Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
529/17.1TXLSB-1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: HABEAS CORPUS
PENA DISCIPLINAR
ABUSO DE PODER
Data do Acordão: 11/20/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: NEGADA A PROVIDÊNCIA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – MEDIDAS DE COACÇÃO E DE GARANTIA PATRIMONIAL / MEDIDAS DE COACÇÃO / MODOS DE IMPUGNAÇÃO / HABEAS CORPUS EM VIRTUDE DE PRISÃO ILEGAL.
Doutrina:
- Costa Andrade, Manuel, A Tutela Penal da Imagem na Alemanha e em Portugal, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 141º, n.º 3972, p. 134-160;
- Maia Costa, Eduardo, Habeas Corpus: Passado, Presente e Futuro, Revista Julgar, n.º 29-2016, p. 236-239 e 240;
- Paolo Tonini, Manuale Breve de DirittoProcessualePenale, Giuffrè Editore, 2017, p. 344.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 222.º, N.º 2, ALÍNEAS A), B) E C).
CÓDIGO DE EXECUÇÃO DE PENAS E MEDIDAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE (CEPMPL): - ARTIGOS 103.º, 104.º E 105.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 29-05-2002, PROCESSO N.º 2090/02;
- DE 20-12-2006, PROCESSO N.º 4705/06;
- DE 07-06-2017, PROCESSO N.º 881/16.6JAPRT-X.S1.
Sumário :
I. – A providência, de carácter excepcional, de habeas corpus propõe-se atalhar situações de ostensiva ilegalidade de privação de liberdade e tão só sob os pressupostos processuais-substantivos contidos nas alíneas a) a c) do nº 2 do artigo 222º do Código de Processo Penal:

II. – Não configura qualquer das situações estatuídas nas preditas alíneas a imposição, por irrogação de uma pena disciplinar – artigos 103º a 105º do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade –, de cumprimento de uma pena disciplinar, consubstanciada e executada mediante a transferência de um recluso do espaço onde habitualmente cumpre a pena de prisão para um outro espaço mais limitado e confinado à sua solipsa pessoa;

III. – A imposição de uma sanção disciplinar – precedida de adrede procedimento regulamentar e no qual o recluído teve oportunidade/garantia de defesa – não constitui abuso de poder, se e quando exercitado pela autoridade administrativa a quem a lei atribui a função disciplinar.      

Decisão Texto Integral:
I. – RELATÓRIO.


O requerente, AA,“recluso a cumprir pena no âmbito do processo em referência no Estabelecimento Prisional …, vem, nos termos e para os efeitos do art 31º n. 1 da Constituição da República Portuguesa, deduzir pedido de Habeas Corpus nos seguintes termos e fundamentos:

1º - O recluso requerente está a cumprir a pena no âmbito do processo em referência em alojamento (camarata) partilhado com outros reclusos na ala A do Estabelecimento Prisional …, nos termos do art. 26º n. 2 do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (CEP) em RVI.

2º - Ontem, Sábado, dia …/11/2019, o requerente foi retirado do seu alojamento e levado para a zona disciplinar do mesmo estabelecimento, onde ficou recluso, numa cela, sozinho, com a roupa que trazia no corpo, um lençol e um cobertor fraco.

3º - Trata-se de uma situação de «…abuso de poder, por virtude de prisão ou de detenção ilegal», tão grave e atentatória dos mais básicos direitos humanos que se encontra directamente prevista no art. 31º n. 1 da CRP;

4º - Que directamente tutela esta situação, nos termos do art. 18º da nossa lei constitucional.

5º - De notar que o recluso foi condenado numa medida disciplinar de permanência obrigatória no alojamento, nos termos dos arts. 105º n. 1 f) e 107º do CEP por decisão da Senhora Directora do Estabelecimento Prisional … no Processo Disciplinar com o n.º 1…/2019.

6º - Porém, a situação em que o requerente foi colcado nada tem que ver com o cumprimento dessa sanção.

7º - De facto, e antes do mais: Nos termos do art. 107º n. 1 do CEP, «A permanência no alojamento consiste na presença contínua do recluso naquele, podendo ser reduzido o período de permanência a céu aberto, com salvaguarda do limite previsto no n.º 2 do artigo 51.º»;

8º - Evidentemente, a situação de reclusão solitária na zona disciplinar em que o recluso foi colocado não corresponde, de modo nenhum, ao cumprimento da sanção que lhe foi aplicada.

9º - A sanção de «permanência no alojamento», cuja execução está estatuída no supra citado art. 107º n. 1 do CEP, não está a ser cumprida, o que se compreende, pelas razões que se aduzirão infra.

10º - Cumpre notar, à cautela, que, nos termos dos arts. 105º n. 1 g) e 108º do CEP, «O internamento em cela disciplinar (que) consiste na presença contínua do recluso em cela que assegure a sua separação da restante população prisional» é uma sanção - a mais gravosa e excepcional – diferente e muito mais severa e grave do que a sanção de «permanência no alojamento», aplicada, apenas, a infracções graves;

11º - Por outro lado, nos termos do art. 92.º n. 1 do CEP, «A colocação do recluso em cela de separação da restante população prisional só pode ter lugar quando exista perigo sério de evasão ou tirada ou quando, devido ao seu comportamento, exista perigo sério da prática de actos de violência contra bens jurídicos pessoais, do próprio ou de terceiro, ou patrimoniais, se os meios especiais menos gravosos se revelarem ineficazes ou inadequados.» e;

12º - Nos termos do art. 93.º n. 1 do CEP, «A colocação do recluso em quarto de segurança só pode ter lugar em situação de grave alteração do seu estado psico-emocional que represente sério perigo de actos de violência contra bens jurídicos pessoais, do próprio ou de terceiro, ou patrimoniais, se os outros meios especiais se revelarem ineficazes ou inadequados, podendo ser reduzido o período de permanência a céu aberto, com salvaguarda do limite previsto no n.º 2 do artigo 51.º»;

13º - Não há qualquer norma ou decisão legítima que permita ou legitime o tratamento perpetrado contra o requerente;

14º - Que deve ser imediatamente cessado!

15º - Não será necessário invocar os arts. 1º, 2º, 9º b), 27º nºs 1 e 2 da CRP, arts. 3º e 9º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), de 10 de Dezembro de 1948, aprovado e publicado no Diário da República a 9/3/1978 e art. 5º n. 1 da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (CEDH), de 4/11/1950 e seus protocolos adicionais.

16º - O requerente foi colocado numa situação de reclusão que corresponde à definição de «arbitrariamente preso, detido» prevista no art. 9º da DUDH.

17º - Também se invoca, neste caso, o art. 25º n. 2 da CRP, o art. 5º da DUDH que proíbe tratos cruéis, degradantes ou desumanos e, no mesmo sentido, o art. 3º da CEDH.

18º - Na verdade, como em tempos de antanho, em que Portugal foi um regime autoritário, para além da roupa que trazia no corpo, o recluso apenas foi autorizado a levar um lençol;

19º - E na cela, disciplinar, onde foi encerrado, apenas lhe foi entregue uma manta, fraca, insuficiente para fazer face ao frio desta época.

20º - Em manifesta violação do que dispõe o art. 30º n. 5 do CEP, para além das normas superiores supra invocadas.

21º - O requerente passou a noite transido de frio, ao ponto de nem conseguir dormir.

22º - Por ter problemas de saúde, o próprio Estabelecimento Prisional atribuiu ao recluso, desde há muito, um colchão específico, que o requerente não foi autorizado a levar para a cela na zona disciplinar;

23º- Aliás, o recluso não foi autorizado a levar o seu edredão, que o protegeria do frio, nem almofada, nem roupas, nem materiais de estudo – nada!

24º - Em manifesta violação do que dispõe o art. 30º n. 1 do CEP.

25º - E, ainda, do art. 26º n. 6 do CEP.

26º - Como referido, o requerente levou, apenas, a roupa que envergava e um lençol e assim se encontra hoje, uma noite e um dia depois.

27º - Que a situação de reclusão em cela na zona disciplinar nas condições supra descritas não constitui o cumprimento da sanção de permanência obrigatória no alojamento durante o período de 4 dias a que foi condenado, para além do que se expôs quanto à caracterização dela, confirma-o o facto da decisão que a decretou não ter, ainda, transitado em julgado.

28º - De facto, como consta do apenso respectivo, o ora requerente impugnou-a. Embora tal impugnação não tenha sido admitida por Vossa Excelência, o arguido recorreu da decisão de não admissão e reclamou da decisão de não admissão do recurso, tendo já, em tempo (passado dia 13/11) e com os efeitos do disposto nos arts. 75º e 78º n. 4 da Lei 28/82 de 15/11 recorrido para o Tribunal Constitucional. Recurso que foi já admitido, no passado dia 15, com efeito suspensivo! – cfr. fls.

29º - Destes factos tem o Estabelecimento Prisional conhecimento – cfr. doc. 1 -, pelo que é provável que esta situação esteja a ocorrer à revelia de instruções da Senhora Directora;

30º - À qual se dará imediato conhecimento da entrada deste procedimento.

31º - A situação, grave, supra descrita tem que ser imediatamente objecto de habeas corpus, cujo provimento se requer.

Termos em que requer (…) mandar libertar imediatamente o requerente da situação de reclusão solitária em cela diferente do seu alojamento, sita em zona disciplinar, ordenando-se a imediata recolocação do requerente no seu alojamento para cumprir o resto da pena a que foi condenado.”

Convocado a prestar a informação a que alude o artigo 223º do Código de Processo Penal, o Juiz de Execução de Penas, consigna que:

O recluso encontra-se em cumprimento sucessivo das seguintes penas:

a) 12 anos e 6 meses de prisão, aplicada no processo n.º 221/12.3J… do juiz … do juízo central criminal de …, pela prática dos crimes de explosão, furto qualificado, dano, resistência e coação sobre funcionário e detenção de arma proibida (à ordem);

b) 8 anos e 6 meses, aplicada no processo n.º 27/13.2J… do juiz … do juízo central criminal de …, pela prática dos crimes de provocação de explosão e furto qualificado.

O recluso foi detido em …/10/2013, tendo-lhe sido aplicada a medida de coação de prisão preventiva e, posteriormente, de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica. Após leitura do acórdão proferido no processo n.º 221/12.3J…, cortou as pulseiras e ausentou-se ilegitimamente, sendo novamente detido em …/08/2016, ficando desde então em prisão preventiva.

Ambas as decisões condenatórias transitaram em julgado.

Uma vez que se aguarda o trânsito em julgado da decisão que terá procedido ao cúmulo jurídico das penas sobremencionadas, não foi, até à data, efetuado o cômputo das penas, sendo que, no processo à ordem do qual se encontra, o recluso – de acordo com a liquidação efetuada em tal processo- atinge em 2024 os 5/6 da pena.

O recluso não se encontra, consequentemente, preso ou detido ilegalmente.

Insurge-se, sim, contra o cumprimento de uma medida disciplinar.

Acontece que estas são sindicáveis por via da impugnação, o que não é o caso, não estando também previsto o recurso para o supremo tribunal de justiça.

Sem embargo, sempre se dirá que, em face do teor do relatório de redefinição de lotação do estabelecimento prisional …, homologado em 2011 pelo senhor diretor da DGRSP, o recluso encontra-se em cumprimento da medida de “permanência obrigatória no alojamento” no local destinado para o efeito.

Pelo acima exposto, entendo que a questão colocada pelo recluso não é passível de apreciação em sede de habeas corpus, mas que, ainda que assim não se entenda, a medida disciplinar aplicada ao recluso está a ser cumprida em local próprio.”


I. a). – QUESTÃO A APRECIAR.

Para a solução da providência requestada importa perquirir se se torna ilegal “a situação de reclusão solitária na zona disciplinar em que o recluso foi colocado”, por aplicação de uma sanção disciplinar decretada por decisão (administrativa) da directora do estabelecimento prisional onde o condenado se encontra a cumprir pena de prisão que lhe foi imposta por decisão judicial transitada em julgado.


II. – FUNDAMENTAÇÃO.

II.A. – ELEMENTOS PERTINENTES PARA A DECISÃO.

- O requerente, AA, encontra-se recluso no Estabelecimento Prisional …, em cumprimento de uma pena de prisão de 12 (doze) anos e 6 (seis) meses que lhe foi imposta no processo nº 221/12.3J…;

- O recluso, AA, foi irrogado, no processo disciplinar nº 1…/2019, por decisão da responsável do Estabelecimento Prisional …, com a sanção de permanência obrigatória no alojamento pelo período de 4 dias;

- O recluso, AA, impugnou, perante o Tribunal de Execução de Penas, da comarca de …, Juiz …, processo nº 529/17.1T…-G, a sanção (administrativa) que lhe havia sido imposta;

- A impugnação referida no item anterior não foi admitida, por extemporaneidade;

- O recluso, AA, pretendeu impugnar, em recurso dirigido ao Tribunal da Relação de Lisboa, a decisão de não admissibilidade da impugnação que havia formulado perante o Tribunal da Execução das Penas, não tem sido o recurso admitido por inadmissibilidade imposta no artigo 235º do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade; (“Das decisões do tribunal de execução das penas cabe recurso para a Relação nos casos expressamente previstos na lei” – nº 1 do citado preceito);

- O recluso, AA, apresentou reclamação do despacho de não admissibilidade do recurso em reclamação dirigida ao Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa;

- A medida disciplinar, de acordo com o expresso pelo Senhor Juiz de Instrução de Penas, no despacho em que ordenou a extracção de certidões para remessa da reclamação para o Exmo. Senhor Presidente da Relação de Lisboa, prescreveria no dia 18 de Novembro de 2019.


II.B. – PRESSUPOSTOS DA PROVIDÊNCIA EXCEPCIONAL DE HABEAS CORPUS.

A providência (excepcional) de habeas corpus – cfr. artigo 222º do Código de Processo Penal – é qualificada como um expediente jurídico-constitucional de reacção perante uma situação de evidente/ostensiva violação do direito que a qualquer cidadão é constitucionalmente reconhecido de não ser privado de acção e movimentação individual fora dos casos em que a lei permite o decretamento de privação de liberdade (indiciação de acções penalmente puníveis nas situações previstas no artigo 202º do Código de Processo Penal ou após confirmação judicial, por sentença, de cometimento de crimes – previamente imputados a um individuo – por que o tribunal tenha imposto uma condenação em pena de prisão efectiva).

Por a medida de coacção de prisão preventiva se configurar como uma forma de asseguramento e normalização de um procedimento judicial que colide e alanceia a capacidade individual de acção e movimentação, liberta de qualquer constrangimento externo – v.g por banda do Estado – a lei comina prazos máximos e inderrogáveis durante os quais um cidadão pode ser mantido na situação de prisão preventiva, antes de julgamento por uma indiciação/imputação jurídico-criminal – cfr. artigo 215º, nº 1 e 2 do Código de Processo Penal. 

A vulneração dos prazos legalmente estatuídos, possibilita aquele que se encontre privado de liberdade – detenção ou prisão – por razão, ou motivo, que se não quadre com o quadro legal estabelecido no ordenamento jurídico vigente pode pedir a apreciação da situação em que se encontra ao Supremo Tribunal de Justiça.

O instituto de habeas corpus configura-se, a um tempo, como um direito fundamental e uma garantia. O instituto mostra-se a um tempo um direito, na medida em que a lei, maxime a Constituição, o confirma como um valor e um estado subjectivo activo incrustado na constelação individual de direitos irremíveis do cidadão e que se fixa, directa e imediatamente, na esfera jurídica de qualquer cidadão no gozo pleno dos seus direitos cívicos, e ao mesmo tempo uma garantia na medida em que permite a qualquer cidadão reagir contra uma situação que repute abusiva e violadora de um direito – a liberdade de acção e de livre movimentação pessoal – inscrito como inderrogável no amplexo de direitos fundamentais do individuo. [[1]] (“A) O habeas corpus é uma garantia constitucional de proteção da liberdade física (liberdade de locomoção, de “ir e vir”, na expressiva formulação da lei brasileira), e não de quaisquer outros direitos fundamentais 46. O habeas corpus é um “direito-garantia”, um instrumento de proteção da liberdade, não um direito fundamental autónomo (“direito-direito”). O bem jurídico-constitucional que o habeas corpus visa proteger é o direito à liberdade, esse sim um direito fundamental estabelecido no art. 27.º da Constituição 47.

B) O habeas corpus é uma providência, independente do sistema de recursos penais. Uma providência urgente, conforme resulta da brevidade do prazo estipulado para a sua decisão.

(…) A autonomia do habeas corpus duna com a sua subsidiariedade, entendida como exigindo o esgotamento dos recursos ordinários para que seja legítima a intervenção da providência. O habeas corpus deve servir para as situações mais graves, as mais carecidas de tutela urgente, ou seja, aquelas em que a privação da liberdade se mostrar claramente ilegal, sendo então o meio adequado, e não excecional, de fazer frente à ilegalidade.

A providência só pode ser entendida como “extraordinária” no sentido da sua singularidade relativamente aos recursos penais, pela sua exclusiva finalidade de meio de reação à privação ilegal da liberdade e pelo seu processamento específico, não como mecanismo supletivo ou subsidiário de tutela de liberdade.

C) A Constituição esboça uma definição das situações abrangidas pela garantia (“abuso de poder, por virtude de detenção ou prisão ilegal”).

Constata-se, assim, que os pressupostos e a extensão da providência não competente, pelo que se impõe a intervenção do legislador ordinário para dar cumprimento ao preceito constitucional, para dar efetividade à garantia constitucional do habeas corpus, à semelhança do que aconteceu com as anteriores constituições portuguesas.(…)

D) Não é feita referência expressa à iminência de perigo de privação daliberdade.

E) É atribuída capacidade ao próprio interessado ou a qualquer pessoa(no gozo dos seus direitos políticos) para requerer a providência, não sendonecessária a intervenção de mandatário judicial. Como já tem sido assinalado,o habeas corpus reveste de alguma forma as características de “acção popular”, facilitando assim a tutela da liberdade individual e realçando o seu valor constitucional objetivo. Apenas há a acrescentar que a interposição daprovidência por outrem não pode ser imposta contra a vontade do interessado,que, portanto, poderá legitimamente opor-se ao prosseguimento da providênciaque tiver sido requerida em seu favor.

F) É estipulado um prazo para decisão (8 dias). Esta estipulação é nova, como já se disse, e constitui a garantia nuclear do processamentourgente da providência. A Constituição não toma porém posição sobre a naturezado prazo, ou seja, saber se é perentório (ou melhor, se o seu decursosem decisão determina a libertação do requerente) ou meramente ordenador.

G) É ainda estipulada a obrigação de realização de uma audiência contraditória.Esta regra é também obviamente um elemento nuclear da providênciaenquanto garantia.

H) A Constituição remete para a lei ordinária a definição do tribunal competente para a apreciação do pedido.

I) A Constituição não prevê a suspensão desta garantia em nenhumasituação, nomeadamente a de estado de sítio ou a de estado de emergência,o que deve ser entendido como interdição de suspensão da garantia emquaisquer circunstâncias. (…)”) [[2]]

Legitimamente, e por direito, o pedido pode ser impulsionado por qualquer cidadão (“no gozo dos seus direitos políticos”) e deve ser apresentado à autoridade à ordem da qual o cidadão se encontra preso.

Como fundamento desta pretensão, de carácter excepcional, [[3]] o peticionante pode convocar uma das sequentes situações: a) incompetência da entidade que ordenou ou efectuou a prisão; b) ter a prisãouma razão, ou substrato jurídico-factual, arredada do quadro legal estabelecido; e c) ser a prisão mantida para além do prazos que a lei determina e fixa ou que a decisão judicial haja determinado. 

Como se assinalou no acórdão supra citado – de 1 de Fevereiro de 2007, relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira – o procedimento (providência) de habeas corpus não assume carácter ou natureza residual, antes se perfila como um procedimento autónomo e com identidade própria que pode coexistir com o recurso. A providência de habeas corpus não se destina a reagir contra uma decisão reputada injusta de aplicação de uma medida de privação de liberdade, rectius prisão preventiva, antes se destina a pôr cobro a uma situação de ilegalidade e abuso de poder por parte das autoridades. A providência de habeas corpus não se destina a corrigir ou reavaliar as decisões judiciais que dentro da legalidade apliquem a medida coactiva de prisão preventiva. Ela surge no universo do direito como meio de ilaquear um estado patológico decorrente de uma actuação contrária à lei e ao arrepio dos adequados e correctos modos de apreciação e avaliação de uma situação factual (em que uma medida de coacção como a prisão preventiva não pode ser aplicada).

“Por outro lado, a providência de habeas corpus, por alegada prisão ilegal, tem os seus fundamentos taxativamente previstos no n.º2 do art. 222.º do CPP, perante situações de violação ostensiva da liberdade das pessoas, seja por incompetência da entidade que ordenou a prisão, seja por a lei não permitir a privação da liberdade com o fundamento invocado ou sem ter sido invocado fundamento algum, seja ainda por se mostrarem excedidos os prazos legais da sua duração.

São tais razões - e só elas – que justificam a celeridade e premência na apreciação extraordinária da situação de privação de liberdade com vista a aquilatar se houve abuso de poder ou violação grosseira da lei, na privação da liberdade, que imponha de imediato a reposição da legalidade.

A providência de habeas corpus, enquanto remédio de urgência perante ofensas graves à liberdade, que se traduzam em abuso de poder, ou por serem ofensas sem lei ou por serem grosseiramente contra a lei, não constitui no sistema nacional um recurso dos recursos e muito menos um recurso contra os recursos. (v.v.g. Ac. deste Supremo de 20-12-2006, proc. n.º 4705/06 - 3.ª)

Tal não significa que a providência deva ser concebida, como frequentemente o foi, como só podendo ser usada contra a ilegalidade da prisão quando não possa reagir-se contra essa situação de outro modo, designadamente por via dos recursos ordinários (v. Acórdão deste Supremo de 29-05-02, proc. n.º 2090/02- 3.ª Secção, onde se explana desenvolvidamente essa tese).

Aliás, resulta do artigo 219º nº 2 do CPP, que, mesmo em caso de recurso de decisão que aplicar, mantiver ou substituir medidas de coacção legalmente previstas, inexiste relação de dependência ou de caso julgado entre esse recurso e a providência de habeas corpus, independentemente dos respectivos fundamentos. (“Ora, o habeas corpus não é um modo de impugnação das decisões que aplicam medidas de coação. Pode, na modalidade do art. 222.º, atacar tanto situações de prisão preventiva (ou obrigação de permanência na habitação), como de cumprimento de pena (por excesso de prazo). E, na do art. 220.º, pode incidir sobre situações completamente alheias a um processo penal, como garantia que é contra qualquer situação de privação de liberdade não validada judicialmente.

O habeas corpus é uma garantia situada à margem do sistema de impugnações do processo penal e, como tal, deveria constar de diploma autónomo do Código de Processo Penal, que abrangesse a totalidade do regime do instituto, incluindo os “regimes especiais” que fossem necessários (como os de portadores de anomalia psíquica, previsto no art. 31.º da Lei de Saúde Mental), o que reforçaria a visibilidade e a legibilidade do mesmo e reforçaria o seu prestígio institucional.

Tal como está estruturado, o habeas corpus constitui um remédio constitui um remédio contra a privação ilegal da liberdade. O que significa desde logo que o habeas corpus está exclusivamente direcionado para pôr termo à ilegalidade, quando constatada, restituindo o detido à liberdade.”) [[4]]

O habeas corpus não se destina a formular juízos de mérito sobre as decisões judiciais determinantes da privação de liberdade, ou a sindicar nulidades ou irregularidades nessas decisões – para isso servem os recursos ordinários - mas tão só a verificar, de forma expedita, se os pressupostos de qualquer prisão constituem patologia desviante (abuso de poder ou, erro grosseiro) enquadrável no disposto das três alíneas do nº 2 do artº 222ºdo CPP.” [[5]]

No mesmo eito segue o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 16-03.2015, relatado pelo Conselheiro Santos Cabral, em que a propósito da providência especial de habeas corpus se escreveu (sic): “A petição de habeas corpus contra detenção ou prisão ilegal, inscrita como garantia fundamental no artigo 31º da Constituição, tem tratamento processual nos artigos 220º e 222º do CPP. Estabelecem tais preceitos os fundamentos da providência, concretizando a injunção e a garantia constitucional.  

Nos termos do artigo 222º do CPP, que se refere aos casos de prisão ilegal, a ilegalidade da prisão que pode fundamentar a providência deve resultar da circunstância de i) a mesma ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; ii) ter sido motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou iii) se mantiver para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial - alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 222º do CPP. A providência de habeas corpus não decide, assim, sobre a regularidade de actos do processo com dimensão e efeitos processuais específicos, não constituindo um recurso das decisões tomadas numa tramitação processual em que foi determinada a prisão do requerente ou um sucedâneo dos recursos admissíveis Conforme se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal de 2 de Fevereiro de 2005, “no âmbito da decisão sobre uma petição de habeas corpus, não cabe, porém, julgar e decidir sobre a natureza dos actos processuais e sobre a discussão que possam suscitar no lugar e momento apropriado (isto é, no processo), mas tem de se aceitar o efeito que os diversos actos produzam num determinado momento, retirando daí as consequências processuais que tiverem para os sujeitos implicados”.

Nesta providência há apenas que determinar, quando o fundamento da petição se refira a uma determinada situação processual do requerente, se os actos de um determinado processo – valendo os efeitos que em cada momento ali se produzam e independentemente da discussão que aí possam suscitar, a decidir segundo o regime normal dos recursos – produzem alguma consequência que se possa reconduzir aos fundamentos da petição referidos no artigo 222º, nº 2 do CPP.

A providência em causa assume, assim, uma natureza excepcional, a ser utilizada quando falham as demais garantias defensivas do direito de liberdade, para estancar casos de detenção ou de prisão ilegais. Por isso, a mesma não pode ser utilizada para sobrestar outras irregularidades ou para conhecer da bondade de decisões judiciais que têm o recurso como sede própria para reapreciação.

Na verdade, a essência da providência em causa reside numa afronta clara, e indubitável, ao direito à liberdade. Deve ser demonstrado, sem qualquer margem para dúvida, que aquele que está preso não deve estar e que a sua prisão afronta o seu direito fundamental a estar livre. É exactamente nessa linha que se pronuncia Cláudia Santos, referindo, nesta senda que “confrontamo-nos, pois, com situações clamorosas de ilegalidade em que, até por estar em causa um bem jurídico tão precioso como a liberdade, ambulatória (...) a reposição da legalidade tem um carácter urgente”. Também Cavaleiro Ferreira avança que "o habeas corpus é a providência destinada a garantir a liberdade individual contra o abuso de autoridade".

A providência excepcional em causa não se substitui, nem pode substituir-se, aos recursos ordinários, ou seja, não é, nem pode ser, meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão. O habeas corpus está, assim, reservado para os casos indiscutíveis de ilegalidade, que, exactamente por serem ilegais, impõem, e permitem, uma decisão tomada com a celeridade legalmente definida. 

Como afirmou este mesmo Supremo Tribunal no seu Acórdão de 16 de Dezembro de 2003, trata-se aqui de «um processo que não é um recurso, mas uma providência excepcional destinada a pôr um fim expedito a situações de ilegalidade grosseira, aparente, ostensiva, indiscutível, fora de toda a dúvida, da prisão e, não, a toda e qualquer ilegalidade, essa sim, possível objecto de recurso ordinário e ou extraordinário. Processo excepcional de habeas corpuseste, que, pelas impostas celeridade e simplicidade que o caracterizam, mais não pode almejar, pois, que a aplicação da lei a circunstâncias de facto já tornadas seguras e indiscutíveis (…)».

A natureza sumária da decisão de habeas corpus, por outro lado, não se deve conjugar com a definição de questões susceptíveis de um tratamento dicotómico e em paridade de defensibilidade. É que, em tal hipótese e como se acentua em decisão deste Tribunal de 1 de Fevereiro de 2007, o Supremo Tribunal de Justiça não se pode substituir, de ânimo leve, às instâncias, ou mesmo à sua própria eventual futura intervenção no caso, por via de recurso ordinário, e, sumariamente, ainda que de modo implícito, censurar aquelas por haverem levado a cabo alguma ilegalidade, que, como se viu, importa que seja grosseira. 

Até porque, permanecendo discutível, e não consensual, a solução jurídica a dar à questão, dificilmente se pode imputar, com adequado fundamento – ainda para mais numa apreciação pouco menos que perfunctória –, à decisão impugnada, qualquer que ela seja – mas sempre emanada de uma instância judicial –, o labéu de ilegalidade, grosseira ou não.” [[6]]

Assoalhados com o que vem sendo uma posição jurisprudencial constante e uniforme, apreciar-se-á o caso em tela de juízo.


II.B.I). – A SOLUÇÃO DO CASO.

O requerente arranca o fundamento da pretensão requestada no facto de (i) a sanção disciplinar de «permanência obrigatória no alojamento» ter de respeitar o princípio da legalidade (artigo 29º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa); (ii) de a referida sanção dever ser considerada uma sanção privativa da liberdade; (iii) de não ser “pelo facto de o ora reclamante já estar preso, a cumprir pena de prisão, que a sanção disciplinar de permanência obrigatória na cela deixa de ser uma medida privativa de liberdade. E de, como tal, estar o seu processo sujeito às garantias do processo penal.” – Cfr. fls. 68 (parágrafo 10); (iv) de a retirada do recluso do alojamento onde estava integrado para uma cela disciplinar, onde ficou sozinho, com a roupa que trazia, um lençol e um cobertor (fraco), constituir uma manifestação/injunção de abuso de poder, “atentatória dos mais básicos direitos humanos”; (v) de a sanção imposta não está a ser cumprida; (vi) de o “requerente foi colocado numa situação de reclusão que corresponde à definição de «arbitrariamente preso, detido» prevista no art. 9º da DUDH”; (vii) de se dever equivaler a situação em que o requerente foi colocado a um estado de “tratos cruéis, degradantes ou desumanos” (art. 25º n.º 2 da CRP e art. 5º da DUDH -(“Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.”) e art. 3º da CEDH – (“Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas desumanos ou degradantes.”)

Na base do raciocínio que lastra a pretensão do requerente parece figurar-se um espectro conceptual-dogmático similar.mutatismutandis. ao que o Professor Costa Andrade delineia paraa temática do direito à intimidade e/ou reserva da vida, a saber a «doutrina das três esferas». [[7]]

Para o requerente, segundo parece depreender-se da respectiva argumentação, a privação da liberdade – mesmo para um reclusosancionado com uma pena privativa de liberdade – conteria uma concentração de esferas de reserva: uma mais alargada que seria constituída pela coerção ou interdição de mobilidade para além dos muros do espaço confinado em que se concentra a estrutura logística prisional; uma seguinte que seria, dentro desse espaço mais amplo e desconcentrado, a esfera de privacidade confinada à cela onde o recluso desenvolveria actividades vivenciais mais intimas e de feição privada; e uma terceira que seria o espaço adstrito ao espaço destinado, segundo a ritologia disciplinar, ao cumprimento de sanções, por envolverem uma contrição de liberdade e restrição de mobilidade e expansão privada-pessoal que deveria ser considerada uma restrição de liberdade condensada e concentracionista. (Arredamos desta conceptualização os espaços de intimidade extrema e exponencial que neste momento existem nos estabelecimentos de cumprimento de penas, por não poderem ser classificados ao par daqueles outros espaços funcionais e institucionalmente delimitados e definitos.)

Com este eito de razoamento, o requerente faz derivar a ideia de que a transferência, ou transmutação, de um recluído de um espaço considerado e adoptado como mais amplo para um outro de menor amplitude de liberdade de movimentos, mesmo que para cumprimento de uma sanção disciplinar, deveria ser tido como um irremível e insustentável restrição de liberdade justificativa da pretensão de uma providência de habeas corpus.   

O espaço de contenção/restrição/privação de mobilidade liberdade individual em que se substanciam os estabelecimentos prisionais cumprem uma função – de executoriedade das ordens de prisão dimanadas por órgãos constitucionalmente competentes, os tribunais –e regem-se para o ajustado cumprimento dessa função de regras e regulamentações adrede que devem ser pautadas por princípios de necessidade, adequação, proporcionalidade e exigibilidade – cfr. Título XII do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade, sob a epígrafe “Ordem, segurança e disciplina.” (Cfr. artigo86.º, onde se inscrevem as finalidades das exigências categoriais encastoadas no pórtico: “1 - A ordem e a disciplina no estabelecimento prisional são mantidas como condição indispensável para a realização das finalidades da execução das penas e medidas privativas da liberdade e no interesse de uma vida em comum organizada e segura.

 2 - A segurança no estabelecimento prisional é mantida para protecção de bens jurídicos fundamentais, pessoais e patrimoniais, para defesa da sociedade e para que o recluso não se subtraia à execução da pena ou da medida privativa da liberdade.

 3 - O sentido de responsabilidade do recluso é fomentado como factor determinante da ordem, da segurança e da disciplina no estabelecimento prisional.

 4 - A ordem, a segurança e a disciplina são mantidas com subordinação aos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade.”

O Título XIII rege para o regime disciplinar a impor em caso de preenchimento por algum dos sujeitos passivos – recluídos – da factualidade contida nos artigos 103º e 104º do diploma regente a que correspondem as medidas disciplinares elencadas no artigo 105º: (“1 - São aplicáveis ao recluso as seguintes medidas disciplinares: - a) Repreensão escrita; - b) Privação do uso e posse de objectos pessoais não indispensáveis por período não superior a 60 dias; -  c) Proibição de utilização do fundo previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 46.º por período não superior a 60 dias; - d) Restrição ou privação de actividades sócio-culturais, desportivas ou de ocupação de tempo livre por período não superior a 60 dias;

 e) Diminuição do tempo livre diário de permanência a céu aberto, por período não superior a 30 dias, salvaguardado o limite mínimo estabelecido no presente Código; - f) Permanência obrigatória no alojamento até 30 dias; - g) Internamento em cela disciplinar até 21 dias.”

As medidas disciplinares previstas no Código adrede, só podem ser impostas mediante sujeição do eventual infractor a procedimento disciplinar (cfr. artigos 110º a 117º) e no qual, e ao longo do qual, são facultados ao infractor/suspeito os meios de defesa ajustados à salvaguarda da sua defesa e garantia da sua dignidade pessoal. (“1 - O recluso tem direito a apresentar, por escrito, individual ou colectivamente, reclamações, petições, queixas e exposições relativas à execução das medidas privativas da liberdade para defesa dos seus direitos.

 2 - As reclamações, petições, queixas e exposições podem ser dirigidas ao director do estabelecimento prisional, que:

 a) Recorre à mediação, para alcançar soluções consensuais;

 b) Se pronuncia sobre as reclamações, petições, queixas e exposições que lhe são dirigidas, no prazo máximo de 30 dias; ou

 c) As envia de imediato às entidades ou organismos competentes, dando conhecimento ao recluso.

 3 - As reclamações, petições, queixas e exposições podem também ser dirigidas ao director-geral dos Serviços Prisionais e ao Serviço de Auditoria e Inspecção da Direcção-Geral dos Serviços Prisionais.

 4 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, o recluso pode igualmente apresentar petições, queixas e exposições aos órgãos de soberania e a outras entidades, designadamente à Inspecção-Geral dos Serviços de Justiça, ao Provedor de Justiça, à Ordem dos Advogados, ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, ao Comité Europeu para a Prevenção da Tortura e ao Comité contra a Tortura da Organização das Nações Unidas.” – cfr. artigo 116º do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade.

Os elementos facultados à providência – e carece de outros – evidenciam que a aplicação da medida de disciplinar (sanção (disciplinar) a que, decerto terá sido feita corresponder a factualidade comprovada na instrução e a culpabilidade do agente) foi antecedida de um procedimento disciplinar e de uma decisão (administrativa, ditada pela Directora do estabelecimento) que foi notificada ao requerente. O requerente pretendeu impugnar a sanção imposta perante um órgão jurisdicional (o Tribunal de Execução de Penas) não o tendo logrado por ter introduzido a pretensão impugnatória para além do prazo circunscrito na lei. (Os elementos que compõem o processo dão conta de uma discrepância quanto à extensão de mandato expressa e manifesta da pelo mandatário do requerente – cfr. troca de mails efectuada com os serviços do estabelecimento. Mas nesse feixe não pomos atadura.) A decisão de não admissibilidade de recurso (da decisão administrativa perante o órgão jurisdicional) viria a ser reclamada perante o Senhor Presidente da Relação de Lisboa, não tendo logrado acolhimento. Estará pendente um recurso de constitucionalidade para o Tribunal Constitucional.

Um pressuposto de providência que o requerente arremete é o de abuso de poder. Não o imputa a quem quer, individualizadamente, mas apenas que a execução da sanção, tal como ele a descreve – numa cela com um lençol, um cobertor fraco e a roupa que trazia vestida – decorre de uma atitude que configura abuso de poder.

A figura de abuso de poder é adstrita, ou está inextricavelmente conectada, com um circulo de funções de que alguém foi atribuído e/ou foi investido por inerência, ou vinculação, de uma autoridade derivada que lhe é concedida e conferida por uma estrutura institucional-social reconhecida num determinado espaço constitucionalmente consagrado e politicamente reconhecido.

Para que alguém, que se encontra na predita situação fáctico-funcional, possa ser acoimado de exorbitância dos poderes que lhe estão conferidos e distribuídos, é necessário (i) que o sujeito activo esteja investido de um círculo, ou amplexo, de funções predeterminados em lei ou regulação estatutária; (ii) que aquando da sua actuação esteja em exercício das funções que regularmente lhe estão circunscritas; (iii) que na manifestação fáctica e volitiva exteriorizada do acto singular expresso se evidencie e denuncie um desvio factual e funcional colidente os parâmetros fixadores da actuação a que se encontra vinculado.

O abuso de poder que se depreende ter sido exercitado na acção executória consubstanciada na ordem de cumprimento da sanção aplicada ao requerente, terá sido a colocação do recluso num espaço que, segundo o requerente, não corresponde aquele que caberia na sanção aplicada, «permanência obrigatória no alojamento».

Em nosso juízo uma divertida colocação do recluso no espaço adequado ao cumprimento da sanção imposta não comporta uma situação de abuso de poder, mas sim um defeituoso cumprimento da ordem/decisão sancionatória, consubstanciada num variada e desconformada percepção e compreensão do conteúdo injuntivo que ela comportava. O cumprimento defeituosamente executado não condensa uma situação de abuso de poder, mas outrossim um encargo de responsabilidade funcional que pode ocasionar, correlatamente, uma responsabilização disciplinar e/ou a responsabilidade do Estado. Não uma situação de abuso de poder, tal como a entendemos e recortamos supra.

A sanção aplicada ao requerente foi precedido de procedimento disciplinar, regularmente estruturado e constitucionalmente aferido, onde o teve possibilidade de se defender e de garantir os respectivos direitos e a sanção foi aplicada por entidade/autoridade administrativa a quem estão confiados poderes de disciplina dentro do espaço que dirige. O requerente teve oportunidade de reagir, por via jurisdicional, contra a decisão administrativa, só não tendo logrado o seu intento por ter descuidado e descurado o prazo para o exercício do direito de impugnação. A execução da sanção foi efectivada por quem tem poder para a realizar e para cumprimento de ordem legitima e ditada por quem detinha competência. Se ocorreu desvio ou defeito de cumprimento ele não deve ser computado à conta da legitimidade do poder exercitado, mas sim a uma incompreensão do actuar e proceder funcional apto ou susceptível de reacções em sede de responsabilidade disciplinar e/ou Estado.

Alanceia o procedimento de colocação do recluso de tratamento indigno, cruel e degradante, humilhante e infra-humano.

Por respeito para quem sofre efectivamente de tratos desumanos, degradantes e humilhantes dispensamo-nos deproceder a uma qualificação rigorosa desse tipo de acções perpetradas e levadas a cabo por determinados tipo de seres.

Dir-se-á de forma “tajante” e definitiva que não configura uma situação de violação de direitos essenciais da pessoa humana o facto de colocar alguém, em cumprimento de uma sanção disciplinar, num espaço limitado e a quem é fornecido lençol e cobertor para agasalho. 

Os fundamentos postulados para a pretensão de “libertação” do requerente do espaço em que foi confinado e nas condições em que o foi, não são idóneas para a consecução do fim pretendido (i) o requerente não se encontra preso, isto limitado na sua mobilidade individual, por ordem de entidade incompetente ou ilegítima; (ii) não configura “privação de liberdade” o facto de um indivíduo recluído ser deslocado de um espaço desconcentrado para um espaço confinado e restrito na aptidão de mobilidade; (iii) nem pode ser acoimado de «abuso de poder» o facto de ser executada/actuada uma ordem de cumprimento de uma decisão sancionatória de forma que o requerente reputa e qualifica de desvirtuada do sentido e alcance da sanção prescrita; (iv) não constitui tratamento humilhante, degradante ou desumano o facto de alguém, em cumprimento de uma sanção disciplinar, ser destacado para um espaço definido com cobertor e lençol. 

Os fundamentos que alavancaram o pedido são manifestamente destituídos de razoabilidade pelo que o requerente deverá ser sancionado, nos termos do artigo 223º do Código de Processo Penal.


III. – DECISÃO.

Na defluência do argumentado, acordam os juízes que constituem este colectivo, na 3ª secção criminal, do Supremo Tribunal de Justiça, em:

- Indeferir o pedido de habeas corpus requestado pelo recluso, AA, por manifestamente infundado;

- Condenar o condenado nas custas fixando a taxa de justiça em 8Uc’s – cfr. nº 6 do artigo 223º do Código de Processo Penal



Lisboa, 20 de Novembro de 2019


Gabriel Martim Catarino (Relator)

Manuel Augusto de Matos

J. A. Santos Cabral

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[1] Em outros ordenamentos jusprocessuais, caso do italiano, a forma de reacção contra a ilegalidade da aplicação de medidas de privação de liberdade consideradas desproporcionadas e inadequadas é efectuada através de um procedimento denominado «riesame», que tem o poder de avaliar a legitimidade e o mérito da medida coercitiva aplicada “senzaesserevincolatonédaglieventuallimotividelrecorsodell´imputato, nédallamotivazionedelprovvedimentochehaapplicato la misura – art. 309, coma 9” – cfr. Paolo Tonini, Manuale Breve de DirittoProcessualePenale, Giuffrè Editore, 2017, p. 344. De forma residual a reacção/impugnação contra a aplicação de medidas cautelares é efectuada através o «apello», ou seja um meio de impugnação residual relativamente ao «riesame» e que é utilizado em todos os casos em que não é aplicada «per la prima volta (abinitio)» uma medida coercitiva. Porém, desde 2013 que, por força da condenação da Itália pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, por procedimentos adoptados com a expulsão de imigrantes, o Estado italiano vem providenciando pela adopção de legislação actuante e efectiva que permite actuar em casos de violação da liberdade da pessoa.     
[2]Cfr, Maia Costa, Eduardo, in “Habeas Corpus: Passado, Presente e Futuro”, Revista Julgar, nº 29-2016, pág. 236-239.
[3]Cfr, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Fevereiro de 2007, relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira.

A providência de habeas corpus tem, como resulta da lei, carácter excepcional.
Não já, no sentido de constituir expediente processual de ordem meramente residual, como outrora aqui vinha sendo entendida, antes, por se tratar de providência vocacionada a responder a situações de gravidade extrema ou excepcional, haja ou não ainda aberta a via dos recursos ordinários.

“E é precisamente por pretender reagir contra situações de excepcional gravidade que o habeas corpus tem de possuir uma celeridade que o torna de todo incompatível com um prévio esgotamento dos recursos ordinários”.

Porque assim, a petição de habeas corpus, em caso de prisão ilegal, tem os seus fundamentos taxativamente previstos no n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal: a) Ter sido [a prisão] efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; c) Manter-se para além dos prazos fixados por lei ou por decisão judicial.

“Exemplos de situações abrangidas por estas disposições poderiam encontrar-se na prisão preventiva decretada por outrem que não um juiz; na prisão preventiva aplicada a um arguido suspeito da prática de crime negligente ou punível com pena de prisão inferior a três anos; na prisão preventiva que ultrapasse os prazos previstos no artigo 215.º do C.P.P.

Confrontamo-nos, pois, com situações clamorosas de ilegalidade em que, até por estar em causa um bem jurídico tão precioso como a liberdade, ambulatória (...) a reposição da legalidade tem um carácter urgente”.

Mas a providência excepcional em causa, não se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários, ou seja, não é nem pode ser meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão. Está reservada, quanto mais não fosse por implicar uma decisão verdadeiramente célere – mais precisamente «nos oito dias subsequentes» ut art.º 223.º, n.º 2, do Código de Processo Penal – aos casos de ilegalidade grosseira, porque manifesta, indiscutível, sem margem para dúvidas, como o são os casos de prisão «ordenada por entidade incompetente», «mantida para além dos prazos fixados na lei ou decisão judicial», e como o tem de ser o «facto pela qual a lei a não permite».

Pois, não se esgotando no expediente de excepção os procedimentos processuais disponíveis contra a ilegalidade da prisão e correspondente ofensa ilegítima à liberdade individual, o lançar mão daquele só em casos contados deverá interferir com o normal regime dos recursos ordinários. Justamente, os casos indiscutíveis de ilegalidade, que, por serem-no, impõem e permitem uma decisão tomada com imposta celeridade. Sob pena de, a não ser assim, haver o real perigo de tal decisão, apressada por imperativo legal, se volver, ela mesma, em fonte de ilegalidades grosseiras, porventura de sinal contrário, com a agravante, agora, de serem portadoras da chancela do Mais Alto Tribunal.

Exactamente por isso, a matéria de facto sobre que há-de assentar a decisão de habeas corpus tem forçosamente de ser certa, ou, pelo menos, estabilizada, sem prejuízo de o Supremo Tribunal de Justiça poder ordenar algumas diligências de última hora – art.º 223.º, n.º 4, b), do Código de Processo Penal – mas sempre sem poder substituir-se à instância de julgamento da matéria de facto, e apenas como complemento esclarecedor de eventuais lacunas de informação do quadro de facto porventura subsistentes, com vista à decisão, ou seja, na terminologia legal, cingidas a esclarecer «as condições de legalidade da prisão».

Como afirmou este mesmo Supremo Tribunal no seu acórdão de 16 de Dezembro de 2003, proferido no procedimento de habeas corpus n.º 4393/03-5, trata-se aqui de «um processo que não é um recurso mas uma providência excepcional destinada a pôr um fim expedito a situações de ilegalidade grosseira, aparente, ostensiva, indiscutível, fora de toda a dúvida, da prisão e, não, a toda e qualquer ilegalidade, essa sim, possível objecto de recurso ordinário e ou extraordinário. Processo excepcional de habeas corpuseste, que, pelas impostas celeridade e simplicidade que o caracterizam, mais não pode almejar, pois, que a aplicação da lei a circunstâncias de facto já tornadas seguras e indiscutíveis (…)».

“(…) Pelo contrário, os recursos de agravo previstos no artigo 219.º [do Código de Processo Penal] podem ter outros fundamentos, sobretudo os relacionados com a inexistência de uma necessidade cautelar que torne indispensável a aplicação da medida de coacção; com a não adequação da medida à necessidade cautelar; com a desproporcionalidade da medida face ao perigo que se visa evitar. Pense-se, a título de exemplo, em situações em que não se verifique qualquer perigo de fuga do arguido, de perturbação da ordem ou tranquilidade pública ou de continuação da actividade criminosa; em casos em que a medida aplicada não é idónea a garantir a não ocorrência do perigo que se receia; ou ainda na aplicação de uma medida demasiado gravosa tendo em conta outras que deveriam ser preferidas por menos desvaliosas e igualmente eficazes ou tendo em conta a gravidade do delito cometido e a sanção que previsivelmente lhe será aplicada”.

A natureza sumária e expedita da decisão de habeas corpus, por outro lado, não permite que, quando o aspecto jurídico da questão se apresente altamente problemático, o Supremo se substitua de ânimo leve às instâncias, ou mesmo à sua própria eventual futura intervenção no caso, por via de recurso ordinário, e, sumariamente, ainda que de modo implícito, possa censurar aquelas por haverem levado a cabo alguma ilegalidade, que, como se viu, importa que seja grosseira. Até porque, permanecendo discutível e não consensual a solução jurídica a dar à questão, dificilmente se pode imputar, com adequado fundamento, à decisão impugnada, qualquer que ela seja – mas sempre emanada de uma instância judicial – numa apreciação pouco menos que perfunctória, o labéu de ilegalidade, grosseira ou não.”
[4]Cfr. Maia Costa, Eduardo, ibidem, pág. 240.
[5]Cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7.06.2017, relatado pelo Conselheiro Pires da Graça, no processo de habeas corpus sob o nº 881/16.6JAPRT-X.S1.
[6] Disponível em www.dgsi.pt.
[7]Para um adentramento na doutrina veja-se Costa Andrade, Manuel, “A Tutela Penal da Imagem na Alemanha e em Portugal”, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 141º, n 3972, págs. 134-160 (maxime p. 148 e segs.)