo, considerando que o despacho impugnado seria apenas recorrível com o recurso que viesse a ser interposto da decisão, nos termos do art. 644º, 3, do CPC.

*

O Autor apenas procedeu ao depósito do montante correspondente a € 50.000, não obstante despacho proferido na continuação da audiência prévia com a concessão de prazo para o Autor proceder ao depósito da quantia necessária para completar o total de € 245.000 correspondentes ao preço declarado.

Na sequência, verificada tal omissão, foi proferido despacho de notificação das partes para se pronunciarem quanto a “eventual exceção dilatória inominada de falta de interesse em agir do autor, relativamente aos demais pedidos nos autos, e que caiba ao tribunal conhecer oficiosamente (n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil)”. Pronunciaram-se a «Massa Insolvente» da sociedade Ré, a Ré BB e o Autor.

6. O Juiz ... do Juízo de Comércio ... proferiu saneador-sentença (10/5/2022), no qual se dispôs no respectivo segmento decisório:

“i) julgo procedente a invocada exceção de caducidade do direito de ação de preferência do autor e, em consequência, absolvo as rés do respetivo pedido formulado pelo autor (e que corresponde à 2.ª parte do pedido elencado no ponto B) do petitório); e

ii) julgo verificada a exceção dilatória inominada de falta de interesse em agir do autor, e, em consequência, absolvo as rés da instância.”

 
A sentença foi notificada por comunicação no CITIUS às partes (incluindo o Autor) na data da sua prolação (10/5/2022) e em 12/5/2022; sendo notificada ao MP em 11/5/2022.

7. O Autor, inconformado, interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), através de requerimento apresentado em 6/6/2022 (ref.ª CITIUS ...88), com a salvaguarda do recurso de apelação anteriormente interposto.

8. Recebidas as alegações, foi proferido pelo Senhor Juiz de 1.ª instância despacho de não admissão do recurso interposto, por extemporaneidade (5/7/2022, ref.ª CITIUS ...25), seja quanto à impugnação da sentença, seja quanto à impugnação do despacho proferido em audiência prévia realizada em 29/9/2021.
Transcreve-se:

           

“Ref.ª ...88 (06.06.2022):

Por com ela não se conformar, veio o autor interpor recurso da sentença proferida em 10.05.2022 (ref.ª ...24).

Constata-se, porém, que o requerimento de interposição de recurso é extemporâneo. Com efeito, a referida sentença foi notificada ao autor por comunicação 10.05.2022 (ref.ª ...51), tendo-se o autor por notificado, então, em 13.05.2022, nos termos do disposto no artigo 248.º do Código de Processo Civil.

O prazo de recurso, que é de 15 dias (n.º 1 do artigo 638.º do Código de Processo Civil e n.º 1 do artigo 9.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) iniciou-se no dia seguinte, terminando então a 30.05.2022 (por 28.05.2022 ter sido sábado – n.º 2 do artigo 138.º do Código de Processo Civil). Os chamados dias de multa (n.º 5 do artigo 139.º do Código de Processo Civil) foram 31.05.2022, 01.06.2022 e 02.06.2022.

O requerimento de recurso deu entrada a 06.06.2022 pelo que é, nos termos expostos, extemporâneo.

Assim, por intempestivo, não admito o recurso interposto pelo autor no requerimento em epígrafe.

**


Ref.ª ...36 (13.10.2021):

Veio o autor interpor recurso do despacho proferido em audiência prévia de 29.09.2021.

Por despacho de ref.ª ...82 (09.11.2021) o recurso interposto não foi, naquele momento, admitido, por se tratar de despacho apenas recorrível com o recurso interposto da decisão final, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 644.º do Código de Processo Civil.
Assim, aguardem os autos o decurso do prazo a que se refere o artigo 643.º do Código de Processo Civil e, após, conclua.”

9. O Apelante, sem se resignar, deduziu Reclamação para o TRL nos termos do art. 643º, 1, do CPC, visando ser a decisão substituída por outra que ordene a admissão do recurso para a 2.ª instância.
Subidos os autos, foi proferida Decisão Singular nos termos do art. 643º, 4, do CPC (16/11/2022), decidindo-se pela improcedência da Reclamação, com a consequente manutenção do despacho reclamado, consistente na conclusão de que “o recurso interposto pelo autor reclamante/apelante tendo por objeto a sentença proferida – incluindo, consequentemente, a impugnação do despacho proferido pelo tribunal em 29/9/2021 [com rectificação de lapso de escrita], que o Juiz considerou ser admissível apenas “com o recurso que venha a ser interposto da decisão final (n.º 3 do artigo 644.º, do Código de Processo Civil” (…) – não é admissível, por extemporaneidade, como entendeu a primeira instância”.
*

O Reclamante deduziu então Reclamação para a Conferência, nos termos do art. 652º, 3, do CPC (depois de convolação oficiosa da revista originariamente interposta, com anuência do Recorrente, operada por despacho proferido em 14/1/2023: ref.ª CITIUS ...17).
Na sequência, foi proferido acórdão pelo TRL (24/1/2023), que decidiu julgar improcedente a Reclamação e manter a decisão singular antes proferida.

10. Inconformado uma vez mais, o Autor e Reclamante veio interpor recurso de revista para o STJ, fundada nas als. a), relativa a violação de caso julgado, e b) do art. 671º, 2, do CPC, fundando-se aqui em oposição jurisprudencial com o Ac. do STJ de 9/7/2014, processo n.º 2577/05.5TBPMS-P.C3.S1, sem porém juntar qualquer cópia, mesmo que não certificada e comprovativa do trânsito, do acórdão fundamento proferido pelo STJ, visando a revogação do acórdão recorrido e a admissão do recurso de Apelação interposto para a Relação.
A «Massa Insolvente» e a Ré BB apresentaram contra-alegações, pugnando pela inadmissibilidade e improcedência da revista, confirmando-se na íntegra o acórdão recorrido.

11. Subidos os autos, foi proferido despacho pelo presente Relator no exercício da competência e para os efeitos do art. 655º, 1, ex vi art. 679º, do CPC, confrontando as partes com as circunstâncias processuais que obstariam à admissibilidade e conhecimento do objecto do recurso de revista:

“O acórdão da Relação proferido em conferência que confirma o despacho singular do Relator de não admissão do recurso de apelação, em sede de Reclamação do despacho do juiz de 1.ª instância que rejeitou esse mesmo recurso de apelação, resulta de uma impugnação própria, constante dos arts. 641º, 6, 643º, 3 e 4, e 652º, 3, 1.ª parte, do CPC, e autónoma em face das previsões recursivas dos arts. 671º e 672º do CPC.”;

“Tal natureza conferirá carácter de definitividade decisória a esse acórdão da Relação, por ser insusceptível de qualquer outra impugnação, neste caso para o STJ, seja qual for a modalidade da revista enquanto espécie de recurso, circunscrita que está a decisão final ao âmbito restrito do incidente de Reclamação ex art. 643º do CPC (tal como tem sido decidido pela jurisprudência deste STJ).”
*

O Autor e Recorrente apresentou resposta, pugnando pela admissibilidade da apelação tendo em conta a insusceptibilidade de conferir urgência ao prazo legal de tempestividade aplicado em face do princípio da confiança e, por outro lado, a abrangência da revista no âmbito do art. 671º, 2, do CPC para apreciação da questão de mérito alegada; porém, sem responder aos termos especificamente descritos no despacho proferido no âmbito do art. 655º do CPC.

As Rés e Recorridas apresentaram igualmente a sua pronúncia: (i) inadmissibilidade da revista à luz do art. 671º, 1, do CPC; (ii) pedido de condenação da Recorrente em ligitância de má fé, nos termos do art. 542º, 1, 2, a) e d), do CPC.
O Autor e Recorrente respondeu a este último pedido incidental, requerendo que se considere improcedente e sem fundamento.
*

Foram dispensados os vistos nos termos legais.
           
Cumpre apreciar e decidir, enfrentando previamente a questão da admissibilidade da revista.


II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTAÇÃO


A. Questão prévia da admissibilidade do recurso

12. O acórdão da Relação proferido em Conferência que confirma o despacho singular do Relator em 2.ª instância de não admissão do recurso de apelação, em sede de Reclamação do despacho do juiz de 1.ª instância que rejeitou esse mesmo recurso de apelação, resulta de uma impugnação própria, constante dos arts. 641º, 6, 643º, 3 e 4, e 652º, 3, 1.ª parte, do CPC. Um acórdão da Relação que confirma a decisão da 1.ª instância e do Relator em 2.ª instância, ligados pelo resultado decisório comum de rejeição do recurso de apelação dessa decisão de 1.ª instância, segue a disciplina e a lógica do regime do incidente de reclamação, estabelecido no art. 643º do CPC, assim como os seus desfechos possíveis e excludentes de nova impugnação: “ou o recurso é admitido e o relator requisita o processo ao tribunal recorrido; ou o despacho de não recebimento de recurso é mantido e[,] então, o processo incidental é remetido ao tribunal reclamado, para o processo prosseguir aí os seus termos”[1].

13. Uma vez proferido tal acórdão, a decisão recorrida não pode ser enquadrada em qualquer das situações previstas para a revista, normal ou excepcional, tal como previstas nos arts. 671º, 1, 2, e 672º, 1 e 2, do CPC.

O STJ, em Decisão Singular de 12/2/2018 (art. 652º, 1, h), ex vi art. 679º, CPC)[2], asseverou tal conclusão, com clareza e argumentação plural que merecem concordância, uma vez que a recorribilidade nos termos gerais prevista nesse normativo – com especial atendibilidade do art. 671º, 1 e 2, do CPC, mas igualmente aplicável à modalidade de revista excepcional no juízo primário sobre a sua admissiblidade como revista para o STJ – não pode ser de todo e aqui admitida.
Atentemos.

“No CPCivil de 1939 a impugnação do despacho de rejeição do recurso era passível de um recurso de queixa a interpor para o Presidente do Tribunal hierarquicamente superior, o qual passou a ser extensível ao despacho que retivesse o recurso, cfr artigo 689º daquele diploma legal, cfr JAReis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, reimpressão, 340/351.   
Posteriormente, com a aprovação do CPCivil de 1961, eliminou-se aquela terminologia, passando a designar-se reclamação, e se o Presidente indeferisse a reclamação, a sua decisão era definitiva, artigo 689º, nº2; se a deferisse, o processo baixava à instância recorrida para que fosse admitido o recurso ou mandasse subir o recurso retido, embora aquele despacho não fizesse caso julgado formal, podendo o Tribunal de recurso decidir em sentido contrário, artigo 689º, nº2.        
Na reforma de 2007, manteve-se o nomen juris de reclamação, mas estruturalmente passou a ter uma configuração de recurso: a competência para o conhecimento da reclamação passou a impender sobre o Relator do Tribunal que seria competente para julgar o recurso, artigo 688º, nos 3 e 4; se o Relator admitisse o recurso, solicitava o processo ao Tribunal recorrido, podendo subsequentemente a conferência não o admitir, por sugestão dos Adjuntos, artigo 708º; se o Relator, por despacho singular, não admitisse o recurso, a parte prejudicada por esse despacho podia reclamar para a conferência, nos termos do artigo 700º, nº3, cfr. Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, 109/113.         
O CPCivil de 2013 manteve a reclamação com a mesma estrutura de recurso, cfr. artigo 643º.
Assim.

(…)
Esta estrutura de recurso que ora é atribuída à reclamação, porquanto a mesma é julgada pelo Colectivo que julgaria o recurso se o mesmo tivesse sido admitido, obsta à recorribilidade da decisão, sem prejuízo de poder haver recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 75º-A da LTC, cfr. Amâncio Ferreira, ibidem; Armindo Ribeiro Mendes, ibidem; Cardona Ferreira, Guia de Recursos em Processo Civil, 4ª edição, 121; José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3º, 46; José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3º, Tomo I, 2ª edição, 72/76.
Ora, não sendo possível a Revista, por o Tribunal da Relação não ter admitido o recurso interposto, o Acórdão produzido em Conferência não se afigura impugnável, nos termos do artigo 671º, nº1 do CPCivil, por o mesmo não ter conhecido do mérito da causa.
De outra banda, também se não verifica qualquer das situações a que se referem as várias alíneas do nº 2 do artigo 671º, do CPCivil, já que não estamos perante uma decisão interlocutória, de estrita natureza incidental e que verse unicamente sobre a relação processual, mas antes face a uma decisão final proferida no âmbito de procedimento de reclamação.”

14. Estas mesmas razões foram sufragadas pelos recentes Acs. do STJ (nomeadamente desta Secção), de 17/12/2019[3], 19/5/2020[4], 13/10/2020[5], 26/1/2021[6], 28/4/2021[7], 17/11/2021[8], de 13/9/2022[9], 9/11/2022[10] e 13/12/2022[11].
Julgaram consensualmente que, consistindo o presente objecto recursivo, exclusivamente, na reapreciação do acórdão da Relação de confirmação do despacho singular de não admissão do recurso de Apelação, tal objecto está manifestamente excluído de pronúncia nesta sede, nomeadamente por via do art. 671º, 1, do CPC – e muito menos por via do art. 671º, 2, regime de revista “continuada” para reapreciação das decisões interlocutórias de natureza processual proferidas em 1.ª instância –, justamente por, independentemente das razões que fundaram a decisão do acórdão recorrido – que aqui não se discutem nem podem, nomeadamente para aplicação ao caso do art. 9º, 1, do CIRE, tal como apreciado pelo acórdão da Relação, por esgotamento do poder jurisdicional no contexto da impugnação com a natureza oferecida pelo art. 643º do CPC –, assumir o carácter jusprocessual da definitividade decisória.

15. Em suma, como se concluiu no Ac. do STJ de 10/11/2020[12]:

(i) o incidente da reclamação prevista no artigo 643.º do CPC apresenta-se como um expediente de impugnação que versa sobre a não admissão de recurso e visa em exclusivo o efeito adjectivo-processual de modificação pelo tribunal ad quem do despacho de não admissão do recurso pelo tribunal a quo; uma vez proferido acórdão em Conferência, por efeito de nova reclamação da decisão do Relator que confirmara o despacho de 1.ª instância de não admissão do recurso de Apelação, de acordo com o previsto nos arts. 643º, 4, 2.ª parte, e 652º, 3, do CPC, estamos perante decisão definitiva e insusceptível de qualquer outra impugnação;

na medida em que também concorre para esta conclusão;

(ii) a esta decisão inserida no incidente de reclamação e tomada a final em Conferência não se aplica a previsão do art. 652º, 5, b), do CPC («recorrer nos termos gerais»), enquanto faculdade de recurso de revista permitida nos termos gerais do art. 671º para as decisões proferidas no âmbito do art. 652º, 3, do CPC, pois nem estamos perante o elenco de decisões da Relação abrangidas pelo n.º 1 – em particular, às que se referem como colocando nesse campo «termo ao processo»[13] –, nem sequer perante uma decisão da Relação que aprecie decisão interlocutória proferida pela 1.ª instância que incida exclusivamente sobre a relação processual (como foi a base da pretensão do aqui Recorrente) – antes uma decisão final e definitiva de 2.ª instância no âmbito restrito do incidente de Reclamação.

16. Tal solução – como igualmente se tem acentuado neste STJ – não coloca qualquer vício de inconstitucionalidade, nomeadamente à luz da “igualdade de armas” das partes e da tutela jurisdicional efectiva que a CRP consagra (arts. 13º, 20º, 1 e 4), como inúmeras vezes e em oportunidades diversas de discussão processual tem sido reiterado por este STJ.
Com efeito, é entendimento aceite na doutrina e na jurisprudência constitucional que o legislador tem um amplo poder de conformação na concreta modelação processual, neste caso aplicado aos regimes de impugnação recursiva, desde que não se estabeleçam mecanismos arbitrários ou desproporcionados de compressão ou negação do direito à prática desses actos (incidente aqui na impugnação recursiva).
Não é aqui o caso. Ao invés, toda a fundamentação aqui aduzida, que concorre para a rejeição de recurso em conformidade com o regime próprio da Reclamação em sede de inadmissibilidade de recurso, não configura uma situação de negação de acesso à justiça que afronte os princípios basilares de um Estado de Direito (particularmente o de «respeito e garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais», tal como prescrito no art. 2º da CRP). A Constituição faculta ao legislador um grande espaço de definição e é desejável que assim o faça nesta matéria da impugnação recursiva (em geral e em especial) e das condições básicas que os interessados têm que conhecer e cumprir para a ela ter acesso, sob pena de frustração dos interesses visados – vistos e compreendidos, numa globalidade sistemática e racional, os arts. 641º, 1 a 3, 5, 6, 643º, 652º, 3 a 5, e 671º, 1 e 2, do CPC.


B. Do pedido de litigância de má fé do Recorrente

Vieram as Rés e Recorridas, em sede de resposta ao despacho proferido no contexto de aplicação do art. 655º do CPC, peticionar incidentalmente a litigância de má fé do Recorrente por força da interposição da presente revista, alegando que “o Recorrente, ao abrigo do Apoio Judiciário de que beneficia, [vem] lançando mão de todos os expedientes possíveis e imaginários para protelar, até aos limites do humanamente possível, o trânsito em julgado da Decisão proferida em 1.ª instância pela qual se julgou procedente a caducidade do direito de preferência objecto da presente acção.”
Concluíram pela condenação do Recorrente em multa e indemnização a favor das Recorridas em montante a fixar pelo Tribunal.

Apreciemos.

O art. 542º do CPC determina:

«1 – Tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2 – Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.»

Uma das condutas em que se poderá exprimir a litigância de má fé consiste na intervenção em juízo com propósitos dilatórios, obstando, pela sua conduta temerária, que o Tribunal almeje uma rápida decisão, pondo assim em causa o objectivo de realização de uma justiça pronta, que, decidindo o litígio com rapidez, reponha a certeza, a paz social e a segurança jurídica, afrontadas pelo litígio[14]. Neste caso, estaremos perante uma má fé instrumental, desde que acrescida da assunção subjectiva da falta de razão nessa intervenção[15].
Porém, a litigância de má fé censurável – com dolo ou negligência grave – não se confunde com a discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, a diversidade de versões sobre certos factos ou a defesa convicta de uma posição jurídica, ainda que diversa daquela que a decisão judicial acolhe e ampara.
Assim visto.
Não se nos afigura que o Recorrente litigue junto do STJ, nomeadamente com a culpa qualificada que a lei exige, com violação grave dos deveres de cooperação, boa fé processual e correcção recíproca (arts. 7º, 1, 8º e 9º, 1, CPC) na sua relação com as partes e com o Tribunal: seja porque fosse de exigir sem qualquer dúvida conhecimento ou cognoscibilidade da falta do fundamento recursivo, tendo em conta a diligência exigível para a pessoa média, colocada nesta situação em concreto, quanto à pretensão deduzida em face da disciplina jurídica em causa (de acordo com a al. a) do art. 542º, 1, do CPC); seja porque fosse de entender que o recurso esteve apenas ao serviço da obtenção dos fins considerados ilegítimos na al. d) do art. 542º, 1, do CPC.
É certo que o Recorrente não se conforma com as consequências jurídicas do acórdão recorrido, que não admite a apelação por razões processuais atinentes à tempestividade da interposição recursiva, e entende que ainda tem ao seu dispor a revista como meio de acesso à jurisdição do STJ. Porém, aproveitar deste meio recursivo, de acordo com a sua visão da disciplina legal, não permite concluir por si só que foram violados os deveres processuais incompatíveis com uma actuação eivada da promoção de expedientes dilatórios, susceptível de desencadear a forte sanção punitiva que o CPC reserva para comportamentos abusivos em sede adjectivo-processual.
O Recorrente não infringiu com desconsideração manifesta e grosseira esses deveres, em aproveitamento da aparelhagem legal que considera ainda poder acudir à sua pretensão, ainda que tal compreensão não tenha manifestamente colhimento legal, com o que tem que se conformar.

Razão pela qual não logra proceder o pedido das Recorridas e se absolve o Recorrente de tal pedido.




III. DECISÃO

Em conformidade, acorda-se em:

1) não tomar conhecimento do objecto do recurso;

2) julgar improcedente e absolver o Recorrente do pedido de condenação em litigância de má fé pela interposição da revista.
*

Custas da revista pelo Recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário com que litiga.
*

Custas do incidente relativo à litigância de má fé a cargo das Recorridas, que se fixa em taxa de justiça correspondente a 0,5 UC.



STJ/Lisboa, 16 de Maio de 2023



Ricardo Costa (Relator)

António Barateiro Martins

Luís Espírito Santo




SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).


___________________________________________________


[1] Ac. do STJ de 24/10/2013, processo n.º 7678/11.8TBCSC-A.L1.S1, Rel. OLIVEIRA VASCONCELOS, para o regime estabelecido no art. 688º do CPC de 1961, in www.dgsi.pt.
[2] Processo n.º 181/95.7TMSTB-E-E1.S2, Rel. ANA PAULA BOULAROT, in www.dgsi.pt.
[3] Processo n.º 2589/17.6T8VCT-A.G1-A-S1, Rel. MARIA DA GRAÇA TRIGO, in www.dgsi.pt.
[4] Processo n.º 361/04.2TBSCD-S.C1.S1, Rel. MARIA DA ASSUNÇÃO RAIMUNDO, in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:361.04.2TBSCD.S.C1.S1/.          
[5] Processo n.º 4044/18.8T8STS-B.P1, Rel. GRAÇA AMARAL, in www.dgsi.pt, com uma nota decisiva e pertinente para a pretensão da aqui Recorrente:
“a especificidade da situação não se coaduna com as pretensões delineadas pelo Recorrente manifestadas e elencadas nas conclusões do recurso (que o Recorrente pretendia ver conhecidas no recurso de apelação que interpôs e que não foi admitido), uma vez que as mesmas (…) extravasam o âmbito da questão que processualmente se mostra passível de conhecimento nesta sede e que se reconduz, unicamente, em primeira linha (questão prévia) à admissibilidade legal do próprio recurso agora interposto”.
[6] Processo n.º 19477/16.6T8SNT-B.L1.S1, Rel. MARIA OLINDA GARCIA, sendo 1.º Adjunto o aqui Relator, in www.dgsi.pt.
[7] Processo n.º 206/14.5T8OLH-W.E1.S1, Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.

[8] Processo n.º 8385/16.0T8VNG-H.P1-A.S1. Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.
[9] Processo n.º 23178/09.3YYLSB-G.L1-A.S1, Rel. MARIA CLARA SOTTOMAYOR, in www.dgsi.pt.
[10] Processo n.º 3972/19.8T8GMR-A.G1-A.S1, Rel. GRAÇA AMARAL, sendo 2.º Adjunto o aqui Relator, inédito, sumariado in www.stj.pt.
[11] Processo n.º 15682/21.1YPRT-A.L1.S1, Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.
[12] Processo n.º 2657/15.9T8LSB-S.L1-A.S1, Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.
[13] Concordante, ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 671º, nt. 507 – pág. 353.
[14] ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil anotado, Vol. I, Parte geral e processo de declaração, Artigos 1.º a 702.º, Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 542º, pág. 593.
[15] V., neste sentido, o Ac. do STJ de 13/1/2015, processo n.º 36/12.9TVLSB.L1.S1, Rel. FONSECA RAMOS, in www.dgsi.pt.