Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5567/06.7TVLSB.L2.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: GRANJA DA FONSECA
Descritores: RECURSO DE REVISTA
DUPLA CONFORME
REGIME APLICÁVEL
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
QUESTÃO NOVA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ABUSO DE PODERES DE REPRESENTAÇÃO
ABUSO DO DIREITO
CONHECIMENTO OFICIOSO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
MANDATO COM REPRESENTAÇÃO
VÍCIOS DA VONTADE
SIMULAÇÃO
Data do Acordão: 10/23/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - APLICAÇÃO NO TEMPO DA LEI PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- HEINRICH EWALD HÖRSTER, Teoria Geral do Direito Civil, pp.476, 489.
- JOÃO ESPÍRITO SANTO, O documento superveniente para efeito de recurso ordinário e extraordinário, Coimbra, Almedina, 2001, páginas 54/55.
- MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo IV, 2005, página 373.
- PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, 7ª edição, 2012, página 583.
- RODRIGUES BASTOS, Notas ao “Código de Processo Civil”, III, página 282,
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 240.º, N.ºS 1 E 2, 258.º, 259.º, N.º1, 268.º, N.ºS 1 E 4, 269.º, 286.º, 334.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGOS 635.º, 674.º, N.º3, 679.º, 680.º, 682.º, N.º1.
LEI N.º 41/2013, DE 26-07: - ARTIGO 7.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 29/06/1999, REVISTA N.º 399/99 – 1ª SECÇÃO;
-DE 4/04/2002, REVISTA N.º 729/02-7ª SECÇÃO;
-DE 4/02/2010, REVISTA N.º 2620/06.0TJPRT.S1-7ª SECÇÃO;
-DE 21/04/2010, REVISTA N.º 634/05.7TBMGR.C1.S1-2ª SECÇÃO;
-DE 23/02/2012, REVISTA N.º 1978/05.3TVRL.P1.S1-6ª SECÇÃO;
-DE 18/10/2012, REVISTA N.º 660/04.3TBPTM.E1.S1 – 7ª SECÇÃO;
-DE 11/12/2012, REVISTA N.º 116/07.2TBMCN.P1.S1-6ª SECÇÃO;
-DE 18/12/2012, REVISTA N.º 402/06.9TBVCT.G1.S1-1ª SECÇÃO;
-DE 11/07/2013, REVISTA N.º 1845/07.6TVLSB.L1.S1-6ª SECÇÃO;
-DE 28/11/2013, PROCESSO N.º 161/09.3TBGDM.P2.S1, IN WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Não obstante a dupla conformidade entre o acórdão recorrido e a sentença de 1.ª instância nada obsta à admissibilidade do recurso de revista posto que, muito embora o acórdão tenha sido proferido depois da entrada em vigor da Lei n.º 41/2013, de 26-07, a acção foi instaurada antes de 01-01-2008, pelo que se aplicam ao recurso as regras decorrentes do DL n.º 303/2007, ressalvada a questão da dupla conforme (art. 7.º, n.º 1, da Lei n.º 41/2013, de 26-07).

II - Sendo os recursos meios processuais de impugnação de decisões anteriores, os mesmos apenas incidem sobre questões anteriormente apreciadas, não podendo o tribunal ad quem ser confrontado com questões não colocadas no tribunal a quo.

III - Invocando o autor – no recurso de revista – factos novos, não pode o STJ deles conhecer por força do disposto no art. 682.º, n.º 1, do NCPC (2013).

IV - O abuso de representação (invocado apenas em sede de recurso de revista) é uma modalidade de abuso de direito, o qual é de conhecimento oficioso.

V - O abuso de representação pode ser oficiosamente conhecido pelo STJ, ainda que constitua uma questão nova e apenas tenha sido invocado nas alegações de revista, mas o seu conhecimento depende da alegação e prova dos respectivos pressupostos, não podendo o mesmo ser apreciado à luz de factos não provados, ou de factos e/ou documentos novos que visam uma alteração da matéria de facto.

VI - Um negócio jurídico concluído pelo representante, em nome do representado e dentro dos poderes que lhe competem, vincula e responsabiliza juridicamente o representado, bem como a outra parte com quem o representante negociou.

VII - Sendo o representante quem emite uma declaração negocial própria, é na sua pessoa – e não na do representado – que se devem verificar as faltas ou vícios da vontade, bem como o conhecimento ou ignorância dos factos, que determinem a nulidade ou anulabilidade dessa declaração.

VIII - Para fazer vingar a tese do abuso de representação, incumbia ao autor a prova de factos que surpreendessem a actividade abusiva do réu (representante), bem como o conhecimento (ou dever conhecer) por parte da ré mulher desse mesmo abuso.

IX - A simulação consiste numa divergência bilateral entre a vontade e a declaração que comporta três requisitos de verificação simultânea: (i) acordo entre as partes com o fim de criar uma falsa aparência de negócio; (ii) divergência entre a vontade real e a declarada; (iii) com o intuito de enganar terceiros.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:




AA demandou BB e CC, pedindo:

a) - Se declarasse a anulação da procuração junta aos autos e, consequentemente, a declaração de nulidade do contrato de compra e venda vertido na escritura pública outorgada pelos réus, em 4/07/2003, no Cartório Notarial de Lisboa e exarada no respectivo Livro nº …, de fls. 45 a 46, por se tratar da venda de bem alheio;

b) - Se assim se não entender, se declarasse que o contrato de compra e venda é nulo e de nenhum efeito por simulação.

c) – Se ordenasse o cancelamento dos registos efectuados pela 2ª ré com base na escritura de compra e venda na 6ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, e que constam as inscrições à descrição nº …, da freguesia de S. Mamede.

d) – Se declarasse a sonegação de tal bem pelo 1º réu, referente à herança da mãe do autor.

Fundamentando a sua pretensão, alegou, em síntese, que por escritura pública, outorgada no 6º Cartório Notarial de Lisboa, em 4/07/2003, o 1º réu, por si e na qualidade de procurador de sua mulher DD, mãe do autor, declarou vender à 2ª ré, que aceitou comprar, a fracção autónoma individualizada pela letra "J", afecta exclusivamente à habitação, correspondente ao 3º andar frente, do prédio urbano sito na Rua da Escola Politécnica nº … a …-B da freguesia de S. Mamede, em Lisboa.

O 1º réu era casado no regime de separação de bens com a mãe do autor.

A procuração outorgada pela sua mãe ao 1º réu e que serviu de base à realização do contrato de compra e venda é nula ou, pelo menos anulável, uma vez que não traduz a vontade da mandante que, na altura em que a outorgou, não tinha capacidade para querer e entender o alcance desse acto.

Além disso, a mãe do autor encontrava-se totalmente dependente do 1º réu, quer psicológica, quer fisicamente, que a ameaçava constantemente no sentido de a colocar num lar.

A mãe do autor não assinou a procuração porque tinha perdido a noção e controle da escrita, daí ter aposto a sua impressão digital. Além disso, denotava lapsos de memória, não reconhecia as pessoas da família e necessitava de constante assistência médica e medicamentosa.

Sempre foi intenção da mãe do autor deixar a casa ao seu filho, algo que afirmou várias vezes. Não tinha necessidade de a vender, sendo esta casa então habitada pelo casal, continuando ainda hoje a ser habitada pelo 1º réu, cônjuge sobrevivo.

Aceitando-se que sua mãe, na data da outorga da procuração, estivesse no seu perfeito juízo, certo é que a procuração foi extorquida por coacção do 1 ° réu.

O réu pretendeu, com a outorga da procuração, fazer uma venda fictícia à 2ª ré, que o réu bem conhece há anos e que, inclusivamente, foi empregada lá de casa, a fim de sonegar tal bem à herança.

A 2ª ré não pagou o dinheiro mencionado no contrato - não tinha como o pagar, nem adquiriu nenhum empréstimo bancário.

Além disso, o valor declarado pela venda do imóvel foi muito abaixo do seu valor real.

Em suma, os réus simularam o contrato de compra e venda do imóvel em questão com o intuito de prejudicar o autor, o qual só teve conhecimento da procuração aquando do inventário por óbito de sua mãe, em 18/10/2005.


Os réus contestaram, concluindo pela absolvição do pedido.

Impugnaram o alegado pelo autor, alegando que o imóvel em questão só estava em nome da mãe do autor porquanto, à data da sua aquisição, o 1º réu era ainda casado.

Atenta a situação de doença da DD, esta teve necessidade de vender a casa a fim de prover aos pagamentos necessários com a sua saúde (médica e medicamentosa), uma vez que o dinheiro da reforma do 1º réu não era suficiente par fazer face a todos os encargos.

A venda não foi simulada. Ambas as partes quiseram comprar e vender, tendo o preço estipulado e pago sido no valor de € 50.000. Acordaram tal preço, uma vez que a 2ª ré aceitou que só tomaria posse do imóvel após a morte de ambos, o que ainda hoje se mantém.

Jamais o 1º réu exerceu qualquer coação física ou psicológica sobre a mãe do autor, sendo que esta se manteve sempre lúcida e com pleno discernimento até à sua morte.

O autor é que nunca quis saber de sua mãe, nunca a procurou, nem contribuiu com qualquer ajuda económica, atenta a situação de doença em que esta se encontrava.


Replicou o autor.


Foi proferido despacho saneador, elencados os factos assentes e elaborada a base instrutória - fls. 93 a 97.

Após julgamento foi proferida a sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu os réus do pedido.

Inconformado, apelou o autor, tendo a Relação, por acórdão de 25/10/2011, anulado a sentença recorrida para que se procedesse à ampliação da matéria de facto (vide fls. 562 a 566), o que foi feito, passando essa matéria a constar do quesito 28º.

Foi indeferida a perícia solicitada pelo autor, sobre o estado de saúde da sua mãe.

O autor agravou deste despacho, tendo o mesmo sido reparado (fls. 589, 596 e 693).

Após julgamento, foi proferida sentença que, na improcedência da acção, absolveu os réus do pedido (fls. 819 a 831).

Inconformado, apelou o Autor, tendo a Relação, por acórdão de 27/03/2014, na improcedência da apelação, confirmado a sentença.

De novo inconformado, recorre de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, finalizando as alegações com as seguintes conclusões:

1ª - Decorre dos documentos, ultimamente, conhecidos que o réu BB e a ré CC, aquele titular e esta autorizada, movimentavam livremente a conta nº …., da Caixa Económica Montepio Geral, onde foi depositado o cheque no montante de € 30.000, passado pela ré CC a favor do réu BB, como pagamento de parte do preço da compra e venda da fracção "J", pertencente à mãe do recorrente.

2ª - Na matéria dada como provada, foi, apenas, tido em conta o depoimento de três testemunhas, contratadas e/ou dependentes do réu BB.

3ª - A posição das partes no presente pleito e os documentos juntos tiveram pouca relevância, ou nenhuma para a decisão da causa e a boa aplicação do direito.

4ª - Notório e visível é o negócio prejudicial para a representada, mãe do Autor / recorrente e, consequentemente, para este, que foi feito pelo réu BB, como procurador da mãe do recorrente, com a sua amiga, a ré CC.

5ª - O réu BB vende por € 50.000, declarados na escritura, a fracção autónoma da mãe do Autor/recorrente, que valia, em tal data, o montante de € 159.500.

6ª - O réu BB e a Ré CC eram amigos e conheciam quer a fracção quer o mercado imobiliário da zona onde se localizava tal imóvel, pois residiam lá, agindo nitidamente de má - fé.

7ª - Tratou-se de um negócio simulado, por isso, nulo.

8ª - Mesmo que se entenda que não existiu pacto simulatório, o negócio existente foi, nitidamente, e do conhecimento de ambos os contraentes, como prejudicial para a representada mãe do Autor/recorrente e para este, como seu herdeiro legitimário.

9ª - Sendo tal negócio feito com evidente abuso de representação e do direito.

10ª - Com a única e exclusiva intenção de retirar tal bem da esfera jurídica da representada, mãe do Autor/apelante, para que tal imóvel, à morte dela, não fizesse parte do acervo hereditário.

11ª - Sonegando, assim, antecipadamente, tal imóvel à herança de que o Autor / recorrente era interessado.

12ª - O acórdão recorrido, quanto à boa aplicação do direito, não apreciando o abuso do direito, está em contradição com o acórdão fundamento.

13ª - O acórdão de que se recorre violou, além de outros, os dispositivos legais constantes dos artigos 240º e seguintes, 258º e 259º, 262º, 334º, 341º e seguintes, 762º e 2096º do Código Civil.

14ª - Pelo que, deve o mesmo ser revogado e substituído por outro, com todas as consequências legais.


Contra – alegou a Ré CC, defendendo a confirmação do acórdão recorrido.


Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:

2.

Com a alteração operada pela Relação, quanto ao quesito 27º, que passou a considerar-se como não provado, passaram a constar como provados os seguintes factos:

1º - DD (doravante DD) casou civilmente com o primeiro réu, em 26 de Outubro de 1985, sob o regime de separação de bens (alínea A).

2º - No dia 22 de Outubro de 2001, DD constituiu como seu procurador o autor, a quem concedeu os poderes para a representar em quaisquer partilhas judiciais ou extrajudiciais, requerer inventários, podendo outorgar e assinar as competentes escrituras e contratos de promessa, com as cláusulas e condições que tiver por convenientes, intervir na conferência de interessados, podendo sortear e compor quinhões, licitar, dar e receber tornas, fazer e aceitar notificações, citações, requerer quaisquer actos de registo predial, provisórios ou definitivos, seus averbamentos e cancelamentos, incluindo declarações complementares, requerer, praticar e assinar tudo quanto seja necessário aos indicados fins (alínea B).

3º - Por escritura pública outorgada no 6º Cartório Notarial de Lisboa, em 4 de Julho de 2003, o primeiro réu, por si e na qualidade de procurador de DD, declarou vender pelo valor de cinquenta mil euros, à segunda ré, a qual declarou comprar, a fracção autónoma individualizada pela letra “J”, afecta exclusivamente à habitação, correspondente ao terceiro andar frente, do prédio urbano, sito na Rua da Escola Politécnica, nº … a ….-B, freguesia de S. Mamede, concelho de Lisboa, descrito na 6.ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número …, e inserto a favor da segunda ré pela inscrição … e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo número … (alínea C).

4º - Em 12 de Março de 2003, DD constituiu como seu procurador o primeiro réu, a quem concedeu os poderes de prometer vender, a quem melhor entender, pelo preço, cláusulas e condições que entender conveniente, a fracção referida na alínea C, ponto 3º (alínea D).

5º e 6º - DD viveu com o primeiro réu na fracção referida em C), até à data da sua morte, que ocorreu em 15 de Janeiro de 2004 (alíneas F e E).

7º - O primeiro réu reside actualmente na fracção referida em C) (alínea G).

8º - Aquando do registo da aquisição do imóvel a favor da mãe do autor, em 22/03/1984, o primeiro réu era ainda casado com EE, sendo que tal matrimónio apenas se dissolveu, em 31 de Janeiro de 1985 (alínea H).

9º e 10º - DD, após acidente doméstico, fracturou a bacia, tendo sido sujeita a intervenção cirúrgica, deslocando-se a partir daí em cadeira de rodas (alíneas I e J).

11º - A segunda ré trabalhou durante anos em casa da DD (alínea L).

12º - A segunda ré à data referida em C) residia em casa arrendada (alínea M).

13º - DD era, antes e em 12 de Março de 2003, uma pessoa consciente, apesar de ter alguns lapsos de memória, próprios da idade e problemas de ossos (resposta ao quesito 1º).

14º - Em data anterior à referida em D), DD era assistida médica e medicamentosa, situação que foi agravada com o acidente doméstico que sofreu, referido na alínea I) (resposta dada ao quesito 6º).

15º - DD era uma pessoa consciente, apesar de ter alguns lapsos de memória, o que a levava por vezes a não reconhecer alguns familiares (resposta ao quesito 7º).

16º - Perdeu o controlo da escrita (resposta ao quesito 8º).

17º - DD referiu várias vezes que pretendia deixar por sua morte a fracção referida em C) ao autor (resposta ao quesito 9º).

18º - Os réus conhecem-se há anos, sendo amigos (resposta ao quesito 12º).

19º - A ré vivia do rendimento do seu trabalho, auferindo uma quantia próxima do salário mínimo nacional (resposta ao quesito 14º).

20º - A ré tinha parte do dinheiro, tendo pedido emprestado o restante ao seu pai e à sua irmã (resposta ao quesito 16º).

21º - A fracção referida em C) tinha um valor superior a cinquenta mil euros (resposta ao quesito 19º).

22º - No finai da sua vida, a mãe do autor necessitava de muitos cuidados médicos (resposta ao quesito 24º).

23º - O valor fixado para a venda à primeira ré do imóvel foi abaixo do valor de mercado (resposta ao quesito 26º);

24º - [Eliminado].

3.

O autor, ora recorrente, ao intentar esta acção contra o réu BB, entretanto falecido, e contra a ré CC, pretendia a anulação da procuração, outorgada em 12/03/2003, em que DD constituiu, como seu procurador, o dito BB, seu marido, a quem concedeu os poderes de prometer vender a quem melhor entendesse, pelo preço, cláusulas e condições que entendesse conveniente, a fracção referida na alínea C) dos factos assentes e que, em consequência, fosse declarado que o contrato de compra e venda, vertido na escritura pública outorgada pelos Réus, em 4 de Julho de 2003 e referido no ponto 3º, fosse julgado nulo e de nenhum efeito por se tratar da venda de bem alheio.

Subsidiariamente, peticionou que fosse declarado que o referido contrato de compra e venda, vertido na sobredita escritura pública, era nulo e de nenhum efeito, por simulação e que fosse ordenado o cancelamento dos registos efectuados pela 2ª Ré com base nessa escritura de compra e venda e que, por fim, fosse declarada a sonegação de tal bem pelo 1º Réu, referente à herança da mãe do autor.

A pretensão do autor alicerçou-se (i) na falta de capacidade da DD em entender e querer o alcance da procuração outorgada por esta, constituindo o Réu seu procurador ou, se assim se não entendesse, (ii) na coacção exercida pelo 1º réu sobre a referida DD para que outorgasse essa procuração em seu nome, (iii) visando com tal conduta fazer uma venda fictícia, para que, à morte da mãe do autor, tal bem não fizesse parte da herança de que este era interessado e que ficou assim prejudicado, fazendo isso conluiado com a segunda ré, de quem era amigo há vários anos.

Tendo os réus sido absolvidos dos pedidos contra si formulados pelo autor, ora recorrente, este apelou, defendendo a modificabilidade da matéria de facto no que concerne às respostas dadas a vários quesitos, pretendendo, desse modo, fazer vingar a sua tese, a nulidade do contrato de compra e venda celebrado entre os réus e que tinha por objecto a fracção de que a mãe do autor era a proprietária, seja com fundamento na anulação da procuração, seja por simulação.

3.1.

Revista normal ou excepcional?

Perante a imodificabilidade da matéria de facto pela Relação, salvo no que concerne ao quesito 27º, mas irrelevante para alterar a decisão, a sentença foi confirmada, razão por que o autor recorre para este STJ, configurando o recurso como de revista (normal), nos termos dos n.os 1 e 3 (a contrario) do artigo 671º do NCPC ou, se assim se não entender, como revista excepcional, nos termos da alínea a) e/ou c) do n.º 1 do artigo 672º do NCPC.


Dispõe o n.º 1 do artigo 7º da Lei 41/2013, de 26 de Julho, que aprova o novo CPC, que “aos recursos interpostos de decisões proferidas a partir da entrada em vigor da presente lei em acções instauradas antes de 1 de Janeiro de 2008 aplica-se o regime de recursos decorrentes do DL n.º 303/2007, de 24 de Agosto, com as alterações agora introduzidas, com excepção do disposto no n.º 3 do artigo 671º do CPC, aprovado em anexo à presente lei”.

Tendo o acórdão sido proferido depois da entrada em vigor da referida lei e tendo a acção sido instaurada antes de 1 de Janeiro de 2008, aplicam-se ao recurso interposto as regras decorrentes do DL n.º 303/2007, salvo no que respeita à dupla conforme.

Assim, embora o acórdão recorrido confirmasse a sentença, o recurso interposto é o de revista normal, uma vez que o princípio da dupla conforme se não aplica ao caso.

Porque a verificação da dupla conforme é condição prévia da admissibilidade da revista extraordinária, significa que, não se aplicando ao caso o princípio da dupla conforme, não será admissível o recurso de revista extraordinário mas antes o de revista normal.

4.

Atendendo ao determinado no artigo 679º do NCPC, “são aplicáveis aos recursos de revista as disposições relativas ao julgamento da apelação, com excepção do que se estabelece nos artigos 662º e 665º e do disposto nos artigos seguintes”.

Consagra o artigo 635º, aplicável por força da citada disposição legal, que, “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”.

Ora, lendo as doutas conclusões da alegação do recorrente, constata-se que este abandonou a tese da incapacidade da mandante DD ou da coacção exercida sobre esta pelo seu marido, BB, mantendo o autor a tese da simulação, acrescentando uma nova questão às que constituíram o objecto de recurso da apelação: a do “abuso de representação”.

4.1.

Quanto ao abuso de representação:

O recorrente não alegou, quer perante a 1ª Instância, quer perante o Tribunal da Relação, qualquer vício de "abuso de representação", vindo agora alegar que o pedido por si formulado deve proceder com base em tal vício.

Vejamos:

Os recursos podem definir-se como os meios processuais pelos quais se submetem as decisões judiciais a uma nova apreciação por outro tribunal.

Deste modo, enquanto meio de impugnação de uma anterior decisão, o recurso apenas pode incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo o tribunal ad quem ser confrontado com questões não colocadas no tribunal a quo, ou seja com questões novas, salvo quando estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis.

No caso sub judicio, o recorrente invoca factos novos, junta novos documentos e promove uma alteração da causa de pedir.

Invoca factos novos, ao mencionar designadamente que “a conta n.º …, da Caixa Económica Montepio Geral, liquidada em 2/12/2009, foi titulada pelo Sr. BB, podendo também ser movimentada pela CC”.

Junta documentos novos, alegando ter conhecimento dos mesmos apenas em 24 de Março de 2014.

Promove uma alteração da causa de pedir, deixando a pretensão deduzida de ter por suporte os factos demonstrativos dos vícios apontados perante o Tribunal da 1ª Instância e perante o Tribunal da Relação, que, como vimos, consubstanciavam a falta de capacidade da DD em entender e em querer o alcance da procuração outorgada e/ou a alegada coacção do primeiro réu, BB, sobre aquela.

Agora, o autor sustenta a sua pretensão na invocação de factos que considera como supervenientes, isto é, o cheque emitido pela CC foi depositado na aludida conta da Caixa Económica Montepio Geral, liquidada em 2/12/2009, a qual era titulada pelo réu BB, podendo também ser movimentada pela ré CC, extraindo daí a conclusão de que o negócio foi feito com abuso de representação, invocando que aquele Réu agiu com “animus nocendi” em representação da sua esposa DD, visando, outrossim, o seu próprio benefício e o da recorrida CC.


Parece não sofrer dúvidas que, com a alegação de factos novos, pretende o Recorrente obter uma alteração da decisão da matéria de facto pelo Supremo Tribunal de Justiça ao arrepio do disposto no n.º 3 do artigo 674º do CPC, partindo daí para a verificação de uma nova situação em que seria permitida a apreciação desta nova questão, ora suscitada.


Não se questiona que, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 680º do NCPC, “com as alegações podem juntar-se documentos supervenientes[1]”, acrescentando, porém, a parte final da norma que esta disposição não alarga o poder cognitivo do Supremo relativamente à matéria de facto.

Com efeito, estabelece o n.º 1 do artigo 682º que o STJ é um tribunal de revista e não um tribunal de instância (ver o artigo 209º, n.º 1, alínea a) da Constituição), cabendo-lhe aplicar ao julgamento de facto que lhe vem do tribunal recorrido o regime jurídico que considere adequado.

Daqui resulta que “a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto á matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excepcional previsto no n.º 3 do artigo 674º”.

Assim, confinando-se a competência do STJ à matéria de direito, não pode ele ocupar-se da matéria de facto (ver artigo 46º da Lei 62/2013, de 26 de Agosto), sendo esse o significado excludente da expressão normativa inicial do n.º 3 do artigo 674º: “o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista”.

Todavia, este n.º 3 considera admissível o controlo do STJ sobre certos aspectos atinentes à matéria probatória, desde que incida sobre o direito probatório substantivo: “a excepção tem a ver com a alegação pelo recorrente de que a decisão do tribunal recorrido foi tirada com violação de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou então de que na decisão recorrida se verificou violação de norma expressa que fixe a força de determinado meio de prova”.

Resulta do que se deixa dito que, não se verificando nenhum dos casos excepcionais previstos no n.º 3 do artigo 674º do NCPC, a matéria de facto fixada pelas instâncias não pode ser alterada.

4.2.

Mas, mantendo-se inalterada a matéria de facto, pergunta-se se acaso deverá o STJ conhecer desta questão, pois que, constituindo o abuso de representação uma modalidade do abuso de direito, este instituto é de conhecimento oficioso e, por conseguinte, o seu conhecimento não estaria vedado ao Tribunal, ainda que a sua invocação constitua questão nova.


Como vimos, não é lícito invocar no recurso questões que não tenham sido suscitadas nem resolvidas na decisão de que se recorre. “Porém, a preclusão do conhecimento pelo STJ das questões não suscitadas perante a Relação há-de sofrer as restrições advindas da natureza da questão levantada quando a sua apreciação deva ou possa fazer-se ex officio[2]”.

A circunstância de as partes não terem alegado o abuso de direito não obsta a que o tribunal dela conheça oficiosamente.

O abuso de direito é de conhecimento oficioso, pelo que deve ser objecto de apreciação e decisão, ainda que não invocado pelas partes[3].

Daqui resulta que, mesmo sendo questão nova, pode ser apreciada pelo STJ, como de modo quase uniforme tem sido decidido.

Com efeito, “se o recorrente se limita a classificar juridicamente de forma diversa os factos que, oportunamente, alegou no seu articulado, qualificação essa que o tribunal é livre de efectuar, nos termos do artigo 664º do CPC (actual artigo 5º), essa questão (nova) é de conhecimento oficioso[4]”.

Em suma, “porque a questão do abuso de direito é matéria de conhecimento oficioso, não obsta à sua apreciação a circunstância de só ter sido suscitado em sede de recurso”.[5]

4.3.

Limitação ao princípio do conhecimento oficioso.


Mas há uma limitação a este princípio do conhecimento ex officio do abuso de direito.

Muito embora o abuso de direito (artigo 334º do Código Civil) possa ser, como é, de conhecimento oficioso, não estando, por conseguinte, vedado o seu conhecimento ao Tribunal, isso não significa que este considere ocorrido o abuso de direito à luz de factos que não foram alegados nem se possam considerar adquiridos nos autos.

Ou seja, “mesmo que se considere que esse fundamento (abuso de direito) é de conhecimento oficioso, será sempre necessário que esteja demonstrada a respectiva factualidade para que o mesmo possa ser apreciado[6]”.

Com efeito, “a aplicação do abuso de direito depende de terem sido alegados e provados os competentes pressupostos, salva a hipótese de se tratar de posições indisponíveis. Além disso, as consequências que se retirem do abuso de direito devem estar compreendidas no pedido feito ao tribunal, em virtude do princípio dispositivo”[7].

Significa isto que, não obstante ser o abuso de direito de conhecimento oficioso, não pode tal instituto ser apreciado à luz de factos não provados e de factos novos ou documentos novos que visam a alteração da matéria de facto, vedada, como vimos, à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça.

Neste mesmo sentido, se decidiu no Acórdão do STJ de 28/11/2013[8], considerando que “o abuso de direito (artigo 334º do CC) pode ser objecto de conhecimento oficioso e, por conseguinte, o seu conhecimento não está vedado ao Tribunal, ainda que a sua invocação constitua questão nova (artigo 660º do CPC/artigo 608º, n.º 2 NCPC) mas isso não significa que o Tribunal considere ocorrido o abuso de direito à luz de factos que não foram alegados nem se podem considerar adquiridos nos autos”.

Poder-se-á, pois, dizer que o abuso de direito pode ser oficiosamente conhecido, ainda que, apenas, invocado nas alegações para o STJ, mas a verdade é que o conhecimento oficioso não prescinde da alegação e prova da factualidade que se integre em tal conceito jurídico[9]”, pelo que, para esse feito, é necessário que o tribunal disponha da factualidade pertinente, alegada pelas partes nos respectivos articulados.

4.4.

Se os factos provados permitem concluir que tenha havido abuso de representação.


As declarações negociais nem sempre são prestadas pelas próprias partes. Quer dizer, a declaração pode ser formulada e manifestada por outros que agem em vez das partes ou de uma delas. É o que acontece na representação: há um representante que participa no tráfico jurídico negocial em nome de outrem, o representado, e os efeitos dos negócios por ele concluídos produzem-se, directa e imediatamente, na esfera do representado[10].

Diz o artigo 258º do Código Civil que “o negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último”.

Os pressupostos para a produção de efeitos jurídicos em virtude de representação são assim os seguintes:

1º - Um negócio jurídico;

2º - Realizado pelo representante em nome do representado (contemplatio domini);

3º - Nos limites dos poderes que lhe competem.

Preenchidos estes pressupostos, o negócio jurídico celebrado pelo representante com a outra parte, produz os seus efeitos na esfera jurídica do representado. Quer dizer, um negócio jurídico concluído pelo representante vincula e responsabiliza juridicamente o representado e a outra parte com quem o representante negociou.

Tendo na devida conta que é o representante que, ao agir em vez e em nome do representado, emite uma declaração negocial própria, o artigo 259º, n.º 1, determina que é na sua pessoa, e não na pessoa do representado, que se devem verificar, para efeitos de nulidade ou de anulabilidade da declaração, a falta ou vício da vontade bem como o conhecimento ou a ignorância dos factos que podem influir nos efeitos do negócio.

Em contrapartida, se uma pessoa, ao exceder os seus poderes representativos ou sem quaisquer poderes representativos, celebra um negócio jurídico em nome de outrem (o suposto representado), como se de um caso do artigo 258º se tratasse, o negócio é ineficaz em relação a este (artigo 268º, n.os 1 e 4). Trata-se, nestes casos, de uma representação sem poderes.

É diferente da representação sem poderes o abuso da representação. Fala-se de abuso de representação, quando o representante, tendo ficado dentro dos limites funcionais dos seus poderes representativos, abusou conscientemente e com o conhecimento, ou o dever de conhecer, da outra parte dos poderes que lhe foram atribuídos pelo representado.

Para melhor compreensão do conceito, HEINRICH EWALD HÖRSTER[11] apresenta o seguinte exemplo: “o representado atribui poderes para vender um determinado objecto, indicando ao procurador o preço mínimo que deseja obter. O procurador, por seu lado, vende o objecto a um preço bastante inferior e o comprador, conhecedor dos preços correntes do mercado para objectos daquela espécie, pode imaginar perfeitamente que o representado nunca poderia ter aspirado a um preço tão baixo. A esta situação a lei reage como se os poderes formais não existissem. Segundo o disposto no artigo 269º são aplicáveis, se a outra parte conhecia ou devia conhecer o abuso, as regras do artigo 268º sobre a representação sem poderes”.

Por sua vez, “não se trata de um abuso da representação, quando o procurador, agindo formalmente dentro dos seus poderes funcionais, e a outra parte colaboram conscientemente para prejudicar o representado. Neste caso, em que existe “colusão”, o negócio é ofensivo dos bons costumes, caindo assim sob a alçada do artigo 281º, tendo como consequência a sua nulidade”.

“Também não há abuso da representação quando o procurador é pouco hábil, fazendo mau uso dos seus poderes em prejuízo do representado. Aqui o negócio concluído produz os seus efeitos na esfera deste último. Qualquer outro resultado seria intolerável para o tráfico jurídico. Quem nomeia um procurador, de acordo com a sua autonomia da vontade, está naturalmente sujeito ao risco de este cumprir mal, sem poder repercutir o risco em terceiros”.


Reportando-nos ao caso dos autos, não resulta provado qualquer facto que permita concluir que os poderes de representação tivessem sido usados, quer em sentido contrário ao da representação, quer contrariando as instruções do representado.

Como, aliás realça a recorrida, a alegação de abuso da representação é contraditória e incoerente, com o alegado nos autos pelo próprio autor recorrente.

Com efeito, no abuso da representação, a vontade do representado forma-se validamente, o instrumento que a traduz é igualmente válido e a actuação do representante conforma-se com os limites formais de tal instrumento, havendo apenas um desvio de actuação do representante que se traduz na contrariedade relativamente aos interesses e instruções do representado.

É, por isso, surpreendente que o recorrente venha agora alegar a existência de abuso da representação, quando nos autos sempre sustentou que a vontade da representada não se formou de forma livre e esclarecida.

Defendendo, como defendeu, que a procuração "não traduz a vontade da mandante, que não tinha, então, capacidade para querer e entender o alcance desse acto" (artigo 9º da PI) e que “a mandante na data em que foi lavrada a procuração não tinha condições mentais para ditar os termos constantes de tal procuração" (artigo 13º da PI) ou, se assim se não entender, que “tal procuração foi extorquida por coacção física do 1º Réu" (artigo 34º da PI), contradiz esta tese vir agora afirmar que afinal o vício subjacente ao negócio é o abuso da representação, o que sempre pressupõe a validade do acto que institui a representação, no caso a procuração.

Para que pudesse lograr a prova da tese de abuso de representação, sempre incumbiria ao autor alegar e provar factos de onde se pudesse surpreender a actividade abusiva do réu BB, demonstrando que a sua mulher, DD, tinha outra vontade ou interesse que não a celebração da escritura nos termos que dela constam, o que manifestamente não fez.

Para sustentar tal tese, e consequente ineficácia do negócio relativamente à recorrida, caberia ao autor igualmente demonstrar que esta "conhecia ou devia conhecer o abuso" (parte final do artigo 269º).

Uma vez que “nas situações de abuso de representação há um abuso do direito: um abuso do direito formalmente existente para representar outrem[12]”, parece ter razão a recorrida, ao considerar que a sustentação da tese de "abuso da representação" não decorre de qualquer realidade fáctica, mas sim da circunstância do autor/recorrente não ter logrado provar as teses de "incapacidade da representada", da "coação moral sobre a representada" e da "simulação do negócio", invocando mais um vício para se pôr a coberto da oficiosidade de conhecimento do abuso de direito, na vertente de abuso da representação, por parte do STJ.

Resulta do que se deixa exposto que, nesta parte, improcede o recurso.

5.

Se há simulação do contrato de compra e venda referente à fracção.


Por via de regra, a vontade e a manifestação da mesma coincidem na declaração negocial. Mas podem surgir situações em que falte a coincidência entre o substrato volitivo interno e a sua aparência externa. A vontade que aparece como manifestação não existe como tal. Esta falta é o resultado de uma divergência entre a vontade real e a vontade declarada.

As situações de divergência entre a vontade real e a vontade declarada são muito diferenciadas entre si. A distinção principal é entre divergências intencionais (voluntárias) e divergências não intencionais (involuntárias). Para todas elas a lei possui as figuras jurídicas correspondentes.

A simulação é uma dessas figuras jurídicas em que há uma divergência intencional entre a declaração e a vontade. É o caso juridicamente mais relevante da divergência entre a vontade e a declaração, tendo em devida consideração as suas múltiplas consequências económicas.

Na simulação, o declarante emite – de acordo com o declaratário – uma declaração não coincidente com a sua vontade no intuito de enganar um terceiro. Assim, o declarante faz a declaração, mas não quer o declarado; o declaratário sabe disso; a actuação conjunta visa enganar (ou prejudicar) o terceiro.

O conceito de negócio simulado contém-no o artigo 240º, n.º 1 do Código Civil:

“Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado”.

“A simulação é, (pois), uma divergência bilateral entre a vontade a declaração, que é pactuada entre as partes com intenção de enganar terceiros. Na simulação as partes acordam entre si emitir uma declaração negocial que não corresponde à sua real vontade e fazem-no com o intuito de enganar terceiros[13]”.

Os requisitos para que haja um negócio simulado são, por conseguinte, três:

1º - Acordo entre as partes com o fim de criar uma falsa aparência de negócio (o chamado acordo simulatório - pactum simulationis);

2º - A divergência entre a vontade real e a vontade declarada, isto é, entre a aparência criada (negócio exteriorizado) e a realidade negocial (negócio realmente celebrado);

3º - O intuito de enganar terceiros (enganar não é a mesma coisa que prejudicar).

Os referidos requisitos têm que se verificar simultaneamente.

A respeito dos efeitos da simulação determina o artigo 240º, n.º 2 do Código Civil que o negócio simulado é nulo. A nulidade é o regime geral e verifica-se sempre, quer dizer, tanto no caso de simulação absoluta como no da simulação relativa quanto ao negócio simulado.

Quanto à legitimidade para invocar a nulidade resultante da simulação aplica-se o regime geral do artigo 286º segundo o qual “a nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarado oficiosamente pelo tribunal”.

No caso, foi o autor quem invocou a simulação do negócio, competindo-lhe o ónus da prova dos factos constitutivos do respectivo direito.

Ora, da prova produzida nos autos resultam como não provados os factos alegados pelo autor, ora recorrente, designadamente que a segunda ré, ora recorrida, não entregou o montante da venda ao réu BB (resposta ao quesito 18º) e bem assim que o acordo de compra e venda foi efectuado por acordo entre os réus para que a fracção fosse excluída da herança da DD (resposta ao quesito 20º).

Ou seja, o autor não logrou fazer a prova dos factos constitutivos do seu direito, uma vez que não logrou provar o acordo simulatório, a divergência entre a vontade real e a vontade declarada, bem como o intuito, por parte dos réus, de o enganar.

Pelo contrário, ficou provado que o negócio entre os réus – compra e venda da fracção – foi celebrado pelo réu BB, munido da procuração outorgada pela sua mulher DD, sendo certo que tal procuração lhe conferia poderes que permitiam alienar a fracção, sendo que nenhuma obrigação sobre ele impendia no sentido de informar o autor, ou quem quer que fosse, no que respeitava, quer quanto à venda da fracção, quer quanto ao preço da venda.

Por outro lado, a procuração conferia-lhe poderes para realizar o negócio – alienar a fracção – pelo preço que lhe aprouvesse e a quem entendesse.

No que ao intuito de enganar terceiros respeita, o autor também não logrou provar este requisito, nomeadamente, que os réus, ao celebrarem o negócio, pretendiam sonegar a fracção ao acervo da herança da DD, sua mãe.

Assim, não se vislumbra a existência do intuito de enganar o autor, ainda que o preço declarado tenha sido inferior ao real.

Não tendo o autor conseguido provar os factos constitutivos do seu direito a sua pretensão soçobra.

6.

Sumariando:

I - Não obstante a dupla conformidade entre o acórdão recorrido e a sentença de 1.ª instância nada obsta à admissibilidade do recurso de revista posto que, muito embora o acórdão tenha sido proferido depois da entrada em vigor da Lei n.º 41/2013, de 26-07, a acção foi instaurada antes de 01-01-2008, pelo que se aplicam ao recurso as regras decorrentes do DL n.º 303/2007, ressalvada a questão da dupla conforme (artigo 7º, n.º 1, da Lei n.º 41/2013, de 26-07).

II - Sendo os recursos meios processuais de impugnação de decisões anteriores, os mesmos apenas incidem sobre questões anteriormente apreciadas, não podendo o tribunal ad quem ser confrontado com questões não colocadas no tribunal a quo.

III - Invocando o autor – no recurso de revista – factos novos, não pode o STJ deles conhecer por força do disposto no artigo 682º, n.º 1, do NCPC (2013).

IV - O abuso de representação (invocado apenas em sede de recurso de revista) é uma modalidade de abuso de direito, o qual é de conhecimento oficioso.

V - O abuso de representação pode ser oficiosamente conhecido pelo STJ, ainda que constitua uma questão nova e apenas tenha sido invocado nas alegações de revista, mas o seu conhecimento depende da alegação e prova dos respectivos pressupostos, não podendo o mesmo ser apreciado à luz de factos não provados, ou de factos e/ou documentos novos que visam uma alteração da matéria de facto.

VI - Um negócio jurídico concluído pelo representante, em nome do representado e dentro dos poderes que lhe competem, vincula e responsabiliza juridicamente o representado, bem como a outra parte com quem o representante negociou.

VII - Sendo o representante quem emite uma declaração negocial própria, é na sua pessoa – e não na do representado – que se devem verificar as faltas ou vícios da vontade, bem como o conhecimento ou ignorância dos factos, que determinem a nulidade ou anulabilidade dessa declaração.

VIII - Para fazer vingar a tese do abuso de representação, incumbia ao autor a prova de factos que surpreendessem a actividade abusiva do réu (representante), bem como o conhecimento (ou dever conhecer) por parte da ré desse mesmo abuso.

IX - A simulação consiste numa divergência bilateral entre a vontade e a declaração que comporta três requisitos de verificação simultânea: (i) acordo entre as partes com o fim de criar uma falsa aparência de negócio; (ii) divergência entre a vontade real e a declarada; (iii) com o intuito de enganar terceiros.

7.

Pelo exposto, negando a revista, confirma-se o acórdão recorrido.


Custas pelo Recorrente.


Lisboa, 23 de Outubro de 2014


Manuel F. Granja da Fonseca


António da Silva Gonçalves


Fernanda Isabel Pereira

_______________________________
[1] Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, III, página 282, depois de definir documentos supervenientes como aqueles de que a parte não dispunha à data em que se iniciou, na Relação, a fase de julgamento (vista do processo ao 1º adjunto), refere que tais documentos, “se tiverem algum interesse para a decisão, poderão ser juntos até á apresentação das alegações”, tendo o cuidado de acrescentar que esta disposição “não alarga o poder cognitivo do Supremo relativamente à matéria de facto”.

Ver, em sentido idêntico, João Espírito Santo, O documento superveniente para efeito de recurso ordinário e extraordinário, Coimbra, Almedina, 2001, páginas 54/55.

[2] Ac. STJ de 4/04/2002, Revista n.º 729/02-7ª Secção

[3] Ver Ac. STJ de 18/10/2012, Revista n.º 660/04.3TBPTM.E1.S1 – 7ª Secção; Ac. STJ de 11/12/2012, Revista n.º 116/07.2TBMCN.P1.S1-6ª Secção; Ac. STJ de 18/12/2012, Revista n.º 402/06.9TBVCT.G1.S1-1ª Secção; Ac. STJ de 11/07/2013, Revista n.º 1845/07.6TVLSB.L1.S1-6ª Secção.

[4] Ac. STJ de 23/02/2012, Revista n.º 1978/05.3TVRL.P1.S1-6ª Secção

[5] Ac. STJ de 29/06/1999, Revista n.º 399/99 – 1ª Secção.

[6] Ac. STJ de 4/02/2010, Revista n.º 2620/06.0TJPRT.S1-7ª Secção

[7] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo IV, 2005, página 373.

[8] Revista n.º 161/09.3TBGDM.P2.S1, Relator Conselheiro Salazar Casanova, in www.dgsi.pt.

[9] Ac. STJ de 21/04/2010, Revista n.º 634/05.7TBMGR.C1.S1-2ª Secção.

[10] HEINRICH EWALD HÖRSTER, Teoria Geral do Direito Civil, página 476.

[11] Obra citada, página 489.

[12] HEINRICH EWALD HÖRSTER, Teoria Geral do Direito Civil, página 489.

[13] Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 7ª edição, 2012, página 583.