Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 7ª SECÇÃO | ||
Relator: | ANTÓNIO JOAQUIM PIÇARRA | ||
Descritores: | CONTRATO-PROMESSA INTERPRETAÇÃO INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL MATÉRIA DE FACTO PODERES DA RELAÇÃO PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA HIPOTECA DISTRATE RECURSO DE REVISTA ADMISSIBILIDADE DE RECURSO | ||
Data do Acordão: | 01/19/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADAS AS REVISTAS | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS. DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / DELIMITAÇÃO OBJECTIVA DO RECURSO ( DELIMITAÇÃO OBJETIVA DO RECURSO ) / ÓNUS DO RECORRENTE / ALTERAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO / RECURSO DE REVISTA / FUNDAMENTOS DA REVISTA / PODERES DE COGNIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. | ||
Doutrina: | - Carlos A. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição, pág. 444. - Inocêncio Galvão Telles, Manual dos Contratos, 358. - José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, Volume II, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2003, 435. - José Lebre de Freitas/Armindo Ribeiro Mendes, “Código de Processo Civil” Anotado, Volume 3.º, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 160, 167 e 168. - Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 2.ª edição, Lex, 1996, 349/350; e Teoria Geral do Direito Civil, II, Fontes, Conteúdo e Garantia da Relação Jurídica, 3ª edição, Universidade Católica Portuguesa, 416/417. - Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 213. - Paulo Mota Pinto, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, 208. - Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 6.ª edição, 2010, Almedina, 546/547. - Vaz Serra, na R.L.J., Ano 111, 220. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 236.º, 238.º, 410.º, N.ºS 1 E 2. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 607.º, N.º 5, 635.º, N.º 4, 639.º, N.º 1, 662.º, N.ºS 1, 2 E 4, 674.º, N.ºS 1 A 3, 682.º, N.ºS 1 E 2. LEI DE ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO – LEI N.º 62/2013, DE 26 DE AGOSTO: - ARTIGO 46.º. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 14 DE JANEIRO DE 1997, C.J./S.T.J., ANO V, TOMO I, 46 E SS., E DE 11 DE OUTUBRO DE 2001, C.J./S.T.J., ANO IX, TOMO III, 81 E SS.. | ||
Sumário : | I - Na fixação da matéria factual relevante para a solução do litígio a Relação tem a derradeira palavra, através do exercício dos poderes que lhe são conferidos pelos n.ºs 1 e 2 do art.º 662.º do Cód. de Proc. Civil, acrescendo que da decisão proferida nesse particular pela Relação não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (art.º 662º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil). II - É residual a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no apuramento da factualidade relevante da causa, restringindo-se, afinal, a fiscalizar a observância das regras de direito probatório material, a determinar a ampliação da matéria de facto ou o suprimento de contradições sobre a mesma existentes. III - No domínio da interpretação de qualquer contrato, ou seja, na fixação do sentido e alcance juridicamente relevantes e decisivos nele contemplados, há especificidades relativamente à interpretação da declaração negocial. IV - A interpretação do contrato apresenta-se bem mais complexa que a interpretação da mera declaração negocial e os elementos a esse respeito atendíveis hão-de valer para ambos os contratantes, com vista a alcançar um sentido final comum. V – Na interpretação de um contrato, surgem como elementos essenciais a que deve recorrer-se para a fixação do sentido das declarações: "a letra do negócio, as circunstâncias de tempo, lugar e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei e os usos e os costumes por ela recebidos"[1]bem como “os termos do negócio, os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento), a finalidade prosseguida, etc. VI - Da análise dos termos do contrato celebrado, em especial das cláusulas, cuja interpretação é questionada pelas partes, resulta, à luz do que um declaratário dotado de diligência normal, lendo-as e pensando-as, entenderia delas, que os réus se obrigaram a proceder ao distrate da hipoteca até à escritura definitiva da transmissão das lojas para os autores, ou a entregar a estes a quantia de €62 500,00 para que estes procedessem eles mesmo a esse distrate. __________ [1]Cfr, neste sentido, Prof. Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 2ª edição, Lex, 1996, págs. 349/350, e Teoria Geral do Direito Civil, II, Fontes, Conteúdo e Garantia da Relação Jurídica, 3ª edição, Universidade Católica Portuguesa, pág. 416/417. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: Relatório
I – AA e mulher, BB, residentes em Pombeiro, Felgueiras, intentaram acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra CC e mulher, DD, residentes em Quinta, Felgueiras, alegando, em síntese, que: No dia 12 de Dezembro de 2007, celebraram com os Réus um contrato promessa de compra e venda e permuta mediante o qual os últimos permutariam a fração autónoma “U” do prédio construído em propriedade horizontal, ali identificado, e duas frações autónomas a construir em espaço comercial, identificadas como lojas 2 e 3, com o prédio misto pertencente aos Autores, ali identificado, entregando ainda os Réus, como complemento, a quantia de € 225 000,00. Foi ainda estipulado que, se à data da escritura do contrato prometido, as referidas lojas ainda não estivessem concluídas, os Réus, ali segundos outorgantes, se obrigavam a pagar, para distrate da hipoteca, a quantia de €62 500,00, por cada fração. Os Réus apenas entregaram aos Autores a fração autónoma designada pela letra “U”, não concretizando a entrega das outras duas lojas, enquanto os Autores transmitiram para os Réus a propriedade do prédio misto como se haviam comprometido.
Com tais fundamentos, concluíram por pedir o seguinte: a) seja declarado o incumprimento parcial por parte dos Réus do aludido contrato promessa; b) sejam os Réus condenados a pagar-lhes a quantia €125 000,00 (€62 500,00 para cada uma das lojas), correspondente ao valor fixado no contrato celebrado para o caso de não ser possível a permuta, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento. Os Réus contestaram impugnando a versão factual dos Autores, tendo alegado, em resumo, que, posteriormente ao contrato promessa celebrado com os Autores, teriam acordado com estes em ceder-lhes a posição contratual que detinham no contrato promessa celebrado com a sociedade – EE- construtora das lojas em questão, com vista à aquisição das mesmas lojas, na sequência do que foi celebrado um outro contrato promessa, considerando-se concluído o anterior.
Concluíram, desse modo, pela improcedência da acção e consequente absolvição do pedido. Os Autores replicaram a manter a sua posição inicial. Saneado o processo e realizada a audiência de julgamento, com gravação dos depoimentos nela prestados, foi proferida sentença, datada de 23.08.2015, a julgar a acção improcedente, absolvendo os Réus do pedido. Apelaram os Autores, com parcial êxito, tendo a Relação do Porto decidido, após alterar alguns pontos da matéria de facto, revogar a sentença, condenando os Réus a pagarem aos Autores a quantia de €62 500,00.
Inconformados, interpuseram os Réus recurso de revista, finalizando a sua alegação, com conclusões seguintes: 1 - A decisão dimanada do Tribunal da Relação do Porto, além de erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, ofensivo de disposições legais, não fez, ainda assim, uma correcta interpretação e aplicação da lei substantiva aplicável à factualidade dada como assente nos autos; 2 - Em tal conformidade, o presente recurso tem por fundamento o disposto na alínea a), n.° 1. e n.° 3, do art.º 674.°, do CP. Civil; 3 - Seja por via de interpretação objectiva ou subjectiva, não é possível extrair do elemento literal do texto através do qual se encontra consignada a obrigação do pagamento da quantia de €62 500,00, que os RR., aqui recorrentes, se tenham obrigado independentemente de culpa própria; 4 - Estamos no âmbito da responsabilidade contratual (e não da responsabilidade objectiva), onde a culpa é o factor de averiguação da inerente responsabilidade, como decorre do disposto no art.° 798.° do C. Civil; 5 - De modo transversal à questão sub judice releva o facto consubstanciado na celebração superveniente do contrato promessa de 10/03/2010, por meio do qual a «FF. SA», tendo como administrador o A. AA, prometeu comprar à «EE- Sociedade de Construções. Lda.» as fracções «B» e «C»; 6 - Por meio do referido contrato promessa, a que as partes atribuíram eficácia real, e como tal o registaram, a "FF" chamou a si, em exclusivo, o complexo de direitos e obrigações dele emergente, até aí detido pelos RR., recorrentes; 7 - A certidão do registo predial, junta com a p.i., retrata a inegável vontade das partes outorgantes do contrato em apreço: uma promessa de compra e venda com eficácia real, a favor da sociedade "FF”; 8 - A integridade dessa certidão não foi posta em causa, tratando-se de um documento autêntico, dotado de força probatória plena, pelo que o seu conteúdo reflete aquela realidade, que o Tribunal não pode ignorar, em consonância com o consignado nos artigos 371.° e 372.°. do C. Civil. 9 - De pouco, ou mesmo nada, vale a "intenção" que esteve na origem de tal documento, vertida nos pontos 2 e 3 da matéria de facto fixada pelo tribunal a quo, contrariando a assertiva decisão de facto do tribunal de 1.ª instância; 10 - Com efeito, desafiando qualquer linha de pensamento lógico e coerente, essa intenção em nada contribui para o esclarecimento de como o contrato promessa de 10/03/2010 poderia forçar a realização da venda por parte do promitente vendedor ao novo promitente comprador; 11 - A outorga do mencionado contrato promessa fez extinguir toda e qualquer obrigação dos RR., recorrentes, contraída anteriormente perante os AA., recorridos, relacionada com as fracções "B'" e "C'\incluindo o pagamento da importância de € 62 500,00 destinada ao distrate, ainda que se entenda que este vínculo foi constituído independentemente de culpa própria: 12 - Este raciocínio jurídico mostra-se reforçado, em todo o caso, pela declaração de insolvência da promitente vendedora «EE- Sociedade de Construções, Lda.» (vd. sentença, pontos 17 e 18, factos provados), facto omitido pelo Tribunal da Relação do Porto na prolação do acórdão recorrido, de consequências determinantes para o julgamento da questão, na medida em que pôs em causa o cumprimento do contrato promessa; 13 - Na verdade, com a alteração subjectiva a favor da "FF"', introduzida no tocante às fracções «B» e «C», através do contrato promessa de 10/03/2010, os RR., recorrentes, ficaram impossibilitados de reclamarem no processo de insolvência o direito à aquisição dessas fracções, livres de ónus e encargos, ou à devolução, em dobro, do respectivo preço, por eles já integralmente pago; 14 - A «FF», sociedade controlada pelos AA., recorridos, não reclamou o competente crédito nos termos dos artigos 128.° e 47.°, n.° 4, alínea a), do C.I.R.E.), podendo e devendo fazê-lo, ao invés de deixar precludir o competente direito; 15 - Direito esse que, a exemplo do que fizeram os RR- recorrentes, em relação às demais fracções a si prometidas vender (vd. sentença, ponto 19, factos provados), permitiria aos AA., recorridos, pugnar pelo cumprimento integral do contrato promessa, é, pela compra e venda das fracções "B" e "C", livres de ónus e encargos (invocando para tanto o direito de retenção previsto nos artigos 754.°, 755.°, n.° 1, alínea f), 759.°, n.° 2, do C. Civil e, subsidiariamente, pela devolução do preço em dobro, nos termos dos artigos 441.° e 442.°, também do C. Civil; 16 - Ainda que independentemente de culpa estivessem obrigados a pagar aos AA, recorridos, o valor de € 62. 500,00 - como, de resto, entende (com todo o respeito, mal) o Tribunal da Relação - com a adjudicação daquelas fracções os RR., recorrentes, caso detivessem a posição de promitentes compradores, sempre teriam a oportunidade e o direito ao reembolso de tal valor, sob pena de enriquecimento sem causa e como, de resto, é de algum modo contemplado no ponto 12 do contrato promessa de compra e venda e de permuta; 17 - Perdendo, como perderam, o direito à aquisição das fracções "B" e "C", a favor da "FF", com o assentimento dos AA., recorridos, não é juridicamente sustentável que a obrigação do pagamento da quantia de € 62.500,00 seja mantida, pois que desse modo a mesma se extinguiu sem culpa dos RR., recorrentes, por aplicação ao caso do disposto no art.° 790.°, n.° 1. do C. Civil; 18 - Pelo exposto, bem andou o Meritíssimo Juiz de 1.ª instância ao entender que na impossibilidade superveniente de cumprimento, por parte dos RR., recorrentes, da obrigação de transmitir a propriedade das fracções em causa, por efeito de novo contrato promessa de compra e venda das mesmas fracções a favor da «FF» (seja esse facto jurídico tido como cessão de posição contratual ou outro), não seria aceitável que os RR. se mantivessem vinculados à obrigação de pagamento de €62.500.00; 19 – Deve ser revogado o acórdão do Tribunal da Relação e mantida a decisão tomada em 1.ª instância. As instâncias consideraram provados os factos seguintes: 1. Em 12 de Dezembro de 2007, os Autores (Primeiros Outorgantes) e os Réus (Segundos Outorgantes) celebraram o escrito denominado “contrato-promessa de compra e venda e permuta” reproduzido no documento junto a fls. 201 e seguintes dos autos, do qual se destacam as seguintes cláusulas: “1. Os primeiros outorgantes são donos e possuidores legítimos dos seguintes prédios: Misto (…) sito no Lugar da ......, freguesia de ........, concelho de Felgueiras, descrito na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras sob o n.º 000 e inscrito na matriz sob os artigos urbanos 239.º e 434.º, e rústicos 356.º, 357.º, 358.º e 359.º (…). 2. Os segundos outorgantes são donos e possuidores legítimos dos seguintes prédios: Fração autónoma correspondente à letra “U” destinada a comércio (…) do prédio constituído em propriedade horizontal e descrito na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras sob o n.º ----- - Margaride e inscrito na matriz sob o art. 0000 - U; Lojas 2 e 3 (…) do prédio em construção sito no Loteamento das ........, freguesia da Várzea, concelho de Felgueiras, ao abrigo do alvará de loteamento 15/98 e do alvará de licença de construção n.º 231/2005…” (que atualmente correspondem às frações B e C do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras sob o n.º 649). 3. Os outorgantes estão acordados em permutar o prédio dos primeiros supra identificado em 1, pelos prédios dos segundos outorgantes supra identificados em 2, pelo que reciprocamente prometem outorgar tal permuta, o que subordinam ao seguinte clausulado: 4. Atribuem ao prédio dos primeiros outorgantes o valor de € 475.000,00. 5. Atribuem aos prédios dos segundos outorgantes o valor de € 250.000,00. 6. Em complemento desta permuta, e para cobrir a diferença verificada, os segundos outorgantes pagarão aos primeiros a quantia de € 225.000,00. 7. Esta quantia será paga da seguinte forma: a) € 25.000,00, a título de sinal, no ato de assinatura deste contrato, que serve de quitação. b) € 50.000,00, até 31.12.2007. c) os restantes € 150.000,00, na data escritura definitiva de que este contrato constitui promessa, a outorgar no prazo de 120 dias contados da outorga deste. d) Caso a escritura não seja outorgada por facto imputável aos segundos outorgantes, estão estes, de igual modo, obrigados a pagar este valor de € 200.000,00 aos primeiros, desde que esteja disponível para escriturar, o prédio destes. 8. Caso os segundos outorgantes não providenciem a respetiva marcação deste prazo de 120 dias, poderão os primeiros exigir daqueles a celebração da escritura definitiva, desde que os notifiquem com 8 dias de antecedência, indicando data, hora e cartório para tal. 9. As lojas 2 e 3 referenciadas em 2 supra serão objeto de contrato-promessa de compra e venda com eficácia real, a realizar no prazo de trinta dias contados da assinatura deste contrato, cujo promitente comprador será o primeiro outorgante marido ou quem ele venha a indicar. 10. Porque as lojas mencionadas se encontram oneradas pelo construtor com hipoteca a uma entidade bancária, se à data desta escritura não estiverem concluídas e licenciadas definitivamente, os segundos outorgantes, em face de a realização da escritura de permuta ou venda (S) transmitir definitivamente para si a prestação contratual dos primeiros, correspondente ao prédio identificado na cláusula 1, obrigam-se a pagar aos primeiros, com destino ao distrate da hipoteca incidente, o valor de sessenta e dois mil e quinhentos euros. 11. Porém, esta quantia de 62.500€, apenas será exigível, se por qualquer motivo e no prazo de dezoito meses contados de hoje, não forem definitivamente transmitidas aos primeiros outorgantes aquelas lojas 2 e 3, livres de ónus ou encargos. 12. Na hipótese de os segundos outorgantes haverem pago a referida quantia de 62.500€ para distrate da hipoteca e o construtor os vier a reembolsar, estes obrigam-se a devolver tal quantia aos primeiros. 13. Se este contrato-promessa for cumprido parcialmente, nenhuma das partes pode invocar novação das suas obrigações ou da contraparte, a tal renunciando desde já, visto que reconhecem que o escopo desejado em qualquer caso, – ainda que, entretanto, ocorram transmissões ou cumprimentos parcelares ou feitos a terceiros, ou mesmo por terceiros -, é o do cumprimento integral deste contrato, naquilo que persista em falta para sua total execução” (…) - alínea A) dos factos assentes; 2. Encontra-se registado a favor dos réus, pelas apresentações 9 de 2007.12.19, 17 de 2008.02.15 e 20 de 15.02.2008, os factos atinentes ao direito de propriedade sobre o Prédio Urbano sito na ......, freguesia de ........ de R....., concelho de Felgueiras, descrito na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras sob o n.º 0000000, “formado pelos n.ºs 00000000, 00000000 e 000000” - alínea B) dos factos assentes; 3. Pela apresentação n.º 7 de 2007/12/19 foram registados os factos atinentes à permuta a favor dos autores AA e mulher AA sobre o prédio descrito na conservatória de registo predial de Felgueiras sob o n.º 000000000000, e pela apresentação n.º...de 2008/04/07 foram os registados a favor de FF – Sociedade Imobiliária, SA., os factos atinentes ao direito de propriedade sobre o mesmo prédio - alínea C) dos factos assentes; 4. Encontra-se registado a favor de “EE– Sociedade de Construções, Ld.ª”, pela apresentação 33 de 2006/02/15, o direito de propriedade sobre o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras sob o número 0000000000, do qual fazem parte as frações autónomas A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, L - alínea D) dos factos assentes; 5. Encontra-se inscrita a favor da Caixa Geral de Depósitos, através da apresentação 4 de 2006/08/24, a hipoteca voluntária sobre o prédio descrito no número anterior, tendo como valor máximo assegurado € 1.879.375,00 - alínea E) dos factos assentes; 6. Encontra-se inscrita a favor da Caixa Geral de Depósitos, através da apresentação 1546 de 2009/06/15, a hipoteca voluntária sobre o prédio descrito no facto provado número 4, tendo como valor máximo assegurado € 751.750,00 - alínea F) dos factos assentes; 7. Encontra-se inscrito a favor de “FF – Sociedade Imobiliária, SA”, pela apresentação 895 de 2010/09/21, o direito de propriedade, provisório por natureza, inscrição essa com os dizeres “baseada em contrato-promessa de compra e venda, cuja escritura será outorgada até 10 de Março de 2011” sobre a fração B do prédio referido no facto provado número 4 - alínea G) dos factos assentes; 8. Encontra-se inscrito a favor de “FF – Sociedade Imobiliária, SA”, pela apresentação 4049 de 2010/03/12, o direito de propriedade, provisório por natureza e dúvidas, inscrição essa com os dizeres “baseada em contrato-promessa de compra e venda” sobre a fração C do prédio referido no facto provado número 4 - alínea H) dos factos assentes; 9. O Autor enviou ao Réu, que a recebeu, a missiva cujo teor se mostra reproduzido a fls. 39 dos autos - alínea I) dos factos assentes; 10. O Réu enviou ao Autor, que a recebeu, a missiva cujo teor se encontra reproduzido a fls. 41 dos autos - alínea J) dos factos assentes; 11. Em 31 de Janeiro de 2006, EE– Sociedade de Construções, Lda., (Primeiro Outorgante) e os Réus (Segundos Outorgantes) celebraram o escrito denominado “contrato promessa de compra e venda” que constitui o documento junto aos autos a fls. 72 e seguintes, cujo teor aqui é dado como reproduzido, do qual se destacam as seguintes cláusulas: “1º A primeira outorgante irá construir um edifício nos lotes n.º 27 e 28 do alvará de loteamento n.º 15/98, sito em ........, Várzea, Felgueiras, ao abrigo do alvará de obras de construção n.º 00000 emitida em 16/05/2005 válido até 16/05/2008, que nesse mesmo edifício, serão construídos os seguintes espaços comerciais: loja n.º 2, com a área de 47,40 m2, loja n.º 3, com a área de 70, 90 m2, loja n.º 4 com a área de 70.90 m2, loja n.º 5 com a área de 47,40 m2 e loja n.º 6 com a área de 98,20 m2 (…). 2º Pelo presente contrato-promessa de compra e venda, a primeira outorgante promete vender ao segundo outorgante e este promete comprar as lojas descritas na cláusula 1ª, livre de quaisquer ónus ou encargos. 3º Pelo presente contrato-promessa de compra e venda, a primeira outorgante promete vender ao segundo outorgante e este promete comprar as referidas lojas descritas na cláusula 1ª, com os seguintes valores (…). 5º A escritura de compra e venda será outorgada quando a primeira outorgante o desejar, comprometendo-se no entanto a avisar o segundo outorgante com 10 dias de antecedência, o dia, a hora e o cartório notarial em que a mesma será realizada (…)” - alínea K) dos factos assentes; 12. As lojas n.º 4, n.º 5 e n.º 6 referidas na cláusula 1ª do escrito descrito no facto provado número 11, correspondem atualmente às descrições prediais 650 – A, 650 – B e 650-C, conforme fls. 28 a 37 e 83 a 94 dos autos, integradas no lote n.º 28, dos mesmos lugar, freguesia e concelho e dos mesmos alvarás de loteamento e de obras de construção - alínea L) dos factos assentes; 13. (Eliminado pela Relação e que corresponde ao vertido no artigo 2º da base instrutória); 14. Em 10 de Março de 2010, “EE– Sociedade de Construções, Ld.ª”, (Primeiro Outorgante) e “FF – Sociedade Imobiliária, SA”, (Segunda Outorgante), representada pelo seu administrador AA, ora Autor, celebraram o escrito denominado “contrato-promessa de compra e venda” que constitui o documento cujo teor se reproduz a fls. 199 e seguintes, do qual se destacam as seguintes cláusulas: “1º A primeira outorgante é dona e legitima proprietária das frações autónomas identificadas pelas letras “B”, e “C”, integradas no prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, denominado “Edifício EE XIII – Lote 27”, sito no Lugar de ........, com o alvará de loteamento n.00000, Várzea, Felgueiras, frações destinadas a comércio e serviços, prédio inscrito na matriz predial urbana com o número P1275 e descrita na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras sob o número 000000 da Várzea (…). 2º Pelo presente contrato-promessa de compra e venda a primeira outorgante vende ao segundo outorgante e este promete comprar, as referidas frações identificadas na cláusula 1ª, “B”, “C”, pelo preço de, € 24.885,00 e € 37.200,00, respetivamente (…). 3º O preço acordado já se encontra totalmente pago (…). 4º A escritura de compra e venda será outorgada até 10 de Março de 2011, sem prejuízo de eventual prorrogação por mais seis meses (…) - alínea M) dos factos assentes; 15. Em 10 de Março de 2010, “EE– Sociedade de Construções, Ld.ª”, (Primeiro Outorgante) e os Réus (Segundos Outorgantes) celebraram o escrito denominado “contrato promessa de compra e venda” reproduzido no documento junto a fls. 102 e seguintes dos autos, do qual se destacam as seguintes cláusulas: 1º A primeira outorgante é dona e legitima proprietária das frações autónomas identificadas pelas letras “A”, “B”, e “C”, integradas no prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, denominado “Edifício EEXIII – Lote ...”, sito no Lugar de ........, com o alvará de loteamento n.º ...., Várzea, Felgueiras, frações destinadas a comércio e serviços, prédio inscrito na matriz predial urbana com o número P1275 e descrita na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras sob o número 00000000, da Várzea (…). 2º Pelo presente contrato-promessa de compra e venda a primeira outorgante vende ao segundo outorgante e este promete comprar, as referidas frações identificadas na cláusula 1ª, “A”, “B”, “C”, pelo preço de € 37.200,00, € 24.885,00 e € 51.800,00, respetivamente (…). 3º O preço acordado já se encontra totalmente pago (…) “1º A primeira outorgante é dona e legitima proprietária das frações autónomas identificadas pelas letras “B”, e “C”, integradas no prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, denominado “Edifício EEXIII – Lote ....”, sito no Lugar de ........, com o alvará de loteamento n.º ...., Várzea, Felgueiras, frações destinadas a comércio e serviços, prédio inscrito na matriz predial urbana com o número P.... e descrita na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras sob o número 00000000000, da Várzea (…). 2º Pelo presente contrato-promessa de compra e venda a primeira outorgante vende ao segundo outorgante e este promete comprar, as referidas frações identificadas na cláusula 1ª, “B”, “C”, pelo preço de, € 24.885,00 e € 37.200,00, respetivamente (…). 3º O preço acordado já se encontra totalmente pago (…). 4º A escritura de compra e venda será outorgada até 10 de Março de 2011, sem prejuízo de eventual prorrogação por mais seis meses (…) - alínea M) dos factos assentes; 15. Em 10 de Março de 2010, “EE– Sociedade de Construções, Ld.ª”, (Primeiro Outorgante) e os Réus (Segundos Outorgantes) celebraram o escrito denominado “contrato promessa de compra e venda” reproduzido no documento junto a fls. 102 e seguintes dos autos, do qual se destacam as seguintes cláusulas: A primeira outorgante é dona e legitima proprietária das frações autónomas identificadas pelas letras “A”, “B”, e “C”, integradas no prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, denominado “Edifício EEXIII – Lote....”, sito no Lugar de ........, com o alvará de loteamento n.º 15/98, Várzea, Felgueiras, frações destinadas a comércio e serviços, prédio inscrito na matriz predial urbana com o número P0000 e descrita na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras sob o número 00000000, da Várzea (…). 2º Pelo presente contrato-promessa de compra e venda a primeira outorgante vende ao segundo outorgante e este promete comprar, as referidas frações identificadas na cláusula 1ª, “A”, “B”, “C”, pelo preço de € 37.200,00, € 24.885,00 e € 51.800,00, respetivamente (…). 3º O preço acordado já se encontra totalmente pago (…) 16. Os Autores interpelaram verbalmente o Réu no sentido de o mesmo proceder à transmissão a seu favor das lojas 2 e 3 referidas no escrito transcrito em 1. - artigo 1º da base instrutória. 17. No ano de 2010, a sociedade EE começou a denotar dificuldades financeiras que se agravaram no decurso de 2011 - artigo 4º da base instrutória. 18. A EE – Sociedade de Construções, Lda foi declarada insolvente por sentença de 27.01.2012, transitada em julgado, proferida no processo n.º 00000, 1º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras – alínea O) dos factos assentes. 19. Os Réus apresentaram, no processo de insolvência referido em 18., a reclamação de créditos constante de fls. 109 a 112 – alínea P) dos factos assentes. 20. Os escritos denominados “contrato-promessa de compra e venda” referidos nos factos provados números 14 e 15, foram elaborados pelos Autores e Réus, respetivamente, com o único objetivo de forçar a EEa entregar as frações aos Autores e aos Réus - artigo 5º da base instrutória (aditado pela Relação). 21. O acordo descrito no facto anterior foi sugerido por diversas vezes pelos Réus aos Autores - artigo 6º da base instrutória (aditado pela Relação).
III – Fundamentação de direito A apreciação e decisão das duas revistas (principal e subordinada), atentas as conclusões das alegações dos Recorrentes (art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil[1]), passam pela análise e resolução das seguintes questões jurídicas: – Erro na apreciação das provas e fixação dos factos materiais; e – Responsabilização dos Réus pelo pagamento da quantia fixada pela Relação. 1 - Passando, agora, à abordagem da questão enunciada em primeiro lugar, importa sublinhar, desde logo, que na fixação da matéria factual relevante para a solução do litígio a Relação tem a derradeira palavra, através do exercício dos poderes que lhe são conferidos pelos n.ºs 1 e 2 do art.º 662.º do Cód. de Proc. Civil, acrescendo que da decisão proferida nesse particular pela Relação não cabe sequer recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (art.º 662º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil). Este limita-se, no exercício da sua função de tribunal de revista, a definir e aplicar o regime ou enquadramento jurídico adequado aos factos já anterior e definitivamente fixados, ou seja, apenas conhece de direito, sendo que, no âmbito do recurso de revista, o modo como a Relação fixou os factos materiais só é sindicável se foi aceite um facto sem produção do tipo de prova para tal legalmente imposto, ou se tiverem sido incumpridos os preceitos reguladores da força probatória de certos meios de prova, podendo, no limite, mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto (cfr. art.º 46.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto - e art.ºs 662º, n.º 4, 674º, n.ºs 1 a 3, e 682º, n.ºs 1 e 2, do Cód. de Proc. Civil). É, pois, residual a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no apuramento da factualidade relevante da causa, restringindo-se, afinal, a fiscalizar a observância das regras de direito probatório material, a determinar a ampliação da matéria de facto ou o suprimento de contradições sobre a mesma existentes. Nessas situações, do que se tratará é de saber se a Relação, ao proceder da forma como o fez, se conformou, ou não, com as normas que regulam tal matéria (direito probatório), o que, no fundo, constitui matéria de direito, caindo, por isso, na esfera de competência própria e normal do Supremo Tribunal de Justiça. Esclarecido isto, e focando-nos na alteração da matéria de facto realizada pela Relação, traduzida na eliminação do ponto 13. (correspondente ao vertido no artigo 2º da base instrutória) e aditamento dos pontos 20.e 21. (correspondentes aos artigos 5º e 6º da base instrutória), não vemos qualquer inobservância dessas regras probatórias. Pelo contrário, como se alcança do teor do acórdão recorrido, mais propriamente de folhas 485 a 487, as provas indicadas pelos Apelantes, para sustentar a parte impugnada da decisão da matéria de facto, foram examinadas pela Relação, que motivou a sua decisão de forma coerente e transparente, de acordo com o princípio da convicção racional, consagrado pelo art.º 607º, n.º 5, do Cód. Proc. Civil, que combina o sistema da livre apreciação ou do íntimo convencimento com o sistema da prova positiva, sendo certo que nesse domínio (da livre convicção do julgador) está vedado ao Supremo exercer censura e sindicar a respectiva substância (art.º 662º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil). Deste modo, por não ocorrer motivo para interferir no juízo emitido pela Relação, incluindo o referente à não comprovação da invocada cessão da posição contratual, concretizada na eliminação do ponto 13. do elenco factual, soçobra, quanto a este ponto, o que em contrário os Réus alegaram e concluíram, tanto mais que a certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial, com inscrição do contrato promessa de 10/03/2010, celebrado entre a FF e a EE, entes jurídicos distintos das partes neste processo, não tem o valor probatório que lhe atribuem. Tal certidão comprova apenas a celebração do contrato promessa entre a FF e a EE e a vinculação dessas sociedades, nada comprovando quanto à alegada vinculação das partes neste processo. O seu teor, ao invés do que sustentam os Réus, não implica que se dê como assente a cessão da posição contratual que alegaram e pela qual persistem em se bater, sendo certo que nada impedia a Relação de, com base noutros meios de prova (depoimentos testemunhais) e dentro da sua liberdade decisória em sede de matéria de facto, considerar que essa factualidade não estava provada, eliminando o ponto 13. Neste domínio, não ocorreu erro susceptível de sindicância deste Tribunal Supremo, devendo manter-se intocável, por isso, a materialidade fáctica dada por assente pela Relação. 2 – Focando, agora, a nossa atenção sobre a 2ª questão jurídica atrás enunciada – responsabilidade dos Réus pelo pagamento aos Autores da quantia fixada pela Relação – há que atentar, antes de mais, que, enquanto os primeiros entendem nada ter que pagar aos últimos (recurso principal), estes consideram ter direito ao dobro da quantia fixada (recurso subordinado). A questão suscitada, uma vez decidida a manutenção da matéria de facto apurada pela Relação, com a eliminação da alegada cessão da posição contratual, remete-nos, para a fixação do sentido e alcance juridicamente relevantes do contrato-promessa de compra e venda e permuta celebrado pelas partes, em 12 de Dezembro de 2007, tarefa sujeita, como se sabe, a regras específicas que não são mais do que critérios interpretativos dirigidos ao juiz e às partes contratantes (art.º 236º do Cód Civil) e que, por constituir uma questão de direito (e não de facto), se integra na competência do Supremo Tribunal de Justiça (art.º 46.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto - e art.º 682º, n.ºs 1 e 2, do Cód. de Proc. Civil)[2]. A primeira nota a reter, no domínio da interpretação de qualquer contrato, ou seja, a fixação do sentido e alcance juridicamente relevantes e decisivos nele contemplados, é que tal operação apresenta especificidades relativamente à interpretação da declaração negocial. Como adverte o Prof. José de Oliveira Ascensão[3] «uma coisa é interpretar a proposta (e eventualmente a aceitação), actos unilaterais, outra é interpretar o contrato global que é negócio jurídico complexo e a sua interpretação tem de fazer-se atendendo simultaneamente às declarações de todas as partes, porque todas são simultaneamente declarante e declaratário». Igual advertência expressa também o Prof. Pedro Pais de Vasconcelos[4], ao referir que «a técnica tradicional de decompor o negócio jurídico nas declarações negociais das partes, como modo de possibilitar uma teoria que possa ser comum aos negócios jurídicos unilaterais e aos negócios jurídicos plurilaterais (contratos) conduziu à construção de uma teoria da interpretação que acaba por desconsiderar o facto de, nos contratos, ambas as partes serem simultaneamente declarante e declaratário e acarreta, por isso, dificuldades importantes». Adiantando, logo a seguir, que «na interpretação deve ser procurado, não apenas o sentido de declarações negociais artificialmente isoladas do seu contexto negocial global, mas antes o discernir do sentido juridicamente relevante do complexo regulativo como um todo, como acção de autonomia privada e como globalidade da matéria negociada ou contratada». A interpretação do contrato apresenta-se, assim, bem mais complexa que a interpretação da mera declaração negocial, e os elementos a esse respeito atendíveis hão-de valer para ambos os contratantes, com vista a alcançar um sentido final comum. Sobre o tema consagra o art.º 236º do Cód. Civil a doutrina da impressão do destinatário: “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele” (nº 1); porém, o nº 2, em consonância com a velha máxima “falsa demonstratio non nocet”, estabelece que “sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida”. Deste texto resulta que, em homenagem aos princípios da protecção da confiança e da segurança do tráfico jurídico, se dá prioridade, em tese geral, ao ponto de vista do declaratário, mas a lei, no entanto, não se basta com o sentido compreendido realmente pelo declaratário (entendimento subjectivo deste) e, por isso, concede primazia àquele que um declaratário normal colocado na posição do real declaratário depreenderia. “Há que imaginar – escreve o Prof. Paulo Mota Pinto[5] - uma pessoa com razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas figurando-a na posição do real declaratário, ….e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo”, sendo que o declaratário normal corresponde ao "bonus pater familias" equilibrado e de bom senso[6], pessoa de qualidades médias[7], de instrução, inteligência e diligência normais. Por outro lado, no domínio da interpretação de um contrato, que, como já se disse, consiste em determinar «o conteúdo das declarações de vontade e, consequentemente, os efeitos que o negócio visa produzir, em conformidade com essas declarações"[8], surgem como elementos essenciais a que deve recorrer-se para a fixação do sentido das declarações: "a letra do negócio, as circunstâncias de tempo, lugar e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei e os usos e os costumes por ela recebidos"[9] bem como “os termos do negócio, os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento), a finalidade prosseguida, etc[10]. À luz destes critérios interpretativos, importa, pois, ter presente que em causa está um contrato-promessa de venda e permuta de imóveis, cujos termos constam do ponto 1. do elenco factual provado e que corresponde à alínea A) dos factos assentes. Trata-se de um contrato bilateral ou sinalagmático (dele resultam obrigações para ambas as partes), oneroso e formal (a lei impõe a forma escrita – art.º 410º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Civil). Da análise dos termos do contrato celebrado, em especial das assinaladas cláusulas, cuja interpretação é questionada pelas partes, resulta, à luz do que um declaratário dotado de diligência normal, lendo-as e pensando-as, entenderia delas, que, como bem equacionou e decidiu a Relação, os réus se obrigaram a proceder ao distrate da hipoteca até à escritura definitiva da transmissão das lojas para os autores, ou a entregar a estes a quantia de €62 500,00 para que estes procedessem eles mesmo ao distrate da hipoteca. Mais acordaram ainda que fora dessa situação aquela quantia (e não €125.000,00, como pretendem os autores), apenas seria exigível, se por qualquer motivo e no prazo de dezoito meses contados da data da outorga do contrato-promessa, não fossem definitivamente transmitidas aos primeiros outorgantes as lojas, livres de ónus ou encargos, sendo que a referida quantia é devida pelos réus, como decorre da cláusula 11, independentemente do motivo (culposo ou não) da não realização da escritura a transmitir as referidas frações para os autores. De assinalar que essa quantia (€62 500,00) é devida por ambas as lojas e não por cada uma, como infundadamente sustentam os autores. O teor da cláusula não deixa, a esse propósito, dúvidas e, de modo algum, se compagina ou comporta a interpretação pela qual os autores se batem e na qual fundam a pretendida duplicação do montante fixado pela Relação. Foi esta a interpretação feita pela Relação e que não merece reparo, na medida em que decorre da economia e carácter oneroso do contrato, tem plena correspondência no respectivo documento (art.º 238º do Cód. Civil), é a que faria um declaratário medianamente sagaz, prudente e diligente posicionado no lugar dos réus e dos autores (os destinatários da declaração negocial) e a que conduz a um maior equilíbrio das prestações. É, pois, este o sentido que melhor é comportado pelas aludidas cláusulas contratuais e, portanto, aquele que deve valer em consonância com os referidos critérios hermenêuticos. Nesta conformidade, improcedem ou mostram-se deslocadas todas as conclusões dos recorrentes, a quem não assiste razão para se insurgir contra o decidido pela Relação, que não merece os reparos que lhe apontam, nem viola as disposições legais que indicam.
IV – Decisão
Nos termos expostos, decide-se negar ambas as revistas (principal e subordinada) e confirmar consequentemente o acórdão recorrido. Custas de cada um dos recursos pelos respectivos recorrentes. * Anexa-se sumário do acórdão (art.ºs 663º, n.º 7, e 679º, ambos do CPC).* Lisboa, 19 de Janeiro de 2017 António Piçarra (Relator) Fernanda Isabel Pereira Olindo Geraldes _____________________ [1] Na versão aprovada pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, uma vez que o recurso tem por objecto decisão proferida já depois de 01 de Setembro de 2013 e o processo é posterior a 01 de Janeiro de 2008 (cfr. os seus art.ºs 5º, n.º 1, 7º, n.º 1, e 8º). [2] Cfr, neste sentido, José Lebre de Freitas/Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3º, Tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, págs. 160, 167 e 168, e demais doutrina e jurisprudência aí citadas, que se mantêm actualizadas. [3] In Direito Civil, Teoria Geral, Volume II, 2ª edição, Coimbra Editora, 2003, pág. 435. [4] In Teoria Geral do Direito Civil, 6ª edição, 2010, Almedina, págs. 546/547. [5] In Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, pág. 208. [6] Cfr, neste sentido, Prof. Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 2ª edição, Lex, 1996, pág. 348, e Teoria Geral do Direito Civil, II, Fontes, Conteúdo e Garantia da Relação Jurídica, 3ª edição, Universidade Católica Portuguesa, pág. 415. [7] Cfr, neste sentido, Prof. Inocêncio Galvão Telles, Manual dos Contratos, pág. 358. [8] Cfr, Prof. Carlos A. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, pág. 444. [9]Cfr, neste sentido, Prof. Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 2ª edição, Lex, 1996, págs. 349/350, e Teoria Geral do Direito Civil, II, Fontes, Conteúdo e Garantia da Relação Jurídica, 3ª edição, Universidade Católica Portuguesa, pág. 416/417. [10] Cfr., a este propósito, Prof. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, pág. 213, Prof. Vaz Serra, RLJ, Ano 111, p. 220, ac. do STJ de 14 de Janeiro de 1997, CJ/STJ, Ano V, Tomo I, págs. 46 e ss, e ac do STJ de 11 de Outubro de 2001, CJ/STJ, Ano IX, tomo III, págs. 81 e ss. |