Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
67/12.9JAPDL.L1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: SANTOS CABRAL
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CONFIRMAÇÃO IN MELLIUS
CRIME CONTINUADO
DUPLA CONFORME
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
Data do Acordão: 09/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO O RECURSO
Área Temática:
DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES E DO CRIME CONTINUADO - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - RECURSOS.
Doutrina:
- Conceição Ferreira da Cunha, “Questões actuais em torno de uma vexata questio: o crime continuado”, em estudos em Homenagem do Professor Figueiredo Dias, p. 325 e ss..
- D. Gilmore, Hacerse Hombre. Concepciones Culturales de la Masculinidad. Barcelona/Buenos Aires/México: Paidós; 1994.
- Eduardo Correia, Teoria do Concurso em Direito Criminal, p. 84 e ss..
- Figueiredo Dias, Direito Penal, I Volume, pp. 24, 203 ss..
- João da Costa Andrade, Da Unidade e Pluralidade de Crimes, p. 84 e ss..
- L. B. Fuks, “Abuso sexual de crianças na família. Reflexões psicanalíticas”, in Percurso, n. 20, pp. 120-126, 1998.
- Lucia Barbero, Consequências do abuso sexual infantil, http://www2.uol.com.br/percurso/main/pcs36/36Fuks.htm.
- R. B. Gartner, Betrayed as Boys, Psychodynamic Treatment of Sexually Abused Men, Nova York, The Guilford Press, 1999.
- S. Bleichmar, “Traumatismo y simbolizaciones: los modos del sufrimiento infantil”, Seminarios: Clase dictada el 3 de abril de 2000, www.silviableichmar.com./framesilvia.htm .
- S. Freud, “Projeto de uma psicologia científica” (1895), vol. 1, in Obras Completas, Buenos Aires, Amorrortu, 2. ed., 1986, p. 323.
- S. Velazquez, Violências cotidianas, violência de gênero. Buenos Aires, Paidós, 2003.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 400.º, N.º1, AL.F), 432.º, N.º1 AL. B).
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 171.º, N.ºS 1 E 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-N.º 20/2007.

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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 16.01.2003, CJ/STJ, XXVIII, 1, 162; E, DE 11.03.2004, IN CJ/STJ, XII, 1, 224.
-DE 12/7/2012, PROCESSO N.º 1718/02.
Sumário :

I - No caso de concurso de crimes pena aplicada é tanto a pena parcelar cominada para cada um dos crimes, como a pena conjunta.
II - De acordo com a al. f) do n.º 1 do art. 400.º do CPP, é irrecorrível para o STJ o acórdão do Tribunal da Relação na parte em que diminuiu as penas parcelares aplicadas pela 1.ª instância para o patamar abaixo dos 8 anos de prisão.
III -O recorrente coloca a questão da existência de uma unidade resolutiva e consequentemente de um único crime, uma vez que entende que actuou sempre a coberto de uma mesma resolução criminosa, que abrangeu sempre a mesma ofendida, que não ocorreu qualquer ruptura ou fractura temporal e que se verifica uma circunstância espacial contínua.
IV -O índice da unidade (ou da pluralidade) de determinações volitivas apenas se pode consubstanciar na forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, olhando fundamentalmente à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente.
V - A experiência e as leis da psicologia referem que, se entre diversos actos medeia um largo espaço de tempo, a resolução que inicialmente os abrangia a todo se esgota no intervalo da execução, de tal sorte que os últimos não são a sua mera descarga, mas supõem um novo processo deliberativo.
VI -Deve considerar-se existente uma pluralidade de resoluções sempre que não se verifique, entre as actividades efectuadas pelo agente, uma conexão de tempo tal que, de harmonia com a experiência e as leis psicológicas, se deva aceitar que ele as executou a todas sem ter de renovar o respectivo processo de motivação.
VII - A concretização da pena conjunta tem de assentar num juízo que revele o significado do ilícito global em termos da sua relevância para a ordem jurídica violada (conteúdo da ilicitude) e a gravidade da reprovação que deve dirigir-se ao agente pelo conjunto das infracções praticadas (conteúdo da culpa).
VIII - O abuso sexual representa uma catástrofe na vida de uma criança e produz uma devastação da estrutura psíquica, que implica uma vivência de solidão extrema e constitui uma situação limite para a sustentação do funcionamento psíquico, enquanto afecta o núcleo mais pessoal e básico da identidade: o corpo.
IX -Como consequências, tanto imediatas como tardias, do abuso sofrido, surgem a culpa, a ansiedade, a depressão, a vergonha e a baixa auto-estima que deriva da ideia de que o abuso foi merecido. Frequentemente, os abusados são autodestrutivos, colocando-se em situações de risco ou apresentando atitudes suicidas concretas.
X - Tendo o arguido sido condenado pela prática de dois crimes de abuso sexual de crianças do art. 171.º, n.ºs 1 e 2, do CP, nas penas de 6 e de 7 anos de prisão, não merece reparo a aplicação ao arguido da pena conjunta de 9 anos de prisão.



Decisão Texto Integral:

                                     Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA veio interpor recurso da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa que o condenou:

-Pela prática em autoria material de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171°, 1 e 2, do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão; pela prática em autoria material de um segundo crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171°, 1 e 2, do Código Penal, na pena de 7 (sete) anos de prisão:

Em sede cúmulo jurídico foi o arguido condenado na pena de 9 (nove) anos de prisão pela prática dos dois crimes de abuso sexual de crianças.

Tal decisão consubstancia uma alteração das penas aplicadas em sede de primeira instância na qual se decidiu:

Condenar o arguido AA, pela prática em autoria material de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171°, n.° 1 e 2, do Código Penal, na pena de 7 (sete) anos de prisão; pela prática em autoria material de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171°, n.° 1 e 2, do Código Penal, na pena de 8 (oito) anos e 6 (seis) de prisão.

- Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 12 (doze) anos de prisão.

As razões de discordância encontram-se expressas nas conclusões da respectiva motivação de recurso onde se refere que:

1.         Por Acórdão datado de 7 de Maio de 2014 proferido no processo identificado em epígrafe, o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa determinou Alterar as penas parcelares aplicadas ao arguido, condenando-se o arguido AA:- pela prática em autoria material de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171º, n.º 1 e 2 , do código penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão:- pela prática em autoria material de um segundo crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171º, n.º 1 e 2 , do código penal, na pena de 7 (sete) anos de prisão; Alterar a pena única, condenando-se o arguido AA na pena de 9 (nove) anos de prisão pela prática dos dois crimes de abuso sexual de crianças,

2.         Sententia debet esse conformis libelo: a sentença deve estar conforme a acusação, essência do princípio do acusatório, que a Constituição Portuguesa expressamente acolhe (art. 32º nº 5), o que é compreensível, porque a defesa responde a uma acusação e é, em função dela, que assume a sua posição processual.

3.         A sentença que condene, por uma factualidade diferente da que consta da acusação - se a modificação for relevante para a defesa do arguido e para a decisão da causa e não tiver ocorrido a comunicação prevista no artigo. 358º do Código de Processo Penal -, é nula. É o que dispõe o art. 379º nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal.

4.         No caso em apreço, o acórdão proferido em 1ª instância é nulo, por violação destas disposições legais.

5.         O ora recorrente invocou no seu recurso para o Venerando Tribunal da Relação três situações em que no caso apreço ocorreu violação do artigo 358º do Código de Processo Penal, no âmbito de alteração não substancial dos factos, com a consequente nulidade da decisão nos termos do artigo 379º nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal.

6.         A primeira situação constata que o arguido foi acusado pelo crime de abuso sexual na pessoa da menor BB, consubstanciado, além do mais, na seguinte factualidade: “em data que não é preciso precisar, mas que se situa durante o mês de Fevereiro de 2010, numa noite de sexta-feira ou sábado, algum tempo após o aniversário dos onze anos da menor, o arguido despiu-a e logrou introduzir o seu pénis, erecto, na sua vagina, efetuando movimentos típicos de cópula, de vai e vem, acabando por ejacular, sem uso de qualquer preservativo” (cfr. ponto 18 da acusação).

7.         O arguido prestou declarações em sede de Audiência de Julgamento com base nessa acusação e as testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento foram-no nesse pressuposto.

8.         Contudo, lê-se no acórdão recorrido, que o tribunal deu como provado que os factos em apreço teriam sido cometidos "Em data que não foi possível determinar em concreto, num daqueles fins-de-semana de 2010, pouco tempo após o seu aniversário, depois de BB se encontrar despida, o arguido introduziu o seu pénis erecto na sua vagina, efectuando movimentos típicos de cópula, de vai e vem, acabando por ejacular, sem usar qualquer preservativo” (cfr. factos provados sob n.º 17)

9.         O Tribunal não tomou oficiosamente a iniciativa de previamente comunicar ao arguido a alteração da acusação nesse particular, ao abrigo do artigo 358º nº 1 do Código de Processo Penal.

10.       O acórdão, no segmento em análise, é nulo, contudo, o Venerando Tribunal da Relação não o considerou.

11.       A segunda situação invocada pelo requerente, é a mais evidente e diz respeito ao ponto 19 dos factos dados provados no acórdão.

12.       Na situação dos factos supostamente ocorridos na casa do ... (e que até constituem recorte fáctico que mereceu condenação do arguido por um crime autónomo, com uma pena própria), a acusação descreve as circunstâncias da ocorrência do crime através do seguinte enunciado: "Assim, pelo menos desde o mês de Março de 2010, inclusive, até Fevereiro de 2012, em todas as sextas-feiras e sábados, em que a menor ficava a pernoitar na casa do arguido, este introduzia-lhe o pénis erecto na vagina, por a anatomia da menina já o permitir” (cfr. ponto 20 da acusação).

13.       Sucede que o tribunal deu como provado “Assim, pelo menos desde essa altura e até finais de fevereiro de 2012, em quase todas as noites que a BB pernoitava em casa do arguido, este actuava da forma descrita, introduzindo o seu pénis erecto na vagina de BB, umas vezes usando preservativo e outras vezes não, quando não o fazia, solicitava à menor que introduzisse o seu pénis na boca e o chupasse, até ejacular” (cfr. factos provados sob os nºs 19).

14.       Considerou também o Tribunal de 1ª instância provado que:

- Quando o arguido não introduzia o seu pénis erecto na vagina de BB, então o arguido solicitava à menor que introduzisse o seu pénis na boca e o chupasse, até ejacular, o que é uma completa novidade face à acusação,

- E que o arguido umas vezes usaria preservativo e outras vezes não, o que é outra novidade face à acusação

15.       Tal alteração não substancial da acusação devia ter sido comunicada ao arguido, ao abrigo do art. 358º nº 1 do Código de Processo Penal, nos termos do regime já analisado, a fim de que o arguido ponderasse esses dados novos na sua defesa, o que não aconteceu.

16.       O arguido foi condenado com base em circunstâncias de modo diferentes das que constavam da acusação - passando a ser considerado também que desde um daqueles fins-de-semana de 2010 quando o arguido não introduzia o seu pénis erecto na vagina da menor então o arguido solicitava à menor que introduzisse o seu pénis na boca e o chupasse, até ejacular, bem como o facto de o arguido umas vezes usaria preservativo e outras vezes não, além de tais serem elementos que poderiam ser considerados relevantes para a defesa, como eram -, sem que se tenha  procedido à prévia comunicação prevista no art. 358º nº 1 do Código de Processo Penal, o acórdão é nulo ao abrigo do disposto no artigo 379°, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal.

17.       Quer na situação de alteração não substancial dos factos, quer na da alteração substancial dos factos o arguido tem o “direito a ser ouvido”, no sentido de lhe dever ser dada oportunidade efetiva de discutir e tomar posição sobre as decisões relativas a essas questões.

18.       Acresce que tais factos assumiam relevo próprio na valoração global do comportamento do arguido. Quer o (primeiro) facto (novo) de que desde um daqueles fins-de-semana de 2010 (quando o arguido não introduzia o seu pénis erecto na vagina da menor) então o arguido solicitava à menor que introduzisse o seu pénis na boca e o chupasse, até ejacular, bem como o (segundo) facto de o arguido umas vezes usaria preservativo e outras vezes não, alteram a imagem global do facto e permitem ajuizar a intensidade do juízo de censurabilidade da conduta, com reflexos específicos na avaliação da personalidade do arguido e nas consequências jurídicas do crime.

19.       O Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 674/99, adotou como critério orientador a necessidade de garantir a defesa eficaz do arguido para concluir que são relevantes os novos factos que se reportem a um distinto modo de comissão ou execução do crime, bem como à intenção de praticar esses factos e de atingir o resultado penalmente ilícito (com eventuais consequências a nível da graduação da pena).

20.       Tal Tribunal julgou inconstitucionais, as normas contidas nos artigos 358º e 359º do CPP, quando interpretados no sentido de se não entender como alteração dos factos a consideração, na sentença condenatória, de factos atinentes ao modo de execução do crime que, embora constantes ou decorrentes dos meios de prova juntos aos autos, para os quais a acusação e a pronúncia expressamente remetiam, no entanto aí se não encontravam especificadamente enunciados, descritos ou discriminados.

21.       Verificou-se nos presentes autos uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, sendo manifesto o interesse do arguido em se defender destas concretas imputações, em invocar as suas razões de facto e de direito e eventualmente em oferecer provas, sem que tenha havido a comunicação nos termos do artigo 358.º, n.º 1, do Código do Processo Penal, o que não pode deixar de ser considerado como uma decisão que contraria o princípio do acusatório e põe em causa as garantias de um processo leal e equitativo, implicando nulidade do Acórdão, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 379.º do Código do Processo Penal.

22.       Notificado da motivação do recurso que foi interposto pelo arguido para o Tribunal da Relação, o Ministério Público junto do Tribunal da ... (resposta subscrita pelo Procurador da República Dr. ...) apresentou doutas contra-alegações, de forma fundamentada, nas quais refere:

“(…) quanto à matéria de facto que consta do ponto 20 da acusação e aquela que foi dada como provada sob o número 19 da matéria de facto dada como provada efectivamente temos que admitir a existência de divergências e apurar as consequências daí resultantes.

(…) O reenvio dos autos à primeira instância é um mero formalismo legal, não há dúvida, mas sinceramente não vislumbramos maneira de ultrapassar ou colmatar a violação referida, razão pela qual, quanto a esta matéria assiste razão ao ora Recorrente.

(…) Nestes termos e nos de mais de direito, não há violação dos artigos 30 e 71º do C. Penal, mas sim do disposto no artigo 358º n.º 1 do CPP, com referência ao disposto no artigo 379º, n.º 1 alínea b) do citado diploma legal, razão pela qual entendemos que os autos devem baixar à primeira instância, a fim de se dar cumprimento ao estatuído no primeiro preceito legal (prazo para defesa), caso assim não se entenda, deve ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se o douto acórdão nos seus precisos termos, assim se fazendo justiça”.

23.       Na instância de recurso junto do Tribunal da Relação de Lisboa, o Ministério Público emitiu parecer (subscrito pela Procuradora-Geral Adjunta Dra. ...), no qual refere

“(…) O magistrado do M.P. junto da 1ª Instância entende que apenas assiste razão ao recorrente quanto ao ponto 19 da matéria de facto provada e já não quanto aos restantes. A meu ver e acompanhando tal posição pelos argumentos ali expostos,

(…) Assim, acompanhando a posição do magistrado do M.P. na 1ª Instância, na fundamentação da “Resposta” ao recurso, emite-se parecer no sentido da procedência parcial do recurso”.

24.       Contudo, o Venerando Tribunal da Relação veio a considerar, quanto a este aspeto, que

“comparando a factualidade descrita na acusação com aquela que vem descrita na decisão recorrida, constata-se, no essencial, o aditamento da circunstância do arguido utilizar no coito vaginal, umas vezes preservativo e outras não, sendo a acusação omissa a respeito dessa utilização”.

“Contrariamente à tese do recorrente, tal não integra uma alteração da factualidade sujeita a contraditório, nos termos do disposto no artigo 358º, 1, do Código de Processo Penal, na medida em que, factualmente, a única diferença reside na utilização, por vezes de preservativo – sendo a utilização de preservativo omitida na acusação, parte-se do principio que não terá sido utilizado preservativo, ou, dito de outro modo, a utilização de preservativo não fazia parte do elenco factual indiciado-. A concretização desta circunstância é manifestamente irrelevante para a verificação da factualidade típica ou da ocorrência de circunstâncias agravantes – na medida em que é suceptível de integrar um fator atenuante da pena, de carácter geral.

Por conseguinte, não existe uma alteração dos factos que deva ser comunicada ao arguido nos termos e para os efeitos previstos no artigo 358º, n.º 1, do Código de Processo Penal”.

25.       o Recorrente não se conforma com tal entendimento.

26.       Por um lado, e primeiro lugar, o Venerando Tribunal da Relação não considerou o (outro) facto acrescentado no ponto 19 da matéria de facto dada como provada (que desde um daqueles fins-de-semana de 2010, quando o arguido não introduzia o seu pénis erecto na vagina da menor, então o arguido solicitava à menor que introduzisse o seu pénis na boca e o chupasse, até ejacular.

27.       O Venerando Tribunal da Relação coteja o ponto 19 da matéria de facto dada como provada com os pontos 20, 17 e 9 da acusação; sucede que os pontos 9 e 17 da acusação não dizem respeito às mesmas circunstâncias do ponto 20 da acusação e ponto 19 da matéria de facto provada, mas sim aos comportamentos que ocorreriam em momento anterior aos pontos 18 e seguintes da acusação (isto é, antes da consumação da penetração vaginal).

28.       Em segundo lugar, não se pode concordar com a ideia de que sendo a utilização de preservativo omitida na acusação, parte-se do princípio que não terá sido utilizado preservativo. Isto é, não se pode aceitar a interpretação de que perante uma omissão da acusação existe uma presunção de não utilização de preservativo…

29.       Tal corresponderia a uma “presunção” de um fator agravante da pena, de caráter geral (a não utilização de preservativo).

30.       Perante uma omissão da acusação quanto a essa circunstância de modo de execução dos factos existirá no máximo um desconhecimento quanto ao referido modo de execução (uma espécie de neutralidade quanto a esta factualidade), ou, havendo uma presunção teria que ser sempre a contrária: isto é, a favor do arguido, no sentido da factualidade atenuante da pena, i.e, partir-se-ia do princípio de que terá sido utilizado preservativo.

31.       Não se pode concordar com a interpretação de que em caso de omissão na acusação de certos factos relativos ao modo de execução da conduta se deva partir do princípio de que ocorriam circunstâncias agravantes.

32.       O acórdão do Tribunal da ... não se limita a concretizar a atenuante de que algumas vezes fora utilizado preservativo (e que noutras vezes desconhece-se se fora utilizado preservativo ou não), mas também afirma como demonstrado/provado a novidade agravante de que algumas vezes não teria sido mesmo utilizado preservativo, o que era omisso na acusação.

33.       Não é verdade que “factualmente, a única diferença reside na utilização, por vezes de preservativo” - Factualmente, também existe a diferença de que, de forma provada, não houve utilização, por vezes, de preservativo.

34.       A concretização desta circunstância (de que algumas vezes não teria sido mesmo utilizado preservativo) é relevante para a verificação da factualidade típica ou da ocorrência de circunstâncias agravantes.

35.       E não se pode aceitar a ideia de que tal facto (a não utilização de preservativo em determinadas ocasiões, de forma comprovada) não é uma novidade face à acusação uma vez que tal já se presumia da omissão na acusação….

36.       Pelo contrário, é uma novidade face à acusação, pelo que se verificou nos presentes autos uma alteração não substancial dos factos descritos no articulado acusatório, sendo manifesto o interesse do arguido em se defender destas concretas imputações, em invocar as suas razões de facto e de direito e eventualmente em oferecer provas, devendo ter havido comunicação nos termos do artigo 358.º, n.º 1, do Código do Processo Penal.

37.       Tal como preconizado nas contra-alegações do Ministério Público junto do Tribunal de..., acompanhado nesse aspeto pelo parecer do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa, havendo violação do disposto no artigo 358º n.º 1 do CPP, com referência ao disposto no artigo 379º, n.º 1 alínea b) do citado diploma legal (…), os autos devem baixar à primeira instância, a fim de se dar cumprimento ao estatuído no primeiro preceito legal (prazo para defesa”.

38.       A terceira situação invocada pelo requerente refere que o Tribunal da Comarca de ... deu como provado “o arguido sabia qual a idade da menor, em cada momento da sua actuação; e com a mesma quis manter coito oral e cópula, nos termos sobreditos, sabendo que a sua conduta era apta a conseguir tal desiderato; actuou da forma descrita, a coberto de uma resolução que formou na casa descrita em 2) e depois, de uma segunda resolução que formou já na casa descrita em 10) (…)” ((cfr. factos provados sob o nºs 24).

39.       Tal matéria (“actuou da forma descrita, a coberto de uma resolução que formou na casa descrita em 2) e depois, de uma segunda resolução que formou já na casa descrita em 10)”) não constava da acusação.

40.       Não se trata de situação tão manifesta quanto a supra referida quanto ao ponto 19 da matéria de facto dada como provada; contudo, a verdade é que, por cautela de patrocínio, sempre se dirá que também existia interesse do arguido em se defender destas concretas imputações, em invocar as suas razões de facto e de direito e eventualmente em oferecer provas; contudo foi dada como assente sem que se tenha  procedido à prévia comunicação prevista no art. 358º nº 1 do Código de Processo Penal, pelo que também aqui o acórdão seria nulo ao abrigo do disposto no artigo 379°, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal; sucede que o Venerando Tribunal da Relação também não o considerou.

Sem prescindir,

41.       A norma do artigo 358º n.º 1 do Código de Processo Penal na interpretação efetuada pelo Tribunal da Relação seria materialmente inconstitucional [artigos 1º, 2º e 32º da CRP], contrariando o princípio do acusatório e pondo em causa as garantias de um processo leal e equitativo.

42.       É materialmente inconstitucional - por violar as garantias de processo criminal consagradas no artigo 32º da CRP, e até os próprios princípios do Estado de direito democrático e da dignidade da pessoa humana que decorrem dos artigos 1º e 2º da CRP - a norma do artigo 358º n.º 1 do Código de Processo Penal quando interpretada no sentido de que não integra uma alteração da factualidade sujeita a contraditório, nos termos do disposto no artigo 358º, 1, do Código de Processo Penal quando comparando a factualidade descrita na acusação com aquela que vem descrita na sentença, constata-se o aditamento da circunstância do arguido utilizar no coito vaginal, umas vezes preservativo e outras não, sendo a acusação omissa a respeito dessa utilização, na medida em que, factualmente, a única diferença reside na utilização, por vezes de preservativo, uma vez que sendo a utilização de preservativo omitida na acusação, parte-se do principio que não terá sido utilizado preservativo.

43.       É inconstitucional o referido normativo quando interpretado no sentido de excluir do seu âmbito de aplicação o aditamento na sentença da circunstância do arguido utilizar no coito vaginal, umas vezes preservativo e outras não, sendo a acusação omissa a respeito dessa utilização, com o fundamento de que, factualmente, a única diferença reside na utilização, por vezes de preservativo, uma vez que “sendo a utilização de preservativo omitida na acusação, parte-se do principio que não terá sido utilizado preservativo”- Inconstitucionalidade que desde já se invoca para todos os legais efeitos.

44.       Tal interpretação normativa seria admitir que perante uma omissão da acusação existe uma “presunção” de não utilização de preservativo… o que corresponderia a uma “presunção” de um fator agravante da pena, de caráter geral (a não utilização de preservativo).

45.       Tal interpretação do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa viola as garantias de processo criminal consagradas no artigo 32º da CRP, contrariando o princípio do acusatório e pondo em causa as garantias de um processo leal e equitativo.

46.       Tal interpretação viola o princípio de que “o processo criminal assegura todas as garantias de defesa” (artigo 32º, n.º 1 CRP), ao não permitir que o arguido se defenda de tal factualidade em concreto.

47.       Viola o princípio de que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação” (artigo 32º, n.º 2 da CRP) na medida em que “presume” determinadas circunstâncias agravantes, o que é constitucionalmente inadmissível.

48.       Viola o princípio de que “o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório” (artigo 32º, n.º 5 da CRP).

Sem prescindir, e por dever de patrocínio,

49.       Quanto ao NÚMERO DE CRIMES, Conforme doutamente referido pelo Acórdão do Tribunal de ..., o Ac. do STJ de 22/01/2013 (relatado pelo Sr. Juíz Conselheiro Dr. Santos Cabral, in www.dgsi.pt): “em alguns casos a situação de abuso sexual de criança tem sido enquadrada na figura do crime único de trato sucessivo, entendendo-se haver lugar a uma unificação das condutas ilícitas sucessivas, desde que essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, quando existe uma mesma só resolução criminosa desde o início assumida pelo agente”.

50.       Configura o trato sucessivo a existência de um único dolo a abranger todas as condutas sucessivamente praticadas e essa unidade de resolução, a par da homogeneidade das condutas e da sua proximidade temporal.

51.       Quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva atividade prolongada no tempo, torna-se difícil e quase arbitrária qualquer contagem.

52.       A “doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há um só crime”.

53.       No caso em análise - e sem prescindir do acima alegado - haveria sempre que considerar a existência de uma homogeneidade criminosa, mediante a repetição de condutas essencialmente homogéneas e unificadas por uma mesma resolução criminosa.

54.       No caso em apreço, e mesmo considerando a materialidade que vem dada como provada, permitiria a redução do processo volitivo do arguido a uma linha uniforme sem qualquer fratura temporal, o que consubstanciaria sempre um ato prolongado, protelado, ou de trato sucessivo.

55.       Pese embora a alteração de residência do arguido, em todos os momentos o arguido teria atuado sempre a coberto de uma mesma unidade resolutiva, que abrangeria sempre a mesma ofendida, atuando de forma essencialmente homogénea, sem qualquer rutura ou fratura temporal, numa circunstância espacial contínua (que apenas seria adaptada pela mera alteração da sua residência), e com curtos lapsos em cada uma das atuações.

56.       Não resultou provado que tivesse chegado a haver qualquer interrupção no relacionamento entre arguido e menor (que consubstanciasse processo volitivo autónomo), mas antes uma permanente continuidade, apenas uma alteração de espaço e frequência em Setembro de 2009.

57.       O arguido nunca poderia ser condenado por dois crimes de abuso sexual de crianças, mas por apenas um crime.

58.       Sem prescindir, o arguido não se conforma com a MEDIDA CONCRETA DA PENA que lhe foi aplicada, mesmo na hipótese da consideração da prática de dois crimes autónomos.

59.       O arguido tem 61 anos de idade, está inserido pessoal, social e profissionalmente, participando em actividades de colectividades locais, goza de uma imagem pública positiva, não regista condenações pela prática de crimes.

60.       O arguido terminou os estudos no antigo 7º ano (equivalente ao atual 11º ano de escolaridade), vindo desde então a dedicar-se em exclusivo ao trabalho como jornalista, em jornais e na rádio.

61.       Criou o primeiro movimento de jovens da Freguesia de ....

62.       Profissional dedicado e reconhecido como competente, trabalha no Rádio Clube de ... onde aufere 500,00 € mensais, e colabora quinzenalmente com o jornal local Associação Agrícola, recebendo a contrapartida mensal de 200,00 €.

63.       Paga a renda mensal de 250,00 €, por conta da casa onde habita.

64.       É Presidente da Assembleia geral do Centro Social de ..., colaborando com regularidade nas suas actividades.

65.       Indicia uma conduta social pública como tendencialmente adequada, sem registo de problemáticas aditivas ou criminais.

66.       Tais razões fundamentam a fixação de penas inferiores às determinadas pelo Tribunal a quo para cada um dos dois crimes que foram pelo Tribunal considerados.

67.       Não se justificando a aplicação de penas parcelares tão distantes do limite mínimo e tão aproximadas do limite máximo para cada um dos crimes considerados (penas de 6 anos de prisão e 7 anos de prisão, respetivamente).

68.       Sem prescindir, também a pena única de concurso determinada pela operação de cúmulo jurídico revela-se, no entender do recorrente, manifestamente exagerada, até porque nesse caso o alegado segundo crime seria sempre um mero prolongamento do primeiro, praticados de forma homogénea, projetando uma imagem única dos factos, pelo que uma pena de 9 anos de prisão revelar-se-ia muito exagerada às exigências de prevenção e ilicitude da conduta, e até desproporcional face a casos semelhantes, quando o arguido, em qualquer caso, sempre teria 61 anos de idade, sendo primário, porquanto estaríamos perante a sua primeira condenação, encontrando-se inserido pessoal, social e profissionalmente, participando em atividades de coletividades locais, e gozando de uma imagem pública positiva, o que são fatores de prognose positiva, pelo que, sem prescindir do acima referido, mas por mero dever de patrocínio, mesmo na hipótese de atendendo às penas parcelares fixadas, nada justificaria uma pena única superior a sete anos de prisão.

Termina considerando que, julgando-se como se julgou, violou-se o disposto nos artigos 358º nº 1, 379°, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal e artigos 30º e 71º e ss. do Código Penal, e º1, 2º e 32º da Constituição da República Portuguesa

Respondeu o Ministério Publico considerando que:

            1- O recurso deve ser rejeitado) no que respeita à apreciação da matéria de facto que deve considerar-se definitivamente fixada.

            2- Caso assim se não entenda) e pelos fundamentos invocados no acórdão recorrido, não ocorreu qualquer alteração dos factos, substancial ou não substancial, que tivesse de ser comunicada ao arguido, não se mostrando violado quer o princípio do contraditório) quer as garantias de defesa do arguido, constitucionalmente consagradas.

            3- O enquadramento jurídico dos factos efectuada pelo tribunal de 1ª instância e confirmado por este Tribunal da Relação) não viola o disposto no art. 30º do C. Penal.

            4- A pena aplicada, reduzida que foi pelo acórdão sob recurso, deve ser mantida, por justa e adequada em função da culpa e das necessidades de prevenção geral e especial.

            Conclui que deve negar-se provimento ao recurso e confirmar-se na íntegra o acórdão recorrido.

Neste Supremo Tribunal de Justiça pela Exª Srª Procuradora Geral Adjunta foi emitido parecer no sentido da improcedência do recurso.

                                    Os autos tiveram os vistos legais.

                                                             *

                                                  Cumpre decidir

Em sede de decisão de primeira instância recorrida encontra-se provada a seguinte factualidade:

1.         BB nasceu a ... e é filha de... e de....

2.         De Setembro de 2006 até ao final do mês de Agosto de 2009, inclusive, o arguido viveu maritalmente com a mãe de BB, na ....

3.         BB tratava o arguido por ''papá'' e o arguido tratava BB por "baby" ou por "filha".

4.         Nesse contexto e durante o período que se situa entre data não concretamente apurada do final do primeiro trimestre de 2007 e Agosto de 2009, inclusive, em dias não concretamente apurados, mas que ocorriam em regra cerca de cinco noites por semana, aproveitando a circunstâncias da progenitora e dos irmãos de BB se encontrarem a dormir, o arguido, motivado pela vontade de manter contactos sexuais com BB, entrava no quarto desta, acordava-a e. por vezes, ali, permanecia com ela, outras vezes, leva-a para o sofá da sala de estar, situado no piso inferior da casa, onde ficavam os dois.

5.         Uma vez aí, no quarto ou na sala, com a regularidade referida, o arguido, após despir a menor, já com o seu pénis erecto, pressionava-o na zona vaginal, ao nível da vulva, procurando conseguir a penetração, o que causava dores à menor.

6.         Porque BB se queixava que tal actuação lhe causava dores, o arguido desistia de a penetrar na vagina e dirigindo-se a BB solicitava que a mesma introduzisse o pénis na sua boca e o chupasse.

7.         Assim, o arguido colocava o seu pénis erecto na boca de BB, para que esta o chupasse, o que esta fazia, até aquele ejacular.

8.         Em tais ocasiões, por vezes, o arguido também colocava a sua cara entre as coxas de BB, junto à vagina.

9.         Após a prática de cada um daqueles factos, o arguido dizia à menor que não contasse nada a ninguém.

10.       Em Setembro de 2009, o arguido e ... terminaram o seu relacionamento, tendo o arguido passado a residir no ....

11.       Não obstante a separação e mercê do bom relacionamento que mantinham entre si, do mês de Setembro de 2009, inclusive, até ao 2 de Março de 2012. inclusive, a solicitação do arguido, ... deixou que BB e os seus dois irmãos, ... e ..., pernoitassem em casa do arguido.

12.       O arguido ofereceu-se para tomar conta das crianças nesses períodos.

13.       Por vezes, as crianças passavam com o arguido o fim-de-semana, de sexta- feira até Domingo; outras vezes, passavam com o arguido de sexta-feira para sábado ou a de sábado para Domingo, sempre ali pernoitando.

14.       No último ano, tendo por referência o dia 2 de Março de 2012 para trás, e por razões que se prenderam com o trabalho de ..., as crianças ficavam com o arguido de sexta-feira até Domingo.

15.       Assim, nas noites em que BB pernoitava em casa do arguido, naquele período temporal, o arguido jantava com BB e seus irmãos e, depois, deitava ... e ... no seu quarto, enquanto preparava o sofá da sala para nele se deitar com BB.

16.       Após se certificar que os irmãos de BB se encontravam a dormir, o arguido deitava-se com a menor no referido sofá cama da sala e, aí, actuava de forma semelhante à descrita em 5) a 9), em idênticas circunstancias de modo.

17.       Em data que não foi possível determinar em concreto, num daqueles fins-de- semana de 2010, pouco tempo após o seu aniversário, depois de BB se encontrar despida, o arguido introduziu o seu pénis erecto na sua vagina, efectuando movimentos típicos de cópula, de vai e vem, acabando por ejacular, sem usar qualquer preservativo.

18.       Com a sua conduta, o arguido provocou dores e sangramento da vagina da menor, deflorando-a sexualmente.

19.       Assim, pelo menos desde essa altura e até finais de Fevereiro de 2012, em quase todas as noites que a BB pernoitava em casa do arguido, este actuava da forma descrita, introduzindo o seu pénis erecto na vagina de BB, uma vezes usando preservativo e outras vezes não, quando não o fazia, solicitava à menor que introduzisse o seu pénis na boca e o chupasse, até ejacular.

20.       Sempre que actuava da forma descrita, e nos períodos temporais referidos, o arguido dizia a BB para não contar a ninguém sobre os actos que praticavam, dizendo-lhe, nomeadamente, que era segredo; que se contasse a alguém podia ir preso ou que nunca mais o via.

21.       O comportamento do arguido só cessou após o dia 2 de Março de 2012, altura em que BB contou o sucedido a sua mãe.

22.       A menor passava cerca de 30 dias dos meses de férias do Verão em casa da sua avó e/ou da sua tia.

23.       Por vezes, a menor passava parte das férias de Natal e da Páscoa em casa da sua avó e/ou tia.

24.       O arguido sabia qual a idade da menor, em cada momento da sua actuação; e com a mesma quis manter coito oral e cópula, nos termos sobreditos, sabendo que a sua conduta era apta a conseguir tal desiderato: actuou da forma descrita, a coberto de uma resolução que formou na casa descrita em 2) e, depois, de uma segunda resolução que formou já na casa descrita em 10), aproveitando-se do ascendente que tinha sobre a menor, que o via como um pai, bem como da confiança que lhe era votada pela sua mãe, levando a menor a, consigo, manter relação de coito oral e de cópula; agiu determinado a satisfazer os seus instintos libidinosos, contra a vontade da menor, sabedor que a sua actuação atentava contra a liberdade de autodeterminação sexual de BB, perturbando e prejudicando de forma séria o desenvolvimento da sua personalidade, ao nível psicológico e afectivo.

25.       O arguido tinha consciência de que a sua conduta era proibida e punida por lei.

26.       O processo de desenvolvimento do arguido decorreu no seio de uma família de modesta condição socioeconómica, com regras e papeis bem definidos entre a fratria, de sete elementos, e os progenitores.

27.       O arguido terminou os estudos no antigo 7º ano (equivalente ao actual 11º ano de escolaridade), vindo desde então a dedicar-se em exclusivo ao trabalho como jornalista, em jornais e na rádio. 

28.       Criou o primeiro movimento de jovens da freguesia de ....

29.       Casou em 1974, aos 22 anos de idade, vindo o casal a emigrar para os .... em 1978, onde se encontravam a viver os sogros do arguido.

30.       Regressou à ... em 1988, após o divórcio, mantendo-se a restante família, nomeadamente, os três filhos do arguido, no país de emigração.

31.       Após o divórcio estabeleceu várias relações afectivo sexual, poucas com vivência em comum, sendo referenciado em alguns contextos sociais como indivíduo "mulherengo", que se gabava das suas conquistas sexuais, não indiciando um perfil sexual muito convencional (ainda que não associado a crianças).

32.       Em 2006. com 54 anos de idade, passou a viver maritalmente co L... B....

33.       Profissional dedicado e reconhecido como competente, trabalha no Rádio Clube de ... onde aufere 500,00 € mensais, e colabora quinzenalmente com o jornal local Associação Agrícola, recebendo a contrapartida mensal de 200,00 €.

34.       Paga a renda mensal de 250,00 €, por conta da casa onde habita.

35.       É presidente da assembleia geral do Centro Social de ..., colaborando com regularidade nas suas actividades.

36.       Indicia insatisfação com as suas actuais circunstâncias de vida, verbalizando sentimentos depressivos, isolamento social e mesmo ideação suicida.

37.       Indicia uma conduta social pública como tendencialmente adequada, sem registo de problemáticas aditivas ou criminais.

38.       Apresente sentimento de injustiça face à presente acusação, com a qual não se sente minimamente comprometido, mantendo uma postura de total descompromisso para com os factos em análise, que avalia de forma autocentrada com ausência de sentido de autocrítica.

39.       Descrevendo-se como a principal vítima no presente processo, não revela particular empatia com a vítima.

40.       Não regista condenações pela prática de crimes.

Factos Não Provados

Realizada a audiência de julgamento, não se provaram os seguintes factos:

41.       Os factos descritos tiveram início em Setembro de 2006, prolongando-se desde essa data. Nas circunstâncias referidas em 8), o arguido lambia-lhe repetidamente a vagina, enquanto a menor o procurava, sem êxito, afastar.

42.       Os factos supra-descritos em 5) a 9) ocorreram 720 vezes, entre Setembro de 2006 e Agosto de 2009.

43.       O arguido lubrificava o seu pénis com "óleo para bébé", qua guardava na sua casa de banho e pressionava o seu pénis na região péri-anal da menor, simulando o coito anal, mas sem penetrar e sem deixar lesões, pois a menor queixava-se de intensas dores.

44.       Os factos supra-descritos em 16) a 20) ocorreram 240 vezes, entre Setembro de 2009 e Fevereiro de 2012.

Esta matéria de facto foi alterada pelo Tribunal da Relação nos termos constantes de fls 44 e nomeadamente no que toca aos pontos 6 e 7 da matéria de facto.

                                               Os autos tiveram os vistos legais.

                                                                       *

                                                           Cumpre decidir.

I

Admissibilidade de recurso

Na génese da questão encontra-se a peculiaridade da situação em que estão em causa, em sede de recurso, as penas parcelares aplicadas, bem como a pena conjunta que das mesmas resulta.

            Como bem se refere na decisão deste Supremo Tribunal de Justiça de 19-11-2009  é o artº 432º do CPP que define a recorribilidade das decisões penais para o Supremo Tribunal de Justiça. De forma directa, nas alíneas a), c) e d), do seu nº 1; de modo indirecto, na alínea b) do mesmo número, através da referência às decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do nº 1 do artº 400º.

Estando aqui em causa um recurso interposto de um acórdão de um tribunal da relação proferido em recurso, perante um recurso em segundo grau, portanto, a norma a ter em conta é a daquela alínea b) – “Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça … b) das decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pela relações, em recurso, nos termos do artº 400º”.

No caso concreto o Tribunal da Relação de Lisboa alterou, diminuindo para seis anos e sete anos a pena pela prática de cada um dos crimes  de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171°, 1 e 2, do Código Penal, pelos quais foi condenado.

Como assim, a hipótese vertente convoca a alínea b) do nº 1 do artº 432º que nos remete para a alínea f) do nº 1 do artº 400º. A Lei nº 48/07 alterou substantivamente esta disposição legal: se antes, era a pena aplicável o pressuposto (um dos pressupostos) da (ir)recorribilidade dos acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, agora esse pressuposto passou a ser o da pena concretamente aplicada.

No caso de concurso de crimes pena aplicada é tanto a pena parcelar cominada para cada um dos crimes, como é a pena conjunta. Assim, nesta hipótese só são recorríveis as decisões das relações que, incidindo sobre cada um dos crimes e correspondentes penas parcelares, ou sobre a pena conjunta, apliquem e confirmem pena de prisão superior a 8 anos.

O Tribunal da Relação de Lisboa  diminuiu as penas aplicadas, situando-as abaixo daquele patamar. Significa o exposto que somos reconduzidos á questão da denominada “reformatio in mellius” Tal tema, suscitado a propósito da admissibilidade de recurso-artigo 400 nº1 alínea f) do CPP-, tem sido objecto de um tratamento maioritário por parte da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça afirmando a existência de uma confirmação parcial em situações similares, pelo menos até ao patamar em que se situa a sua convergência. A denominada confirmação in mellius viu-se sustentada pelos Acórdãos deste STJ de 16.01.2003 (CJ Acs. STJ, XXVIII, 1, 162 e de 11.03.2004, in CJ Acs. STJ, XII, 1, 224). e no Ac. do Tribunal Constitucional nº 20/2007

Deverá considerar-se existente tal confirmação, para efeito do normativo em causa, quando a decisão do tribunal superior vai ao encontro do pedido formulado e, por essa forma, sempre se pode afirmar que a decisão de recurso confirma a consistência que assiste á decisão recorrida e que a pena aplicada constitui um marco a considerar em termos de recorribilidade. Tal confirmação sucede até ao ponto em que as duas decisões-recorrida e de recurso-convergem.

                   Nesta conformidade, e face aos normativos citados, são irrecorríveis as penas parcelares aplicadas ao recorrente. Sendo irrecorríveis as penas é evidente que a materialidade fáctica que lhes está subjacente não mais é susceptível de ser colocada em causa pelo que carece de fundamentação legal qualquer impugnação da mesma.

Por igual forma a invocação de nulidade da sentença em relação à alteração de factos fundamentadores de responsabilidade criminal por crimes a que correspondem as penas parcelares não é admissível pois que o recurso relativo a estas penas não é conhecido.

II

Coloca o recorrente a questão da existência duma unidade resolutiva e consequentemente dum  único crime uma vez que o “arguido teria atuado sempre a coberto de uma mesma unidade resolutiva, que abrangeria sempre a mesma ofendida, atuando de forma essencialmente homogénea, sem qualquer rutura ou fratura temporal, numa circunstância espacial contínua (que apenas seria adaptada pela mera alteração da sua residência), e com curtos lapsos em cada uma das atuações”.

Tal questão o suscitada pelo recorrente centra-se com um dos temas nucleares da dogmática do direito penal ou seja o critério distintivo ente a unidade e a pluralidade de infracções. Represtinando posição que já adoptamos em Acórdão de 12/7/2012 (Processo 1718/02)  chamamos á colação o que a propósito escreveu Eduardo Correia referindo que, de acordo com uma concepção normativista do conceito geral de crime,- a unidade ou pluralidade de crimes é revelada pelo "o número de valorações que, no mundo jurídico-criminal, correspondem a uma certa actividade. ( ... ). Pluralidade de crimes significa, assim, pluralidade de valo­res jurídicos negados. ( ... ) Pelo que, deste modo, chegamos à primeira determinação essencial de solução do nosso problema: se a actividade do agente preenche diversos tipos legais de crime, necessariamente se negam diversos valores jurídico-criminais e estamos, por conseguinte, perante uma pluralidade de infracções; pelo contrário, se só um tipo legal é realizado, a actividade do agente só nega um valor jurídico-criminal e estamos, portanto, perante uma única infracção" .

No cerne do critério enunciado, e que constitui a trave mestra de toda a elaboração doutrinal que, a propósito, se escreveu no nosso país, estão princípios nucleares do direito penal uma vez que, seguindo a argumentação do mesmo Mestre[1] , mais do que em nenhum outro campo da vida jurídica, se impõe no direito criminal o princípio da segurança do direito e a necessidade de assinalar um fundamento sólido à actividade jurisprudencial pois que a valoração jurídico-criminal não pode ser deixada ao arbítrio do juiz, mas deve ser formulada de maneira, tanto quanto possível, precisa.

Para dar realidade a este pensamento, adianta Eduardo Correia, possui a técnica legislativa um recurso, que consiste precisamente no «tipo legal de crime». Nele descreve o legislador aquelas expressões da vida humana que, em seu critério, encarnam a negação dos valores jurídico criminais que violam os bens ou interesses jurídico-criminais. Neles vasa a lei como em moldes os seus juízos valorativos, neles formula de maneira típica a antijuricidade, a ilicitude criminal. Depois, uma vez formulados esses tipos legais de crimes, impõe-nos ao juiz como quadros, a que este deve sempre subsumir os acontecimentos da vida para lhes poder atribuir a dignidade jurídico-criminal.

O juiz não pode valorar á sua vontade as relações submetidas à sua apreciação, mas deve sempre, em cada caso, para que as possa considerar antijurídicas" verificar se elas são subsumíveis a um tipo legal de crime. O tipo legal é, pois, o portador, o interposto da valoração jurídico-criminal, ante o qual se acham colocados os tribunais e o intérprete.

Se todos os juízos de valor jurídico-criminais hão-de ser fornecidos, através de tipos legais de crimes, é, por outro lado, certo que cada tipo legal há-de ser informado por um específico valor jurídico-criminal. Consequentemente, se diversos tipos legais de crime são preenchidos, necessariamente se negam diversos valores jurídico-criminais, da mesma maneira que, se um só tipo é realizado, um só valor nega a actividade criminosa do agente

Assim, conclui Eduardo Correia, que a possibilidade de subsunção duma relação da vida a um ou vários tipos legais de delito é a chave para determinar a unidade ou pluralidade a unidade ou pluralidade de crimes.

Porém,

Para que exista uma infracção não basta que uma conduta seja tipicamente antijurídica: é preciso, também, que ela possa ser reprovada ao seu agente, isto é, que seja culposa. Assim, ao lado daquele Juízo que refere o comportamento humano a bens ou valores jurídico-criminais, outro juízo de valor se requer como pressuposto do crime, o qual se analisa na censura dum certo facto típico à pessoa do seu agente.

Por vezes o momento psicológico, correspondente à realização de uma série de acti­vidades subsumíveis a um mesmo tipo legal, estrutura-se de tal forma que esse concreto juízo de reprovação tenha de ser formu­lado várias vezes. Consequentemente, o todo formado por tais actividades, enquanto encarnam a violação do mesmo bem jurídico, fragmenta-se na medida em que algumas das suas partes são objecto de um juízo autónomo de censura, adquirindo, portanto, dessa maneira independência e individualidade.

Assim, a consideração da «culpa», elemento essencial ao conceito de crime, constitui um limite do critério segundo o qual se determinaria a unidade ou pluralidade de infracções pela unidade ou pluralidade de tipos realizados. Na verdade, a unidade de tipo legal preenchido não importará definitivamente a unidade das condutas corres­pondentes, na medida em que, sendo vários os juízos de censura que as ligam à personalidade do seu agente, outras tantas vezes esse mesmo tipo legal se torna aplicável, e deverá por conseguinte considerar-se existente uma pluralidade de crimes.

A questão subsistente será, então, a aferição da existência de vários juízos de censura incidindo sobre actividades unificadas do ponto de vista do valor jurídico que negam. A esta aspiração de concretização de critérios responde Eduardo Correia reafirmando o postulado de que o direito criminal pode ser encarado antes de tudo como um complexo de normas de valoração objectiva, ou seja, de normas do ponto de vista das quais se retira objectivamente a licitude ou ilicitude do comportamento humano.Com o olhar este aspecto do direito não se esgota, porém, a sua essência pois que, paralelamente, citando Mezger «em derivação desta, uma outra função não menos significativa é exigida pelo seu conceito: a de determinação».

Repristinando a força das palavras de Eduardo Correia “o direito penal não valora negativamente certas condutas apenas por valorar. Valora-as para, emprestando-lhes a força desta sua avaliação, alcançar no processo de motivação dos indivíduos um papel decisivo: valora-as para determinar. Quer dizer: o direito é também um conjunto de normas de determinação subjectiva (Bestimmungsnormen), isto é, um conjunto de imperativos dirigidos aos indivíduos que querem funcionar como motivos que obstem à formação de resoluções tendo por conteúdo a realização de actividades criminosas,- que querem, como diz GOLDSCHMIDT, «que os indivíduos orientem a sua conduta interior de tal forma que possam corresponder às exigências postas pelas normas jurídicas no respeitante à sua conduta exterior».

Ora é precisamente a violação concreta das normas nesta sua função de determinação, é precisamente a falta da sua eficácia querida, devida e, portanto, possível no domínio da representação e do processo de motivação do agente, que faz nascer aquele juízo de censura' em que se estrutura a culpa.

Necessariamente que tais juízos de reprovação têm de ser desdobrados, e repetidos, sempre que uma pluralidade de resoluções, e de resoluções no sentido de deter­minações de vontade, tiver iluminado o desenvolvimento da actividade do agente.

Com efeito, afirma o mesmo Mestre, a resolução neste sentido é o termo daquele especifico momento do processo volitivo em que o «eu» pondera o valor, ou desvalor, os prós e os contras dum projecto concebido. É o termo daquela específica fase da volição que, metafisicamente se costuma descrever como constituída por uma luta de motivos e contra motivos, em que o próprio «em intervém numa afirmação da sua personalidade. Deste modo, quando se trate de um projecto criminoso que entra em execução, é precisamente no momento em que o agente toma a resolução de o realizar que a ineficácia da norma, na sua função de determinação, se verifica. Se, pois, diversas resoluções foram tomadas para o desenvolvimento da actividade crimi­nosa, diversas vezes deixa a norma de alcançar concretamente a eficácia determinadora a que aspirava e vários serão os juízos de censura a formular ao agente.

O índice da unidade, ou pluralidade, de determinações volitivas apenas se pode consubstanciar na forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, olhando fundamentalmente à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente

A experiência, e as leis da psicologia, referem que, se entre diversos actos medeia um largo espaço de tempo, a resolução que porventura inicialmente os abrangia a todo se esgota no intervalo da execução, de tal sorte que os últimos não são a sua mera descarga, mas supõem um novo processo deliberativo. Daqui resulta que se deve considerar existente uma pluralidade de resoluções sempre que se não verifique, entre as actividades efectuadas pelo agente, uma conexão de tempo tal que, de harmonia com a experiência normal e as leis psicológicas conhecidas, se possa e deva aceitar que ele as executou a todas sem ter de renovar o respectivo processo de motivação.

Igualmente Jeschek aponta no sentido de que, em algumas situações, a simples realização do tipo não é suficiente para a determinação da distinção entre a unidade e pluralidade de infracções e deverá fazer-se apelo a critérios como o da unidade natural de acção.

Situação típica é a realização repetida do mesmo tipo legal de crime num curto espaço de tempo. O requisito para apreciar a unidade de acção nestes casos é a circunstância de que, com a repetição plural do tipo, a lesão do bem jurídico só experimenta uma progressão quantitativa e que o facto responda, além do mais, a uma situação motivacional unitária.

Uma pluralidade de factos externamente separáveis deve conformar uma acção unitária quando os diversos actos parciais, que respondem a uma única resolução volitiva, se encontram tão ligados no tempo e espaço que, para um observador não interveniente são percepcionados como uma unidade natural.

No mínimo, dir-se-ia que a autonomização tem como pressuposto um processo de renovação da vontade e não é incorrecto, á luz dos princípios, considerar uma renovação de propósito criminoso a sustentar uma renovação da formulação de um juízo de culpa.

A construção dogmática desenhada constitui o prius lógico do artigo 30 do actual Código Penal que é o critério á luz do qual se deverá examinar a pretensão do recorrente. Face á mesma não oferece qualquer dúvida a existência de uma renovação de decisão de violar a lei penal e os bens jurídicos que lhe estão subjacente.

A decisão recorrida, em determinação de matéria de facto que não é susceptível de ser alterada, considerou a existência de duas resoluções criminosas autónomas pois que considera que actuou da forma descrita, a coberto de uma resolução que formou na casa descrita em 2) e, depois, de uma segunda resolução que formou já na casa descrita em 10), aproveitando-se do ascendente que tinha sobre a menor, que o via como um pai, bem como da confiança que lhe era votada pela sua mãe, levando a menor a, consigo, manter relação de coito oral e de cópula.

A consideração da existência destas duas resoluções criminosas em sede matéria provada afasta qualquer consideração duma única resolução em termos de decisão. Alas, tal unidade resolutiva seria incompreensível face ao lapso de tempo e às circunstâncias em que decorreram os sucessivos crimes e que, em qualquer cidadão comum, provocariam sempre um novo processo resolutivo.

Se tal conclusão é formulada, de forma sustentada, á luz do ensinamento proposto por Eduardo Correia igualmente a mesma linearidade lógica oferece a apreciação nos limites propostos por Figueiredo Dias, apontando a necessidade de se prestar atenção ao facto de que “o tipo de ilícito, o verdadeiro portador da ilicitude material, é sempre formado pelo tipo objectivo e pelo tipo subjectivo de ilícito. A segunda observação que formula é a de que o tipo objectivo tem sempre como seus elementos constitutivos o autor, a con­duta e o bem jurídico, só da conjugação destes elementos - e também da sua ligação ao tipo subjectivo de ilícito - resultando o sentido jurídico ­social da ilicitude material do facto que o tipo abrange. Todos estes elementos parece deverem ser tidos em conta e valorados - e não apenas em si mesmos, mas ainda no sentido que da sua consideração global resulta - na determinação da unidade ou pluralidade de tipos violados.

Para o mesmo Autor o bem jurídico assume, na questão da tipicidade, um relevo primacial e insubstituível, devendo recorrer-se aos restantes elementos típicos numa perspectiva de consideração global do sentido social do comportamento que integra o tipo. Só assim, acrescenta, se podendo ter a esperança de aceder à compreensão do sentido jurídico-social do comportamento delituoso. O que se tem de contar são sentidos da vida jurídico-penalmente relevantes que vivem no comportamento global.

Nesta última perspectiva o "crime" por cuja unidade ou pluralidade se demanda é o facto punível e, por conseguinte, uma violação de bens jurídico-penais que integra um tipo legal ao caso efectivamente aplicável. A essência de uma tal violação não reside pois nem por um lado na mera "acção", nem por outro na norma ou no tipo legal que integra aquela acção: “reside no substrato de vida dotado de um sentido negativo de valor jurídico-penal, reside no ilícito típico: é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica existente no comportamento global do agente submetido á cognição do tribunal que decide, em definitivo, da unidade ou pluralidade de factos puníveis e, nesta acepção, de crimes”.[[2]

Tal posicionamento encontrou o apoio de alguns autores como Conceição Ferreira da Cunha (Questões actuais em torno de uma vexata questio: o crime continuado em estudos em Homenagem do Professor Figueiredo Dias pag 325 e se g) referindo que o critério, defendido por Figueiredo Dias, da "unidade ou pluralidade de sentidos sociais de ilicitude do comportamento global), parece-nos ter potencialidades para, perante as concretas situações da vida, distinguir com justeza o que deve considerar-se uno do que deve qualificar-se de múltiplo: "O que se tem de contar para determinação da unidade ou pluralidade de crimes não são por uma parte acções externas, como tal indiferentes ao sentido do comportamento; nem por outro lado tipos legais de crime como entidades abstractas, mesmo que concretamente aplicáveis ao caso. O que se tem de contar são sentidos da vida jurídico-penalmente relevantes que vivem no comportamento global").

Segundo esta concepção, vários factores deverão ser considerados, não assumindo cada um deles isoladamente relevância decisiva, mas sendo tomados no seu conjunto, e no âmbito das concretas circunstâncias do comportamento em causa, pois é esse conjunto, esse "comportamento global", que tem significado segundo um juízo de ilicitude material. Assim, os bens jurídicos afectados, a unidade ou pluralidade de resoluções, a distância ou proximidade espácio-temporal entre as acções, as conexões de sentido entre elas (por exemplo, a relação meio-fim), o modo como tais bens jurídicos, condutas e relações encontram tradução nos tipos legais de crime, a unidade ou pluralidade de vítimas, serão elementos a relevar.

Na verdade, para Figueiredo Dias só da conjugação dos elementos objectivos do tipo legal (autor, conduta e bem jurídico) e "também da sua ligação ao tipo subjectivo de ilícito" resultaria o "sentido jurídico-social da ilicitude material do facto que o tipo abrange"; assim, todos estes elementos deveriam ser valorados "e não apenas em si mesmos, mas ainda no sentido que da sua consideração global resulta" na determinação da "unidade ou pluralidade dos tipos violados

De salientar que este último elemento deverá ser considerado decisivo, pelo menos no âmbito dos crimes contra bens eminentemente pessoais.

Adianta João da Costa Andrade[3], na esteira de Figueiredo Dias, que a essência do critério da unidade ou pluralidade de infracções está na renúncia à concepção global do tipo e a consequente assunção do critério da unidade ou pluralidade dos bens jurídicos violados pela conduta do agente como critério operativo para distinção da unidade ou pluralidade de crimes.

           Estamos em crer que é incontestável a importância que o bem jurídico assume no que à tipicidade diz respeito. Contudo, tal relevo não justifica uma preclusão legítima dos restantes elementos típicos ou seja da consideração global do sentido social do comportamento que integra o tipo. Só pressupondo esta consideração se poderá, pois, aceder à compreensão do sentido jurídico-social do comportamento delituoso. [4]

Reconhecendo nós o importante contributo que foi transmitido por Figueiredo Dias continua, todavia, a seduzir a linearidade e segurança do pensamento jurídico de Eduardo Correia quando reconduz ao binómio da tipicidade/culpa a chave para decifrar a questão em apreço. De qualquer forma mesmo procurando definir o caso vertente em função dos sentidos da vida jurídico-penalmente relevantes que o mesmo apresenta é manifesto que, no mínimo, se impõe a constatação da existência de dois momentos com significado autónomo, sendo certo que a alternativa mais plausível, em termos abstractos, não seria não a existência dum único crime mas sim duma pluralidade, torna inadmissível a pretensão do recorrente.

II

A concretização da pena conjunta elaborada nos presentes autos necessariamente que tem assentar num juízo que revele o significado do comportamento ilícito global em termos da sua relevância para a ordem jurídica violada (conteúdo da ilicitude) quer a gravidade da reprovação que deve dirigir-se ao agente pelo conjunto das infracções praticadas (conteúdo da culpa).

            Não obstante, estes dois factores básicos para a individualização da pena não se desenvolvem paralelamente sem relação alguma. A culpa jurídico-penal afere-se, também, em função da ilicitude; na sua globalidade aquela encontra-se substancialmente determinada pelo conteúdo da ilicitude do crime a que se refere a culpa.

            A ilicitude e a culpa são, assim, conceitos graduáveis entendidos como elementos materiais do delito. Isto significa, entre outras coisas, que a intensidade dos danos infligidos, o número de vitimas, a forma de executar os factos imputados e a perturbação da paz jurídica contribuem para dar sentido ao grau de ilicitude global enquanto que o grau de indiferença pelos valores jurídicos tutelados pela norma e a perseverança na conduta contrária á lei constituem, a par com outros factores, como a desconsideração ou a situação de necessidade ou erro, elementos que devem ser tomados em conta para graduar a culpa.

            Por seu turno a dimensão da lesão jurídica mede-se desde logo pela magnitude e qualidade do dano causado, devendo atender-se, em sentido atenuativo ou agravativo, tanto as consequências materiais do crime como as psíquicas. A medida da violação jurídica depende, também, da forma de execução do crime. A vontade, ou o empenho empregues na prática do crime são, também, um aspecto subjectivo de execução do facto que contribui para a individualização.

 Naquela vertente de dano, ou consequência do acto praticado, e como afirma Lucia Barbero, o abuso sexual representa uma verdadeira catástrofe na vida de uma criança e produz uma devastação da estrutura psíquica que afeta seus distintos aspectos. É um tipo de violência diferente de outras. Implica uma vivência de solidão extrema e constitui uma situação limite para a sustentação do funcionamento psíquico, enquanto afeta o núcleo mais pessoal e básico de identidade: o corpo.[5]

….Falar dos efeitos do abuso, imediatos ou de longo prazo, é falar justamente da ameaça de um bloqueio danoso dos processos de subjetivação, da impossibilidade para a criança, sem auxílio dos outros, de simbolizar o traumatismo experimentado. A experiência persiste longamente em seus efeitos e impede que a vítima possa reencontrar-se como sujeito. Temos de reconhecer que é uma irrupção trágica e real na vida dessas crianças, e que não é fácil, por diversos fatores, que possam falar disso. Assim sendo, um dos grandes desafios para os profissionais da área, também comum a outros tipos de problema, é conseguir que esse traumatismo seja simbolizado.

Nenhuma vítima que tenha sido sujeita a abuso sexual infantil pode ultrapassar incólume psiquicamente tal situação ou considerá-la uma experiência, ou um incidente, de iguais características a outros ocorridos ao longo de sua vida. O traumatismo produzido no abuso de uma criança adquire um status singular que o diferencia de outros traumatismos de que podem padecer os seres humanos (luto, acidente etc.)

Como refere a autora citada, nos acidentes individuais ou nos traumatismos coletivos, activam-se mecanismos intersubjetivos de identificação e solidariedade, que darão, da forma mais rápida possível, junto ao socorro físico e material, a proteção e o respaldo anímico necessários ao processo de elaboração subjetiva. O caso de abuso, por sua vez, transcorre ao longo do tempo num contexto de solidão e vergonha, sem acompanhamento, sem testemunhas ou com testemunhas silenciosas temerosas de um envolvimento que as prejudique.

           Segundo Velázquez6, citado por Lucia Barbero, as pessoas traumatizadas por situações de abuso – em sentido amplo – apresentam três tipos de sentimento: 1) O sentimento de desamparo.; 2) A sensação de estar em perigo permanente. Essa sensação provém do sentimento de desvalimento e se vincula com a magnitude do perigo, seja real ou imaginário. Acaba sendo muito difícil integrar na própria vida um fato para o qual não se estava preparado e que supera a capacidade de tolerância devido a seu caráter inesperado e desconhecido.            Importa ainda salientar o significado da quebra de confiança e a desidealização das figuras das quais cabe esperar proteção. Os sentimentos de desamparo e de estar em perigo permanente são potenciados pelo facto de tal situação advir do comportamento daquele de quem se deveria esperar exactamente o oposto. 3) Sentir-se diferente dos outros. A lembrança, a reactualização do abuso padecido atua de modo traumático, e seus efeitos se fazem sentir por longo tempo e em diferentes aspectos da vida com os inerente fenómenos de humilhação, desprezo, perda de esperança e isolamento..

           Para que o abuso fique inscrito como um fato traumático deve apontar-se uma série de factores que vão desde as condições psicológicas em que se encontra o sujeito no momento do abuso, a possibilidade de integrar esses fatos a sua personalidade consciente, e o poder de pôr em funcionamento as defesas psíquicas que lhe permitam conviver com o trauma. Como conseqüências, tanto imediatas como tardias, do abuso sofrido, surgem a culpa, a ansiedade, a depressão, a vergonha e a baixa auto-estima que deriva da idéia de que o abuso foi merecido. Freqüentemente, os abusados são ativamente autodestrutivos, colocando-se em situações de risco ou apresentando atitudes suicidas concretas.

           A longo prazo, podem surgir quadros de anorexia, bulimia, personalidade anti-social, problemas de conduta, perturbações do sono, pesadelos, terrores noturnos e tendência às adicções.

Ainda fazendo apelo à mesma autora em síntese, poderíamos dizer que as conseqüências mais abrangentes são a baixa auto-estima e um sentido ou percepção de ego danificado. Isso leva a pessoa a se sentir isolada e marginalizada. Surgem dificuldades de estabelecer limites nas relações interpessoais e de controlar os afetos. Em outros casos, o abuso impregna toda a vida do sujeito, atuando quase como organizador e usurpador do lugar principal entre os diversos acontecimentos de sua vida.[6]

A constatação deste elenco de consequências dramáticas para a criança vítima de abuso sexual implica, ainda, a constatação, que se presume apodictica, de que a profundidade dos efeitos causados na estrutura psiquica da vítima está directamente condicionada pela forma que revestiram os actos praticados e a maior, ou menor, densidade quantiativa ou qualitativa com que foi violada a autodeterminação sexual da criança e o seu direito a um desenvolvimento fisico e psiquico harmonioso.Na verdade, a própria estrutura dos tripos legais reflecte a forma como legislador entendeu comportamentos que podem revestir uma policromia diversa, afectando tais valores de forma distinta.

Serve o exposto para referir que na apreciação da conduta global do arguido no caso vertente imprime a ideia do profundo desprezo que lhe mereceu a ligação afectiva que deveria ter com a vítima bem como o facto de a sua conduta marcar inelutavelmente o futuro da menor.Aquilo que ela virá a ser é também fruto da conduta do arguido que lhe retirou um dos bens mais preciosos numa criança ou seja a sua inocência.

            Por igual forma assume significado a perduração do comportamento ilicito em relação à menor , ou seja, a persistência do arguido, ao longo do tempo, na procura do contacto sexual.

           No que toca ao bom comportamento anterior é evidente que o mesmo deve ser valorado positivamente mas tal não invalida que a consideração social e o respeito da comunidade implicam  um corrspectivo dever de comportamento.Se essa consideração constituir uma camuflagem para comportamentos ilicitos então não há que lhe atribuir relevância.

Importa ainda afirmar que a possibilidade de negação do crime integra o catálogo dos direitos do arguido que não pode ser desfavorecido pelo seu uso.Porém, caso existisse uma assunção de responsabilidade  pelos factos pelos quais foi condenado é evidente que os mesmos deveriam ser valorados positivamente

            Importa, ainda, considerar que o arguido não tem antecedentes criminais

 

Considerando-se por tal forma entende-se que a pena conjunta a aplicar deve reflectir os factores de medida da pena que evidenciam a gravidade da ilicitude e da culpa global contida nos factos e suprarefridas. Entende-se, assim, que não há reparo a fazer à pena conjunta de nove anos de prisão aplicada pela decisão

Termos em que se julga improcedente o recurso interposto por AA, condenando-se o mesmo na pena conjunta de nove anos de prisão.

Custas pelo recorrente

Taxa de Justiça 5 UC


Santos Cabral (relator)
Maia Costa

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[1]  Teoria do Concurso em Direito Criminal pag 84 e seg
[2] [ [2] Figueiredo Dias Direito Penal I Volume 24,20 3 seg
[3]  Da Unidade e Pluralidade de Crimes pag 84 e seg
[4]  Para Figueiredo Dias é o tipo de ilícito o verdadeiro portador da ilicitude material e, como tal, a este deve reconhecer-se uma estrutura complexa, integrada, como pacificamente reconhecido, pelo tipo objectivo e pelo tipo subjectivo de ilícito. Aquele primeiro é constituído, para além do bem jurídico, por outro elementos, como a necessária consideração das questões pertinentes ao "autor" e "conduta", devendo todos estes elementos ser conjugados com os elementos integrantes do tipo subjectivo. Resultarão daqui duas consequências: por um lado, permite-se, porventura ainda, «manter a problemática essencial do concurso ( ... ) dentro da categoria do tipo de ilícito e tomar dispensável, ao menos em princípio, o apelo à categoria da culpa»; por outro lado, só da aludida conjugação resultará «o sentido jurídico-social do conteúdo de ilicitude material do facto que o tipo abrange» .
Uma vez mais, todos os referidos elementos - não só uma sua consideração "autónoma", mas a própria consideração conjunta da sua globalidade - importam na aferição da unidade ou pluralidade de tipos preenchidos
[5] Consequências do abuso sexual infantil  http://www2.uol.com.br/percurso/main/pcs36/36Fuks.htm.

[6] 3. R. B. Gartner, Betrayed as Boys, Psychodynamic Treatment of Sexually Abused Men, Nova York, The Guilford Press, 1999.

4. L. B. Fuks, “Abuso sexual de crianças na família. Reflexões psicanalíticas”, in Percurso, n. 20, p. 120-126, 1998.

5. Idem, p.122.

6. S. Velazquez, Violências cotidianas, violência de gênero. Buenos Aires, Paidós, 2003.

7. D. Gilmore, Hacerse Hombre. Concepciones Culturales de la Masculinidad. Barcelona/Buenos Aires/México: Paidós; 1994.

8. S. Bleichmar, “Traumatismo y simbolizaciones: los modos del sufrimiento infantil”, Seminarios: Clase dictada el 3 de abril de 2000, www.silviableichmar.com./framesilvia.htm.

9. S. Freud, “Projeto de uma psicologia científica” (1895), p. 323, vol. 1, in Obras Completas, Buenos Aires, Amorrortu, 2. ed., 1986.