Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
18212/18.9T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: FALÊNCIA
EFEITOS PATRIMONIAIS
CESSAÇÃO
COBRANÇA DE DÍVIDAS
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
VERIFICAÇÃO ULTERIOR DE CRÉDITOS
CREDOR
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
REABILITAÇÃO
DISPOSIÇÃO DE BENS
REVISTA EXCECIONAL
Data do Acordão: 10/27/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :

-I In casu, a Autora, aqui Recorrente e credora, não reclamou o seu crédito no processo de falência da Ré, nem no prazo que aí foi designado para o efeito, nem subsequentemente, em sede de verificação ulterior de créditos, como poderia ter feito de harmonia com o preceituado no artigo 205º, nº1 do CPEREF, no qual se dispunha o seguinte «Findo o prazo das reclamações, é possível reconhecer ainda novos créditos, bem como o direito à separação ou restituição de bens, por meio de acção proposta contra os credores, efectuando-se a citação destes por éditos de 10 dias.», acrescentando o seu nº2 que « A reclamação de novos créditos, nos termos do número anterior, só pode ser feita no prazo de um ano subsequente ao trânsito em julgado da sentença de declaração da falência.».

II- Se um credor de um falido não exercer os seus direitos no processo falimentar, não fica precludido o seu direito de crédito, podendo vir exercita-lo após o encerramento daqueles autos, não sendo aplicável caso o faça, o AUJ n.º 1/2014, de 8 de maio de 2013.

III- A extinção dos efeitos da falência em relação ao falido, implica a cessação das limitações a que o mesmo estava sujeito, passando a estar em condições não só de se poder dedicar de novo ao exercício de uma actividade comercial e/ou ser membro de uma sociedade civil ou comercial.

IV- Deste modo, a cessação das consequências da declaração falimentar, acarretam a recuperação de todos os poderes de disposição e de administração patrimonial, voltando o falido a deter total capacidade e legitimidade, substantiva e processual, activa e passiva, no que tange a todo o complexo procedimental em que o seu património esteja em causa-

Decisão Texto Integral:

PROCESSO N.º 18212/18.9T8PRT.P1.S1

6ª SECÇÃO

ACORDAM, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I Nos presentes autos de acção comum em que é Autora CAIXA DE CRÉDITO AGRÍCOLA MÚTUO DE ..., CRL e Ré AA, foi proferida decisão a julgar a instância extinta por inutilidade da lide.

Desta decisão apelou a Autora, tendo sido o recurso julgado improcedente, com a manutenção da decisão impugnada.

Irresignada a Autora interpôs recurso de Revista excepcional, o qual veio a ser admitido pela Formação, apresentando as seguintes conclusões:

- O Acórdão recorrido é, em grande parte, composto pela reprodução da sentença (de muito curto teor)             e das alegações da recorrente, apoiando toda  a sua fundamentação/decisão no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ de 08/05/2013 n.º 1/2014, publicado no D.R. 1ª série n.º 39, de 25-02-2014, que não é aplicável ao caso dos autos porque os factos desse Acórdão Uniformizador são diferentes dos deste processo: esse Acórdão refere-se aos casos em que as acções declarativas de cobrança de créditos se encontram pendentes aquando da declaração de insolvência do devedor e no presente caso não é isso que acontece, pois a acção foi proposta muito depois da declaração de insolvência do devedor e do encerramento do processo;

- Quanto à sentença, parece que, pelo seu curto teor, não foi tida em consideração a resposta da recorrente às excepções, o que não pode admitir-se; ao invés, e em razão da resposta às excepções apresentada, deveria ter-se determinado o prosseguimento dos autos para audiência de discussão e julgamento, e não a extinção da instância por inutilidade da lide;

- As normas referidas no acórdão a quo também não são aplicáveis ao caso: o art. 88.º, n.º 1 do CIRE aplica-se às acções executivas pendentes aquando da declaração de insolvência do devedor - e não às acções declarativas intentadas muito após a declaração de insolvência e encerramento do processo, que é o caso dos autos; também o disposto nos arts. 128.º e 146.º do CIRE, não impede que, findo o processo de insolvência, os credores proponham acções contra os devedores.

- Assim, e sempre com o objectivo de se conseguir uma melhor e mais correcta aplicação do

direito a este caso e a situações futuras (sendo, por isso, de inquestionável relevância) o STJ

deverá pronunciar-se quanto às seguintes questões:

1 - Inaplicabilidade do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência ao caso concreto;

2 - Inaplicabilidade do art. 88.º, n.º 1 do CIRE ao caso concreto;

3 - O disposto no art. 128.º e 146.º do CIRE não impede que, findo o processo de insolvência, os credores proponham acções contra os devedores.

- Nestes autos foi proferida sentença que julgou a instância extinta por inutilidade superveniente da lide, porquanto “(…) considerando que esta [a ré, ora recorrida] foi declarada insolvente por decisão já transitada em julgado (…) e que a A. tem, querendo, de reclamar créditos no processo de insolvência, sob pena de nada receber, resulta que não há qualquer utilidade no prosseguimento destes autos. Assim (…) ao abrigo do disposto no art. 277.º, n.º 1, al. e) julgo a instância extinta por inutilidade da lide.”

- Da declaração de insolvência da recorrida não resulta, sem mais, a inutilidade da presente

lide (já que os factos dos autos não são equiparados nem se enquadram no caso do Acórdão

Uniformizador em que o TRP se baseia para julgar improcedente o recurso).

- Dessa forma (e em razão da resposta às excepções de 29-10-2018) o tribunal de 1ª instância

não deveria ter proferido sentença no sentido da extinção da instância por inutilidade da lide,

antes deveria ter determinado o prosseguimento dos autos para audiência de discussão e julgamento.

- A recorrente desconhecia, até ter lido a contestação, o estado de falência da recorrida, pois

nunca para tal foi citada, ou de alguma forma avisada, nomeadamente pela recorrida.

- A não reclamação de créditos no processo de insolvência não tem como consequência a

preclusão dos direitos de crédito do credor, apenas implicando a impossibilidade de o credor

obter, nesse processo e através das forças da Massa Insolvente, o pagamento do seu crédito;

- O art. 188º, nº3 do CPEREF (e hoje do art. 128º nº3 do CIRE) diz que “o credor que tenha o

seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo

de falência, se nele quiser obter pagamento”.,

- Fazendo-se a interpretação a contrario dessa norma, resulta que a mesma apenas se destina à possibilidade de se obter pagamento nesse processo e não em outro.

- Assim, terminado o processo de insolvência, os credores podem propor, contra o insolvente, acções para cobrança dos seus créditos.

- Segundo o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ de 08/05/2013 n.º 1/2014, (publicado no D.R. 1ª série n.º 39, de 25-02-2014) “transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da al. e) do art. 287.º do Código de Processo Civil.”.

- Com base nesse Acórdão, o Tribunal a quo conclui que não é possível alcançar “o fim último da acção deduzida em juízo [i. é, a cobrança coactiva do crédito] ”, uma vez que “tendo a ora ré sido declarada falida, sempre o credor estará impedido legalmente de cobrar o seu crédito conforme resulta do art. 88.º, n.º 1 do CIRE”

- Porém, o Acórdão Uniformizador reporta-se a acções declarativas já propostas (pendentes) à data da insolvência do devedor; e não foi isso que aconteceu no caso sub judice, pois esta acção é, em muito, posterior à declaração de insolvência da recorrida e ao encerramento do processo;

- Também o art. 88.º, n.º 1 do CIRE não é aplicável a este caso, pois essa norma reporta-se às acções executivas pendentes aquando da declaração de insolvência do devedor, não sendo, por isso aplicável ao caso dos autos (onde está em causa uma acção declarativa, e não executiva, que é intentada em data muito posterior à declaração de insolvência da recorrida e ao encerramento do processo).

- Por outro lado, não há falta de interesse no prosseguimento da lide, nem existe inutilidade da lide, pois só se o crédito peticionado, por via da acção de cobrança, tiver sido reclamado no processo de insolvência é que a acção para o cobrar se torna supervenientemente inútil - v. declaração de voto vencido do Juiz Conselheiro Sebastião Póvoas ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ.

- Assim, não tendo o a recorrente reclamado o crédito na insolvência da recorrida, não pode a  instância ser extinta pela inutilidade superveniente de lide; ademais, e se nada obsta a que a recorrente intente a presente acção para cobrança do crédito, não pode a instância ser extinta com base nesse instituto, pois, em caso de procedência da mesma, a recorrente poderá obter (ou tentar obter) o pagamento do seu crédito.

- No presente processo, a instância foi declarada extinta por inutilidade superveniente da

lide (art. 277.º, n.º 1 al. e) do CPC), excepção essa que resulta de algo que aconteça

posteriormente à entrada da acção em tribunal (cf. Ac. do STJ de 15-03-2012, com o n.º de

processo 501/10. 2TVLSB.S1, em www.dgsi.pt e, no mesmo sentido, a declaração de voto vencido ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ já referido); porém, a douta sentença a quo decidiu pela extinção da instância com base num facto passado e não posterior à instauração da acção, razão pela qual não deveria a instância ter sido extinta com base naquela norma.

- Este é o desiderato que se pretende alcançar com o presente recurso: a revogação da douta

decisão recorrida, ordenando-se o prosseguimento dos autos para audiência de julgamento.

- Foram violados os artigos 88.º, 128.º e 146.º do CIRE, assim como o 277.º, al. e) do CPC.

Não foram apresentadas contra alegações.

II A única questão em equação no âmbito da presente Revista é a de saber se o credor que não reclama os seus créditos no processo de falência do devedor (actualmente insolvência), fica inibido de intentar acção com vista ao respectivo ressarcimento.

O Acórdão recorrido alinhou o seguinte iter processual para a dilucidação da questão:

- A presente acção deu entrada em 3/09/2018 e nela a ora apelante, Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ..., pediu a condenação da Ré, ora apelada, a pagar-lhe as quantias referidas na p.i. provenientes do saldo negativo da conta-corrente entre ambos existente, e vencidas desde 11/04/2001 até Setembro de 2001.

- Na contestação a Ré veio dizer que foi declarada falida, com o seu falecido marido, por sentença transitada em julgado em 12/11/2002, sendo certo que a A. não reclamou qualquer crédito no processo de falência nem intentou a acção a que aludia o art. 205 do então CPEREF no prazo de um ano a partir do trânsito em julgado da sentença, requerendo, além do mais, que fosse declarada a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide. Juntou documentos.

- Em 16/12/2018 foi proferido despacho a notificar a A. (ora apelante) para responder à matéria de excepção invocada pela Ré, e “face à declaração de insolvência da Ré, qual o interesse no prosseguimento da lide (art. 3.º CPC e art. 587 ex vi art. 574 CPC”.

- A A. (ora apelante) respondeu dizendo que desconhecia a falência da Ré, nunca para tal tendo sido citada, sustentando que mantém interesse no prosseguimento da acção porque terminado o processo de insolvência os credores podem propor acções para cobrança dos seus créditos, não se verificando qualquer inutilidade superveniente da lide, e não estando os créditos ainda prescritos.

- Com data de 18/01/2019 foi proferida a sentença recorrida e já acima transcrita. 

- Da certidão junta aos autos de fls. 25v.º a 31, resulta que por sentença datada de 26/09/2002, proferida nos autos de Falência n.º 11/2002 do 2.º Juízo do Tribunal de Comércio de ..., transitada em julgado em 12/11/2002, AA e BB foram declarados Falidos, e fixada a sua residência em R. … n.º 000 …, …, tendo sido fixado em 30 dias o prazo para a reclamação de créditos, ordenando-se a publicitação da sentença e a comunicação a todos os tribunais da área de competência territorial do que decretou a Falência.

Analisemos.

A vexata quaestio nos presentes autos reside em saber se um credor que já tinha essa qualidade na data da declaração da falência do devedor e não tenha reclamado o seu crédito no âmbito daquele procedimento poderá vir, passados dezasseis anos e findo que se mostra aqueloutro processo, demandar quele para obter o pagamento do seu crédito.

In casu, a Autora/Recorrente pretende a condenação da Ré/Recorrida no pagamento de um seu crédito provenientes do saldo negativo da conta-corrente existente entre ambas, respeitante a vencimentos entre 11 de Abril Setembro de 2001.

A Ré/Recorrida foi declarada falida por sentença datada de 12 de Novembro de 2002, sendo os créditos peticionados anteriores a tal declaração.

Na data da declaração da falência da Recorrida encontrava-se em vigor o CPREF revisto pelo DL 315/98, de 20 de Outubro, aqui aplicável.

Dispunha então o artigo 128º o seguinte:

«1 - Na sentença que declarar a falência deve o tribunal:

a) Fixar residência ao falido;

b) Nomear o liquidatário judicial da falência e a comissão de credores, se ainda não tiver sido constituída ou houver necessidade de substituir os membros designados no processo de recuperação;

c) Decretar a apreensão, para imediata entrega ao liquidatário judicial, dos elementos da contabilidade do devedor e de todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos;

d) Ordenar a entrega ao Ministério Público, para os devidos efeitos, dos elementos que indiciem a prática de infracção penal;

e) Designar prazo, até 30 dias, para a reclamação de créditos.

2 - A sentença é logo notificada ao Ministério Público, registada oficiosamente na conservatória competente com base na respectiva certidão, para o efeito remetida pela secretaria, e publicada por extracto no Diário da República e num dos jornais mais lidos na comarca e por editais afixados à porta da sede e das sucursais do falido ou do local da sua actividade, consoante os casos, e ainda no lugar próprio do tribunal.

3 - Todas as diligências destinadas à execução e publicidade da sentença devem ser realizadas no prazo de cinco dias.».

De tal normativo resultava o seguinte, além do mais, no que à resolução da questão aqui em causa interessa: por um lado a sentença fixava o prazo para reclamação de créditos (alínea e) do nº1); por outro lado tal sentença era alvo de publicação (nº2).

Uma vez que o preceituado no artigo 151º, nº1 do CPEREF, determinava que com a declaração de falência se produzia o vencimento imediato das dívidas do falido e a sua exigibilidade, tal significava que, nos termos do artigo 188º, nº1 do mesmo diploma os credores teriam de reclamar os créditos dentro do prazo fixado na sentença declaratória da sentença, contando-se o prazo da «data da publicação da sentença no Diário da República.» (nº2).

Sendo obrigatória a aludida publicidade da sentença declaratória da falência em Diário Oficial, óbvio se torna que a aqui Credora deveria ter tido conhecimento da mesma, sendo inócua qualquer alegação ex adverso.

O processo de «falência» (Insolvência) constitui um procedimento universal e concursal, cujo objectivo é a obtenção da liquidação do património do devedor, por todos os seus credores: concursal (concursus creditorum), uma vez que todos os credores são chamados a nele intervirem, seja qual for a natureza do respectivo crédito e, por outro lado, verificada que seja a insuficiência do património a excutir, serão repartidas de modo proporcional por todos os credores as respectivas perdas (principio da par conditio creditorum); é um processo universal, uma vez que todos os bens do devedor podem ser apreendidos para futura liquidação, de harmonia com o disposto no artigo 46º, nºs1 e 2 do CIRE, normativo este que define o âmbito e a função da massa insolvente.

A massa abrange, desta feita, a totalidade do património do devedor insolvente, susceptível de penhora, que não esteja excluído por qualquer disposição especial em contrário, bem como aqueles bens que sejam relativamente impenhoráveis, mas que forem apresentados voluntariamente (exceptuam-se apenas os bens que sejam absolutamente impenhoráveis), e que existam no momento da declaração da insolvência ou que venham a ser adquiridos subsequentemente pelo devedor na pendência do processo.

Sendo a finalidade do processo de falência (insolvência), a salvaguarda da igualdade de oportunidade de todos os credores perante a insuficiência do património do devedor, tornar-se-ia mister o conhecimento no seu âmbito de todas as questões patrimoniais relativas à massa falida.

Daí que o artigo 154.º, nº1 estipulasse como possibilidade a apensação ao processo de falência de «todas as acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa falida, intentadas contra o falido, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa, são apensadas ao processo de falência, desde que a apensação seja requerida pelo liquidatário judicial, com fundamento na conveniência para a liquidação.», contrariamente ao que se estabelecia no artigo 1198º do CPCivil de 1961,  onde se predispunha que declarada a falência, com trânsito em julgado, todas as acções pendentes, em que se discutissem interesses relativos à massa falida, eram apensadas, automaticamente, ao processo de falência.

Tudo isto para ilustra o carácter tendencialmente universal e concursal do procedimento falimentar.

In casu, a Autora, aqui Recorrente e credora, não reclamou o seu crédito no processo de falência da Ré, nem no prazo que aí foi designado para o efeito, nem subsequentemente, em sede de verificação ulterior de créditos, como poderia ter feito de harmonia com o preceituado no artigo 205º, nº1 do CPEREF, no qual se dispunha o seguinte «Findo o prazo das reclamações, é possível reconhecer ainda novos créditos, bem como o direito à separação ou restituição de bens, por meio de acção proposta contra os credores, efectuando-se a citação destes por éditos de 10 dias.», acrescentando o seu nº2 que « A reclamação de novos créditos, nos termos do número anterior, só pode ser feita no prazo de um ano subsequente ao trânsito em julgado da sentença de declaração da falência.».

Quer dizer, a credora aqui Autora e Recorrente não exerceu os seus direitos no processo falimentar da Ré/Recorrida.

Contudo, tratando-se a reclamação de créditos em sede falimentar de um ónus do credor que se queira ver ressarcido nesse âmbito e já não de um qualquer dever, injuntivamente imposto pela norma, cuja insobservância faça precludir o direito da parte vir a ser ressarcida por eventuais dividas contraídas pelo falido em data anterior à declaração da falência, ter-se-á de verificar se existe no nosso ordenamento jurídico alguma disposição legal que impeça o interessado de poder fazer valer os seus direitos após o encerramento daquele processo.

O AUJ 1/2014, de 8 de Maio de 2013, in DR, I SÉRIE, Nº 39, 25 de Fevereiro de 2014, tem como segmento uniformizador que «Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.», pressupondo o mesmo que a acção declarativa a que se reporta se encontrava pendente concomitantemente com o processo de insolvência da devedora, no qual não havia reclamado o crédito em discussão.

Na fundamentação do aludido Aresto consignou-se, além do mais, que «[O] efeito da declaração de insolvência sobre os créditos que se pretendam fazer pagar pelas forças da massa insolvente vem categoricamente proclamado no art. 90.º: Os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência. (Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, em anotação a esta norma injuntiva do CIRE, consignam, com reconhecida proficiência, o seguinte: “Este preceito regula o exercício dos direitos dos credores contra o devedor no período da pendência do processo de insolvência. A solução nele consagrada é a que manifestamente se impõe, pelo que, apesar da sua novidade formal, não significa, no plano substancial, um regime diferente do que não podia deixar de ser sustentado na vigência da lei anterior. Na verdade, o art. 90.º limita-se a determinar que, durante a pendência do processo de insolvência, os credores só podem exercer os seus direitos ‘em conformidade com os preceitos deste Código’. Daqui resulta que têm de o exercer no processo de insolvência e segundo os meios processuais regulados no CIRE. É esta a solução que se harmoniza com a natureza e a função do processo de insolvência, como execução universal, tal como a caracteriza o art. 1.º do CIRE. Um corolário fundamental do que fica determinado é o de que, para poderem beneficiar do processo de insolvência e aí obterem, na medida do possível, a satisfação dos seus interesses, têm de nele exercer os direitos que lhes assistem, procedendo, nomeadamente, à reclamação dos créditos de que sejam titulares, ainda que eles se encontrem já reconhecidos em outro processo (…). Neste ponto, o CIRE diverge do que, a propósito, se acolhia no citado art. 188.º, n.º 3, do CPEREF.Por conseguinte, a estatuição deste art. 90.º enquadra um verdadeiro ónus posto a cargo dos credores.”».

A solução propugnada no AUJ, na qual assentou a tese sufragada pelo Acórdão impugnado, não pode abranger, manifestamente, a equação que nos é posta nestes autos.

Se não.

A declaração de falência da Ré ocorreu em 26 de Setembro de 2002, tendo a apresente acção dado entrada em Setembro de 2018, isto é, dezasseis anos depois de tal declaração, o que nos conduz à conclusão de se mostrarem ultrapassados todos os prazos possíveis, quer para a reclamação dos créditos em tempo normal, quer em verificação ulterior, face ao disposto nos artigos 188º, nº1 e 205º, nº1 e 2 do CPEREF, supra enunciados, pelo que nunca se poderia ter concluído como se concluiu no Acórdão recorrido,

De outra banda, nunca poderemos esquecer que aquela reclamação não tem carácter vinculativo, mas antes optativo, tratando-se antes de um ónus, de onde se o credor o não exercer tal não significa que não possa ainda exercitar o seu direito, findo que seja o processo falimentar e reabilitado que esteja o falido, neste sentido Miguel Teixeira de Sousa, A verificação do passivo no processo de falência, in Revista da faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1995, volume XXXVI, 354.

A seguir-se «à risca» a tese explanada no Aresto impugnado, poder-se-ia chegar á errada conclusão que qualquer pretensão creditícia não exercitada oportunamente em sede falimentar e/ou insolvencial, ficaria precludida, quando tal preclusão a existir, apenas se situa dentro das forças da massa falimentar/insolvente, se e enquanto o procedimento respectivo durar caso o credor pretenda vir a ser pago no seu âmbito.

No caso sujeito, como se deixou exposto e resulta da materialidade dada como assente, a Recorrente não reclamou o seu crédito no prazo concedido pela sentença para o efeito, nem subsequentemente, em verificação ulterior de créditos.

Contudo, a sua inércia não significa, nem poderá significar uma qualquer renúncia ao direito de crédito que lhe assiste, o qual apenas está sujeito às formas de extinção legalmente previstas.

Aliás, o artigo 238º do CPEREF, previa a forma de cessação dos efeitos legais da falência do seguinte modo:

«1 - Os efeitos decorrentes da declaração de falência, relativos ao falido, podem ser levantados pelo juiz, a pedido do interessado, nos seguintes casos:

a) Havendo acordo extraordinário entre os credores reconhecidos e o falido, homologado nos termos do artigo 237.º;

b) Depois do pagamento integral ou da remissão de todos os créditos que tenham sido reconhecidos;

c) Pelo decurso de cinco anos sobre o trânsito em julgado da decisão que tiver apreciado as contas finais do liquidatário;

d) Decorridos os prazos referidos nos n.os 1 e 2 do artigo 225.º, quando não tenha havido instauração de procedimento criminal e o juiz reconheça que o devedor, ou, tratando-se de sociedade ou pessoa colectiva, o respectivo administrador, agiu no exercício da sua actividade com lisura e diligência normal.

2 - A decisão é proferida no processo de falência, juntos os documentos comprovativos necessários e produzidas as provas oferecidas e depois de ouvido o liquidatário judicial, e será averbada à inscrição do registo da falência a instância do interessado.».

Esta situação, de cessação dos efeitos falimentares, conduzia necessariamente a uma outra, qual era a prevenida no artigo 239º do mesmo diploma, no que se refere à reabilitação do falido, «1 - Levantados os efeitos da falência, nos termos do artigo anterior, o juiz decretará a reabilitação do falido, desde que se mostrem extintos os efeitos penais decorrentes da indiciação das infracções previstas no n.º 1 do artigo 224.º. 2 - A decisão de reabilitação é igualmente averbada no registo à inscrição da falência, a instância do interessado.».

A extinção dos efeitos da falência em relação ao falido, implica a cessação das limitações a que o mesmo estava sujeito, passando a estar em condições não só de se poder dedicar de novo ao exercício de uma actividade comercial e/ou ser membro de uma sociedade civil ou comercial, cfr Sousa Macedo, Manual de Direito das Falências, II, 112/113; Maria do Rosário Epifânio, Os Efeitos Substantivos Da Falência, 163/174.

Deste modo, a cessação das consequências da declaração falimentar, acarretam a recuperação de todos os poderes de disposição e de administração patrimonial, voltando o falido a deter total capacidade e legitimidade, substantiva e processual, activa e passiva, no que tange a todo o complexo procedimental em que o seu património esteja em causa, cfr Maria do Rosário Epifânio, ibidem; no âmbito do CIRE cfr Alexandre Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2015, 350/351 e Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 7ª Edição, 408.

Daqui resultará, necessariamente, a ressuscitação da responsabilidade pessoal do ex-falido, in bonis portanto, para responder perante os credores que não tiverem sido satisfeitos no decurso do processo de falência, cfr Augusto Teixeira Garcia, Extinção dos efeitos da falência em relação ao falido e direito de credores, in falência Insolvência E Recuperação de Empresas, Cooedenação de Miguel Pestana de Vasconcelos, 1º Congresso de Direito Comercial das Faculdades de Direito da Universidade do Porto de S. Paulo e de Macau, 30/63.

Mas esta questão, da responsabilidade efectiva do ex-falido nestas precisas circunstâncias, transcende o objecto do presente recurso, situando-se a jusante do mesmo.

Com deixamos afirmado supra, a doutrina do AUJ 1/2014, não tem qualquer cabimento na espécie, devendo a acção prosseguir os seus termos normais, caso não existam quaisquer outros óbices procedimentais que impeçam o seu prosseguimento, maxime, a verificação da capacidade e legitimidade processual da Ré, aqui Recorrida, nos termos que supra se deixaram exarados.

Procedem as conclusões de recurso, embora numa vertente jurídica diversa.

III Destarte, concede-se a Revista, revogando-se a decisão plasmada no Acórdão recorrido e concomitantemente a decisão de primeiro grau, devendo o processo prosseguir os seus termos normais, caso não se verifiquem quaisquer outras circunstâncias procedimentais e/ou de substância que a tal obstem.

Custas pela Recorrida.

Lisboa, 27 de Outubro de 2020

Ana Paula Boularot (Relatora)

(Com voto de conformidade do primeiro Adjunto, Conselheiro José Rainho e da segunda Adjunta, Conselheira Graça Amaral, nos termos do artigo 15º-A do DL 10-A/2020 de 13 de Março com as alterações do DL 20/2020 de 1 de Maio

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).