Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
46/13.9TBGLG.E1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: CABRAL TAVARES
Descritores: REENVIO PREJUDICIAL
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA
DIREITO COMUNITÁRIO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
COMPENSAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
Data do Acordão: 11/27/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
Doutrina:
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª Edição, 2014, p. 271;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, anotação ao artigo 4.º.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CC): - ARTIGOS 635.º, N.ºS 2, 3 E 4 E 639.º, N.ºS 1 E 2.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 496.º E 566.º, N.º 3.
REGIME DO SISTEMA DE SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL, APROVADO PELO DL N.º 291/2007, DE 21-08: - ARTIGO 15.º, N.ºS 1 E 3.
Referências Internacionais:
DIRETIVA N.º 2009/103/CE, DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO: - ARTIGOS 12.º, N.º 3 E 13.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 20-01-2009, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 05-11-2009, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 28-10-2010, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 08-05-2013, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 08-06-2017.
Jurisprudência Internacional:
ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA (TJUE):

- DE 09-03-1978, SIMMENTHAL, 106;
- DE 10-04-1984, VON COLSON E KAMANN, 14/83;
- DE 19-05-1990, FACTORTAME, C-213/89;
- DE 26-09-1996, ARCARO, C-168/95.
Sumário :
I - As decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia, em casos de reenvio prejudicial para efeitos de interpretação, vinculam os tribunais internos dos Estados-membros.

II - O Tribunal de Justiça, em resposta ao pedido de reenvio prejudicial formulado pela Relação (art. 19.º, n.º 3, al. b), do TUE; arts. 256.º, n.º 3 e 267.º do TFUE), proferiu decisão no sentido de que os artigos 12.º, n.º 3, e 13.º, n.º 1, da Diretiva 2009/103/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho «devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional (…) que exclui da cobertura e, por conseguinte, da indemnização pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis os danos corporais e materiais sofridos por um peão vítima de um acidente de viação, apenas pelo facto de esse peão ser o tomador do seguro e o proprietário do veículo que causou esses danos».

III – Os tribunais nacionais, tribunais comuns da União, devem considerar o princípio do primado do direito comunitário sobre o direito nacional, enquanto princípio estruturante do próprio ordenamento comunitário.

IV - O princípio da interpretação conforme mostra-se particularmente relevante em matéria de diretivas.

V - A desaplicação pela Relação, à luz da decisão referida em II, das normas contidas nos n.os 1 e 3 do art. 15.º do DL n.º 291/2007, de 21-08, mostra-se conforme ao direito da União e à ordem constitucional interna.

VI - O valor de € 35 000,00 fixado pelo tribunal da Relação para compensar os danos não patrimoniais sofrido pelo autor mostra-se, claramente, nos parâmetros indemnizatórios observados por este Supremo Tribunal, na ponderação, por um lado, do grau de culpabilidade agente e, por outro, às circunstâncias seguintes: (i) a violência e a desconsideração pela vida humana com que as lesões foram perpetradas; (ii) os politraumatismos e múltiplas fraturas; (iii) os «grandes sofrimentos físicos e psíquicos, dores, perturbações e angústia», vindo o quantum doloris, em uma escala de sete graus de gravidade, fixado no grau 5; (iv) o período de internamento e/ou de repouso absoluto a que o autor teve de se sujeitar, durante 154 dias, até à consolidação das lesões sofridas; (v) a advinda limitação, em termos funcionais, em 15 pontos, relativamente à capacidade integral do indivíduo; (vi) as sequelas para a vida do autor, com tendência a agravarem-se, em termos de calcificações periarticulares na consolidação da fratura do acetábulo direito, de evolução para necrose da cabeça do fémur direito, de limitação de mobilidade do ombro esquerdo e da anca direita, de claudicação na marcha, dado o encurtamento de 2 centímetros do membro inferior direito.

Decisão Texto Integral:

Acordam, na 1ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. AA intentou ação contra BB, SA, pedindo que a mesma seja condenada a pagar-lhe uma indemnização no montante total de € 210.641,00, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida dos juros legais, a contar da citação. Alegou, em síntese, que no dia 26 de Abril de 2009, o seu veículo de matrícula VG-... foi furtado; o Autor, que havia transferido a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros pelo referido veículo para a Ré, foi intencionalmente atropelado pela pessoa que o conduzia, tendo sofrido os danos que estão na base do pedido.

Contestou a Ré, excecionando a prescrição e a exclusão de cobertura e impugnando alguns dos factos alegados pelo Autor.

Replicou o Autor.

Proferido saneador, julgando improcedente a exceção de prescrição e fixando o objeto do litígio, bem como os temas da prova.

Emitida, a final, sentença a julgar a ação improcedente e a absolver a Ré do pedido.

2. Interpôs o Autor recurso per saltum para o STJ, mandado baixar à Relação.

Decidiu aquele tribunal suscitar perante o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJ) o reenvio prejudicial relativamente à questão assim enunciada: «Em caso de acidente de viação do qual resultaram danos corporais e materiais para um peão que foi intencionalmente atropelado pelo veículo automóvel de que era proprietário, que se encontrava a ser conduzido pelo autor do respectivo furto, o direito comunitário, designadamente os artigos 12.º, n.º 3, e 13.º, n.º 1, da Directiva 2009/103/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, opõe-se à exclusão pelo direito nacional de qualquer indemnização ao referido peão em virtude de o mesmo ter a qualidade de proprietário do veículo e tomador do seguro?».

O TJ, por acórdão de 14 de Setembro de 2017, declarou que: «O artigo 3.º, n° 1, da Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, o artigo 1.°, n° 1, e o artigo 2.°, n° 1, da Segunda Diretiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, conforme alterada pela Diretiva 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2005, bem como o artigo 1.°‑A da Terceira Diretiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis, conforme alterada pela Diretiva 2005/14, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, que exclui da cobertura e, por conseguinte, da indemnização pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis os danos corporais e materiais sofridos por um peão vítima de um acidente de viação, apenas pelo facto de esse peão ser o tomador do seguro e o proprietário do veículo que causou esses danos».

A Relação, à luz da decisão proferida pelo TJ, considerou que, «prevalecendo a legislação comunitária sobre as normas de direito ordinário nacional, opondo-se aquelas a estas, a não aplicação das disposições internas contrárias às comunitárias é a natural consequência jurídica do primado do Direito Comunitário (…) afastada a aplicação ao caso vertente da exclusão da responsabilidade da seguradora prevista nos citados artigos do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto [arts. 14º, nº 2, alíneas b) e c), 15º, nºs. 1 e 3] , quando o lesado é o proprietário ou tomador do seguro, aplicam-se de pleno as demais regras da responsabilidade civil decorrentes da legislação portuguesa sobre o regime de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, mormente no artigo 11.º, n.º 2, do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, de acordo com a qual o seguro de responsabilidade civil abrange os danos sofridos por peões, quando e na medida em que a lei aplicável à responsabilidade civil decorrente do acidente automóvel determine o ressarcimento desses danos, como é naturalmente o caso porquanto a responsabilidade civil por factos ilícitos prevê a obrigação de indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação dos seus direitos por parte daquele que, de forma ilícita, e actuando com dolo ou mera culpa, os tenha atingido (artigo 483.º do Código Civil), conforme já vimos ter acontecido no caso em apreço».

Decidiu, em consequência, julgar parcialmente procedente o recurso e condenar a Ré a pagar ao Autor: «a) A quantia de 11.404,00€, (onze mil, quatrocentos e quatro euros) pelos prejuízos patrimoniais sofridos; b) A quantia de 25 000,00€ (vinte e mil euros), a título de indemnização pelo dano biológico; c) A quantia de 35 000,00€ (trinta e cinco mil euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos; d) Os juros de mora à taxa legal, contados desde a citação sobre a quantia referida em a), e a partir deste acórdão, sobre as quantias referidas indemnizatórias referidas em b) e c), actualizadas a esta data; absolvendo a Ré do demais peticionado».

3. Pede revista a Ré, na alegação formulando as seguintes conclusões:

«I. Nos termos do art. 288.° do Tratado de Funcionamento da União Europeia, as diretivas não são de aplicação direta na ordem jurídica nacional. Elas vinculam apenas o Estado-Membro destinatário quanto ao resultado e objetivos a alcançar, mas deixam às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios a utilizar (medidas nacionais de execução: lei, decreto-lei, etc.), ou seja, apenas vigoram nas ordens jurídicas nacionais após a respetiva transposição.

II. Entre particulares, não têm aplicação direta na ordem jurídica nacional, designadamente no caso dos presentes autos, as normas das diretivas de direito comunitário relativas à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis, mas sim o art.° 15.°, n.º 1, do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto, que transpôs tais diretivas, mesmo que não tenham sido transpostas corretam ente.

III. Mesmo nos casos em que o Tribunal de Justiça da União Europeia tem estabelecido que as diretivas podem ser aplicadas diretamente, tem sido excluído o chamado efeito horizontal das diretivas, ou seja a produção de efeitos das diretivas nas relações entre particulares (por oposição ao efeito vertical, relativo aos efeitos das diretivas entre os particulares e o Estado), o que significa, portanto, que as diretivas não podem ser invocadas no âmbito de litígios judiciais em que as partes sejam duas pessoas que agem completamente fora do âmbito do direito público - como sucede no caso dos presentes autos -, mas apenas no âmbito da relação entre um particular e o Estado.

IV. O Princípio da interpretação conforme, reconhecido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, segundo o qual os tribunais nacionais devem interpretar a lei nacional de transposição de uma diretiva à luz do seu texto e finalidade está sujeito aos limites dos princípios gerais de direito.

V. Uma interpretação - como a que está em causa nos presentes autos - segundo a qual o art.° 15.°, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, simplesmente não tem aplicação, afastando uma norma perfeitamente clara que o legislador pretendeu aplicar no ordenamento jurídico português, configura uma violação dos princípios da separação de poderes e da segurança jurídica, previstos, designadamente, no artigo 2.° da Constituição da República Portuguesa e no Tratado da União Europeia e, para além do mais, impede a aplicação do Princípio da interpretação conforme.

VI. O douto Tribunal a quo violou o disposto no artigo 496.°, n.º 3, do Código Civil, pois, ao fixar ao Recorrido o montante de €.35.000,OO a título de indemnização por danos não patrimoniais (únicos em causa no presente recurso), desconsiderou o Princípio da Equidade previsto no referido artigo, fixando a respetiva indemnização em montante exageradamente elevado e desajustado da realidade.

VII. Ao contrapor-se a decisão ora em crise com a mais recente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça em matéria de fixação de indemnizações por danos não patrimoniais, é possível - salvo melhor entendimento - encontrar casos mais gravosos do que o dos presentes autos nos quais foi fixada uma indemnização igualou inferior.

VIII. Sendo que, apenas uma decisão que fixasse uma indemnização por danos não patrimoniais em montante não superior a €.15.000,OO seria conforme o Princípio de Equidade.»

Contra-alegou o Autor, pugnando pela manutenção do decidido no acórdão da Relação.

4. Vistos os autos, cumpre decidir.

II

5. Consideradas as transcritas conclusões da alegação da Ré, ora Recorrente (CPC, arts. 635º, nºs. 2 a 4 e 639º, nºs 1 e 2), são questões a decidir no presente recurso: (i) não aplicação, no caso, do art. 15º, nº 1 (e nº 3) do DL 291/2007 – conclusões I a V e (ii) montante da compensação arbitrada por danos não patrimoniais – conclusões VI a VIII.

6. Vem fixada pelas instâncias a seguinte matéria de facto (transcreve-se do acórdão recorrido):

«1. No dia 26 de Abril de 2009, o Autor e a sua mulher, CC encontravam-se numa herdade que possuem no lugar da ....

2. Num pátio dessa herdade encontravam-se dois automóveis: uma carrinha pertencente ao Autor de matrícula VG-..., e o auto ligeiro ----SD pertencente à sua mulher.

3. Cerca das 18:00h o Autor e sua mulher aperceberam-se que o motor da referida carrinha começara a trabalhar.

4. O Autor, a sua mulher e um amigo do casal que estava junto deles dirigiram-se para o local em que estavam os veículos referidos.

5. Quando se aproximaram, viram que ao volante da carrinha estava um homem que não conheciam e que pôs a carrinha em marcha.

6. O Autor e sua mulher entraram imediatamente no SD e puseram-no em andamento e em perseguição do condutor da carrinha.

7. Chegado à zona do cruzamento da E.M nº 576 com a EN 243, o condutor da carrinha VG parou, tendo o SD parado cerca de 20 metros atrás.

8. E o Autor saiu do SD para se dirigir ao condutor da carrinha.

9. Mas o condutor da carrinha fez marcha atrás e a carrinha embateu no lado direito do SD e no Autor, atirando-o ao chão.

10. De seguida, a carrinha andou para a frente e tornou a fazer marcha atrás repentinamente e depressa e tornou a atropelar o Autor, que acabara de se levantar do chão, passando por cima dele.

11. O Autor foi arrastado pela carrinha, de rojo, na extensão de cerca de 8 metros e ficou com a roupa toda rasgada e suja de óleo.

12. À data do acidente, a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros pela carrinha VG-... encontrava-se transferida para a Ré, através da apólice nº 00658362.

13. Como consequência directa do acidente, o Autor sofreu: traumatismo torácico e raqui-medular, abdominal e da bacia, com fractura complexa do acetábulo direito; fractura dos ramos ílio e isquipúbico à esquerda; fractura da tíbia direita; luxação de grau 2 acrómio clavicular à esquerda; e ferida do joelho direito.

14. Depois do acidente, o Autor foi assistido no Hospital de ..., sendo depois, transferido, no dia 1 de Maio de 2009, para o Hospital ....

15. Nesse Hospital, no dia 06.05.2009 foi sujeito a tratamento cirúrgico para osteossíntese do acetábulo e ficou internado no Hospital ... até 11 de Maio de 2009.

16. Data em que foi transferido para o Hospital ..., onde esteve internado até ao dia 1 de Junho seguinte, data em que teve alta.

17. Foi depois seguido por conta da Ré, no Centro Hospitalar de..., tendo tido alta no dia 8 de Fevereiro de 2011.

18. O Autor sofreu 654 dias de doença e ficou com as seguintes sequelas:

• Claudicação na marcha à custa do membro inferior direito;

• Consolidação da fractura do acetábulo direito com calcificações periarticulares;

• Sinais de evolução para a necrose da cabeça do fémur direito;

• Luxação não reduzida da articulação acrómio-clavicular esquerda;

• Limitação da mobilidade do ombro esquerdo;

• Limitação da mobilidade da anca direita, com flexão até aos 45º;

• Encurtamento de 2 centímetros do membro inferior direito.

19. As referidas sequelas conferem-lhe um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 15 pontos.

19-A. As sequelas descritas, em termos de Repercussão Permanente na Actividade Profissional, são compatíveis com o exercício da actividade habitual mas implicam esforços suplementares .

20. Ficou com um dano estético permanente fixável no grau 4/7.

21. O Autor era agricultor, amanhando e explorando uma herdade sua.

22. Os trabalhos agrícolas dessa herdade eram feitos directamente pelo Autor ou sob sua orientação.

23. No ano de 2008, os rendimentos líquidos do Autor tinham somado € 10.563,34

24. Em 2009, com os seus internamentos hospitalares, longa doença e incapacidade para trabalhar, o Autor não pôde executar nem orientar os trabalhos agrícolas.

25. Teve prejuízos de € 11.404,44.

26. O Autor nasceu no dia ... de 1955.

27. Antes do acidente, o Autor era saudável e trabalhador activo.

28. O Autor ao ser atropelado teve grandes sofrimentos físicos e psíquicos, dores, perturbações e angústia e ficou com limitações físicas, nomeadamente de locomoção e movimentação.

Em virtude dos documentos juntos aos autos com a contestação, mostra-se ainda provado que:

29. O direito de propriedade sobre o veículo com a matrícula VG-... mostra-se registado a favor do autor desde 8-8-1990.

30. Na apólice referida no ponto 12. o autor consta como Tomador do Seguro e Condutor habitual do veículo.

31. Na mesma apólice na PARTE I intitulada DO SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL, no CAPÍTULO I referente às DEFINIÇÕES, OBJECTO E GARANTIAS DO CONTRATO, constam as seguintes cláusulas:

CLÁUSULA 1.ª – DEFINIÇÕES Para efeitos do presente contrato entende-se por: a) Apólice, conjunto de Condições identificado na cláusula anterior e na qual é formalizado o contrato de seguro celebrado; b) Segurador, a entidade legalmente autorizada para a exploração do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, que subscreve o presente contrato; c) Tomador do Seguro, a pessoa ou entidade que contrata com o Segurador, sendo responsável pelo pagamento do prémio. (…) e) Terceiro, aquele que, em consequência de um sinistro coberto por este contrato, sofra um dano susceptível de, nos termos da lei civil e desta Apólice, ser reparado ou indemnizado; f) Sinistro, a verificação, total ou parcial, do evento que desencadeia o accionamento da cobertura do risco prevista no contrato, considerando-se como um único sinistro o evento ou série de eventos resultante de uma mesma causa; (…).

CLÁUSULA 2.ª - OBJECTO DO CONTRATO 1 - O presente contrato destina-se a cumprir a obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel, fixada no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto. 2 - O presente contrato garante, até aos limites e nas condições legalmente estabelecidas: a) A responsabilidade civil do Tomador do Seguro, proprietário do veículo, usufrutuário, adquirente com reserva de propriedade ou locatário em regime de locação financeira, bem como dos seus legítimos detentores e condutores, pelos danos, corporais e materiais, causados a Terceiros; b) A satisfação da reparação devida pelos autores de furto, roubo, furto de uso de veículos ou de acidentes de viação dolosamente provocados.

CLÁUSULA 4.ª - ÂMBITO MATERIAL 1 - O presente contrato abrange: a) Relativamente aos acidentes ocorridos no território de Portugal a obrigação de indemnizar estabelecida na lei civil;

CLÁUSULA 5.ª - EXCLUSÕES DA GARANTIA OBRIGATÓRIA 1 - Excluem-se da garantia obrigatória do seguro os danos corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro responsável pelo acidente, assim como os danos decorrentes daqueles. 2 - Excluem-se igualmente da garantia obrigatória do seguro quaisquer danos materiais causados às seguintes pessoas: a) Condutor do veículo responsável pelo acidente; b) Tomador do Seguro; 4 - Excluem-se igualmente da garantia obrigatória do seguro: a) Os danos causados no próprio veículo seguro; 5 - Nos casos de roubo, furto ou furto de uso de veículos e acidentes de viação dolosamente provocados, o seguro não garante a satisfação das indemnizações devidas pelos respectivos autores e cúmplices para com o proprietário, usufrutuário, adquirente com reserva de propriedade ou locatário em regime de locação financeira, nem para com os autores ou cúmplices ou para com os passageiros transportados que tivessem conhecimento da posse ilegítima do veículo e de livre vontade nele fossem transportados.

CLÁUSULA 31.ª - DIREITO DE REGRESSO DO SEGURADOR Satisfeita a indemnização, o Segurador apenas tem direito de regresso: a) Contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente; b) Contra os autores e cúmplices de roubo, furto ou furto de uso do veículo causador do acidente, bem como, subsidiariamente, o condutor do veículo objecto de tais crimes que os devesse conhecer e causador do acidente.»

7. Do Direito.

7.1. Da não aplicação, no caso, do art. 15º, nº 1 (e nº 3) do DL 291/2007 – conclusões I a V da alegação da Recorrente.

7.1.1. Em resposta ao pedido de reenvio prejudicial formulado pela Relação [art. 19º, nº 3, alínea b), do TUE; arts. 256º, nº 3 e 267º do TFUE], o TJ, por acórdão de 14 de Setembro de 2017, proferiu decisão no sentido de que os preceitos de direito comunitário convocados «devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, que exclui da cobertura e, por conseguinte, da indemnização pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis os danos corporais e materiais sofridos por um peão vítima de um acidente de viação, apenas pelo facto de esse peão ser o tomador do seguro e o proprietário do veículo que causou esses danos».

Consequente com essa decisão, e a ela vinculada, a decisão proferida pela Relação.

Contrariamente ao suposto no entendimento expresso pela Recorrente, em vista do primado do direito comunitário, as decisões do Tribunal de Justiça, em casos de reenvio prejudicial para efeitos de interpretação, vinculam os tribunais internos dos Estados-membros (entre outros, com indicação de doutrina, ASTJ de 20.1.2009, disponível em www.dgsi.pt).

7.1.2. O TJ, com início no acórdão de 15 de Julho de 1964, Costa v. ENEL – precisamente no quadro do reenvio prejudicial [atual art. 19º, nº 3, alínea b), do TUE] – e, reiteradamente, em sucessivos acórdãos, veio estabelecer o princípio do primado do direito comunitário sobre o direito nacional, enquanto princípio estruturante do próprio ordenamento comunitário.

No quadro da assinatura do Tratado de Lisboa, na declaração nº 17 anexa à ata final, sobre o primado do direito comunitário, «A Conferência lembra que, em conformidade com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça da União Europeia, os Tratados e o direito adotado pela União com base nos Tratados primam sobre o direito dos Estados-Membros, nas condições estabelecidas pela referida jurisprudência».

Primado do direito comunitário sobre o direito nacional reconhecido no nº 4 do art. 8º da Constituição: uma das dimensões de tal primado consiste, precisamente, em «afastar as normas de direito ordinário internas preexistentes e em tornar inválidas, ou pelo menos ineficazes e inaplicáveis, as normas subsequentes que o contrariem. Em caso de conflito, os tribunais nacionais devem considerar inaplicáveis as normas anteriores incompatíveis com as normas de direito da UE e devem desaplicar as normas posteriores, por violação da regra da primazia» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., 2014, anotação XXIII ao art. 8º, pág. 271; realce acresc.).

Os tratados, ao conformarem o sistema judicial da União, à luz do princípio da subsidiariedade (art. 5º, nºs. 1 e 3 do TUE), não instituíram um sistema autónomo com tribunais próprios; deixando apenas reservadas ao Tribunal de Justiça as competências insuscetíveis de serem atribuídas aos tribunais dos Estados-Membros, convocaram estes como tribunais comuns da União e, nesta qualidade, encontram-se aqueles investidos, designadamente, com competência para desaplicarem o direito nacional contrário ao direito da União (acórdãos do TJ, de 9 de março de 1978, Simmenthal, 106 e de 19 de maio de 1990, Factortame, C-213/89).

Do mesmo modo, relativamente ao ordenamento jurídico interno, no caso de Portugal, nos termos do art. 204º da Constituição, no quadro de divisão de poderes, incumbe aos tribunais assegurar a prevalência ou primazia da Constituição (não interessando, no âmbito do presente recurso, cuidar da questão do eventual primado do direito da União, relativamente aos próprios preceitos constitucionais).

7.1.3. Contrariamente ao alegado pela Recorrente, o princípio da interpretação conforme mostra-se particularmente relevante em matéria de diretivas, já que tal princípio determina que «ao aplicar o direito nacional, quer se trate de disposições anteriores ou posteriores à diretiva, o órgão jurisdicional chamado a interpretá-lo é obrigado a fazê-lo, na medida do possível, à luz do texto e da finalidade da diretiva, para atingir o resultado por ela prosseguido e cumprir desta forma o artigo 288.º do TFUE» (ATJ, de 10 de abril de 1984, Von Colson e Kamann, 14/83; veja-se, ainda, acórdão de 26 de setembro de 1996, Arcaro, C-168/95), desse modo se alcançando, como assinalado na doutrina, um efeito direto indireto, suprindo, em grau variável, a ausência de efeito direto horizontal da diretiva.

7.1.4. A desaplicação, no caso, das normas contidas nos nºs. 1 e 3 do art. 15º do DL 291/2007, determinada pela Relação, à luz da decisão pelo TJ proferida no processo, em incidente de reenvio prejudicial, mostra-se conforme ao direito da União e à ordem constitucional interna.

Improcede a questão suscitada pela Recorrente.

7.2. Do montante da compensação arbitrada por danos não patrimoniais – conclusões VI a VIII da alegação da Recorrente.

7.2.1. Relativamente aos danos não patrimoniais sofridos pelo Autor, a Relação decidiu atribuir uma compensação de €35.000. Ponderou, para arbitramento do valor indicado, as seguintes circunstâncias, no caso destacadas:

«(…) o acidente foi causado por culpa exclusiva do condutor do veículo segurado na Ré, num circunstancialismo particularmente gravoso e traumático já que aquele provocou deliberadamente o embate entre o veículo, pertencente ao ora autor, que aquele conduzia, e o corpo do autor, deitando-o ao chão, e fazendo marcha atrás, atropelou-o, passando por cima dele e arrastando-o, de rojo e debaixo do veículo, numa extensão de cerca de 8 metros; do atropelamento resultaram as graves lesões e o longo período de doença para o autor descritos na factualidade vertida nos pontos 13. a 20., demandando um défice funcional temporário total fixável num período de 654 dias, com repercussão na actividade profissional, nesse mesmo período temporal, ou seja, entre a data do acidente ocorrido em 26-04-2009 e a data da consolidação das lesões que foi fixada em 8-02-2011, portanto, durante quase dois anos. Esse período, conforme definido no relatório médico-legal, corresponde ao período durante o qual o autor, em virtude do processo evolutivo das lesões no sentido da cura ou consolidação, viu condicionada a sua autonomia na realização dos actos correntes da vida diária, familiar e social, correspondendo com os períodos de internamento e/ou repouso absoluto. Mostra-se ainda provado que o autor sofreu um quantum doloris fixável no grau 5, numa escala de sete graus de gravidade crescente.

Depois, seguindo ainda o mesmo relatório, no âmbito do período de danos permanentes são valorizáveis, entre os diversos parâmetros do dano, o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, que se refere à afectação definitiva da integridade física e/ou psíquica da pessoa, com repercussão nas actividades da vida diária, independente das actividades profissionais, e que relativamente à capacidade integral do indivíduo, de 100 pontos, considerando a globalidade das sequelas (corpo, funções e situações de vida), e sendo causa de sofrimento físico, limita o autor em termos funcionais, em 15 pontos.

Por seu turno, no mesmo âmbito dos danos permanentes, foi considerado o dano estético permanente, correspondente à repercussão das sequelas, numa perspectiva estética e dinâmica, envolvendo uma avaliação personalizada da afectação da imagem da vítima quer em relação a si próprio, quer perante os outros, o qual, tendo em conta as cicatrizes com que o autor ficou, foi fixado no grau 4 duma escala de sete graus de gravidade crescente.

Finalmente, importa considerar que as sequelas sofridas pelo autor, para além de afectarem a sua vida diária são visíveis aos olhos de terceiro, já que o autor claudica na marcha à custa do encurtamento de 2 centímetros do membro inferior direito, sendo que antes do acidente, o Autor era saudável e trabalhador activo, tendo sentido grandes sofrimentos físicos e psíquicos, dores, perturbações e angústia e ficado com limitações físicas, nomeadamente de locomoção e movimentação.

(…) o sofrimento do autor em consequência do acidente e até à consolidação das lesões, ocorreu durante período temporal muito prolongado (quase dois anos), foi acentuado, estando médico legalmente fixado numa escala mais próxima do grau máximo que do mínimo, e continua a estar presente na sua vida nos termos sobreditos, sofrendo ainda o autor de uma limitação funcional acentuada, não se podendo olvidar em termos de normalidade da vida, que quanto maior for o tempo em que um indivíduo se encontra em situação de incapacidade, ainda que temporária, mais aumenta a sua angústia quanto ao futuro, sendo sabido que, no caso, atenta a idade do autor e a profissão que exerce, é comum acontecer que as sequelas do acidente agravem com o decurso do tempo, situação que em tempos como aqueles que vivemos, demanda preocupação acrescida nomeadamente com a repercussão dessa maior fragilidade física no desempenho da actividade profissional e, como tal, no caso do autor, na própria capacidade de angariar rendimentos.»

Entende a Recorrente, indicando jurisprudência [parte II, alínea b) do corpo da alegação], dever ser arbitrada indemnização de montante inferior, adiantando, a tal respeito, um valor não superior a €15.000.

O Recorrido defende a manutenção do valor estabelecido, igualmente citando jurisprudência e circunscrevendo a indicada pela Recorrente como reportando-se a «casos ocorridos há mais de uma década» (nºs. 44/46 do corpo da contra-alegação).

7.2.2. A indemnização em causa foi, nos termos legalmente previstos, fixada segundo a equidade (arts. 566º, n.º 3 e 496º do CC).

O recurso a equidade significa que «o que passa a ter força especial são as razões de conveniência, de oportunidade, principalmente de justiça concreta, em que a equidade se funda. E o que fundamentalmente interessa é a ideia de que o julgador não está, nestes casos, subordinado aos critérios normativos fixados na lei» (Pires de Lima / Antunes Varela, em anotação ao art. 4º do CC).

Deste modo, quando o cálculo da indemnização resulte decisivamente de juízos de equidade – como é o caso dos autos –, ao Supremo não compete a determinação exata do valor pecuniário a arbitrar, já que a aplicação de tais juízos de equidade não se totaliza na resolução de uma questão de direito, contendo-se o seu conhecimento na eventual sindicância dos limites e pressupostos à luz dos quais se situou o juízo equitativo expresso pelas instâncias, na ponderação casuística da individualidade do caso concreto sub juditio (entre outros, ASTJ de 5.11.2009, 28.10.2010, 8.5.2013, todos, bem como o adiante citado, disponíveis em www.dgsi.pt).

Trata-se, em suma – naturalmente ressalvada a harmonização com os critérios ou padrões que, numa jurisprudência atualista, devam ser seguidos em situações análogas ou equiparáveis (ASTJ de 8.6.2017) –, de questão insuscetível de ser sindicada em recurso para o STJ, enquanto tribunal de revista (arts. 46º da LOSJ e 674º, nº 3 do CPC; cf., ainda, art. 682º deste último diploma).

A compensação, no caso fixada em €30.000, considerada, por um lado, a atuação dolosa do lesante (o art. 496º do CC, no seu nº 1, ao mandar atender ao «grau de culpabilidade do agente», inequivocamente exprime a natureza também sancionatória da obrigação de indemnizar) e, por outro, as circunstâncias já destacadas no acórdão da Relação (entre elas, a violência e a desconsideração pela vida humana com que as lesões foram perpetradas; os politraumatismos e múltiplas fraturas; os «grandes sofrimentos físicos e psíquicos, dores, perturbações e angústia», vindo o quantum doloris, em uma escala de sete graus de gravidade, fixado no grau 5; o período de internamento e/ou de repouso absoluto a que o Autor teve de se sujeitar, durante 154 dias, até à consolidação das lesões sofridas; a advinda limitação, em termos funcionais, em 15 pontos, relativamente à capacidade integral do indivíduo; as sequelas para a vida do Autor, com tendência a agravarem-se, em termos de calcificações periarticulares na consolidação da fratura do acetábulo direito, de evolução para a necrose da cabeça do fémur direito, de limitação de mobilidade do ombro esquerdo e da anca direita, de claudicação na marcha, dado o encurtamento de 2 centímetros do membro inferior direito), claramente se contém nos parâmetros indemnizatórios observados por este tribunal.

7.2.3. Improcede, igualmente, a 2ª questão colocada pela Recorrente.

III

Nos termos expostos, acorda-se em negar a revista, mantendo-se o acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 27 de Novembro de 2018

J. Cabral Tavares (Relator)

Fátima Gomes

Acácio das Neves