Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6ª SECÇÃO | ||
Relator: | CATARINA SERRA | ||
Descritores: | SOCIEDADE POR QUOTAS QUOTA INDIVISA ALIENAÇÃO NORMA IMPERATIVA NULIDADE CONHECIMENTO OFICIOSO AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO | ||
Data do Acordão: | 04/02/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | ANULADO O JULGAMENTO | ||
Área Temática: | DIREITO DAS SOCIEDADES – SOCIEDADES POR QUOTAS / QUOTAS / CONTITULARIDADE DA QUOTA. DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / NULIDADE E ANULABILIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO / NEGÓCIOS CELEBRADOS CONTRA A LEI. DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / INCIDENTES DA INSTÂNCIA / EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / JULGAMENTO DO RECURSO. | ||
Doutrina: | - Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 5.ª edição, p. 437; - Alexandre de Soveral Martins, Jorge Coutinho de Abreu (coord.) Código das Sociedades Comerciais em Comentário, volume III, Coimbra, Almedina, 2016 (2.ª edição), p. 412-413; - Catarina Serra, Direito Comercial , Noções fundamentais, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 62-63, 72-73 ; A aplicação do artigo 980.º do Código Civil às sociedades comerciais, Sobre a (remanescente) utilidade da definição de contrato de sociedade para a estabilização da categoria da sociedade comercial, in Nuno Manuel Pinto Oliveira / Agostinho Cardoso Guedes (coord.), O Código Civil 50 Anos Depois: Balanço e Perspectivas – I Colóquio de Direito Civil de Santo Tirso, Coimbra, Almedina, 2017, p. 368 e ss.; - Jorge Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, volume II – Das sociedades, Coimbra, Almedina, 2018, 6ª edição, 2019, p. 336 e ss.; - Jorge Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, volume II – Das sociedades, cit., p. 331-332; - Pedro de Albuquerque, António Menezes Cordeiro (coord.) Código das Sociedades Comerciais Anotado, Coimbra, Almedina, 2011 (2.ª edição), p. 650-651; - Raúl Ventura, Sociedades por quotas, vol. I, Coimbra, Almedina, 1989 (2.ª edição), p. 523-524. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGO 223.º, N.º 6. CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 294.º. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 286.º, 608.º, N.º 2 E 682.º, N.º 3. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES: - DE 08-01-2018, PROCESSO N.º 5728/15.8T8VNF.G1, IN WWW.DGSI.PT. | ||
Sumário : |
I. Por força do artigo 223.º, n.º 6, do CSC, no caso de quota indivisa, não pode o representante comum dos contitulares alienar a quota à sociedade, excepto quando a lei, o testamento, todos os contitulares ou o tribunal lhe atribuírem poderes de disposição. II. A norma do artigo 223.º, n.º 6, do CSC é uma norma de carácter imperativo (destaque-se a expressão “não lhe é lícito”), logo, a sua violação importa a nulidade da alienação (cfr. artigo 294.º do CC). III. A nulidade é de conhecimento oficioso pelo tribunal, integrando o grupo de questões que a lei impõe que o julgador conheça independentemente da sua alegação (cfr. artigos 286.º do CC e 608.º, n.º 2, do CPC). IV. Sem elementos de facto que permitam concluir se (1) existiu ou não a atribuição de poderes de disposição, pelos contitulares da quota, ao cabeça-de-casal, (2) a quota estava ou não integralmente liberada, (3) a sociedade dispunha ou não, para efeitos da aquisição desta quota, de reservas livres em montante não inferior ao dobro do contravalor a prestar e (4) o negócio foi ou não celebrado por quem tinha, efectivamente, poderes para representar cada uma das partes envolvidas (sociedade e contitulares da quota), não pode o tribunal pronunciar-se sobre a validade ou invalidade da alienação, impondo-se, excepcionalmente, o regresso do processo ao tribunal a quo, para que seja ampliada a matéria de facto, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, nos termos do artigo 682.º, n.º 3, do CPC. | ||
Decisão Texto Integral: |
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Recorrente: AA Recorridos: BB, CCe “DD, Lda.”
O autor AA, residente na Av. …, nº …, ..., …, intentou a presente ação declarativa, com forma de processo ordinário, contra os réus BB, CC e sociedade “DD, Lda.”, com sede na Rua …, nº …, Porto, tendo formulado os seguintes pedidos: a) declarar-se transmitida a favor de EE, AA, FF e GG a quota que o falecido DD detinha na sociedade 3ª ré, com o valor nominal de 748.196,85€; b) declarar-se nula ou ineficaz, por insuficiência de título, a transmissão da quota de DD para a 3ª ré com o valor nominal de 748.196,85€; c) ordenar-se o cancelamento, na Conservatória do Registo Comercial, do registo de aquisição da quota a favor da 3ª ré efetuado mediante o depósito nº 268/2007-05-04; d) subsidiariamente, e para o caso de serem julgados improcedentes os pedidos constantes das alíneas anteriores, devem os réus ser condenados a pagar aos sucessores de DD a importância que, em execução de sentença, vier a ser atribuída à quota transmitida em avaliação a ser efetuada para o efeito, à qual acrescerão juros legais contados de acordo com os prazos de pagamento estabelecidos no art. 8º do contrato social da 3ª ré até efetivo e integral pagamento. Citados os réus, apresentaram contestação na qual, entre outra matéria, excepcionaram a ilegitimidade do autor e impugnaram a matéria fáctica alegada na petição inicial, concluindo pela improcedência da ação. Formularam também reconvenção, pedindo, para a hipótese de procedência do pedido a), a condenação do autor e demais herdeiros a restituírem a quantia já recebida de 398.006,06€ e bem assim as demais quantias que entretanto se vencerem e forem pagas aos herdeiros como valor da quota do falecido. Para a hipótese de procedência do pedido d), deverá a importância apurada como valor da quota ser deduzida das quantias acima referidas e, para a hipótese de se vir a apurar que o valor da quota é inferior ao valor pago pela 3ª ré, deverá a sentença condenar igualmente o autor e demais herdeiros a restituírem o valor excedente que tiver sido por estes recebido. Pediram ainda a condenação do autor como litigante de má-fé. O autor apresentou réplica e os réus tréplica. Foi proferido despacho saneador, com selecção da matéria de facto assente e organização da base instrutória. A excepção dilatória de ilegitimidade activa foi desatendida. Foi efectuada perícia colegial. Realizou-se audiência de discussão e julgamento com observância do legal formalismo. No decurso desta, o autor desistiu do pedido formulado no que concerne às alíneas a), b) e c), ficando a apreciação judicial circunscrita ao pedido constante da alínea d). Foi proferida sentença, cuja parte decisória se passa a transcrever: “Tudo analisado e sopesado – e no que concerne à sorte do único pedido que subsiste e tão só na medida deste (pedido D)) – julgo a presente acção ordinária procedente e provada, em virtude do que condeno os R.R. no pagamento aos herdeiros do falecido Sr. AA (Sra. D. EE, Sr. AA, Sra. D. FF e Sra. D. GG o montante de €1.467.689,59, valor este acrescido de moratórios juros contados desde a citação até integral e efectivo pagamento na medida em que a liquidação/apuramento do valor social da quota se efectivou no âmbito da presente causa, improcedendo a demanda quanto ao restante peticionado nesta particular sede. No que tange à admitida reconvenção, julgo a mesma provada e procedendo por relação ao aí pedido, condenando o A. (e demais herdeiros) a deduzir do valor supra assinalado para a quota do falecido Sr. DD a quantia de €933.020,46 entretanto recebidas nos acima provados termos”. Inconformados com o decidido pelo Tribunal de 1.ª instância, interpuseram recurso de apelação tanto o autor como os réus, pugnando, o primeiro, pela revogação da sentença recorrida na parte em que julgou procedente a reconvenção e os segundos pela sua revogação na parte em que julgou procedente o pedido do autor formulado sob a alínea d) da petição inicial. O Tribunal da Relação do Porto decidiu, por Acórdão de 11.09.2018, julgar improcedente o recurso do autor e procedente o recurso dos réus, tendo sido o teor da decisão o seguinte: “Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar procedente o recurso de apelação interposto pelos réus BB, CC e “DD, Lda.” e, em consequência: a) Revoga-se a sentença recorrida que se substitui por outra que julga improcedente a ação no que toca ao pedido formulado sob a alínea d) da petição inicial, dele se absolvendo os réus; b) Considera-se prejudicado o conhecimento do pedido reconvencional deduzido pelos réus apenas para o caso de procedência do pedido deduzido na alínea d) e também do recurso interposto pelo autor relativamente a tal pedido reconvencional”. Face a isto, vem agora o autor interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, preconizando a revogação e a substituição do Acórdão por outro que julgue a acção procedente, por provada, quanto ao pedido subsistente e, por consequência, condene os Réus a pagarem aos herdeiros de DD, entre os quais o Autor, a quantia de €1.467.689,59, acrescida do montante de €120.000,00 e de juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento. São as seguintes as conclusões formuladas pelo autor: Contra-alegaram os réus, propugnando, em contrapartida, a manutenção do Acórdão.
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a questão a decidir, in casu, é, fundamentalmente, a seguinte: pode o autor exigir, pela alienação à sociedade da quota social de que o seu falecido pai era titular, que os réus paguem um valor diferente do acordado com a sua mãe, cabeça-de-casal da herança? I – Matéria de Facto Assente[2] A) No passado dia … de … de 2007, faleceu DD, sem testamento, deixando como herdeiros a EE, sua mulher, e os três filhos do casal, AA, ora Autor, FF e GG. Da herança fazia parte, entre outros bens, uma quota com o valor nominal de 748.196,85€ na sociedade comercial por quotas DD, Lda., aqui 3.ª Ré, com sede na Rua …, nº …, no …, matriculada sob o nº …. B) À data do falecimento de DD, a 3ª Ré tinha como sócios os 1.º e 2.º Réus, que detinham uma quota no valor de 249.398,95€, cada um, e DD que detinha uma quota no valor nominal de 748.196,85€ Desta forma, DD era detentor de 60% do capital social e os 1º e 2º Réus de 20% desse mesmo capital, cada um. C) O artigo 8.º do pacto social da sociedade DD, Lda., 3ª Ré, estabelece que "Por falecimento (...) de qualquer dos sócios, a sociedade continuará com os herdeiros do falecido (...) e os sócios sobrevivos (...) se estes assim o desejarem; no caso contrário, isto é, se os sócios sobrevivos não aceitarem aqueles herdeiros como sócios da sociedade continuará esta apenas com os sobrevivos, mediante a obrigação de lhes pagar o que se apurar pertencer ao falecido em capital, lucros e créditos, à face de um balanço a que, para o efeito, se processará e que deverá estar concluído dentro do prazo máximo de 90 dias contados do evento" Este artigo do pacto social dispõe, ainda, no seu parágrafo único que: "A importância assim apurada será paga em quatro prestações semestrais e iguais, desde logo representadas por outras tantas letras, acrescidas do juro de 5 por cento, com vencimento, a primeira 180 dias após o fecho do balanço e as restantes, sucessivamente nos 180 dias subsequentes." D) Na sequência do falecimento de DD, de que os 1 º e 2º Réus tiveram imediato conhecimento, estes últimos manifestaram que não aceitavam como sócios os herdeiros do falecido. E) Para tanto, na qualidade de gerentes da 3ª Ré, os 1º e 2º Réus enviaram uma carta a EE, então cabeça-de-casal da herança, na qual lhe comunicaram que: "na previsão do art. 8º do Pacto Social da Sociedade DD, LDA., não aceitamos os herdeiros do Saudoso Senhor DD como sócio da Sociedade e que pretendemos que ela continue connosco, mediante a obrigação de pagamento ali fixada." F) Nessa mesma carta, os 1.º e 2.º Réus convocaram a cabeça-de-casal, para uma reunião em Assembleia Geral da sociedade DD, Lda., a realizar no dia 16 de Abril de 2007, com a seguinte ordem de trabalhos: "a) Não aceitação dos herdeiros do sócio falecido Senhor DD como sócios da Sociedade b) Não transmissão da quota aos herdeiros e destino dessa mesma quota." G) Os restantes herdeiros de DD, incluindo o Autor, receberam carta e convocatória de igual teor. H) Na dita Assembleia (de 16/4/2007), de que foi lavrada a acta nº 96, a sociedade, com os votos favoráveis dos 1. º e 2. º Réus, votou pela "não aceitação dos herdeiros do falecido sócio DD como sócios da sociedade e não transmissão da quota aos ditos herdeiros, continuando a sociedade com os sócios sobrevivos, mediante o pagamento e procedimentos tudo conforme o disposto no artigo 8º e seu parágrafo único do pacto social da sociedade." I) Art. 86º da P.I. (“A Ré enviou à cabeça-de-casal, mãe do Autor, o pagamento, em 4 prestações semestrais dos referidos €796.009,31, que ela inicialmente devolveu, mas depois terá aceitado.
II – Matéria de Facto proveniente da Base Instrutória J)[3] O HH configura (entre outros) um parâmetro de avaliação de empresas. (respostas restritivas aos nºs 3 e 4 da base instrutória) K) A quota que pertenceu ao falecido pai do A., Sr. DD valia (e pelo menos) à data de 31 de Dezembro de 2006 (por referência a avaliação indexada à data de 26 de Janeiro seguinte) o montante de €1.467.689,59. (resposta restritiva ao nº 5 da base instrutória) L) O falecido Sr. DD tinha à data de 31 de Dezembro de 2006 um crédito de 120.000,00€ sobre a 3ª ré resultante da atribuição de lucros referentes ao ano de 2005. (resposta ao nº 6 da base instrutória) M) A 3ª Ré uma carta[4] datada de 14/06/2007 assinada pela Snra. D. EE (viúva do falecido Snr. DD) em que esta diz: [sic] “Na qualidade de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de DD e, em consequência, na qualidade de representante comum da quota que pertenceu ao meu falecido marido, venho comunicar a V. Exas. que deem sem efeito algumas das minhas cartas datadas de 24/05/2007 e de 05/06/2007 e que em consequência disso aceito a deliberação de 16 de Abril do corrente ano, constante da acta nº 96 relativa à transmissão da quota do meu falecido marido a essa sociedade, pelo valor de €796.009,32 já acrescido dos 5%, conforme vossa carta datada de 16/05/2007. Solicito, assim, o favor de me remeterem as letras que devolvi sob a minha carta de 24/05/2007 com o pagamento das quais fica integralmente pago e dou quitação.” (resposta ao nº 11 da base instrutória) N) As quatro letras de câmbio cujas cópias constam do documento nº 9 junto à P.I. foram emitidas pela ré DD, Lda. à ordem dos herdeiros do Sr. DD, títulos estes num total de €796.009,32, sendo que este valor foi creditado por transferência bancária em conta da co-herdeira Sra. D.ª EE. (resposta ao nº 12 da base instrutória) O) Tendo sido já pagas duas dessas letras. (resposta ao nº 13 da base instrutória) P) Doze cheques foram emitidos à ordem dos herdeiros de DD, cheques estes no valor total de €167.011,14 e que foram descontados na respetiva instituição bancária conforme detalhadamente consta de fls. 382/383. (resposta ao nº 16 da base instrutória). O DIREITO O caso a apreciar por este Supremo Tribunal é relativamente fácil de sintetizar. O falecido, DD, era titular de uma quota na sociedade “DD, Lda.”, sendo seus herdeiros a sua mulher e os seus três filhos. Prevendo o contrato de sociedade que a transmissão mortis causa das quotas dependia do consentimento dos sócios remanescentes e não tendo estes consentido em tal transmissão, foi seguido o procedimento aí previsto para a aquisição da quota pela sociedade (cfr. artigo 8.º do pacto social), o que resultou no pagamento aos sucessores do valor de 796.009,31 euros. AA, um dos sucessores, decide, então, num primeiro momento, contestar a validade deste acto, vindo ainda, a título subsidiário, pedir a condenação dos sócios e da sociedade a pagar aos sucessores a importância que, em execução de sentença, viesse a ser atribuída à quota transmitida, em avaliação a ser efectuada para o efeito. Posteriormente, porém, desistiu dos pedidos principais e manteve apenas este último. Trata-se, pois, de saber se os réus devem ser condenados nos termos peticionados pelo autor. O Tribunal de 1.ª instância considerou o pedido procedente, tendo, como se viu, ficado decidido o seguinte: “Tudo analisado e sopesado – e no que concerne à sorte do único pedido que subsiste e tão só na medida deste (pedido D)) – julgo a presente acção ordinária procedente e provada, em virtude do que condeno os R.R. no pagamento aos herdeiros do falecido Sr. AA(Sra. D. EE, Sr. AA, Sra. D. FF e Sra. D. GG) o montante de €1.467.689,59, valor este acrescido de moratórios juros contados desde a citação até integral e efectivo pagamento na medida em que a liquidação/apuramento do valor social da quota se efectivou no âmbito da presente causa, improcedendo a demanda quanto ao restante peticionado nesta particular sede. No que tange à admitida reconvenção, julgo a mesma provada e procedendo por relação ao aí pedido, condenando o A. (e demais herdeiros) a deduzir do valor supra assinalado para a quota do falecido Sr. DD a quantia de €933.020,46 entretanto recebidas nos acima provados termos”. Já o Tribunal da Relação do Porto teve entendimento diverso. Não obstante considerar que a cabeça-de-casal tinha legitimidade para agir como representante comum da quota do falecido DD, podendo exercer os direitos a ela inerentes em representação do conjunto dos herdeiros, alertou o Tribunal recorrido para o disposto no artigo 223.º, n.º 6, do CSC, do qual resulta o seguinte: “[exceto quando a lei, o testamento, todos os contitulares ou o tribunal atribuírem ao representantes comum poderes de disposição, não lhe é lícito praticar atos que importem extinção, alienação ou oneração da quota, aumento de obrigações e renúncia ou redução dos direitos dos sócios. A atribuição de tais poderes pelos contitulares deve ser comunicada por escrito à sociedade”. Segundo o Tribunal a quo, perante esta disposição legal, conjugada com o disposto nos arts. 2079.º, 2090.º e 2091.º do CC, é inevitável concluir que a cabeça-de-casal, pese embora a sua qualidade de representante comum da quota do falecido DD, não poderia ter celebrado o negócio que se discute nos autos por envolver a alienação da quota, dando ao autor a possibilidade de a contestar. Sucede, porém, que, não obstante o autor ter, inicialmente, contestado aquela alienação, no decurso da audiência de julgamento desistiu deste pedido, mantendo apenas o pedido formulado na alínea d) da petição inicial, respeitante à condenação dos réus no pagamento do valor da quota apurado em certos termos. Daqui retira o Tribunal recorrido que o autor aceitou a alienação da quota levada a cabo pela cabeça-de-casal da herança, incluindo a contrapartida fixada para a alienação, não podendo mais o autor discutir em que termos esta foi fixada ou pretender a substituição daquele valor por outro, apurado em termos diversos. Analise-se a decisão à luz das normas aplicáveis ao caso. Estando em causa uma sociedade por quotas, estas terão de ser encontradas a partir da lei das sociedades comerciais, na parte reservada às sociedades por quotas. Diz-se aí, no artigo 225.º, n.º 1, do CSC, que “[o] contrato de sociedade pode estabelecer que, falecendo um sócio, a respectiva quota não se transmitirá aos sucessores do falecido, bem como pode condicionar a transmissão a certos requisitos, mas sempre com observância do disposto nos números seguintes”. Do disposto nos números seguintes da norma destacam-se, com relevância para o caso em apreço, o n.º 2 e o n.º 4. No n.º 2 da norma dispõe-se que “[q]uando, por força de disposições contratuais, a quota não for transmitida para os sucessores do sócio falecido, deve a sociedade amortizá-la, adquiri-la ou fazê-la adquirir por sócio ou terceiro; se nenhuma destas medidas for efectivada nos 90 dias subsequentes ao conhecimento da morte do sócio por algum dos gerentes, a quota considera-se transmitida”. No n.º 4 dispõe-se que “[s]alvo estipulação do contrato de sociedade em sentido diferente, à determinação e ao pagamento da contrapartida devida pelo adquirente, aplicam-se as correspondentes disposições legais ou contratuais relativas à amortização, mas os efeitos da alienação da quota ficam suspensos enquanto aquela contrapartida não for paga”. Estas normas, que preservam a liberdade contratual, são paradigmáticas quanto ao carácter supletivo do regime legal e demonstram, de alguma forma, a opção do legislador por uma concepção tendencialmente pessoalística das sociedades por quotas [5]. Transpondo isto para o caso concreto, pode dar-se por assente a validade da cláusula contratual em que os sócios fazem depender a transmissão mortis causa da quota do seu consentimento[6], bem como, na hipótese de faltar este consentimento, determina o pagamento aos sucessores de uma contrapartida e fixa as condições em que a contrapartida é apurada e efectivamente paga (artigo 8.º do pacto social). Era, pois, admissível, à luz das normas referidas, a aquisição da quota pela sociedade aos sucessores[7]. Note-se, porém, que este negócio se qualifica como uma aquisição de quota própria, e não exactamente, apesar de assim ser referido nas alegações das partes e no próprio Acórdão da Relação, como uma amortização da quota, opção também admissível mas distinta da primeira[8]. Sucede que, no caso em apreço, ainda não tinha tido lugar a partilha da herança. A quota (indivisa) era, assim, objecto de contitularidade (superveniente) dos quatro herdeiros de DD, sendo estes os alienantes da quota. Deve convocar-se, então, o regime geral da administração da herança (cfr. artigos 2079.º e s. do CC) e o regime da contitularidade da quota (cfr. arts. 222.º do CSC), que, por ser especial, prevalecerá, em principio, sobre aquele. Segundo o artigo 2079.º do CC, “[a] administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertença ao cabeça-de-casal”. Este tem, entre outros, o poder de exigir aos restantes herdeiros a entrega dos bens para ele administrar (cfr. artigo 2088.º do CC), o poder-dever de cobrar as dívidas activas da herança em certas condições (cfr. artigo 2089.º do CC) e o poder-dever de vender os frutos deterioráveis e até os restantes frutos, para satisfazer as despesas de funeral e sufrágios (cfr. artigo 2090.º do CC). No que toca aos actos não especificamente regulados e que, designadamente, envolvam o exercício de poderes de disposição sobre os bens integrantes da herança, no entanto, eles só podem ser praticados, em princípio, conjuntamente por todos os herdeiros (cfr. artigo 2091.º, n.º 1, do CC). No que respeita especificamente à administração do bem integrante da herança “quota”, dispõe o artigo 222.º, n.º 1, do CSC que “[o]s contitulares da quota devem exercer os direitos a ela inerentes através de representante comum”. Lendo, depois, o artigo 223.º, n.º 1, do CSC, confirma-se que, no caso em apreço, este “representante comum” era quem devia ser: a cabeça-de-casal, por força de designação legal[9]. Por fim, atentando no n.º 6 do artigo 223.º do CSC, verifica-se que, “[e]xcepto quando a lei, o testamento, todos os contitulares ou o tribunal atribuírem ao representante comum poderes de disposição, não lhe é lícito praticar actos que importem extinção, alienação ou oneração da quota, aumento de obrigações e renúncia ou redução dos direitos dos sócios. A atribuição de tais poderes pelos contitulares deve ser comunicada por escrito à sociedade”. Fica, assim, vedada ao representante comum a prática de actos como alienar a quota à sociedade, onerar a quota em favor da sociedade e, já agora, acordar com a sociedade a amortização da quota[10], a não ser quando lhe sejam atribuídos poderes para o efeito – o que, quando tem por fonte a vontade dos contitulares, exige a unanimidade (cfr. artigo 224.º, n.º 1, in fine, do CSC). A norma do artigo 223.º, n.º 6, do CSC é, manifestamente, uma norma de carácter imperativo (destaque-se a expressão “não lhe é lícito”). Consequentemente, a sua violação importa a nulidade do acto praticado (cfr. artigo 294.º do CC). Ora, a nulidade é de conhecimento oficioso pelo tribunal, integrando o grupo de questões que a lei impõe que o julgador conheça independentemente da sua alegação (cfr. artigos 286.º do CC e 608.º, n.º 2, do CPC). Não se pode, assim, acompanhar o Tribunal a quo quando este, não obstante verificar que “perante [a] disposição legal [do artigo 223.º, n.º 6, do CC], conjugada com o disposto nos arts. 2079º, 2090º e 2091º do Cód. Civil, somos levados a concluir que a cabeça-de-casal, pese embora a sua qualidade de representante comum da quota do falecido DD, não poderia ter celebrado o negócio que se discute nestes autos por envolver alienação da quota, daí resultando a possibilidade do autor pedir a sua anulação com tal fundamento”, concentra a sua atenção na desistência dos pedidos pelo autor e diz: “[a]contece, contudo, que no decurso da audiência de julgamento o autor veio desistir deste pedido, mantendo apenas o pedido formulado na alínea d) referente à determinação do valor da quota. Tal significa que o autor deixou cair a questão da apreciação da validade da transmissão da quota efetuada através da cabeça-de-casal, daí decorrendo a sua aceitação da amortização da quota nos termos em que a mesma ocorreu. Por conseguinte, aceite que está a amortização da quota pelo autor, o seu valor terá que ser aferido em função do que se mostra estipulado no art. 8º do pacto social, ou seja, através de um balanço que, para o efeito, foi efetuado e não através de uma avaliação, como aquela a que se procedeu no âmbito dos presentes autos. E remata: “[e] neste quadro, em que a desistência do pedido formulado sob a alínea d) conduz inevitavelmente à aceitação por parte do autor da amortização da quota, já não há que discutir se a cabeça-de-casal tinha ou não poderes para aceitar essa amortização”[11]. Sucede, todavia, que não se encontram na factualidade provada quaisquer factos que permitam concluir que o processo de negociação e alienação da quota tenha sido – ou tenha deixado de ser – precedido de um acto de atribuição de poderes de disposição, pelos contitulares, à cabeça-de-casal, nem, já agora, que tal acto tenha sido – ou tenha deixado de ser – comunicado à sociedade, conforme manda aquela norma. Acresce que o negócio aqui em causa se qualifica – já se disse – como uma aquisição de quota própria. Ora, a celebração deste tipo de negócio está sujeito a condições especiais – as condições do artigo 220.º do CSC, que encontram a sua justificação na necessidade de tutela dos interesses dos credores sociais. Destacam-se os requisitos da “liberação integral da quota” (cfr. artigo 220.º, n.º 1, do CSC) e da “disponibilidade, para efeitos desta aquisição, de reservas livres em montante não inferior ao dobro do contravalor a prestar” (cfr. artigo 220.º, n.º 2, do CSC), sob pena da nulidade do negócio (cfr. artigo 220.º, n.º 3, do CSC). Ora, o cumprimento (ou incumprimento) destes requisitos tão-pouco consta da matéria de facto. Não foi irrelevante para esta insuficiência da matéria de facto que o autor tivesse desistido dos pedidos relacionados com a questão da (in)validade / (in)eficácia do acto, que foi inicialmente levantada pelo autor mas, depois (durante a audiência de julgamento), “deixada cair”, o que, por sua vez, determinou a confessada “adaptação” do quadro fáctico (a resposta aos quesitos) à única pretensão restante (o valor da contrapartida da alienação da quota). A verdade é que, sem elementos de facto que permitam concluir: 1.º) se existiu ou não a atribuição dos referidos poderes de disposição, pelos contitulares da quota, ao cabeça-de-casal; 2.º) se a quota estava ou não integralmente liberada; 3.º) se a sociedade dispunha ou não, para efeitos da aquisição desta quota, de reservas livres em montante não inferior ao dobro do contravalor a prestar; e, por fim, 4.º) se o negócio foi ou não celebrado por quem tinha, efectivamente, poderes para representar cada uma das partes envolvidas (sociedade e contitulares da quota), não pode o tribunal pronunciar-se sobre a validade ou invalidade do acto de alienação e, consequentemente, decidir a questão jurídica que demanda resposta. Configura-se, em suma, “uma situação em que a aplicação do direito ao caso concreto se mostr[a] prejudicada pela deficiente seleção dos factos”[12], em que se impõe, excepcionalmente, o regresso do processo ao tribunal recorrido para a ampliação da matéria de facto de modo a que constituir base suficiente para a decisão de direito. Se, a final, se verificar que algum dos requisitos legais acima descritos não foi observado e, portanto, que o acto de alienação da quota é nulo, deve esta nulidade ser declarada oficiosamente pelo tribunal, devendo o negócio ser dado como não efectuado e ser restituído tudo quanto houver sido prestado, nos termos do artigo 289.º, n.º 1, do CC. Confirmando-se, pelo contrário, que foram cumpridas todas as exigências legais para que o negócio possa dar-se como validamente realizado, não pode o autor / recorrente pôr em causa os termos em que ele se realizou, incluído o procedimento adoptado para a fixação da contrapartida da alienação da quota. Deve, então, o Tribunal a quo decidir (continuar a decidir) a revogação da sentença na parte em que julgou procedente o pedido do autor formulado sob a alínea d) da petição inicial mas com esta (diversa) fundamentação. Estando, com isto, preenchidos os pressupostos dos artigos 682.º, n.º 3, e 683.º, n.º 1, do CPC, designadamente tendo-se definido o direito aplicável em cada uma das situações, determina-se que os autos regressem ao tribunal recorrido, para que seja ampliada a matéria de facto, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito nos termos explicitados.
* III. DECISÃO
Pelo exposto, anula-se o acórdão recorrido, determinando-se que: I. — o processo volte ao Tribunal a quo para que seja ampliada a matéria de facto, em ordem a constituir base suficiente para a questão de direito, nos termos dos 682.º, n.º 3, do CPC; e II. —a causa seja novamente julgada pelo Tribunal a quo em harmonia com a decisão de direito, se possível pelos mesmos juízes que intervieram no julgamento, nos termos do art. 683.º, n.º 1, do CPC. .
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Custas a cargo da parte vencida a final.
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LISBOA, 2 de Abril de 2019
Catarina Serra (Relatora)
Raimundo Queirós
Ricardo Costa
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