Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
841/10.0TVPRT.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MOREIRA ALVES
Descritores: SEGURO DE GRUPO
DEVER DE INFORMAÇÃO
TOMADOR
SEGURO DE VIDA
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
AUTORIZAÇÃO
CONSENTIMENTO
DADOS PESSOAIS
RESERVA DA VIDA PRIVADA
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 07/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / DIREITOS DE PERSONALIDADE - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS.
DIREITO COMERCIAL - CONTRATOS COMERCIAIS.
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS - ORGANIZAÇÃO ECONÓMICA / PRINCÍPIOS GERAIS.
DIREITO DO CONSUMO - CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS.
DIREITO DOS SEGUROS - CONTRATO DE SEGURO (RAMO / VIDA).
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / RECURSOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL – ARTIGOS 71.º, 405.º, N.º1, 406.º, N.º1, 428.º.
CÓDIGO COMERCIAL (CCOM): - ARTIGO 426.º, 427.º, 429.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 264.º, 660.º, N.º2, 661.º, N.º 1, 668.º, N.º 1, AL. E), AL. D), 2.ª PARTE, AL. E).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 26.º, 80.º
D.L. N.º 176/95, DE 26-07 (SUBSEQUENTEMENTE ALTERADO PELOS DL N.º 60/2004, DE 22-03, E 357-A/2007, DE 31-10: - ARTIGOS 1.º, AL. G), 4.º.
D.L. N.º 446/85, DE 25-10, ALTERADO PELOS D.L. N.º 220/95, DE 31-08, RECTIF. N.º 114-B/95, DE 31-08, D.L. N.º 249/99, DE 07-07, E D.L. N.º 323/2001, DE 17-12 (LCCG): - ARTIGOS 5.º, 21.º, ALS. F), G).
D.L. N.º 72/2008, DE 16-04: - ARTIGOS 2.º E 7.º.
LEI DA PROTECÇÃO DE DADOS PESSOAIS (LPDP), APROVADA PELA LEI N.º 67/98, DE 26-10 (COM A RECT. N.º 22/98, DE 28-11): - ARTIGOS 2.º, 3.º, 7.º.
Legislação Comunitária:
DIRECTIVA N.º 94/46/CE, DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, DE 24-10-1995, RELATIVA À PROTECÇÃO DOS DADOS PESSOAIS E À LIVRE CIRCULAÇÃO DESSES DADOS.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 27-01-2004, PROC. N.º 03A4107, WWW.DGSI.PT ;
-DE 11-03-2010, PROC. N.º 1860/07.0TVLSB.S1, DE 29-05-2012, PROC. N.º 7615/06.1TBVNG.P1.S1;
-DE 27-03-2014, PROC. N.º 2971/12.5TBBRG.G1.S1, DE 25-06-2013, PROC. N.º 24/10.0TBVNG.P1.S1, E DE 12-10-2010, PROC. N.º 646/05. OTBAMR G1.S1.
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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-N.ºS 355/97, DE 07-05-1997, E 368/02, DE 25-09-2002, EM WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT .
Sumário :
I - O contrato de seguro de grupo caracteriza-se pelo facto da sua formação se registar em dois momentos distintos: num primeiro momento, é celebrado um contrato entre a seguradora e o tomador de seguro, e, num segundo momento, concretizam-se as adesões dos membros do grupo.

II - O dever de informação e esclarecimento do aderente a um contrato de seguro de grupo recai sobre o tomador de seguro.

III - Caso a segurada pretendesse pôr em causa o efectivo conhecimento e esclarecimento a respeito do contrato de seguro de vida e suas condições, coberturas e exclusões, deveria ter demandado não a seguradora, mas sim o tomador do seguro, sendo inoponível àquela o eventual desconhecimento do clausulado contratual e de tais circunstâncias.

IV - A cláusula geral que impõe à segurada sobreviva, a fim de poder beneficiar da cobertura do contrato de seguro de vida, a apresentação de documento onde se declarem as circunstâncias, causas, início e evolução da doença ou lesão que provocaram a morte ao segurado, não é violadora do art. 21.º, al. g), da LCCG, porquanto não modifica os critérios de repartição do ónus da prova.

V - A seguradora tem o direito de recusar o pagamento do capital seguro se e enquanto a segurada não entregar um atestado médico onde se declarem as tais circunstâncias, causas, início e evolução da doença ou lesão que provocaram a morte ao segurado, seu falecido marido.

VI - A disponibilização dos dados de saúde do falecido/segurado, para efeitos de accionamento do seguro de vida, não é violadora das disposições legais sobre a confidencialidade e a reserva da vida privada, na medida em que a celebração e aceitação das condições do contrato de seguro de vida, onde se insere a autorização de acesso àqueles dados, consubstanciam o consentimento do falecido/segurado, significando que o segurado manifestou aceitar que a seguradora pudesse aceder àqueles dados, após a sua morte.
Decisão Texto Integral:

Relatório

AA instaurou acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra BB – Companhia de Seguros, S.A. (CC– Companhia de Seguros, S.A.), pedindo a condenação da ré a:

a) Pagar ao Banco DD Portugal, na qualidade de beneficiário do contrato de seguro com a apólice n.º …, o capital seguro em dívida a este, à data do óbito de EE, no montante de € 84 398,15 (oitenta e quatro mil trezentos e noventa e oito euros e quinze cêntimos);

b) Pagar à autora, na qualidade de beneficiária do contrato de seguro com a apólice n.º …, o remanescente do capital seguro à data do óbito, no montante de € 1919,49 (mil novecentos e dezanove euros e quarenta e nove cêntimos);

c) Pagar à autora a quantia de € 2518,90 (dois mil quinhentos e dezoito euros e noventa cêntimos) referente aos juros sobre o capital mutuado, pagos pela autora ao Banco DD Portugal, desde 06-10-2009 até ao momento;

d) Pagar à autora os juros sobre o capital mutuado que esta vier a pagar ao Banco DD Portugal, desde o dia a seguir à data da entrada da petição inicial até efectivo e integral pagamento do capital seguro;

e) Pagar à autora a quantia de € 56,01 (cinquenta e seis euros e um cêntimo) referente a juros à taxa legal calculados sobre as quantias entregues mensalmente pela autora ao Banco, até Outubro de 2010, no montante de € 2663,48 (dois mil seiscentos e sessenta e três euros e quarenta e oito cêntimos), a título de pagamento de capital mutuado;

f) Pagar à autora os juros à taxa legal sobre a quantia de € 2663,48 (dois mil seiscentos e sessenta e três euros e quarenta e oito cêntimos) até efectivo e integral pagamento do capital seguro;

g) Pagar à autora os juros sobre as quantias que esta continuará a entregar ao Banco Mutuário a título de pagamento do capital mutuado, até efectivo e integral pagamento do capital seguro;

h) Pagar à autora a quantia de € 78,04 (setenta e oito euros e quatro cêntimos) referente a juros sobre a quantia € 1919,49 (mil novecentos e dezanove euros e quarenta e nove cêntimos), à taxa legal de 4% contados desde 06/10/2009 até à entrada da petição em juízo;

i) Pagar à autora juros à taxa legal de 4% sobre a quantia de € 1919,49 (mil novecentos e dezanove euros e quarenta e nove cêntimos) desde o dia a seguir à data da entrada da petição em juízo até efectivo e integral pagamento.

*
Alega, em síntese, que juntamente com seu marido EE celebrou com a ré um contrato de seguro ramo vida (crédito à habitação) com as cláusulas gerais e particulares constantes da apólice junta aos autos e com início em 17-12-2003.
Tendo-se verificado, em 05-08-2009, a morte do segurado marido reclamou o direito a que a seguradora liquide as importâncias que constituem o pedido, uma vez que terá cumprido todas as obrigações legais e contratuais validamente assumidas.
Muito concreta e sucintamente, e com especial interesse para a análise do caso, sustenta a autora que é nula a cláusula 14.ª, n.º 1, alínea c), das condições gerais da apólice, nos termos da qual estaria obrigada ao fornecimento das informações médicas ali referidas.
Contestou a ré, por excepção e impugnação, deduzindo, por um lado, a excepção da ilegitimidade da autora e alegando, por outro, que não efectuou o pagamento face ao incumprimento (pela autora) das obrigações contratuais validamente assumidas e que sobre ela impediam, nomeadamente quanto à obrigação de fornecimento de elementos médicos relacionados com a evolução do estado de saúde e causa da morte do segurado (seu marido).
Findos os articulados foram os autos remetidos pelas Varas Cíveis do Porto para as de Lisboa, por ser o tribunal territorialmente competente – cf. fls. 142 e segs.. Proferido despacho saneador, julgou-se improcedente a excepção de ilegitimidade, tendo-se organizado a matéria de facto assente e a base instrutória – cf. fls. 200 a 205.
Foi exarada sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu a ré do pedido – cf. fls. 359 a 366 (Vol. 2.º).
Inconformada apelou a autora – cf. fls. 371 e segs..

Na sequência desse recurso foi lavrado acórdão no qual se exarou que “não tendo a Apelada demonstrado que o falecido já padecia da doença que o vitimou à data do início do contrato de seguro, como lhe incumbia, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil e tendo a Apelante participado o sinistro e pedido o respectivo pagamento no prazo legal, entregando os documentos necessários e suficientes para o efeito”, julgou a apelação procedente revogando-se a sentença recorrida e, declarando-se nula a cláusula 14.º, n.º 1, alínea c), das Condições Gerais da Apólice por violação do artigo 21.º, alínea g), do Decreto-Lei nº 446/85, de 25/10, condenou a Ré / Apelada a proceder ao pagamento ao Banco DD Portugal, na qualidade de beneficiário do contrato de seguro, do montante actualmente em dívida, bem como a pagar à Apelante / Autora o remanescente do dito contrato, bem como a quantia por esta já paga ao dito Banco DD, acrescidas de juros de mora, desde a data em que deveria ser paga de cada uma dessas quantias e sobre o valor de cada uma delas, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento – cf. fls. 462 a 487 (Vol. 3.º).

Deste acórdão veio a ré seguradora interpor recurso de revista – cf. fls. 492 a 528 –, rematando as alegações com as seguintes conclusões:

1. O douto acórdão recorrido decidiu que: ”...condena-se a Ré/Apelada a proceder ao pagamento ao Banco DD Portugal, na qualidade de beneficiário do contrato de seguro, do montante actualmente em dívida, bem como a pagar à Apelante/Autora o remanescente do dito contrato, bem como a quantia por esta já paga ao dito Banco DD, acrescida de juros de mora, desde a data em que deveria ser paga cada uma dessas quantias e sobre o valor de cada uma delas, à taxa legal, até efectivo pagamento”.

2. Esta decisão é nula (artigo 668.° n.° 1 al. e) do C.P.C.) uma vez que condena em quantidade superior e em objecto diverso ao que é pedido pela Autora/Recorrida.

3. O julgado não está de acordo com o pedido da Autora/Recorrida, excede o que está pedido e ao arrepio da matéria de facto provada.

4. Ao pagamento do capital em dívida ao Banco não pode acrescer o pagamento do remanescente do capital seguro e ainda as quantias pagas pela Autora/Recorrida Banco DD, acrescidas de juros de mora, o que violava o disposto no artigo 661.° (limites da condenação) do C.P.C..

5. O ponto 7 dos factos provados prevê que “Em caso de morte, o beneficiário seria o Banco DD Portugal até ao limite do capital emprestado que estivesse em dívida e, na parte remanescente, o cônjuge não falecido” e no ponto 20 consta que “o capital seguro à data da morte de EE era de 86.314,64 €”.

6. Pelo que a responsabilidade da Ré, caso a ação fosse julgada procedente, o que não se concede, estaria limitada ao capital seguro/limite de indemnização e aos respetivos juros legais de mora.

7. A decisão proferida pelo douto Tribunal de 1.ª Instância, quanto ao essencial, não violou qualquer preceito legal, tendo feito uma correta interpretação e aplicação de todos os normativos legais aplicáveis à situação concreta, sendo inteiramente válida a argumentação bem como toda a fundamentação que sustenta a mesma.

8. A decisão agora recorrida, ao revogar a decisão proferida pelo douto Tribunal de 1.ª Instância e ao julgar procedente o pedido deduzido pela Autora/Recorrida viola os preceitos legais e os princípios jurídicos aplicáveis e afigura-se, pois, como injusta.

9. O artigo 660.° do C.P.C, refere no seu n.° 2 que “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.” Assim, a nulidade de uma sentença por omissão de pronúncia só acontece quando deixa de decidir alguma das questões suscitadas pelas partes, salvo se a decisão dessas questões tiver ficado prejudicada pela solução dada a outra.

10. As demais questões suscitadas pela autora/recorrida ficaram prejudicadas pela decisão quanto à questão central em apreço nos autos.

11. A “QUESTÃO CENTRAL”, salvo melhor opinião, é apenas uma: a Autora/Recorrida está ou não obrigada, como condição do direito ao pagamento do capital seguro, a facultar à Ré/Recorrente os documentos por esta solicitados, designadamente o atestado médico onde se declare as circunstâncias, causas, início e evolução da doença ou lesão que provocaram a morte.

12. As questões a decidir não se confundem com os argumentos, as razões e motivações produzidas pelas partes para fazer valer as suas pretensões. Questões, para efeito do disposto no n.° 2 do art. 660.° do CPC, não são argumentos e razões, mas sim e apenas as questões de fundo, isto é, as que integram matéria decisória, os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os que concernem ao pedido, à causa de pedir e às exceções.

13. A sentença proferida em 1.ª instância pronunciou-se sobre a questão central que foi suscitada pela Autora/Recorrida pelo que, com data vénia, não tem fundamento a declaração de nulidade da sentença proferida pelo que esta decisão deve ser revogada.

14. Sem prescindir, de acordo com a factualidade apurada nos autos, o falecido EE e mulher AA, a aqui Recorrida, na qualidade de pessoas seguras, celebraram com a Recorrente um CONTRATO DE SEGURO VIDA/GRUPO.

15. De acordo com o disposto no artigo 405.° do Código Civil “Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos...” e o artigo 406.° do Código Civil reza que “O contrato deve ser pontualmente cumprido...”, regras estas que devem ser aplicadas ao caso em apreço nos autos, nomeadamente no que refere á obrigação da Autora/Recorrida apresentar o já referido atestado médico.

16. O contrato de seguro vida teve por base a proposta de adesão, que está assinada pelo falecido EE (com a profissão de programador de trabalhos) e pela Autora/Recorrida (com a profissão de secretaria forense), pelo que, uma vez reconhecida a assinatura de um documento particular, o mesmo faz fé como de um documento autêntico se tratasse.

17. Assinar um documento é assinar a autoria das declarações que o mesmo contém.

18. Na referida proposta de adesão as pessoas seguras declararam, entre outros aspetos, que tomaram conhecimento de todas as informações necessárias à celebração do contrato, tendo sido entregues as condições gerais e especiais e prestados todos os esclarecimentos sobre as mesmas condições, nomeadamente sobre as garantias e exclusões do contrato.

19. As cláusulas do contrato de seguro vida em causa constituem matéria aceite pelas partes e assente nos presentes autos.

20. De acordo com o artigo 14.°, 1, al. c) das condições gerais do contrato de seguro (ponto 10 da matéria de facto) o pagamento das importâncias seguras terá lugar nos escritórios da seguradora após a entrega dos documentos comprovativos da qualidade de beneficiário, e mediante a apresentação dos documentos indispensáveis à sua regularização, a saber: atestado médico onde se declare as circunstâncias, causas, início e evolução da doença ou lesão que provocaram a morte.

21. A recorrida, para receber as importâncias seguras, está obrigada a cumprir a obrigação prevista no contrato de seguro, ou seja, apresentar, para além da certidão de óbito, um atestado médico onde se declare as circunstâncias, causas, início e evolução da doença ou lesão que provocaram a morte.

22. Esta cláusula contratual, contrariamente ao decidido no acórdão em crise, não é nula e seguramente não viola o princípio geral de boa fé.

23. A recorrida não cumpriu a sua obrigação de apresentar um atestado médico onde se declare as circunstâncias, causas, início e evolução da doença ou lesão que provocaram a morte.

24. Só depois de apresentar esse documento é que a Ré/Recorrente se poderá pronunciar quanto ao pagamento ou não do capital seguro, o que ainda não fez face à não entrega do referido documento.

25. Na verdade, nos presentes autos, ainda hoje não se sabe a causa da morte do falecido marido da recorrida!

26. A ré/recorrente tem o direito de recusar o pagamento enquanto a recorrida não cumprir a sua obrigação de entrega do atestado médico onde se declare as circunstâncias, causas, início e evolução da doença ou lesão que provocaram a morte.

27. Aliás, para além do previsto expressamente no artigo 14.° das condições do contrato de seguro, o artigo 428.° do Código Civil também prevê a excepção de não cumprimento do contrato.

28. Uma vez que a recorrida não cumpriu a sua obrigação de entrega dos documentos a que estava obrigada por força do contrato celebrado, legitima deste modo a recusa da ré/recorrente a pagar o montante indemnizatório previsto no contrato de seguro (capital seguro).

29. O douto Acórdão recorrido sufraga o entendimento que a referida cláusula que obriga a beneficiária do seguro à entrega de um atestado médico onde se declare as circunstâncias, causas, início e evolução da doença ou lesão que provocaram a morte do segurado, é abusiva. Este entendimento viola o principio da boa fé e não poderá prevalecer!

30. As causas e as circunstâncias em que ocorreu a morte da pessoa segura configuram um verdadeiro facto constitutivo do direito, sendo que não basta invocar a morte para acionar um seguro de vida.

31. Com esta exigência não está a Ré/Recorrente, a procurar inverter qualquer ónus da prova relativamente a um qualquer direito que se arroga mas simplesmente a exigir que os beneficiários do seguro façam prova do seu próprio direito, o direito a receberem a indemnização.

32. Como facto constitutivo do direito da ora recorrida receber o capital seguro, encontra-se não só a ocorrência de uma morte como também a ocorrência de uma morte sob determinadas circunstâncias.

33. A Ré/Recorrente não obtém diretamente os referidos dados de saúde, sem recurso aos beneficiários do seguro, por mera impossibilidade de facto, designadamente, por desconhecimento da identidade dos médicos que acompanharam o segurado no momento do seu perecimento e os locais exatos em que a assistência médica teve lugar.

34. Assim, através da referida cláusula, a Recorrente não procura obter uma qualquer vantagem ilegítima e/ou escusar-se ao pagamento do capital seguro, simplesmente se exige a entrega do único meio de atestar a verificação do evento seguro (o atestado médico).

35. Os familiares dos segurados, em condições normais, acompanham os mesmos durante a sua última fase da vida e, por esse facto, sabem quem foram os médicos que os trataram, em que estabelecimentos de saúde, etc. e, portanto, poderão obter sem qualquer dificuldade tal documento.

36. A Recorrida era casada com o falecido EE desde 02.09.1994 pelo que seguramente conhece o seu médico assistente, o seu centro de saúde, o hospital onde faleceu, as causas e as circunstâncias em que ocorreu a morte, ou mesmo as clinicas ou hospitais onde o mesmo foi acompanhado e tratado antes da sua morte.

37. Informações essas, que a Recorrente não dispõe e não está em condições de obter, razão pela qual nos contratos celebrados está prevista a obrigação de entrega de um atestado médico com as circunstâncias, causas, início e evolução da doença ou lesão que provocaram a morte.

38. Obrigação essa que também resulta de um principio de transparência e de um princípio de boa fé nas relações contratuais e por isso legitima a Ré/Recorrente a exigir a entrega do atestado médico em causa! Diferente entendimento é, com o devido respeito por opinião contrária, manifestamente abusivo!

39. No caso concreto a pessoa segura não morreu em território nacional, morreu em Málaga, Espanha, desconhecendo-se ainda hoje as causas e as circunstâncias em que ocorreu a morte.

40. Salienta-se que a Autora/Recorrida nunca alegou que não conseguia obter tal documento do médico assistente ou do hospital onde terá morrido em Espanha, apenas se recusa a entregar tal documento.

41. O documento em causa (atestado médico), integralmente preenchido e assinado por um médico assistente, é essencial para o acionamento das garantias da apólice uma vez que a certidão do óbito ocorrido em Espanha não esclarece as circunstâncias, causas, início e evolução da doença ou lesão que provocaram a morte.

42. A apresentação de um relatório médico onde constem as circunstâncias, causas, início e evolução da doença ou lesão que provocaram a morte é uma exigência clara, transparente e de fácil obtenção sendo que não viola qualquer das disposições do citado Decreto-Lei n.° 446/85 de 25/10.

43. Não podemos deixar de citar, entre outros, o douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/5/2012, Proc. 7615/06.1TBVNG.P1.S1 in www.dgsi.pt, e o douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28/06/2012, Proc. 15/10.0TJLSB.L1-6 in www.dgsi.pt, onde podemos ler, entre outras considerações, o seguinte: “A cláusula geral e especial impondo ao segurado, a fim de poder receber a importâncias segura, a apresentação de documentos que ateste o caráter acidental do falecimento e determine a relação causa/efeito entre o acidente e a morte não é violadora das regras e princípios relacionados com o equilíbrio e lisura na celebração e execução do referido contrato”.

44. As causas e as circunstâncias em que ocorreu a morte configuram um verdadeiro facto constitutivo do direito, sendo que não basta invocar a morte para acionar um seguro de vida.

45. Recorrente tem o direito de recusar o pagamento do capital seguro se e enquanto a autora/recorrida não entregar um atestado médico onde se declare as circunstâncias, causas, início e evolução da doença ou lesão que provocaram a morte ao segurado, seu falecido marido.

46. Não é nula a cláusula 14.ª, n.º 1, alínea c), das condições gerais da Apólice sendo que a mesma não viola o artigo 21.°, alínea g), do Decreto-Lei n.° 446/85 de 25/10.

47. O douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa violou o disposto nos artigos 405.°, 406.° e 428.° do Código Civil.

48. Por outro lado o douto acórdão também violou o disposto nos artigos 660.° n.° 2, 661.° n.°1, 668.° n.° 1 al. e), 715.° e 716.° do Código de Processo Civil.

Termos em que o presente recurso deve ser julgado procedente revogando-se em conformidade o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa e absolvida a Ré/Recorrente.


*

Contra alegou a autora/recorrida – cf. fls. 534 a 548 (565 a 579) –, pugnando pela manutenção da decisão recorrida e, subsidiariamente, requereu a ampliação do objecto do recurso, suscitando a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia relativa a questões levantadas na apelação, alinhando as seguintes conclusões[1]:

I. Não existe qualquer fundamento para a Recorrente alegar que o julgado não está de acordo com o Pedido da Autora e invocar a nulidade da Decisão recorrida, pois a quantia a que — para além do capital seguro — o Tribunal Recorrido condenou a Ré a pagar à Autora, foi devidamente alegada e peticionada pela Autora/Recorrida;

II. Na verdade, não só a condenação proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa não excede o Pedido formulado nos Pontos a) a i) da Petição Inicial da Recorrida, como os factos consubstanciadores de tal Pedido e constantes dos artigos 36.° a 43.° inclusive, da Petição Inicial, não foram impugnados pela Recorrente em sede de Contestação.

III. Tais factos dizem respeito aos danos que a Autora sofreu em consequência da mora da Ré e respeitam às quantias pagas ao Banco DD a título de juros remuneratórios do capital mutuado, os quais a Autora não teria que pagar caso a Recorrida tivesse, em 06.10.2009, cumprido a obrigação decorrente do contrato de seguro, perfazendo, nesta data, a quantia global de € 9.829,61 (nove mil oitocentos e vinte e nove euros e sessenta e um cêntimos);

IV. É a esta quantia peticionada que o Tribunal da Relação se reporta quando condena a Recorrente a pagar - para além do capital de seguro em dívida ao Banco e do remanescente desse capital à Recorrida, devidamente actualizados - a quantia global já paga pela Autora /Recorrida ao Banco DD.

V. Sendo certo que, para além dessa quantia, a Recorrida a título de amortização do capital mutuado, viu-se também forçada a entregar mensalmente ao Banco quantias de que não pode dispor em virtude da mora no pagamento do capital seguro, pelo que sobre as mesmas recaem juros de mora vencidos que perfazem actualmente €847, 87, acrescidos dos juros vincendos até efectivo e integral pagamento;

VI. Acresce ainda que são ainda devidos à Autora/Recorrida, os juros de mora vencidos sobre o capital de seguro a que a Autora tinha direito já na data do óbito – € 1.919,49 – juros de mora esses, que contados à taxa legal, perfazem actualmente €308,38 e a que devem acrescer os vincendos até efectivo e integral pagamento.

VII. Importa, por fim, realçar que tendo a Recorrente não impugnado tais Pedidos e aceitado os factos a esse título alegados na P.I., não pode vir agora perante o Supremo Tribunal de Justiça levantar uma questão nova que nunca colocou e que não foi objecto de julgamento, porquanto os recursos visam modificar decisões recorridas, e não criar novas decisões;

VIII. Sem conceder, considera a Recorrente não se ter verificado a omissão do dever de pronúncia por parte do Tribunal de 1.ª Instância, já que a apreciação das demais questões levantadas pela Recorrida, estaria em seu entender prejudicada pela solução dada à questão central;

IX. Ora, uma vez mais, não assiste razão à Recorrente, já que o Tribunal da Relação, por oposição ao Tribunal de 1 ª Instância, enunciou detalhadamente todas as razões que o levaram a concluir que a Sentença era «...indubitavelmente nula»;

X. E essas razões consistiram em verdadeiras omissões por parte do Tribunal de 1.ª Instância do dever de julgar questões jurídicas concretas levantadas pela Autora/Recorrida, para além de omitir, por fim, na Sentença, a fundamentação da própria decisão proferida quanto ao Pedido da Autora, ignorando ostensivamente a causa de pedir da mesma;

XI. Alega a Recorrente que a obrigação decorrente da Cláusula 14.ª do Contrato de Seguro «E uma obrigação simples, clara e muito transparente, sendo manifestamente abusivo por parte da Autora/Recorrida não facultar tal documento de acordo com o princípio da boa fé!».

XII. Todavia, o contrato em apreço constitui um contrato de adesão assente em cláusulas contratuais gerais pré-elaboradas pela própria Recorrente o que impossibilitou a negociação e livre fixação do conteúdo pelas partes, e por essa razão o legislador, prevenindo este desequilíbrio entre as partes, entendeu regulamentar por lei especial a utilização das cláusulas contratuais gerais, procurando proteger através das disposições constantes do DL n.° 446/85 de 25/10 – na redacção do DL 220/95, de 31 de Janeiro e do DL 249/99, de 7 de Julho – ou LCCG, o contraente aderente, precavendo a introdução e imposição de cláusulas abusivas pela parte «dominante» e garantindo um relevo acentuado ao Princípio Geral da Boa-Fé - artigo 15.° e 16.° daquele Diploma;

XIII. Analisada a cláusula 14.ª do contrato de seguro, está em causa a entrega do documento previsto na alínea c) do n.° 1, isto é: «Atestado Médico onde se declara as circunstâncias, causas, início e evolução da doença ou lesão que provocaram a morte», obrigação que, desde logo, a Recorrida considera ter cumprido mediante a entrega do Atestado Médico com a causa da morte em que consiste o Relatório de Autópsia;

XIV. Pelo que, para além de não ser verdade que a Recorrida não tenha cumprido a sua obrigação contratual decorrente da Cláusula 14.ª, a obrigação de informação que a Recorrente pretende impor sobre a Autora/Recorrente através do formulário cujas perguntas exige ver respondidas, é totalmente abusiva e ilícita à luz do preceituado na LCCG, como mui Doutamente Decidiu o Acórdão Recorrido; é que,

XV. Tratando-se de dados pessoais protegidos e que não pertencem à Autora, não pode a Recorrente exigir à Autora/Recorrida o fornecimento de dados de saúde do falecido sem antes demonstrar que está autorizada a aceder e tratar tais dados pela autoridade competente, a CNPD, e que o titular desses mesmos dados, prestou o seu consentimento livre, informado e autodeterminado nesse acesso;

XVI. Tendo admitido não ter o consentimento do falecido para aceder aos dados de saúde, não sobra qualquer legitimidade à Recorrente para requerer - exigir - à Autora/Recorrida a entrega dos mesmos por, alegadamente lhe ser muito mais fácil... já que,

XVII. Está a tratar de Direitos Fundamentais de uma pessoa já falecida e nem a Autora tem livre acesso aos dados de saúde do falecido, porquanto constituem o núcleo íntimo dos Direitos Fundamentais do mesmo, pelo que, o ónus de diligenciar no sentido de obter autorização para aceder directamente - e não por intermédio dos familiares - aos dados de saúde de pessoa falecida, é obviamente da Recorrente;

XVIII. A Recorrente pode aceder aos dados de saúde directamente, todavia, para tal, tem que cumprir os requisitos e limites que a Lei prevê, designadamente a LPD, mediante a obtenção prévia da autorização da CNPD para aceder aos dados de saúde e com base nessa autorização, recolher o consentimento livre e informado dos segurados;

XIX. No caso em apreço nos Autos a Recorrente tentou introduzir e interpretar abusivamente a al. c) da Cláusula 14.ª no intuito de inverter o ónus da prova, porém, tratando-se de um Contrato de Adesão, tal Cláusula é obviamente abusiva, porquanto o abuso de inversão de ónus da prova está absolutamente proibido pela alínea g) do n.° 1 do artigo 21.° do DL 446/85 de 25 de Outubro, sendo por isso nula nos termos do artigo 12.° do mesmo Diploma; pelo que,

XX. Muito bem decidiu o Tribunal Recorrido ao considerar nula a referida Cláusula 14.ª do contrato de seguro, e consequentemente, considerar cumpridas todas as obrigações contratuais pela Autora/Recorrida, julgando verificados os pressupostos da mora da Ré, condenando-a em conformidade;

XXI. Sem conceder, nos termos do disposto no artigo 635.° n.° 4 do NCPC, as conclusões delimitam o objecto de recurso, não podendo os efeitos do julgado, na parte não recorrida, ser prejudicados pela decisão do recurso ou pela anulação do processo, nos termos do n.° 5 daquele normativo.

XXII. Sucede que a Recorrente em sede de conclusões não aborda questão do consentimento do falecido marido da Autora, pelo que nesta parte, transitou em julgado o decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa quanto à inexistência de consentimento do referido para aceder aos seus dados de saúde, o que, por si só, sempre levará à procedência dos pedidos da Autor/recorrida.

XXIII. Subsidiariamente, e prevenindo a hipótese da procedência das questões suscitadas pela Recorrente no Recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, a Recorrida vem, nos termos do disposto no artigo 636.º n.° 2 do NCPC, ampliar o objecto de recurso, arguindo a título subsidiário, a nulidade do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, ao abrigo do disposto 615.° n.° 1, alínea d) do NCPC, porquanto não apreciou questões que devia conhecer e que foram suscitadas pela Recorrida nas suas Conclusões de Recurso;

XXIV. É que, o Tribunal da Relação não se pronunciou sobre as Conclusões 28 a 35 e 50 a 52 do Recurso da Autora/Recorrida relativas à necessidade de autorização da CNPD a obter pela Ré para aceder aos dados de saúde do falecido marido da Autora, nem sobre as questões de inconstitucionalidade constantes da Conclusões 69 e 70 do mesmo recurso e também não as considerou prejudicadas pela solução dada às outras;

XXV. Assim, e caso proceda o recurso de apelação da Ré, devem tais questões ser apreciadas;

Nestes termos e nos melhores de Direito que por V. Excelências não deixará de ser mui Doutamente supridos, deverá o presente recurso de Revista ser considerado totalmente improcedente, confirmando-se integralmente a Douta Decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, com o que farão inteira e sã JUSTIÇA.”


*

Os Factos

As instâncias consideraram provada a seguinte factualidade, atendendo já às alterações introduzidas pela Relação (cf. fls. 479):

1. A autora e EE foram casados entre si, no regime da comunhão de adquiridos, desde 02-09-1994.

2. No dia 23-02-2004, a autora e EE adquiriram, por escritura pública, a fracção autónoma designada pelas letras “DV”, correspondente a uma habitação no ...º andar, esquerdo, traseiras, do prédio urbano sito na Rua …, nº …, freguesia …, Gondomar.

3. Para o efeito, a autora e EE celebraram com o Banco DD Portugal acordo escrito, datado de 23-02-2004, denominado “contrato de mútuo com hipoteca”, mediante o qual este lhes concedeu empréstimo no valor de € 95 000, conforme e nos demais termos do documento de fls. 28 a 44 cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

4. Entre a autora e EE, como pessoas seguras, e a ré, como seguradora, foi acordado um seguro do ramo vida – crédito à habitação, com início em 17-12-2003, titulado pela apólice n.º …, de fls. 45 a 48, e conforme cláusulas gerais e particulares de fls. 62 a 68, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

5. Este seguro abrange, como cobertura principal, os riscos de morte e a título de cobertura complementar a invalidez total e permanente da autora e de EE, que ocorram durante o período de pagamento do crédito imobiliário identificado em C).

6. O capital garantido pelo seguro é de € 95 000.

7. Em caso de morte, o beneficiário seria o Banco DD Portugal até ao limite do capital emprestado que estivesse em dívida e, na parte remanescente, o cônjuge não falecido.

8. No questionário sobre o estado de saúde que preencheu, em 17-12-2003, EE respondeu (1) que nunca foi hospitalizado ou submetido a algum tratamento médico, (2) que não estava de baixa por doença ou por acidente, (3) que nunca teve doença que o tivesse obrigado a interromper a sua actividade laboral durante mais de 15 dias nos últimos cinco anos e (4) não teve qualquer alteração física ou funcional ou foi submetido a alguma intervenção cirúrgica.

9. EE e a Autora declararam igualmente que: “São exactas e completas as informações por mim prestadas”; que autorizam “os médicos e todas as pessoas consultadas pela Seguradora a prestarem a esta ou ao seu serviço médico as informações que venham a ser solicitadas com o contrato de seguro de vida”; e que a “Declaração de Saúde constante deste impresso faz parte integrante do seguro. As declarações inexactas ou reticentes ou a omissão de factos tornam o contrato nulo e sem qualquer efeito e libertam a Seguradora do pagamento de qualquer indemnização”.

10. Consta do artigo 14.º, n.º 1, das condições gerais do seguro o seguinte:

«O pagamento das importâncias seguras terá lugar nos escritórios da Seguradora após a entrega dos documentos comprovativos da qualidade de Beneficiário, e mediante a apresentação dos documentos indispensáveis à sua regularização, a saber:

Certidão de Nascimento ou Bilhete de Identidade da Pessoa Segura;

Certidão de Óbito da Pessoa Segura;

Atestado Médico onde se declare as circunstâncias, causas, início e evolução da doença ou lesão que provocaram a morte».

11. EE faleceu em …-0…-200….

12. Por carta de 06-10-2009, a autora instou a ré a efectuar o pagamento do capital garantido no seguro ao Banco DD Portugal.

13. Em resposta, a ré solicitou à autora, por carta de 16-11-2009, os dados de saúde do falecido EE, nomeadamente, o relatório de autópsia e o preenchimento do formulário por si enviado onde constasse o início, natureza e tratamentos efectuados àquele.

14. A autora, por carta registada com aviso de recepção datada de 14-12-2009, solicitou que a ré lhe enviasse o consentimento escrito do seu marido autorizando esta ao acesso, consulta e utilização dos seus dados de saúde.

15. A ré respondeu, por carta de 20-01-2010, o seguinte:

«Assim, e correspondendo ao solicitado, servimo-nos da presente para remeter cópia das Condições Gerais e Especiais da Apólice, bem como da proposta de seguro e declaração assinada pela Pessoa Segura aquando da celebração do contrato.»

a) A esta carta respondeu a autora com a carta datada de 1 de Março de 2010, enviando o relatório da autópsia e o formulário fornecido pela ré com questões médicas.

b) Por carta datada de 15 de Março de 2010, a ré solicitou novamente o envio do relatório médico sobre a saúde do falecido.

c) Em resposta a autora solicitou por carta datada de 20 de Abril de 2010 que a ré lhe enviasse o consentimento escrito do seu marido autorizando-a a aceder, consultar e utilizar os seus dados de saúde depois da morte.

d) E por carta datada de 4 de Junho de 2010, as mandatárias da autora solicitaram mais uma vez à ré que lhes enviasse o consentimento do falecido para o acesso, consulta e utilização dos seus dados de saúde depois da morte.

e) Em resposta a ré por carta datada de 23 de Junho de 2010 informou já ter enviado as Condições da Apólice.

16. A esta carta, os representantes da autora responderam, por escrito de 30-06-2010, que dos documentos enviados não «consta qualquer autorização dada pelo falecido EE, à V/Companhia, para aceder, consultar, e/ou utilizar os seus dados de saúde depois da sua morte», conforme documento de fls. 74 e 75 cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

17. A ré informou, como resposta, por carta de 04-08-2010, junta a fls. 120, «que a declaração subscrita pela Pessoa Segura aquando da celebração do contrato (…) diz respeito à autorização de prestação de informações que venham a ser solicitadas com o contrato de vida, e não informações apenas para efeitos da celebração do contrato» e que caso não recebesse os elementos clínicos em 60 dias procederia ao encerramento do processo de sinistro sem o processamento de qualquer verba indemnizatória.

18. A autora, por carta registada com aviso de recepção, datada de 01-03-2010, enviou à ré o relatório de autópsia de EE.

19. Com a mesma carta, a autora remeteu o formulário fornecido pela ré com questões médicas, frisando que não estava totalmente preenchido, uma vez que o óbito ocorreu por morte natural, não teve intervenção do médico assistente, nem internamento.

20. O capital seguro, à data da morte de EE, era de € 86 314,64.

21. E o montante do empréstimo em dívida ao Banco DD Portugal, em capital, ascendia a € 84 398,15.

22. Desde o falecimento do marido, a autora já pagou a este Banco, a título de juros sobre o capital emprestado, a quantia de € 2518,90.

23. E, a título de capital amortizado, a autora liquidou igualmente o montante global de € 2663,48.

Fundamentação

A apreciação e decisão deste recurso de revista, delimitado pelas conclusões de recurso antes elencadas (por parte da ré/recorrente e da autora/recorrida) – cf. arts. 684.º, n.º 3, e 685.º-A, n.ºs 1 e 2, do CPC[2] -, suscita a análise, apreciação e resolução das seguintes questões jurídicas:

1.ª Nulidade do acórdão recorrido por violação do estatuído no art. 668.º, n.º 1, al. e), do CPC.

2.ª Validade ou invalidade da cláusula constante do art. 14.º, n.º 1, alínea c), das condições gerais do contrato de seguro, segundo a qual o pagamento das importâncias seguras exige do beneficiário obrigado, além do mais, a apresentação de atestado médico onde se declarem as circunstâncias, causas, início e evolução da doença ou lesão que provocaram a morte, por violação do art. 21.º, alínea g), do DL n.º 446/85, de 25-10.

3.ª Obrigatoriedade da autora/recorrida, como condição do direito ao pagamento do capital seguro, facultar à ré/recorrente os documentos por esta solicitados, designadamente o atestado médico onde se declarem as circunstâncias, causas, início e evolução da doença ou lesão que provocaram a morte.

· Recurso subordinado (art. 684.º-A, n.º 2, do CPC),

4.ª Nulidade do acórdão (arguida pela autora/recorrida) por não se ter pronunciado sobre as conclusões 28 a 35 e 50 a 52 do seu recurso de apelação, relativas à necessidade de autorização da Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) a obter pela ré para aceder aos dados de saúde do falecido marido da autora, nem sobre as questões de inconstitucionalidade constantes da conclusões 69 e 70 do mesmo recurso.[3]

Passemos, então, à devida análise destas várias questões.

1.

Relativamente à primeira questão, considera a ré/recorrente que ao pagamento do capital em dívida ao Banco não pode acrescer o pagamento do remanescente do capital seguro e ainda as quantias pagas pela autora/recorrida ao Banco DD, acrescidas de juros de mora, o que violava o disposto no artigo 661.° (limites da condenação) do CPC, concluindo, depois, que caso a acção fosse julgada procedente, o que não se concede, estaria limitada ao capital seguro/limite de indemnização e aos respetivos juros legais de mora.

Responde a autora/recorrida que não só a condenação proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa não excede o pedido formulado nos pontos a) a i) da Petição Inicial da recorrida, como os factos consubstanciadores de tal pedido e constantes dos artigos 36.° a 43.° inclusive, da Petição Inicial, não foram impugnados pela recorrente em sede de contestação.

Como é sabido o juiz não pode conhecer de causa(s) de pedir não invocada(s) – o mesmo se aplicando a excepções na exclusiva disponibilidade das partes – sendo inválida a decisão judicial que o faça (cf. art. 660.º, n.º 2, do CPC).

Curialmente, é nula a decisão judicial que, violando o princípio dispositivo – no que concerne à conformação objectiva da instância (cf. art. 264.º do CPC) –, inobserve os limites fincados pelo art. 661.º, n.º 1, do CPC, ou seja, que desrespeite, para mais, a quantidade ou o objecto peticionados, condenando a parte em quantidade superior ou em objecto diverso, tal como promana do art. 668.º, n.º 1, al. e), do CPC.

In casu, abstraindo, para já, do mérito das demais questões colocadas pelo recurso, não se atinge que se tenha conhecido, em qualquer segmento do acórdão recorrido, de questão que não tivesse sido colocada, inexistindo, pois, qualquer excesso de pronúncia – art. 668.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte –, nem, tão pouco, que tenha ocorrido uma condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido – art. 668.º, n.º 1, al. e), ambos do CPC.

Efectivamente, o capital seguro à data da morte de EE era de € 86 314,64 e o montante do empréstimo em dívida, ao Banco, ascendia a € 84 398,15, pelo que remanesce a quantia indicada pela autora; ora, não tendo a ré procedido ao pagamento das prestações ao Banco, passou a autora a fazê-lo.

Consequentemente, tendo a Relação entendido que incumbia à seguradora efectuar o pagamento em falta, condenou-a a pagar, ao Banco, o quantitativo que estaria em débito, e, à autora, o montante que esta havia pago das respectivas prestações, acrescidas de juros de mora e, ainda daquele remanescente (€ 1916,49).

Não há, pois, qualquer condenação ultra petitum, motivo pelo qual se julga manifestamente improcedente esta primeira questão suscitada pela ré/recorrente.

2.

Clarificado este aspecto, depara-se-nos a questão (fundamental) atinente à análise da validade – ou invalidade – da cláusula inserta no art. 14.º, alínea c), das condições gerais do contrato de seguro, segundo a qual o pagamento das importâncias seguras exigia do beneficiário obrigado a apresentação de atestado médico onde se declarassem as circunstâncias, causas, início e evolução da doença ou lesão que provocaram a morte, não olvidando que no acórdão recorrido se considerou que tal cláusula está ferida de nulidade, por, alegadamente, violar o estatuído no art. 21.º, alínea g), do DL n.º 446/85, de 25-10.

Na verdade, a Relação de Lisboa considerou que a aludida cláusula 14.ª, n.º 1, alínea c), das Condições Gerais da Apólice, é absolutamente proibida, nos termos do artigo 21.º, alínea g), do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25/10, por modificar os critérios de repartição do ónus da prova, o que aqui se declara, atento nomeadamente o disposto no artigo 664.º do Código de Processo Civil (fls. 486, 5.º parágrafo).

A tal respeito, a ré/recorrente alega, em síntese, que a recorrida, para receber as importâncias seguras, está obrigada a cumprir a obrigação prevista no contrato de seguro, ou seja, apresentar, para além da certidão de óbito, um atestado médico onde se declare as circunstâncias, causas, início e evolução da doença ou lesão que provocaram a morte, e acrescenta que esta cláusula contratual, contrariamente ao decidido no acórdão em crise, não é nula e seguramente não viola o princípio geral de boa fé.

Façamos, preliminarmente, o devido enquadramento jurídico da situação, não olvidando que o contrato ajuizado, epigrafado de “Vida Risco – Crédito Habitação”, teve o seu início em 17-12-2003 – cf. documento de fls. 45 a 48 e respectivas cláusulas, gerais e particulares, de fls. 62 a 68, cujo teor se dá por integralmente reproduzido –, e surgiu associado a um contrato de mútuo com hipoteca de um bem imóvel, celebrado entre a autora, o seu falecido marido e uma entidade bancária, no âmbito de um contrato de compra e venda – cf. documento de fls. 28 e segs..

            O contrato de seguro, em termos gerais, é a convenção por virtude da qual uma das partes (segurador) se obriga, mediante retribuição (prémio) paga pela outra parte (segurado), a assumir um risco ou conjunto de riscos e, caso a situação de risco se concretize, a satisfazer ao segurado ou a terceiro uma indemnização pelos prejuízos sofridos ou um determinado montante previamente estipulado.[4] Trata-se de um negócio jurídico de carácter formal, devendo ser reduzido a escrito, em instrumento que constitui a apólice – art. 426.º do Código Comercial –, encontrando-se a actividade seguradora regulamentada e fiscalizada pelo Estado, que impõe a seguradores e segurados determinadas condições gerais que hão-de constar daquele documento: tais condições gerais constituem a apólice uniforme a respeitar pelas empresas que exercem a indústria seguradora.

Essas condições, vertidas na apólice, integram-se no contrato de seguro e vinculam, consequentemente, a seguradora, o segurado e quem adira ao contrato – cf. arts. 405.º, n.º 1, e 406.º, n.º 1, do Código Civil (doravante CC), e 427.º do Código Comercial – os preceitos do Código Comercial enunciados vigoravam à data da celebração do contrato, outorgado anteriormente à entrada em vigor do DL n.º 72/2008, de 16-04 (que aprovou o novo regime jurídico do contrato de seguro, revogando aquelas normas), que só ocorreu em 01-01-2009, nos termos dos arts. 2.º e 7.º deste diploma legal.

Ao segurado exige-se-lhe o cumprimento da obrigação de atempadamente pagar o prémio de seguro, nos termos definidos pela respectiva apólice – cf. arts. 426.º,§ 7 e 427.º do Código Comercial – e à seguradora incumbe o dever de satisfazer os compromissos tipificados no contrato.[5]

A exacta determinação do risco constitui um aspecto fundamental da disciplina do contrato de seguro, uma vez que o montante do prémio a pagar pelo segurado é fixado relativamente àquele risco e a sua determinação (por parte do segurador) é susceptível de se repercutir na gestão dos seguros e na possibilidade de proporcionar a todos os segurados a garantia e a segurança pretendidas.

Em diversas ordens jurídicas, designadamente na portuguesa, como deflui do art. 429.º do Código Comercial, a lei estabelece para o segurado o ónus de, no momento da formação do contrato, comunicar ao segurador todas as circunstâncias conhecidas que possam ter influência na determinação do risco, gizando as consequências, quanto à validade ou eficácia do contrato, da inobservância de tal ónus pelo segurado: a consequência comumente aceite para o incumprimento do dever de “declaração exacta” é, segundo a norma em análise, a anulabilidade do contrato.[6]

Na situação analisada, ponderadas as condições apostas no respectivo contrato, é incontroverso que estamos perante um contrato de seguro vida, na modalidade de seguro de grupo, titulado pela apólice n.º …, do qual eram beneficiários, em caso de morte, o Banco DD Portugal até ao limite do capital emprestado que estivesse em dívida (e, na parte remanescente, o cônjuge não falecido) – cf., de novo, o documento de fls. 62 e segs..

Como se referiu, a proposta de contrato, no caso sub judice foi apresentada em Dezembro de 2003, em plena vigência do DL n.º 176/95, de 26-07 (subsequentemente alterado pelos DL n.º 60/2004, de 22-03, e 357-A/2007, de 31-10), sendo-lhe aplicável o regime previsto no referido diploma legal, dado que o regime actual, aprovado pelo DL n.º 72/2008 de 16-04, só entrou em vigor em 01-01-2009.

No seguro de vida – enquadrável na espécie do seguro de pessoas (que também inclui os seguros de acidentes pessoais e de saúde) –, o risco envolve a pessoa do segurado, ou melhor a sua vida, de forma que o interesse segurado é a própria vida, sendo o beneficiário o sujeito da relação de seguro, titular do crédito, perante a seguradora, relativo ao pagamento do capital devido em razão do sinistro, procedendo-se ao cálculo e fixação do respectivo prémio de acordo com o risco do segurado falecer dentro de um certo período.

Por sua vez, segundo a definição vertida no art. 1.º, al. g), do DL n.º 176/95, seguro de grupo é o “seguro de um conjunto de pessoas ligadas entre si e ao tomador do seguro por um vínculo ou interesse comum”. [7]

Nos termos desse diploma – que procurou introduzir as regras mínimas de transparência nas relações pré e pós-contratuais da actividade seguradora – importa ter presentes as seguintes definições: “empresa de seguros ou seguradora” – “entidade legalmente autorizada a exercer a actividade seguradora e que subscreve, com o tomador, o contrato de seguro (al. a); “tomador de seguro” – “entidade que celebra o contrato de seguro com a seguradora, sendo responsável pelo pagamento do prémio” (al. b); “seguro de grupo contributivo” – “seguro de grupo em que os segurados contribuem no todo ou em parte para pagamento do prémio” (al. h); “seguro de grupo não contributivo” – “seguro de grupo em que o tomador contribui na totalidade para o pagamento do prémio” (al. i); “apólice” – “documento que titula o contrato celebrado entre o tomador do seguro e a seguradora, de onde constam as respectivas condições gerais, especiais, se as houver, e particulares acordadas” (al. l).

O contrato de seguro de grupo caracteriza-se pelo facto da sua formação se registar em dois momentos distintos: num primeiro momento, é celebrado um contrato entre a seguradora e o tomador de seguro, e, num segundo momento, concretizam-se as adesões dos membros do grupo.

Como escreve Paula Ribeiro Alves, o contrato de seguro de grupo “é celebrado entre a seguradora e o tomador de seguro que estabelecem, entre si, as condições de inclusão no grupo, as relações entre seguradora e tomador de seguro, com específicos direitos e obrigações recíprocos, as condições dos seguros para os aderentes, incluindo as condições gerais e especiais do seguro, que contêm as coberturas e os direitos e obrigações recíprocas da seguradora e do membro do grupo aderente./A existência deste contrato é pressuposto da possibilidade de virem a existir pessoas seguras, que serão aquelas que vierem a aderir e que terão o seguro com as coberturas e nos termos que foi contratado entre seguradora e o tomador. Não vão poder negociar o contrato./ Celebrado o contrato de seguro entre a seguradora e o tomador, com vista à adesão dos membros de um grupo aí definido, passa-se ao segundo momento em que o tomador de seguro promove a adesão ao contrato junto dos membros do grupo./ Estes dois momentos são complementares e indissociáveis. Enquanto não se der a primeira adesão, o contrato celebrado entre seguradora e tomador de seguro não produz efeitos enquanto seguro./ Poderá produzir efeitos quanto a direitos e obrigações estabelecidos entre seguradora e tomador no que diz respeito à relação que entre ambos se estabelece e aos requisitos do grupo, mas só começa a produzir efeitos como seguro no momento da primeira adesão. Ou num momento posterior se tal for acordado pelas partes./ É com as adesões que surgem as pessoas seguras, visto que o tomador de seguro não tem essa qualidade. E, sem pessoas seguras, não há seguro”.[8]

Neste sentido, vejam-se, na jurisprudência do STJ, entre outros, o Acórdão de 11-03-2010, Proc. n.º 1860/07.0TVLSB.S1, bem como o Acórdão de 29-05-2012, Proc. n.º 7615/06.1TBVNG.P1.S1 (este último da 1.ª Secção).

Especialmente relevante na disciplina do seguro de grupo, vertida no DL n.º 176/95, é o seu art. 4.º:

“1. Nos seguros de grupo, o tomador do seguro deve obrigatoriamente informar os segurados sobre as coberturas e exclusões contratadas, as obrigações e direitos em caso de sinistro e as alterações posteriores que ocorram neste âmbito, em conformidade com um espécimem elaborado pela seguradora.

2. O ónus da prova de ter fornecido as informações referidas no número anterior compete ao tomador do seguro.

3. Nos seguros de grupo contributivos, o incumprimento do referido no n.º 1 implica para o tomador do seguro a obrigação de suportar de sua conta a parte do prémio correspondente ao segurado, sem perda de garantias por parte deste, até que se mostre cumprida a obrigação.

4. O contrato poderá prever que a obrigação de informar os segurados referida no n.º 1 seja assumida pela seguradora.

5. Nos seguros de grupo a seguradora deve facultar, a pedido dos segurados, todas as informações necessárias para a efectiva compreensão do contrato”.

Ou seja, é o tomador do seguro (Banco) quem tem o dever de informar os segurados sobre as coberturas e exclusões, as obrigações e os direitos em caso de sinistro e as alterações ao contrato e não a seguradora (aqui demandada). Esta informação deve basear-se num modelo elaborado pelo segurador. Por outro lado, o segurador deve responder aos pedidos de informação feitos pelos segurados, fornecendo-lhes tudo o que necessitem para compreender o contrato.

Nos contratos de seguro de grupo contributivos, como é o caso, o tomador do seguro deve prestar aos segurados todas as informações a que um tomador de um seguro individual teria direito e caso seja simultaneamente beneficiário do mesmo – o que acontece frequentemente, e como é a situação em apreço, nos seguros de vida associados ao crédito à habitação – e deve, ainda, informar os segurados do montante das remunerações que lhe sejam devidas pela sua intervenção no contrato, bem como a proporção dessas remunerações face ao valor do prémio que o segurado suporta.

Neste preciso sentido cf., entre outros, os Acórdãos do STJ, de 27-03-2014, Proc. n.º 2971/12.5TBBRG.G1.S1, de 25-06-2013, Proc. n.º 24/10.0TBVNG.P1.S1, e de 12-10-2010, Proc. n.º 646/05. OTBAMR G1.S1 (desta 1.ª Secção).

Resumindo: é incontroverso que o dever de informação e esclarecimento do aderente a um contrato de seguro de grupo recai sobre o tomador de seguro; é este o regime que decorre expressamente do estatuído no art. 4.º do DL n.º 176/95.

Por isso, reitera-se, nos seguros de grupo, salvo convenção em contrário, o tomador de seguro deve obrigatoriamente informar os segurados sobre todas as coberturas e exclusões contratadas e as obrigações e direitos em caso de sinistro, cabendo-lhe o ónus da prova de ter fornecido estas informações.

Acresce que o regime jurídico do contrato de seguro de grupo, como lei especial que é, sobrepõe-se às normas que regulam as cláusulas contratuais gerais, na parte referente ao ónus de esclarecimento e informação (cf., o já citado DL n.º 176/95, e, actualmente, o DL n.º 72/2008). Com efeito, a par dos aspectos directamente resultantes do DL n.º 176/95, não se pode olvidar que os contratos de seguro de grupo configuram, regra geral, contratos de adesão, por esse motivo submetidos à disciplina legal do DL n.º 446/85, de 25-10, que contém o regime jurídico das cláusulas contratuais gerais (doravante, LCCG).[9]

Concretamente, no que diz respeito aos seguros de grupo há que ponderar a susceptibilidade de aplicação do regime emergente da LCCG em dois momentos, correspondendo aos dois momentos de formação do contrato: a) primeiro, há o contrato celebrado entre a seguradora e o tomador de seguro que pode ser especificamente negociado, ou pode ter por base cláusulas contratuais gerais – ou pode, ainda, ser um negócio rígido, assente em cláusulas que a seguradora criou para a ocasião e que não aceita discutir. Se entre a seguradora e o tomador de seguro foi celebrado um contrato específica e pontualmente negociado, já não se aplicará a LCCG; b) segundo, os membros do grupo aderem ao contrato celebrado entre a seguradora e o tomador de seguro, aceitando, sem negociação, as condições contratuais estabelecidas no contrato celebrado entre seguradora e tomador de seguro, estando, nessa medida, protegidos pelo regime da LCCG.

Em consonância a LCCG será de aplicar a um seguro de grupo sempre que esteja em causa a adesão a cláusulas contratuais gerais ou uma situação de não negociação de um contrato, que desencadeie a aplicação desse diploma, devendo efectuar-se as adaptações que se mostrem necessárias à complexidade do contrato e ao feixe tripartido de relações jurídicas (segurador-tomador-segurado) que constituem um seguro de grupo.[10]

Não obstante, tem de se fixar, de forma clara, o limite entre aplicar o regime que emana do DL n.º 176/95, mormente no que concerne ao seu art. 4.º (acima analisado) e o decorrente da LCCG, designadamente do seu art. 5.º (dever de comunicação): as normas, de carácter geral, emergente da LCCG devem ter-se por afastadas por aquela norma especial, que tem aplicação expressa aos contratos relativos a seguros de grupo, não havendo que lançar mão dos normativos que regulam as cláusulas contratuais gerais.

Aqui chegados, não temos quaisquer dúvidas em afirmar que, in casu, uma vez que o contrato de seguro vida teve por base a proposta de adesão, que está assinada pelo falecido EE e pela autora/recorrida, uma vez reconhecida a assinatura daquele documento particular, o mesmo faz fé de que na referida proposta as pessoas seguras declararam, entre outros aspectos, que tomaram conhecimento de todas as informações necessárias à celebração do contrato, nomeadamente sobre as garantias e exclusões do contrato, tendo-lhe sido entregues as condições gerais e especiais.

Ou seja, caso pretendesse atacar essa realidade – atinente ao efectivo conhecimento e esclarecimento a respeito do contrato de seguro de vida e suas condições, coberturas e exclusões – a autora deveria ter demandado não a seguradora, mas sim o tomador do seguro, i.e., o Banco DD Portugal, S.A., sendo inoponível à ré/recorrente o eventual desconhecimento do clausulado contratual e de tais circunstâncias.

Nesta consonância, segundo o art. 14.°, n.º 1, al. c), das condições gerais do contrato de seguro, o pagamento das importâncias seguras terá lugar nos escritórios da seguradora após a entrega dos documentos comprovativos da qualidade de beneficiário, e mediante a apresentação dos documentos indispensáveis à sua regularização, a saber: atestado médico onde se declare as circunstâncias, causas, início e evolução da doença ou lesão que provocaram a morte.

Daqui resulta, prima facie, que a autora/recorrida, para receber as importâncias seguras, está adstrita a cumprir a obrigação prevista no contrato de seguro, ou seja, apresentar, para além da certidão de óbito, um atestado médico de onde constem as circunstâncias, causas, início e evolução da doença ou lesão que provocaram a morte.

Não se escamoteie, como já antes escrevemos, que a delimitação do risco e do interesse relevante, a cargo da entidade seguradora, implica um conhecimento efectivo da dimensão do próprio risco, sendo certo que, pela natureza das coisas, esse conhecimento é acessível, em primeira linha ao segurado, devendo ser levado à esfera de cognoscibilidade do segurador, pois, só deste modo, este poderá formar uma decisão de contratar, precisando os termos da cobertura dos riscos e do prémio.[11] E, da mesma maneira, é ostensivo que para a ré/seguradora liquidar o capital segurado tem direito a conhecer esses aspectos (circunstâncias, causas, início e evolução da doença ou lesão que provocaram a morte), daí não decorrendo, contrariamente ao decidido pela Relação, qualquer inversão do ónus probatório estabelecido na lei, que permita apodar a cláusula supra enunciada de absolutamente proibida, e como tal nula, por violação do art. 21.º, n.º 1, al. f), da LCCG.

Como explica Ana Prata, “proíbe-se aqui qualquer alteração convencional dos critérios de distribuição do ónus da prova, independentemente dos respectivos efeitos na dificultação que ela acarrete para o aderente/consumidor na respectiva produção. Existe – e justificadamente do ponto de vista sociológico – como que uma presunção inilidível de que qualquer cláusula que tenha esse conteúdo, quando elaborada pelo predisponente, tem forçosamente o efeito de dificultação da prova, o que representa uma acrescida tutela do aderente”.[12]

Ora, a cláusula vertida no art. 14.º, n.º 1, al. c) das condições gerais, ao invés do decidido no Acórdão recorrido, não é nula e não viola o princípio geral de boa fé, não se podendo sufragar o entendimento que a mesma, ao obrigar a beneficiária do seguro à entrega de um atestado médico onde se enunciem as circunstâncias, causas, início e evolução da doença ou lesão que provocaram a morte do segurado (seu marido), seja abusiva ou vicie regras atinentes ao ónus da prova.

Na verdade, as causas e as circunstâncias em que ocorreu a morte da pessoa segura configuram um verdadeiro facto constitutivo do direito, sendo que não basta invocar a morte para accionar um seguro de vida, não decorrendo daí que, com esta exigência contratual, a ré/recorrente esteja a inverter qualquer ónus da prova relativamente a um direito, mas simplesmente a exigir que os beneficiários do seguro façam prova do seu próprio direito, o direito a receberem a indemnização.

Como bem nota a ré/recorrente nas suas alegações recursivas de fls. 492 e segs., através da cláusula apreciada, não se procura obter uma qualquer vantagem ilegítima e/ou escusar-se ao pagamento do capital seguro, simplesmente pretende-se que lhe seja feita a entrega do único meio de comprovar a verificação do evento seguro (o atestado médico), sendo certo que são os familiares dos segurados, quem, em condições normais, acompanham os mesmos durante a sua última fase da vida e, por esse facto, sabem quem foram os médicos que os trataram, em que estabelecimentos de saúde, etc., e, portanto, poderão obter sem qualquer dificuldade tal documento.

Essa obrigação, a cargo da autora/recorrida, resulta, inclusive, de um princípio de transparência e de um princípio de boa fé nas relações contratuais: a apresentação de um relatório médico onde constem as circunstâncias, causas, início e evolução da doença ou lesão que provocaram a morte é uma exigência clara, transparente e de fácil obtenção e não viola qualquer das disposições da LCCG.

Assim e concluindo, a cláusula geral que impõe ao segurado, a fim de poder receber a importância, a apresentação de documentos que atestem o carácter acidental do falecimento e determine a relação causa/efeito entre o acidente e a morte, não é violadora das regras e princípios relacionados com o equilíbrio e lisura na celebração e execução do referido contrato.

Por isso mesmo, não se demonstrando que ocorra qualquer violação do art. 21.°, al. g), da LCCG, não é nula a cláusula 14.ª, n.º 1, alínea c), das condições gerais da apólice, soçobrando, outrossim, esta segunda questão.

3.

Entrando na terceira questão do recurso da ré, atinente à obrigatoriedade da autora/recorrida, como condição do direito ao pagamento do capital seguro, lhe facultar os documentos por esta solicitados, designadamente o atestado médico onde estejam elencadas as circunstâncias, causas, início e evolução da doença ou lesão que provocaram a morte, a nossa resposta não pode deixar de ser positiva (esta questão, como é bom de ver, está intrinsecamente ligada à analisada em 2.).

A ré/recorrente tem o direito de recusar o pagamento do capital seguro se e enquanto a autora/recorrida não entregar um atestado médico onde se declarem as tais circunstâncias, causas, início e evolução da doença ou lesão que provocaram a morte ao segurado, seu falecido marido.

Ora, até este momento a autora/recorrida não cumpriu essa sua obrigação de apresentação de atestado médico (com menção das circunstâncias, causas, início e evolução da doença ou lesão que provocaram a morte), pelo que só depois de exibido tal documento é que a ré/recorrente se poderá pronunciar quanto ao pagamento ou não do capital seguro, o que ainda não foi feito!

Repetimos, nos presentes autos, ainda hoje não se sabe a causa da morte do falecido marido da autora/recorrida; por isso, a ré/recorrente tem o direito de recusar o pagamento enquanto a recorrida não cumprir a sua contraprestação de entrega do atestado médico ou documento análogo com as características assinaladas.

Não se pode deixar de assinalar alguma estranheza na atitude que a autora/recorrida, por si e pelos seus mandatários, assumiu perante as várias solicitações da ré/recorrente, para obter aquela informação, conforme se alcança, designadamente, das respostas negativas vertidas nos documentos insertos a fls. 57 (14-12-2009), fls. 69 (20-04-2000) e a fls. 74/75 (30-06-2000), e não se pode deixar de manifestar perplexidade em face da posição assumida pela autora AA, aquando da prestação do depoimento de parte, em sede de audiência final, quando intimada a responder aos artigos 3.º e 4.º da base instrutória[13], que ficou vertida em despacho: “Pela autora foi dito que não presta declarações à matéria dos artigos 3.º e 4.º da Base Instrutória porque entende que se trata de matéria de reserva da vida privada e que foi instruída pela sua mandatária para não as efectuar” – cf. acta de 04-06-2012, inserta a fls. 248 a 251.

No fundo é legítimo perguntar se será que a demandante tem conhecimento que a causa da morte do seu marido não estava abrangida pela cobertura do seguro?

Nesta consonância, uma vez que a recorrida não cumpriu a sua obrigação de entrega dos documentos a que estava contratualmente vinculada, mostra-se legitimada a recusa da ré/recorrente a pagar o montante indemnizatório previsto no contrato de seguro (o capital seguro), sem necessidade de recurso ao estatuído no art. 428.º do Código Civil – neste mesmo sentido, cf. o Acórdão do STJ, de 29-05-2012, já citado.

4.

Resta, por fim, analisar o recurso subordinado da autora/recorrida, no que tange à pretensa nulidade do acórdão por não se ter pronunciado sobre as conclusões 28 a 35 e 50 a 52 do seu recurso de apelação, relativas à necessidade de autorização da CNPD, a obter pela ré, para aceder aos dados de saúde do falecido marido da autora, nem sobre as questões de inconstitucionalidade constantes da conclusões 69 e 70 do mesmo recurso.

            O acórdão recorrido, efectivamente, não se pronunciou sobre todos aqueles aspectos, mormente sobre as alegadas inconstitucionalidades, nem tinha de se pronunciar, em face da solução jurídica que acolheu, totalmente favorável às pretensões indemnizatórias da autora, embora se tenha pronunciado, em certa medida, no que tange à necessidade de autorização da CNPD – cf. fls. 483 e segs..

            Façamos, pois, a análise detalhada dessas questões.

O teor da cláusula contratual 14.ª, n.º 1, reitera-se, era o que segue:

“O pagamento das importâncias seguras terá lugar nos escritórios da Seguradora após a entrega dos documentos comprovativos da qualidade de Beneficiário, e mediante a apresentação dos documentos indispensáveis à sua regularização, a saber:

a) Certidão de Nascimento ou Bilhete de Identidade da Pessoa Segura;

b) Certidão de Óbito da Pessoa Segura;

c) Atestado Médico onde se declare as circunstâncias, causais, início e evolução da doença ou lesão que provocaram a morte.”

            Está fora de dúvida que os dados relativos à saúde pessoal integram o âmbito de protecção legal e constitucional do direito à reserva da intimidade da vida privada, conforme promana dos arts. 80.º do CC e 26.º da Constituição – veja-se, a este propósito, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 355/97, de 07-05-1997, e 368/02, de 25-09-2002[14] -, sendo verdade que semelhante protecção se estende mesmo depois da morte do titular, nos termos do art. 71.º do CC.[15]

O direito à reserva da intimidade da vida privada, entre outros direitos pessoais, previsto no art. 26.º da Constituição, traduz, como se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 355/97, “o direito a uma esfera própria inviolável, onde ninguém deve poder penetrar sem autorização do respectivo titular”.

Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, este direito “analisa-se principalmente em dois direitos menores: (a) o direito a impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar e (b) o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada e familiar de outrem”.[16] 

“Em princípio, o direito à reserva da intimidade da vida privada incluirá (...) também um dever de respeitar o segredo, isto é, a proibição de acções com o objectivo de tomar conhecimento ou de obter informações sobre a vida privada de outrem, que devem ser consideradas intrusivas”, incluindo designadamente os “elementos respeitantes à saúde”.[17]

Mas este direito não é absoluto em todos os casos e em todos os domínios. Como sublinha o mesmo autor, “podemos verificar que a «infra-estrutura» teleológica do problema da tutela da privacy é caracterizada por uma fundamental contraposição: de um lado, o interesse do indivíduo na sua privacidade, isto é, em subtrair-se à atenção dos outros, em impedir o acesso a si próprio ou em obstar à tomada de conhecimento ou à divulgação de informação pessoal (interesses estes que, resumindo, poderíamos dizer serem os interesses em evitar a intromissão dos outros na esfera privada e em impedir a revelação da informação pertencente a essa esfera); de outro lado, fundamentalmente o interesse em conhecer e em divulgar a informação conhecida, além do mais raro em ter acesso ou controlar os movimentos do indivíduo – interesses que ganharão maior peso se forem também interesses públicos”.[18]

Não se consegue, a este respeito, compreender o raciocínio empreendido pelo acórdão recorrido quando refere: “As autorizações concedidas no documento de fls. 45 e 46, pela Apelante e seu falecido marido, em letra consideravelmente miudinha e de difícil leitura, não se pode confundir, com um consentimento livre, informado e consciente, como o exigem os artigos 3º, alínea h) e 7º, nº 2, da Lei 67/98, de 26/10. O consentimento para a seguradora aceder aos dados clínicos do tomador do seguro, tem de ser um consentimento expresso, autonomizado quer das cláusulas contratuais, quer de outros elementos, nomeadamente se estiverem impressas, devendo esse consentimento ser informado e não devendo ser imposto como condição sine qua non da realização do seguro, pois que tal se traduz numa forma de coação sobre o tomador do seguro, já que à primeira vista não se afigura o mesmo essencial para a execução do contrato, nos termos da alínea a), do artigo 6º da Lei nº 67/98, de 26/10” (sic, fls. 484, 5.º e 6.º parágrafos).

Adiantamos que nos parece evidente que o acesso aos dados de saúde do falecido/segurado, para efeitos de seguro de vida, não é violador das disposições legais sobre confidencialidade e reserva da vida privada, na medida em que a celebração e aceitação das condições do contrato de seguro vida (cf. fls. 46), consubstanciam um consentimento do falecido/segurado ao acesso a esses dados, significando que o falecido manifestou aceitar que a seguradora tivesse acesso àqueles dados após a sua morte, sem os quais a indemnização não pode ser paga.

Efectivamente, está em causa a análise do regime vertido na Lei da Protecção de Dados Pessoais (LPDP), aprovada pela Lei n.º 67/98, de 26-10 (com a Rect. n.º 22/98, de 28-11)[19], segundo a qual “o tratamento de dados pessoais deve processar-se de forma transparente e no estrito respeito pela reserva da vida privada, bem como pelos direitos, liberdades e garantias fundamentais” – art. 2.º.

Para efeitos desse diploma, nos termos do art. 3.º, entende-se por “Dados pessoais”: “qualquer informação, de qualquer natureza e independentemente do respectivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável” (“titular dos dados”) (a), por “Tratamento de dados pessoais” (“tratamento”): “qualquer operação ou conjunto de operações sobre dados pessoais, efectuadas com ou sem meios automatizados, tais como a recolha, o registo, a organização, a conservação, a adaptação ou alteração, a recuperação, a consulta, a utilização, a comunicação por transmissão, por difusão ou por qualquer outra forma de colocação à disposição, com comparação ou interconexão, bem como o bloqueio, apagamento ou destruição” (b), e por “Consentimento do titular dos dados”: “qualquer manifestação de vontade, livre, específica e informada, nos termos da qual o titular aceita que os seus dados pessoais sejam objecto de tratamento” (h) (sublinhados nossos).

No que concerne ao “tratamento de dados sensíveis”, em que se inserem os dados relativos à saúde, rege o art. 7.º, na parte relevante:

“1. É proibido o tratamento de dados pessoais referentes a (…) vida privada (…), bem como o tratamento de dados relativos à saúde (…), incluindo os dados genéticos.

2. Mediante disposição legal ou autorização da CNPD, pode ser permitido o tratamento dos dados referidos no número anterior quando por motivos de interesse público importante esse tratamento for indispensável ao exercício das atribuições legais ou estatutárias do seu responsável, ou quando o titular dos dados tiver dado o seu consentimento expresso para esse tratamento, em ambos os casos com garantias de não discriminação e com as medidas de segurança previstas no artigo 15.º

3. O tratamento dos dados referidos no n.º 1 é ainda permitido quando se verificar uma das seguintes condições:

a) Ser necessário para proteger interesses vitais do titular dos dados ou de uma outra pessoa e o titular dos dados estiver física ou legalmente incapaz de dar o seu consentimento;

b) (…);

c) (…);

d) Ser necessário à declaração, exercício ou defesa de um direito em processo judicial e for efectuado exclusivamente com essa finalidade.

4. O tratamento dos dados referentes à saúde e à vida sexual, incluindo os dados genéticos, é permitido quando for necessário para efeitos de medicina preventiva, de diagnóstico médico, de prestação de cuidados ou tratamentos médicos ou de gestão de serviços de saúde, desde que o tratamento desses dados seja efectuado por um profissional de saúde obrigado a sigilo ou por outra pessoa sujeita igualmente a segredo profissional, seja notificado à CNPD, nos termos do artigo 27.º, e sejam garantidas medidas adequadas de segurança da informação”.

A CNPD produziu a Deliberação n.º 51/2001, de 03-07-2001, que entretanto veio a ser actualizada, pela Deliberação nº 72/2006, da mesma Comissão, de 30-05-2006 – visando, precisamente, a situação de pedido de acesso a dados pessoais de saúde de titulares já falecidos, quer por parte de Companhias de Seguro do Ramo Vida, quer por parte de familiares desse titulares para apresentarem junto daquelas companhias esses dados –, com as seguintes conclusões:

“1. O actual contexto jurídico é igual àquele que se verificava quando a CNPD elaborou a Deliberação 51/2001.

2. As normas constitucionais e os diplomas legais em vigor proíbem o acesso das Seguradoras aos dados pessoais de saúde dos titulares segurados já falecidos, sem o consentimento expresso destes para esse efeito.

3. Quanto aos familiares, gozam estes de um certo “ direito à curiosidade ”, o que lhes permite aceder apenas ao relatório da autópsia ou à causa de morte, mas não lhes abre a faculdade de aceder a mais informação de saúde nem a dados pessoais que se encontram na esfera mais íntima do titulares falecido. Só em casos concretos em que haja direitos e interesses ponderosos, tais como o exercício de direitos por via da responsabilização civil e/ou disciplinar ou penal dos prestadores de cuidados de saúde, e exclusivamente com esta finalidade, podem os familiares aceder aos dados pessoais de saúde dos titulares falecidos.

4. No entanto, “não parece haver qualquer fundamento legal, na Lei 67/98, que permita o fornecimento da documentação clínica aos beneficiários de um seguro de vida para, depois, entregarem essa informação à seguradora” .

5. Em condições de normalidade na execução do contrato de seguro do ramo Vida, os beneficiários das compensações devidas pelos seguros do ramo VIDA, a partir do facto relevante MORTE do segurado, têm, na sua esfera jurídica, um direito subjectivo à compensação. Por sua vez, na esfera jurídica das Seguradoras existe uma obrigação de pagar a compensação.

6. A posição processual mais onerada de qualquer das partes, seja a das Seguradoras, não pode ser aliviada à custa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

7. A contracção dos direitos fundamentais à privacidade e à protecção dos dados pessoais dos titulares falecidos não se apresenta como necessária ao não desaparecimento ou inviabilidade da actividade económica das Companhias de Seguros na contratação do ramo Vida.

8. Não havendo lei com regime habilitante ao acesso aos dados pessoais dos segurados falecidos, as Companhias de Seguros e os familiares destes titulares, para efeitos de pagamento/recebimento de indemnização decorrente da morte do segurado em virtude de contrato de seguro do ramo Vida, só podem aceder aos dados pessoais de saúde dos titulares se estes tiverem dado o seu consentimento informado, livre, específico e expresso para esse acesso, conforme atrás se explicitou.

9. O consentimento para o tratamento – acesso – dos dados pessoais deve ser autónomo das restantes cláusulas contratuais, mormente quando estas são prédefinidas pelas Companhias de Seguros.

10. Os dados pessoais necessários e suficientes para essa finalidade são os que respeitam exclusivamente à origem, causas e evolução da doença que provocou a morte dos titulares segurados”.

Vistos os dispositivos legais acima indicados, estando dirimida – no ponto 2. deste acórdão –, a plena validade da cláusula 14.ª, n.º 1, al. c), das Condições Gerais do contrato de seguro de vida, tendo-se provado que EE e a autora apuseram, na respectiva proposta, a sua assinatura por baixo das seguintes declarações:

Para efeitos de celebração do presente contrato de seguro, declaro que:

1. São exactas e completas as informações por mim prestadas e que tomei conhecimento de todas as informações necessárias à celebração do presente contrato, tendo-me sido entregues as respectivas Condições Gerais e Especiais, para delas tomar integral conhecimento, e prestados todos os esclarecimentos sobre as mesmas condições, nomeadamente sobre garantias e exclusões com as quais estou de acordo.

2. Autorizo a consulta dos dados pessoais disponibilizados, sob o regime de absoluta confidencialidade, às empresas que integram o Grupo, desde que compatível com a finalidade de recolha dos mesmos.

3. Autorizo a Seguradora a proceder à recolha de dados pessoais complementares junto de organismos públicos, empresas especializadas e outras unidades económicas, tendo em vista a confirmação ou complemento dos elementos recolhidos, necessários à gestão da relação contratual.

4. (…)

5. A Declaração de Saúde constante deste impresso faz parte integrante do seguro. As declarações inexactas ou reticentes ou a omissão de factos, tornam o contrato nulo e sem qualquer efeito e libertam a Seguradora do pagamento de qualquer indemnização.

Autorizo os médicos e todas as pessoas consultadas pela Seguradora a prestarem a esta ou ao seu serviço médico as informações que venham a ser solicitadas com contrato de seguro de vida.

6. Tanto o Tomador de Seguro como a Pessoa Segura declara ter tomado conhecimento das Condições Gerais do contrato a realizar, bem como do local onde se efectuam Exames Médicos e/ou Exames Auxiliares de Diagnóstico que se tornem necessários pela conjugação do Capital com a Idade da Pessoa Segura ou pela existência de outros seguros de vida, pelo que as garantias deste seguro só serão accionadas após aceitação pela Seguradora e comunicação ao Tomador do Seguro (…)”, não se compreende como não podem deixar de estar plenamente salvaguardadas as exigências contidas na LNPD, e que a Deliberação nº 72/2006 do CNPD recorda, mormente no que tange ao consentimento livre, específico, informado – art. 3.º, al. h) – e expresso – art. 7.º, n.º 2 – por parte dos segurados, em especial pelo falecido.

De facto, no caso concreto, consta da apólice declaração autónoma, destacada do clausulado, assinada pelos segurados (portanto, também pelo falecido marido da autora) concedendo à seguradora consentimento para aceder aos seus dados de saúde, não apenas para o momento da celebração do contrato, como habilidosamente alegou a autora, mas para a sua gestão e consequente execução, verificado o sinistro, como é evidente.

Tal declaração aparece perfeitamente explícita e enfática no que concerne a tal consentimento, mostra-se informada, não violando, de modo algum, a disciplina da Lei n.º 67/98 ou a deliberação da CNPD, atrás transcrita.

Assim sendo, existindo consentimento expresso do respectivo titular, não necessitava a segurada de autorização da CNPD para aceder aos dados relativos à saúde do falecido marido da autora, como resulta claramente do n.º 2 (segunda parte) do art. 7.º da Lei n.º 67/98, não se vendo razão alguma para a insólita recusa da autora.

Consequentemente, improcedem as questões suscitadas pela autora nas conclusões 28 a 35 e 50 a 52.

Vejamos, por fim, as questões das inconstitucionalidades suscitadas:

- Por um lado, a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 406.º do Código Civil, no sentido de que a autora, beneficiária num contrato de Seguro Vida, deve enviar os dados de saúde do seu falecido marido, mesmo que tal obrigação esteja contratualmente prevista, sem que antes a ré seguradora demonstre ter, cumulativamente, o consentimento e a autorização prévia da CNPD, nos termos do disposto nos artigos 7.º n.º 2 e 28.º da LPD, por violação do artigo 26.º n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.

- Por outro lado, a inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 8, e 26.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa da interpretação do princípio da livre apreciação da prova, constante do artigo 655.º do CPC, segundo a qual o Tribunal pode valorar prova junta pela seguradora ré, atinente a dados de saúde do falecido, no âmbito de um contrato de seguro vida, sem que antes a Seguradora ré demonstre ter consentimento do falecido e autorização prévia do CNPD para utilizar esses meios de prova nos termos do disposto nos artigos 7.º n.º 2 e 28.º da LPD.

Na sequência do já exposto, ambas as questões não fazem qualquer sentido, porquanto, como já se disse, o falecido/segurador prestou o seu consentimento para a consulta dos seus dados de saúde, mostrando-se prejudicada qualquer pronúncia sobre estas duas supostas inconstitucionalidades.

Destarte, improcedem, in totum, as conclusões recursivas da autora/recorrida.


*

            Coligem-se, assim, as seguintes conclusões:

- O contrato de seguro de grupo caracteriza-se pelo facto da sua formação se registar em dois momentos distintos: num primeiro momento, é celebrado um contrato entre a seguradora e o tomador de seguro, e, num segundo momento, concretizam-se as adesões dos membros do grupo.

- O dever de informação e esclarecimento do aderente a um contrato de seguro de grupo recai sobre o tomador de seguro.

- Caso a segurada pretendesse pôr em causa o efectivo conhecimento e esclarecimento a respeito do contrato de seguro de vida e suas condições, coberturas e exclusões, deveria ter demandado não a seguradora, mas sim o tomador do seguro, sendo inoponível àquela o eventual desconhecimento do clausulado contratual e de tais circunstâncias.

- A cláusula geral que impõe à segurada sobreviva, a fim de poder beneficiar da cobertura do contrato de seguro de vida, a apresentação de documento onde se declarem as circunstâncias, causas, início e evolução da doença ou lesão que provocaram a morte ao segurado, não é violadora do art. 21.°, al. g), da LCCG, porquanto não modifica os critérios de repartição do ónus da prova.

- A seguradora tem o direito de recusar o pagamento do capital seguro se e enquanto a segurada não entregar um atestado médico onde se declarem as tais circunstâncias, causas, início e evolução da doença ou lesão que provocaram a morte ao segurado, seu falecido marido.

- A disponibilização dos dados de saúde do falecido/segurado, para efeitos de accionamento do seguro de vida, não é violadora das disposições legais sobre a confidencialidade e a reserva da vida privada, na medida em que a celebração e aceitação das condições do contrato de seguro de vida, onde se insere a autorização de acesso àqueles dados, consubstanciam o consentimento do falecido/segurado, significando que o segurado manifestou aceitar que a seguradora pudesse aceder àqueles dados, após a sua morte.

Decisão

Termos em que acordam neste STJ em revogar o acórdão recorrido, julgando procedente a revista da ré e improcedente a revista subordinada da autora, absolvendo a ré dos pedidos.

Custas pela autora.


Lisboa, 9 de Julho de 2014


Moreira Alves (Relator)

Alves Velho

Paulo Sá

________________
[1] A autora/recorrida alude ao art. 636.º, n.º 2, do NCPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 (cf. fls. 543/574), o que é inexacto, porquanto tendo a acção dado entrada em juízo em 18-10-2010 (cf. fls. 23) e sendo o Acórdão recorrido de 20-06-2013, aplica-se ao processo o CPC revogado, na versão emergente do DL n.º 303/2007, de 24-08.
Por isso, deve considerar-se, como correcta, a referência ao art. 684.º-A, n.º 2 do CPC.
[2] Na versão introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24-08 – cf. arts. 11.º, n.º 1, e 12.º, n.º 1, deste diploma (vide nota 1).
[3] Especificamente, nas conclusões 69 e 70 da apelação, consignara a autora – cf. fls. 410:
“69. É inconstitucional a interpretação do artigo 406.º do Código Civil, no sentido de que a autora, beneficiária num contrato de Seguro Vida, deve enviar os dados de saúde do seu falecido marido, mesmo que tal obrigação esteja contratualmente prevista, sem que antes a ré seguradora demonstre ter, cumulativamente, o consentimento e a autorização prévia da CNPD, nos termos do disposto nos artigos 7.º n.º 2 e 28.º da LPD, por violação do artigo 26.º n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.
70. É inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 8, e 26.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa a interpretação do princípio da livre apreciação da prova, constante do artigo 655.º do CPC, segundo a qual o Tribunal pode valorar prova junta pela Seguradora Ré, atinente a dados de saúde do falecido, no âmbito de um contrato de seguro vida, sem que antes a Seguradora Ré demonstre ter consentimento do falecido e autorização prévia do CNPD para utilizar esses meios de prova nos termos do disposto nos artigos 7.º n.º 2 e 28.º da LPD”.
[4] Almeida Costa, Revista de Legislação e Jurisprudência, 129, p. 20.
[5] Como se exarou no Acórdão do STJ, de 27-01-2004, Proc. n.º 03A4107: “Emitida a apólice, o contrato de seguro existe e vale com o conteúdo que consta da apólice, que é o único e necessário título do contrato, a menos que se prove que este conteúdo não foi contratado», por outro lado «a exigência de forma prescrita no artigo 426.º do Código Comercial apenas se aplica à apólice, funcionando esta como instrumento bastante para a existência do próprio contrato de seguro” – acessível em http://www.dgsi.pt, tal como os restantes acórdãos que se citarem neste aresto.

[6]  O âmbito de aplicação do art. 429.º do Código Comercial é geral, dizendo respeito a todos os contratos de seguro, seja qual for a natureza dos bens e do sinistro.

[7] No preâmbulo deste diploma consigna-se: “A diversidade de coberturas, exclusões e demais condições, com maior ou menor grau de explicitação no contrato, justifica que, à semelhança do que se verifica no sector bancário, se introduzam regras mínimas de transparência nas relações pré e pós-contratuais. Pretende-se, assim, definir algumas regras sobre a informação que, em matéria de condições contratuais e tarifárias, deve ser prestada aos tomadores e subscritores de contratos de seguro pelas seguradoras que exercem a sua actividade em Portugal”.
[8] Intermediação de Seguros e Seguro de Grupo - Estudos de Direito dos Seguros, 2007, pp. 291 a 293.
[9] O regime da LCCG, consagrado no DL n.º 446/85, de 25-10, foi sucessivamente alterado pelos seguintes diplomas: DL n.º 220/95, de 31-08, Rectif. n.º 114-B/95, de 31-08, DL n.º 249/99, de 07-07, e D.L. n.º 323/2001, de 17-12.
[10] Neste sentido, Paula Ribeiro Alves, op. cit., pp. 313 a 315.
[11] Neste sentido, cf. Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, 2013, p. 573.
[12] Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais, 2010, p. 511.
[13] É o seguinte o teor daqueles artigos da base instrutória:
“3.º Em 17-12-2003, quando preencheu o questionário referido em H), EE sabia que sofria de diabetes?
4.º E, em 17-12-2003, quando preencheu o questionário referido em H), EE tinha conhecimento que sofria de HTA?”
[14] Ambos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt.
[15] Neste mesmo sentido, Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2005, p. 284.
[16] Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª Edição Revista, 1993, nota VIII ao artigo 26º.

[17] Paulo Mota Pinto, A Protecção da Vida Privada e a Constituição, “Boletim da Faculdade de Direito –, Universidade de Coimbra”, Vol. LXXVI, pp. 153 e segs.
[18] Op. cit, pp.. 508/509
[19]  Lei que transpôs para a ordem jurídica portuguesa a Directiva n.º 94/46/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24-10-1995, relativa à protecção dos dados pessoais e à livre circulação desses dados.