Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
886/15.4T8SXL.L1.S1
Nº Convencional: 6ª. SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
ÁREA URBANA DE GÉNESE ILEGAL
TRIBUNAL COMUM
IMPUGNAÇÃO
DELIBERAÇÃO
QUESTÃO PREJUDICIAL
INCIDENTES DA INSTÂNCIA
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
PEDIDO
CAUSA DE PEDIR
Apenso:
Data do Acordão: 12/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA - TRIBUNAIS / COMPETÊNCIA ( EM RAZÃO DA MATÉRIA ).
Doutrina:
- Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, 2.°, 375.
- Fernandes Cadilha, Dicionário de Contencioso Administrativo, 2007, 117/118.
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa” Anotada, 3.ª ed., 815.
- Lebre de Freitas/Montalvão Machado/Rui Pinto, “Código de Processo Civil” Anotado, 1.º vol., 224.
- Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1. °- 88.
- Margarida Cortez, Responsabilidade Extracontratual do Estado, Trabalhos Preparatórios da Reforma, 258.
- Mariana França Monteiro, “A Causa de Pedir na Acção Declarativa”, 507/508.
- Miguel Teixeira de Sousa, “A Nova Competência dos Tribunais Civis”, Edições Lex, 1999, 31-32.
- Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 9.ª edição, 103.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 65.º, 66.º, 91.º, 92.º, 552.º, N.º1, D), 573º, Nº2, IN FINE.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 212.º, N.º3.
ESTATUTO DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS (ETAF), APROVADO PELA LEI N.º 13/2002, DE 19-02 (COM AS ALTERAÇÕES DAS LEIS N.º4-A/2003, DE 19-02; 107-D/2003, DE 31-12; 1/2008, DE 14-01; 2/2008, DE 14-01; 26/2008, DE 27-06; 52/2008, DE 28-08 E 59/2008, DE 11-09).
LEI DE ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS – LEI Nº 62/2013, DE 26-08: - ARTIGO 18.º, N.º1.
REGIME JURÍDICO DAS “ÁREA(S) URBANA(S) DE GÉNESE ILEGAL (AUGI)”, QUE SE ENCONTRA ESTABELECIDO NA LEI N.°91/95, DE 02-09, COM AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELAS LEIS N.°S165/99, DE 14-09; 64/2003, DE 23-08; N.º 10/2008, DE 20-02; 79/2013, DE 26-12 E N.º70/2015, DE 16-07: - ARTIGOS 1.º, 3.º, 8.º, 10.º, 12.º, 15.º.
Sumário :
I - A competência em razão da matéria afere-se pelo pedido e pela causa de pedir.

II - A competência material para a impugnação de deliberações de uma assembleia de proprietários e comproprietários de uma Área Urbana de Génese Ilegal é atribuída aos tribunais comuns (n.º 8 do art. 12.º da Lei n.º 91/95, de 02-09).

III - Invocando o autor, em relação à deliberação impugnada, questões que respeitam a relações jurídico-administrativas (a deliberação camarária de delimitação da Área Urbana de Génese Ilegal e a invalidade da licença de reconversão e do alvará de loteamento) e formulando os respectivos pedidos de declaração de invalidade, estaria, à partida, excluída a competência dos tribunais comuns.

IV - Porém, não é defeso ao demandante, que pretende ver apreciada determinada questão da competência dos tribunais comuns, invocar fundamentos que se relacionam com a competência de outros tribunais.

V - Posto que o autor cingiu a eficácia da decisão sobre os pedidos de declaração de invalidade dos actos administrativos referidos em III à acção que intentou (o que, aliás, sempre decorreria do n.º 2 do art. 91.º do CPC) e que as questões de índole administrativa com ele conexas apresentam uma incindível ligação de prejudicialidade com o pedido impugnativo que formula, é de considerar que estamos perante com questões incidentais de natureza administrativa para cuja apreciação é competente o tribunal comum (n.o 1 do art. 91.º do mesmo precieto), cabendo, pois, ao julgador trilhar um dos dois caminhos apontados pelo n.º 1 do art. 92.º daquele diploma para as solucionar.

Decisão Texto Integral:

Proc.886/15.4T8SXL.L1.S1

R-565[1]

Revista

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

           

AA, intentou, em 23.4.2015, na Secção Cível da Instância Local do ... da Comarca de ..., acção declarativa com processo comum, contra:

Administração Conjunta da AUGI -BB.

O Autor alegou, em síntese, ser titular inscrito de um determinado número de avos indivisos de um prédio descrito na Conservatória do Registo Predial do ....

Por sua vez a Ré é a entidade equiparada a pessoa colectiva constituída nos termos e para os efeitos da Lei n.º91/95, de 02.9 (Lei das AUGI), para realizar a reconversão da AUGI designada por BB, a qual integra no seu perímetro parte do prédio acima referido.

No dia 21.3.2015 realizou-se uma assembleia de proprietários e comproprietários no âmbito da administração conjunta, a qual deliberou a aprovação, por maioria, de um alegado projecto de divisão da coisa comum, por acordo de uso dos prédios integrantes da AUGI, entre os quais a parte do prédio acima referida.

Ora, o Autor pretende impugnar tal deliberação, nos termos do art.º 12.º, n.º 8, da Lei das AUGI.

Com efeito:

a) O projecto de divisão assentou no alvará de loteamento n.º 2/2013, de 23.9, da Câmara de ..., o qual é inválido porque:

i) Constitui uma operação de loteamento parcial de um prédio (n.º 0135 de …) que não se circunscreve ao concelho do ... mas inclui igualmente uma parcela do concelho de … (AUGI CC), pelo que é inválida, pois a lei preclude a possibilidade de loteamentos parciais de prédios;

ii) O alvará sujeita a operação de loteamento a condições substantivamente inaceitáveis e legalmente infundamentadas;

iii) O alvará 2/2013 já não detém eficácia, pois as respectivas deliberações foram objecto de pedido de alteração;

iv) Tal pedido de alteração foi votado favoravelmente pela CM… em 15.01.2015, deliberação essa que enferma dos mesmos vícios supra referidos em i) e ii);

           

b) Os aptos prévios da administração conjunta padecem de irregularidades insanáveis, que obstam a que a deliberação impugnada produza efeitos:

i) Na convocatória atribuía-se número de votos aos interessados contrário ao legal;

ii) Não foram postos à disposição dos interessados, para consulta, os documentos legalmente exigidos;

iii) O projecto de divisão não reúne os requisitos legais;

           

c) Aparentemente, a avaliar pelo extracto da ata publicado no Diário de Notícias, a deliberação não foi aprovada pela maioria legalmente exigida;

d) A titulação prevista para a divisão (documento particular autenticado por advogada) não respeita a forma legal especialmente prevista (escritura pública).

O Autor terminou formulando o seguinte petitório:

“Termos em que deve a acção ser julgada procedente e provada e, por via dela:

- Serem reconhecidas, para efeito dos presentes, como inválidas as deliberações da CM… de delimitação da AUGI BB, da licença de reconversão da AUGI BB e o respectivo alvará nº 2/2013 de 27 de Setembro;

- Que, ainda que tudo assim não fosse, não poderia o dito alvará titular a divisão da coisa comum por acordo de uso da AUGI BB, porque não cumpre os requisitos do art. 37º nº 1 da Lei das AUGI;

- Ser declarado que a assembleia de aprovação do projecto de divisão não poderia em qualquer caso ter lugar, porque à data da sua realização não estava ainda titulado o fraccionamento resultante da deliberação de CM… de 15/1/2015,

- a assembleia não podia submeter à divisão os lotes cuja constituição e capacidade construtiva estão dependentes de condição suspensiva ainda não verificada;

- São nulos o método de votação adoptados e a composição da assembleia,

- A proposta de divisão apresentada à assembleia é ininteligível e incompleta, não se podendo dela intuir qual o valor dos lotes, qual o quinhão de cada um e os termos da respectiva aquisição e se há lugar a tornas de parte a parte, pelo que a mesma não pode integrar a escritura de declaração de divisão, posto que a comissão de administração está inibida de completar essas omissões sob pena de excesso de representação;

- Desconhecendo-se embora se os presentes na assembleia, mau grado a sua composição inicial ser nula, poderiam ainda assim cumprir o quorum legal (maioria absoluta do capital), que a votação publicada no extracto da acta de doc. 2 (maioria absoluta dos presentes), não é susceptível de sustentar a aprovação daquela proposta;

- E que a publicação de doc. 2 é inválida porquanto, não podendo a declaração de divisão em AUGI ser outorgada por documento particular autenticado, a mesma não indica o cartório notarial onde vai ter lugar a sua realização, tudo com as legais consequências.”

A Ré contestou, por excepção e por impugnação.

Por excepção, arguiu a incompetência absoluta do tribunal e a ilegitimidade activa do Autor (por estar desacompanhado da mulher); por impugnação, negou os vícios e irregularidades invocados pelo Autor.

Mais requereu que o Autor fosse condenado em multa e indemnização como litigante de má fé.

O Autor respondeu, pugnando pela improcedência das excepções arguidas e concluindo como na petição inicial.

A Ré pugnou pela inadmissibilidade da aludida resposta.

Por despacho de 21.9.2015, a resposta foi admitida, em nome do princípio do contraditório e da adequação processual.

***

Em 21.9.2015, foi proferida decisão que julgou procedente a excepção de incompetência do tribunal quanto à matéria e, por conseguinte, absolveu a Ré da instância.

***

O Autor apelou para o Tribunal da Relação de ... que, por Acórdão de 21.4.2016 – fls. 2449 a 2455 verso – decidiu:

Pelo exposto, julga-se a apelação procedente e consequentemente:

a) Revoga-se a decisão recorrida, por se ajuizar que o tribunal recorrido tem competência, quanto à matéria, para julgar o litígio;

           

b) Decide-se que caberá ao tribunal recorrido, quanto à questão enunciada pelo Autor no primeiro parágrafo do petitório (“serem reconhecidas, para efeito dos presentes, como inválidas as deliberações da CM… de delimitação da AUGI BB, da licença de reconversão da AUGI BB e o respectivo alvará nº 2/2013 de 27 de Setembro”), optar, nos termos do art.º 92.º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, ou por sobrestar na decisão até que o tribunal administrativo competente sobre ela se pronuncie, ou desde já prosseguir a ação, julgando a aludida questão com efeitos circunscritos ao processo.”

***

Inconformada, a Ré recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça, e alegando, formulou as seguintes conclusões:

1- Surgem as presentes alegações no âmbito do recurso de revista interposto pela Recorrente Administração Conjunta da AUGI BB, do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de ..., que em completa inversão à douta sentença de 1ª Instância que julgou procedente a excepção dilatória de incompetência absoluta, a revogou, determinando que o presente processo deve prosseguir e que o tribunal tem competência para conhecer do mérito da acção.

2 - Foi fundamento da decisão de 1ª instância para a procedência da excepção dilatória de incompetência em razão da matéria, o facto de o Recorrido pretender que o tribunal comum apreciasse a título principal questões que lhe estão vedadas por se curarem de matérias da competência de tribunal de diversa jurisdição, sendo que por outro lado, a questão em causa nos autos – causa de pedir e pedidos – terem natureza eminentemente jurídico administrativa.

3 - De facto, as questões que são suscitadas e colocadas à consideração do tribunal têm que ver com actos de natureza administrativa, sejam eles: a) a invalidade de delimitação da AUGI, b) invalidade de licença de reconversão, c) invalidade do alvará de loteamento.

4- Como se verifica tudo actos da autoria da câmara municipal que não foram praticados ou emitidos pela ora Recorrente Administração Conjunta da AUGI BB.

5- Neste Sentido, a douta sentença de 1ª instância veio entender que não tinha condições para conhecer o pedido de invalidade destes actos, até porque os mesmos não se revelam como questões acessórias ou incidentais do pedido, daí que não merecesse aplicação o art. 91° nem tão pouco o art. 92° ambos do Código de Processo Civil, tendo em conta, como se aludiu que a causa de pedir e o pedido têm natureza administrativa.

6 - Através de Acórdão veio a Relação de ... considerar que efectivamente estamos perante alguns fundamentos, designadamente, os iniciais, que são da competência dos tribunais administrativos, devendo estes apreciar invalidade das deliberações da Câmara Municipal do ... que aprovaram a operação de loteamento a delimitação da AUGI e o alvará de loteamento.

7- Considerando ainda assim que o tribunal judicial é o competente para apreciar a impugnação da deliberação da assembleia, pois o pedido é um só com vários fundamentos, devendo nesse caso o tribunal ou sobrestar na decisão até que o tribunal administrativo competente se pronuncie, ou então que prossiga com a acção, julgando a questão com efeitos circunscritos ao processo, por aplicação do art. 92° do Código de Processo Civil.

8- Parece-nos que o Recorrido vem a coberto do n° 8 do art. 12° da Lei 91/95 de 2 de Setembro, para colocar em causa tudo menos o que se deliberou na assembleia de 21 de Março de 2015, pois todos os actos administrativos que põe em causa há muito que foram emitidos e não foram colocados em causa nem no tempo devido nem na instância apropriada.

9- O projecto de divisão de coisa comum aprovado em assembleia de 21/03/2015, não só decorre como respeita os instrumentos emitidos pela Câmara Municipal do ... que não foram colocados em causa por nenhum proprietário ou interessado no processo de reconversão da AUGI BB.

10 - O processo de reconversão tem 45 anos e para o Recorrido que tem a qualidade de loteador ilegal ainda não é tempo suficiente, pois sem invocar qualquer prejuízo, vem impugnar a deliberação da assembleia unicamente com fundamentos de cariz administrativo tentando agora de forma ilegítima corrigir o que não fez e poderia a impugnação de actos administrativos no tribunal administrativo competente.

11- Da petição intentada pelo Recorrido fica patente que toda ela tem um cariz de direito público administrativo exorbitando as normas legais do art. 91° do Código de Processo Civil, mas também do art. 92° do Código de Processo Civil, não tendo o tribunal judicial competência para os apreciar, nem mesmo para ficar dependente do que se decidir no foro administrativo, pois todas as questões e o essencial são de discussão nesse foro.

12 -Entendendo-se ainda ao arrepio da 1ª instância que de um único pedido se trata, menos sensato nos parece que tenha aplicação o art. 92° do Código de Processo Civil, na medida em que o conhecimento do objecto da acção não fica dependente de a questão da competência do tribunal administrativo, pois todo o pedido é e matéria administrativa e é nesta sede que deve ser resolvido.

13 -A pretensão do Recorrido não preenche o art. 91º do Código de Processo Civil, pois as matérias não são acessórias nem acidentais, mas principais, e bem assim, igualmente não preenche a norma contida no art. 92° do Código de Processo Civil, pois não se verifica competência cumulativa do foro administrativo e judicial para apreciar a presente situação, pois toda ela é eminentemente jurídico-administrativa.

14 - Assim o tribunal judicial cível é materialmente incompetente para apreciar a pretensão deduzida.

15 - A decisão contida no Acórdão proferido desvirtua o princípio e o propósito da impugnação da deliberação contida no n°8 do art. 12° da Lei das AUGI, que os parece também esta disposição violada com a decisão proferida.

16 - Encontra-se verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta e, nos termos do art. 96° do Código de Processo Civil o tribunal é materialmente incompetente.

17 - Com o devido respeito o douto Acórdão recorrido ao revogar a sentença de 1ª instância violou o art. 92° do Código de Processo Civil por a aplicação do mesmo não ter lugar no presente litígio, assim como foi violado o art. 96° do Código de Processo Civil, ao não reconhecer a incompetência absoluta do tribunal.

Nestes termos e que Vossas Excelências Senhores Juízes Conselheiros doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente e provado e por via dele ser revogado o Acórdão recorrido e confirmada na totalidade a decisão da sentença recorrida com as correspondentes custas globais pelo Recorrido o que assim se fará a acostumada Justiça.

Não houve contra-alegações.

***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que releva, factualmente, o que se transcreveu da decisão recorrida.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do pedido – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber se o tribunal competente, em razão da matéria, para apreciação da acção é o tribunal comum ou o tribunal administrativo.

A competência material do Tribunal determina-se pelo pedido formulado pelo Autor e pelos fundamentos que invoca.

Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de Processo Civil”, 1. °- 88, acerca do critério aferidor da competência material, ensina:

“São vários esses elementos também chamados índices de competência (Calamandrei).

Constam das várias normas que provêem a tal respeito.

Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção – seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjacentes (identidade das partes).

A competência do tribunal – ensina Redenti (vol. I, pág. 265), afere-se pelo “quid disputatum” (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor.

 E o que está certo para os elementos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes”.

Estatui o art. 65º do Código de Processo Civil – “As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada”.

Como se pode ler, in “A Nova Competência dos Tribunais Civis”, de Miguel Teixeira de Sousa, Edições Lex, 1999, págs. 31-32:

“A competência material dos tribunais civis é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual.

 Segundo o critério de atribuição positiva, pertencem à competência do tribunal civil todas as causas cujo objecto seja uma situação jurídica regulada pelo direito privado, nomeadamente civil ou comercial. (...).

(...) Segundo o critério de competência residual, incluem-se na com­petência dos tribunais civis todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum outro tribunal.

Isto é: os tribunais judiciais são os tribunais com competência material residual (art. 211º, nº1, da Constituição da República Portuguesa; art. 18º, nº1, da LOFTJ) e no âmbito dos tribunais judiciais, são os tribunais civis aqueles que possuem a competência residual – (cfr. arts. 34º e 57º LOFTJ)”.

Causa de pedir — “é o facto jurídico concreto de que emerge o direito que o autor se propõe fazer declarar” – Alberto dos Reis, “Comentário ao Código de Processo Civil”  2.°- 375. É na petição inicial que o Autor deve indicar a causa de pedir – art. 552º, nº1, d) do Código de Processo Civil – “Expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação;

Como ensinam Lebre de Freitas/Montalvão Machado/Rui Pinto, in “Código de Processo Civil Anotado”, 1º vol. pág. 224:

“A causa de pedir exerce função individualizadora do pedido para o efeito da conformação do objecto do processo.  Por isso, o tribunal tem de a considerar ao apreciar o pedido e não pode basear a sentença de mérito em causa de pedir não invocada pelo autor (art. 660-2), sob pena de nulidade da sentença (art. 668-1-d)”.

A causa de pedir releva para efeitos de determinação da competência material do tribunal.

Mariana França Monteiro, in “A Causa de Pedir na Acção Declarativa”, págs., 507/508, escreve:

“Para efeitos de competência, a causa de pedir deve ser identificada com os factos jurídicos alegados pelo autor que, analisados na lógica jurídica da petição inicial, permitam a aplicação de uma norma de competência. Isto significa que a estrutura de causalidade entre causa de pedir e pedido que o autor estabelece na petição inicial, ou no conjunto dos seus articulados, é suficiente, é o contexto, o enquadramento da relação jurídica alegada e, em consequência, da aplicação das normas de competência.

A causa de pedir encontra-se, assim, nos factos jurídicos alegados pelo autor que, na sua lógica, permitem o isolamento da relação jurídica necessária para a aplicação da norma de competência.

Para efeitos do princípio da causalidade, assumindo-se os factos jurídicos alegados para efeitos de competência em geral, a causa de pedir integrará qualquer um, de entre estes factos, que permitem a qualificação da relação jurídica […].

A causa de pedir na cumulação inicial identifica-se com a norma que os factos alegados e o efeito jurídico pedido permitem preencher numa relação de causa-efeito. A causa de pedir é, assim, a norma alegada pelo autor, aquela que, na sua perspectiva, permite que os factos alegados produzam o efeito jurídico pedido.

 Se a norma é apenas uma, a causa de pedir será uma. Se são várias, haverá pluralidade de causas de pedir e, em consequência, cumulação”.

No caso, assentando a pretensão do Autor em várias normas, com a alegação de factos a elas subsumíveis, há pluralidade de causas de pedir mas um único pedido. Essa circunstância, todavia, não permite considerar que uma causa de pedir possa determinar a competência material de um tribunal e a outra a competência material de outro tribunal.

 Se assim fosse haveria lugar à separação de processos.

A pretensão do Autor relaciona-se com o regime jurídico das “Área(s) Urbana(s) de Génese Ilegal (AUGI)”, que se encontra estabelecido na Lei n.°91/95, de 2/9, com as alterações introduzidas pelas Leis n.°s165/99, de 14/9; nº 64/2003, de 23 de Agosto; n.º 10/2008, de 20/02; n.º 79/2013, de 26/12 e n.º70/2015, de 16/07. O regime jurídico previsto na lei aplicável, estando em causa o interesse público da legalização de lotes ilegalmente constituídos, decorrendo perante as Câmaras Municipais competências várias no que respeita ao processo de legalização, aponta para uma competência da administração pública, sem embargo de estarem, concomitantemente, em causa interesses de particulares atinentes ao direito a habitação condigna. À Lei inicial – 91/95, de 2.9 – seguiram-se, até 2015, cinco leis, todas regulando a reconversão das áreas urbanas de génese ilegal.

A Lei define, no artigo 1º, o que se entende por Área Urbana de Génese Ilegal (AUGI). Consideram-se AUGI, os prédios ou conjuntos de prédios contíguos que, sem a competente licença de loteamento, quando legalmente exigida, tenham sido objecto de operações físicas de parcelamento destinadas à construção até à data da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 400/84, de 31 de Dezembro, e que, nos respectivos planos municipais de ordenamento do território (PMOT), estejam classificadas como espaço urbano ou urbanizável (…).

Na previsão do nº3 são ainda considerados AUGI, os prédios ou conjuntos de prédios parcelados anteriormente à entrada em vigor do Decreto-Lei nº 46 673, de 19 de Novembro de 1965, quando predominantemente ocupados por construções não licenciadas.

Compete às Câmaras Municipais, por sua iniciativa ou a requerimento de qualquer interessado, delimitar o perímetro e fixar a modalidade de reconversão das AUGI existentes na área do município (n.º 4 do art.º 1º da Lei 91/95). A reconversão urbanística do solo e a legalização das construções integradas em AUGI constituem dever dos respectivos proprietários ou comproprietários (n.º 1 do art.º 3.º da Lei das AUGI).

O dever de reconversão inclui o dever de conformar os prédios que integram a AUGI com o alvará de loteamento ou com o plano de pormenor de reconversão, nos termos e prazos a estabelecer pela Câmara Municipal (vide n.º 2 do artigo 3º da Lei das AUGI).

A fim de dar cumprimento a esse dever de reconversão, a lei estabelece o regime da administração dos prédios integrados na AUGI.

Segundo o n.º 1 do art.º 8.º, o prédio ou prédios integrados na mesma AUGI ficam sujeitos a administração conjunta, assegurada pelos respectivos proprietários ou comproprietários, através da assembleia de proprietários ou comproprietários e da comissão de administração, às quais incumbe organizar e dirigir os trâmites do processo de reconversão urbanística (vide artigos 8.º, n.º 2, 10.º e 15.º).

É da competência da assembleia de proprietários ou comproprietários, designadamente, “aprovar o projecto de reconversão a apresentar à câmara municipal, na modalidade de pedido de loteamento” (alínea d) do n.º 2 do art.º 10.º), “aprovar os mapas e os respectivos métodos e fórmulas de cálculo e as datas para a entrega das comparticipações referidas na alínea c) do n.º 1 do artigo 15.º” (alínea f) do n.º 2 do art.º 10.º), “aprovar, após parecer da comissão de fiscalização, os orçamentos apresentados pela comissão de administração para a execução das obras de urbanização” (alínea g) do n.º 2 do art.º 10.º) e “aprovar o projecto de acordo de divisão da coisa comum” (alínea h) do n.º 2 do art.º 10.º).

A assembleia de proprietários ou comproprietários delibera, nos termos previstos no Código Civil, para a assembleia de condóminos dos prédios em propriedade horizontal, com algumas especialidades – art.º 12º da citada lei.

As deliberações da assembleia podem ser judicialmente impugnadas por qualquer interessado que as não tenha aprovado, no prazo de 60 dias a contar da data da assembleia ou da publicação das deliberações produzidas nessa assembleia, consoante aquele haja ou não estado presente na reunião – n.º8 do art.º 12.º, com a redacção da Lei n.º10/2008, de 20.02.

Sendo as deliberações da assembleia impugnáveis nos tribunais comuns a controvérsia estaria decidida no sentido de atribuir a competência ao tribunal, onde foi proferida a decisão apelada, se apenas tivessem sido invocados vícios procedimentais ou substantivos do processo deliberativo.

Mas o Autor em relação a tal deliberação suscitou questões e formulou pedidos que não se relacionam, nem são dirimíveis, apenas mediante a lei civil porque não decorreram de actos cuja apreciação se relaciona com direitos privados, antes convocando normas de direito público, administrativo, por terem que ver, sobretudo, com a génese do processo de reconversão e atribuição de alvará, na base das quais estão relações jurídico-administrativas que, a se, excluiriam a competência dos tribunais comuns[2].

O Autor pretende impugnar uma deliberação aprovada por uma assembleia de proprietários e comproprietários referente a uma AUGI, que teve por objecto um projecto de divisão da coisa comum, o que como vimos, deverá fazer perante o tribunal comum.

Como se refere no Acórdão recorrido:

 “É certo que o Autor, no petitório, não se limita a pedir que seja declarada a invalidade da referida deliberação. Ou seja, o Autor enumera, como se de pedidos se tratasse, as várias razões ou argumentos apontados para sustentarem a invalidade da aludida deliberação, pedindo que o tribunal os reconheça e declare. É assim que o Autor pede que sejam reconhecidas como inválidas, “para efeito dos presentes”, as deliberações da Câmara Municipal de ..., de delimitação da AUGI BB, assim como da licença de reconversão dessa AUGI, emitida pela CM..., e o alvará 2/2013, pede que o tribunal declare que “não poderia o dito alvará titular a divisão da coisa comum por acordo de uso da AUGI BB, porque não cumpre os requisitos do art.º 37º nº1 da Lei das AUGI”, pede que seja declarado “que a assembleia de aprovação do projecto de divisão não poderia em qualquer caso ter lugar, porque à data da sua realização não estava ainda titulado o fraccionamento resultante da deliberação de CM… de 15/1/2015”, pede que seja declarado que “a assembleia não podia submeter à divisão os lotes cuja constituição e capacidade construtiva estão dependentes de condição suspensiva ainda não verificada”, pede que seja declarado que “são nulos o método de votação adoptados e a composição da assembleia”, pede que seja declarado que “a proposta de divisão apresentada à assembleia é ininteligível e incompleta, não se podendo dela intuir qual o valor dos lotes, qual o quinhão de cada um e os termos da respectiva aquisição e se há lugar a tornas de parte a parte, pelo que a mesma não pode integrar a escritura de declaração de divisão, posto que a comissão de administração está inibida de completar essas omissões sob pena de excesso de representação”, pede que seja declarado que “desconhecendo-se embora se os presentes na assembleia, mau grado a sua composição inicial ser nula, poderiam ainda assim cumprir o quorum legal (maioria absoluta do capital), que a votação publicada no extracto da acta de doc. 2 (maioria absoluta dos presentes), não é susceptível de sustentar a aprovação daquela proposta”, pede que seja declarado que “a publicação de doc. 2 é inválida porquanto, não podendo a declaração de divisão em AUGI ser outorgada por documento particular autenticado, a mesma não indica o cartório notarial onde vai ter lugar a sua realização, tudo com as legais consequências.”

Em suma, no petitório o A. reitera os fundamentos que apresentara para lograr a invalidação da dita deliberação, apresentando como múltiplo aquilo que é, afinal, um único pedido: a anulação de uma deliberação, embora com múltiplos fundamentos. O petitório deve ser adequadamente interpretado, não devendo lobrigar-se cumulação de pedidos onde há, como se viu, um único pedido, assente numa multiplicidade de razões ou fundamentos.

De entre os fundamentos apresentados para sustentar a anulação da dita deliberação, alguns, os iniciais, abordam matéria que é da competência dos tribunais administrativos: a invalidade das deliberações da Câmara Municipal do ... que aprovaram a operação de loteamento, e bem assim o alvará de loteamento, em que se baseou a deliberação ora impugnada. Com efeito, compete aos tribunais administrativos apreciar a validade de atuações de entidades públicas (como as autarquias locais) ocorridas no exercício das suas atribuições de natureza pública e praticadas à luz de normas de direito público (art.º 21 2.º n.º 3 da CRP, art.º 1.º n.º 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais – ETAF – aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19.02, com as alterações publicitadas, excluindo-se as introduzidas pelo Dec-Lei n.º 214-G/2015, de 02.10, que não vigorava à data da instauração desta ação, art.º 4.º do ETAF, maxime alíneas a), b) e c); art.º 2.º, n.º 2, alínea d) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos).” (destaque e sublinhado nosso)

Concorda-se que, para ajuizar da legalidade da deliberação impugnada, o Autor sustenta a ilegalidade actos administrativos praticados pela Câmara Municipal do ..., actos cuja conformidade com a lei seriam sindicáveis na jurisdição administrativa.

Não é defeso ao demandante, que pretende ver apreciada determinada questão da competência dos tribunais comuns, invocar fundamentos que se relacionam com a competência de outros tribunais.

Diferente é saber se, quando essoutros fundamentos são invocados nos tribunais comuns, como no caso, como se atribui essa competência. A resposta deve ser encontrada no art. 92º do Código de Processo Civil que regula as questões prejudiciais e no art. 91º que versa sobre a competência do tribunal em relação a questões incidentais.

           

“É questão prejudicial toda aquela cuja resolução constitua pressuposto necessário da decisão de mérito, quer esta necessidade resulte da configuração da causa de pedir, quer da arguição ou existência duma excepção, perenptória ou dilatória, quer ainda do objecto de incidentes em correlação lógica com o objecto do processo, e seja mais ou menos direta a relação que ocorra entre essa questão e a pretensão ou o thema decidendum (Lebre de Freitas, Introdução, nºII, 5,2) – “Código de Processo Civil Anotado” – Volume 1º – 3ª edição – de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, comentário ao art. 92º

O art. 91º estatui:

“1 - O tribunal competente para a ação é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa.

2 — A decisão das questões e incidentes suscitados não constitui, porém, caso julgado fora do processo respetivo, exceto se alguma das partes requerer o julgamento com essa amplitude e o tribunal for competente do ponto de vista internacional e em razão da matéria e da hierarquia.”

Lebre de Freitas obra citada, pág. 178 refere – “Os incidentes (art. 292º) são procedimentos anómalos, isto é, sequência de atos que exorbitam da tramitação normal do processo e têm, por isso, carácter eventual, visando a resolução de determinadas questões que, embora sempre de algum modo relacionadas com o objeto do processo, não fazem parte tal como ele é inicialmente desenhado pelas partes (Castro Mendes, Limites objetivos cit., p. 198, e Lebre de Freitas, Introdução cit., n.ºs 1.2.1 e II.5 (4)).”

O Autor pretende impugnar uma deliberação tomada pela assembleia de proprietários e comproprietários da AUGI mas, na economia do seu extenso petitório, não dissociou essa questão do pedido de declaração de invalidade de actos de natureza administrativa, a saber:            - invalidade de deliberação camarária de delimitação da AUGI;

- invalidade da licença de reconversão e do alvará de loteamento.

Estes actos são imputados à Câmara Municipal do ..., sendo, inquestionavelmente, actos administrativos[3].

A apreciação da impugnação e do seu processo deliberativo supõe, que os actos deliberados pela assembleia de proprietários e comproprietários do AUGI que se relacionam com actos administrativos, não estejam feridos de ilegalidade. Ou seja, a montante da questão final do pedido formulado pelo Autor existem questões que o condicionam e que são, incontroversamente, de natureza administrativa entre elas intercedendo uma ligação incindível de prejudicialidade, avultando em termos de indeclinável apreciação, saber da invalidade das deliberações da CM… de delimitação da AUGI BB, e o respectivo alvará nº 2/2013 de 27 de Setembro. De notar que o Autor, de modo inequívoco, pretendeu que a apreciação de tais questões valesse apenas na acção que intentou – nº2 do art. 91º do Código de Processo Civil.

As referidas questões não têm, na lógica do pedido e da construção da causa de pedir, natureza secundária ou ultrapassável para conhecimento do bem ou mal fundado da sua pretensão impugnatória da deliberação invalidanda, antes se perfilam como questões incidentais de natureza administrativa que cabem na competência do tribunal da acção, nos termos do art. 91º, nº1, do diploma adjectivo, sendo que a apreciação e o julgamento que delas for feito não constituirá caso julgado senão na acção.

As questões prejudiciais podem ser levantadas pelo Autor podendo até ser apreciadas oficiosamente, como decorre do art.573º, nº2, in fine, do Código de Processo Civil.

Existe, pois, uma questão prejudicial de natureza administrativa que tem de ser enfrentada nos termos do art. 92º do Código de Processo Civil.

Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, na obra citada, pág. 184, indicam os dois caminhos que o juiz pode trilhar: “Verificada a questão prejudicial, o juiz pode prosseguir na apreciação e no julgamento da ação, decidindo-a previamente ele próprio, ou, em alternativa sobrestar na decisão até ao seu julgamento pelo tribunal competente.

Trata-se uma faculdade que a lei confere ao juiz e que este pode exercer oficiosamente, independentemente, pois, de requerimento das partes. Embora seja sindicável quanto à verificação dos pressupostos da prejudicialidade, a decisão do juiz de, uma vez constatada a relação de dependência entre o objeto da ação e o da questão da competência do tribunal criminal ou administrativo, suspender ou não o processo traduz o uso legal de um poder discricionário, sendo por isso nesta parte insuscetível de recurso, nos termos do art. 630-1 (Castro Mendes, Recursos, cit., ps. 42-43; Armindo Ribeiro Mendes, Recursos cit, p. 156; cf. Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 12.1.94, Carlindo Mota e Costa, CJ, 1994, I, p. 33).

Embora a expressão “sobrestar na decisão” sugira que o processo deve prosseguir, só sendo suspenso no momento prévio ao proferimento da decisão este entendimento literal não é de perfilhar. Por um lado, pode o juiz usar esta faculdade em qualquer momento do processo. Por outro lado, constatada a situação, os termos do processo ganham em ser suspensos de imediato, proporcionando-se logo, se essa for a opção judicial, a tomada da decisão prejudicial pelo tribunal competente. De qualquer modo, o momento processual mais adequado para o efeito é o do despacho pré-saneador (art. 590-2), até porque, como refere Alberto dos Reis, “a decisão da questão prejudicial pode habilitar o tribunal civil a conhecer imediatamente do mérito da ação e a pôr termo à causa no despacho saneador” (Comentário cit., l, p. 289).

Mas, a não fazê-lo então, pode o juiz exercer essa faculdade em qualquer momento da causa, enquanto, obviamente, não ocorrer o julgamento da matéria de facto ou de direito relevante para a sua apreciação (Varela-Bezerra-Nora, Manual cit., p. 222 (2)).

Ordenada a suspensão, o processo aguarda que o tribunal competente se pronuncie definitivamente sobre a questão prejudicial. Mesmo interposto recurso de decisão proferida pelo tribunal competente de 1ª instância, há que aguardar pelo julgamento do recurso, ainda que este tenha efeito meramente devolutivo (Alberto dos Reis, Comentário cit., I, p. 288).

A suspensão que tenha sido decretada ficará, porém, sem efeito se a ação penal ou administrativa não for instaurada no prazo de um mês a contar do decretamento da suspensão ou se o respetivo processo estiver parado durante mesmo período de tempo por negligência das partes, caso em que a questão prejudicial é decidida pelo juiz da ação.”

O Acórdão recorrido sentenciou no sentido da competência material do tribunal da causa, para o conhecimento da acção, sem embargo do regime jurídico que o julgador pode adoptar no que concerne ao conhecimento da questão prejudicial, seguindo a melhor doutrina, pelo que não merece censura.

Decisão:

Nega-se a revista.

Custas pela Recorrente.

                                                                       Supremo Tribunal de Justiça, 06 de dezembro de 2016

Fonseca Ramos – Relator

Fernandes do Vale

Ana Paula Boularot

_______________________________________________________
[1] Relator – Fonseca Ramos.
Ex.mos Adjuntos:
Conselheiro Fernandes do Vale.
Conselheira Ana Paula Boularot.

[2] O art. 212º, nº3, da Constituição da República estatui: “Compete aos Tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas ou fiscais”.
Em anotação a este preceito (então art. 214º), afirmam Gomes Canotilho e Vital Moreira – “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3ª ed. pág. 815 – que estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais).
Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras:
 (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público;
 (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal.
Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil.
Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal.
Decorre do preceito constitucional citado, que a competência dos tribunais da ordem judicial é residual, ou seja, são da sua competência as causas não legalmente atribuídas à competência dos tribunais de outra ordem jurisdicional – arts. 66° do Código de Processo Civil e 18°, nº1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – Lei nº 62/2013, de 26.8.
No que respeita à competência dos tribunais administrativos e fiscais importa ter em atenção os preceitos aplicáveis do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, doravante – ETAF – aprovado pela Lei 13/2002, de 19 de Fevereiro (com as alterações das Leis 4-A/2003, de 19 de Fevereiro;107-D/2003, de 31 de Dezembro; 1/2008, de14.1; 2/2008, de 14.01; 26/2008, de 27.06; 52/2008, de 28.08 e 59/2008, de 11.9).

[3] Fernandes Cadilha, in “Dicionário de Contencioso Administrativo”, 2007, págs. 117/118, afirma: “Por relação jurídico-administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas.

Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjectiva, como a que ocorre entre a Administração e os particulares, intradministrativa, quando se estabelecem entre diferentes entes administrativos, no quadro de prossecução de interesses públicos próprios que lhes cabe defender, ou inter orgânica, quando se interpõem entre órgãos administrativos da mesma pessoa colectiva pública, por efeito do exercício dos poderes funcionais que lhes correspondem.

Por outro lado as relações jurídicas podem ser simples ou bipolares, quando decorrem entre dois sujeitos, ou poligonais ou multipolares, quando surgem entre três ou mais sujeitos que apresentam interesses conflituantes relativamente à resolução da mesma situação jurídica (quanto às características de uma relação jurídica deste tipo, Gomes Canotilho, “Relações jurídicas poligonais, ponderação ecológica de bens e controlo judicial preventivo”, Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, nº1, Junho 1994, págs. 55 e ss.)”.

O actual ETAF eliminou o critério delimitador da natureza pública ou privada do acto de gestão que gera o pedido.

O critério material de distinção assenta, agora, em conceitos como relação jurídica administrativa e função administrativa – conjunto de relações onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público – cfr. Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa”, 9ª edição, 103, e Margarida Cortez, “Responsabilidade Extracontratual do Estado, Trabalhos Preparatórios da Reforma”, 258.