Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
386/19.3JAPDL.L2.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: HELENA MONIZ
Descritores: RECURSO PENAL
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
DUPLA CONFORME
CONFIRMAÇÃO IN MELLIUS
IRRECORRIBILIDADE
Data do Acordão: 11/10/2022
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I — Todos os acórdãos proferidos na Relação que confirmem decisão da 1.ª instância e que apliquem pena de prisão inferior a 8 anos são considerados definitivos. E, para saber da admissibilidade (ou não) do recurso, ter-se-á de analisar não só a pena única conjunta atribuída ao concurso de crimes, mas também as penas parcelares atribuídas a cada um dos crimes que integram o concurso. Assim se fazendo uma clara separação entre o momento da determinação da pena em relação a cada crime e o momento da determinação da sanção em sede de concurso.
II — Apenas é admissível o recurso de uma decisão do Tribunal da Relação relativamente aos crimes aos quais se tenha aplicado pena de prisão superior a 5 anos e não superior a 8 anos quando não haja “dupla conforme”, e de uma decisão da Relação relativamente a todos os crimes cuja pena seja superior 8 anos, ainda que haja “dupla conforme”.
III — Tem sido jurisprudência uniforme deste Tribunal o entendimento de que uma confirmação in mellius da condenação em primeira instância cabe ainda dentro do conceito de dupla conforme pressuposto pelo art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP.
IV — Não resulta da fundamentação da pena aplicada a cada um destes crimes que a alteração da pena tenha sido consequência da alteração (não essencial) da matéria de facto. O que se bem compreende, pois não só aquela alteração não deu lugar a qualquer alteração da qualificação jurídica dos factos, como a alteração que ocorreu (nos pontos 2 e 3 da matéria de facto) não teve qualquer relevo.
V — A eliminação das duas frases que integravam aqueles factos provados não determinou que se deixasse de considerar que as condutas do arguido integravam um crime de abuso sexual de criança (agravado em função da relação existente entre o agente e a ofendida), como para além disso aquela eliminação das duas frases foi/é irrelevante para o tipo legal de crime onde os factos foram/estão integrados — o art. 171.º, n.ºs 1 e 2, do CP — dado que sempre se manteve a prova dos atos sexuais de relevo (sendo que em 3 situações houve coito anal mediante a introdução anal de partes do corpo); acresce que a eliminação daqueles últimos segmentos dos factos provados foi irrelevante em sede de determinação da pena.
VI — Sempre que o legislador nos impõe que avaliemos da existência ou não da dupla conforme não nos podemos bastar com uma análise superficial do quantum das penas aplicadas, sendo sempre necessário verificar se o acórdão da Relação confirma a decisão de 1.ª instância.
VII — A limitação de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça através da regra da irrecorribilidade inscrita no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, tem em vista não permitir o recurso de decisões que, tendo sido apreciadas por dois tribunais, mantêm a essencialidade dos factos provados, subsumindo-os ao mesmo tipo legal de crime (sem alteração, pois, da qualificação jurídica) assim evidenciando uma conformidade entre ambas as decisões; no caso, a realidade relevante para a subsunção dos factos ao respetivo tipo legal de crime manteve-se exatamente a mesma; admitir o recurso em situações em que a alteração da matéria de facto é inócua, quando analisada à luz do tipo legal de crime, em que os factos foram subsumidos à mesma norma jurídico-penal, seria admitir o recurso de uma decisão confirmativa cujo recurso está vedado pelo legislador.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 386/19.3JAPDL.L2.S1

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I

Relatório

1. Em primeira instância, o arguido AA foi julgado, em tribunal coletivo, no Tribunal Judicial da Comarca dos Açores (Juízo Central Criminal ..., Juiz ...), e condenado nos seguintes termos:

«A) Condenar o arguido AA:

1- na pena de 2 (dois) anos de prisão pela prática do crime de abuso sexual de criança agravado, p.p. pelos artos.171º, nº.1 e 177º, nº.1, al.a), todos do CP (sendo vítima a BB);

2- na pena de 7 (sete) anos de prisão pela prática de cada um dos 3 (três) crimes de abuso sexual de criança agravado, p.p. pelos artos.171º, nº.2 e 177º, nº.1, al.a), todos do CP (sendo vítima a BB);

3- na pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão pela prática do crime de coação agravada, consumada, p.p. pelos artos.154º, nºs.1 e 2 e 155º, nº.1, al.a), todos do CP (sendo vítima a BB);

4- na pena de 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses de prisão pela prática do crime de violência doméstica, p.p. pelo artº.152º, nºs.1, al.a) e 2 do CP (sendo vítima a CC);

5- na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática do crime de violência doméstica, p.p. pelo arto.152º, nºs.1, al.d) e 2 do CP (sendo vítima a BB);

6-na pena de 3 (três) anos e 8 (oito) meses de prisão pela prática do crime de violência doméstica, p.p. pelo arto.152º, nºs.1, al.d) e 2 do CP (sendo vítima a DD); e

7- na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática do crime de violência doméstica, p.p. pelo arto.152º, nºs.1, al.d) e 2 do CP (sendo vítima a EE);

8- Em cúmulo jurídico fixar a pena única (numa moldura abstrata de cúmulo que vai de 7 a 25 anos de prisão) em 16 (dezasseis) anos e 2 (dois) meses de prisão;

B) Condenar o arguido AA às penas acessórias de de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou proibição privadas, ainda que não remuneradas, cujo exercício envolva contacto regular com menores e proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores pelo período de 16 (dezasseis) anos e 2 (dois) meses – artigos 69º-B e 69º-C, ambos do Código Penal;

C) Condenar o arguido AA a pagar a cada uma das ofendidas BB, EE e DD, a título da reparação a que se reporta o artigo 82º-A do Código de Processo Penal, o montante de € 2 500,00 (dois mil e quinhentos euros);

D) Julgar procedente por provado o pedido de indemnização cível deduzido pela demandante CC contra o arguido/demandado AA e, em consequência, condená-lo no pagamento àquela da quantia de € 1 500,00 (mil e quinhentos euros), acrescidos de juros de mora à taxa legal civil vencidos desde a data da notificação do pedido de indemnização cível e vincendos, até efetivo e integral pagamento;

E) Absolver o arguido AA do demais que lhe vinha imputado.»

2. O arguido, inconformado com a decisão, recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 09.06.2022, decidiu:

«i. declarar verificado, no acórdão recorrido, o vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão quanto ao crime de violência doméstica [previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea d) e nº 2 do Código Penal] em que figura como vítima EE [originariamente incluído no objecto do processo no 95/13....];

ii. determinar a separação de processos, passando a ser instruído e julgado em separado o processo relativo à apreciação da prática pelo arguido AA de um crime de violência doméstica [previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea d) e nº 2 do Código Penal] em que figura como vítima EE, bem como da indemnização eventualmente a atribuir nos termos do artigo 16º da Lei nº 130/2015, de 04 de Setembro;

iii. determinar, nos termos do artigo 426º do Código de Processo Penal, o reenvio para novo julgamento do processo relativo à apreciação da prática pelo arguido AA de um crime de violência doméstica [previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea d) e nº 2 do Código Penal] em que figura como vítima EE;

iv. determinar a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto (provada e não provada) nos termos acima identificados em D);

v. condenar o arguido AA

a. na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão pela prática do crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelo nº 1 do artigo 171º e pela alínea a) do nº 1 do:

a. na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão pela prática do crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelo nº 1 do artigo 171º e pela alínea a) do nº 1 do artigo 177º , ambos do Código Penal (sendo vítima  BB);

b. na pena de 6 (seis) anos de prisão pela prática de cada um de 3 (três) crimes de abuso sexual de criança agravado, cada um previsto e punido pelo nº 2 do artigo 171º e pela alínea a) do nº 1 do artigo 177º 177º, ambos do Código Penal (sendo vítima a BB);

vi. confirmar a condenação do arguido AA aplicada em 1ª instância

a. na pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão, pela prática do crime de coação agravada, previsto e punido pelos nº 1 e 2 do artigo154º, e pela alínea a) do nº 1 do artigo 155º, ambos do Código Penal (sendo vítima a BB);

b. na pena de 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses de prisão pela prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea a), e 2, do Código Penal (sendo vítima a CC);

c. na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea d), e 2, do Código Penal (sendo vítima a BB);

d. na pena de 3 (três) anos e 8 (oito) meses de prisão pela prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea d), e 2, do Código Penal (sendo vítima a DD);

 vii. em cúmulo jurídico das penas referidas em v. e vi., condenar o AA na pena única de 13 (treze) anos de prisão;

viii. condenar o arguido AA nas penas acessórias de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, ainda que não remuneradas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, e de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, em ambos os casos pelo período de 13 (treze) anos [artigos 69º-B e 69º-C, ambos do Código Penal];

ix. manter, no remanescente, a decisão recorrida.»

3. Inconformado com a decisão, interpõe agora recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo nos seguintes termos:

«1 – Ao invés do sustentado no aresto ora proferido, o Tribunal “a quo” não descurou o poder-dever de investigar todos os factos necessários à prolação de uma decisão.

2 – Sucede, todavia, que terminada a produção da prova o Tribunal considerou assente factualidade insuficiente para o preenchimento da hipótese legal da norma que prevê e pune o crime de violência doméstica, no que se refere à ofendida EE.

3 – Perante tal vício, ressalvado o respeito devido por opinião diversa, não cabe novo reenvio do processo para julgamento, antes que se julgue não verificados os elementos objetivo e subjetivo do crime em questão e, em consequência, dele se absolva o Recorrente.

4 – Por outro lado, cremos que as penas parcelares ora determinadas e a pena única de treze anos de prisão aplicada ainda excedem as necessidades de prevenção geral e especial e prejudicam a ressocialização do Recorrente.

5 – Com efeito, no caso vertente haveria de considerar que o Recorrente tem 45 anos de idade (tinha 35/36 à data dos factos),

6 – Confessou a generalidade dos factos que lhe eram imputados no apenso A, o que sempre revelará ter interiorizado o desvalor e gravidade da sua conduta.

7 – Pediu desculpa à ofendida BB e manifestou arrependimento (minutos 25:40 e seguintes do segundo ficheiro do depoimento da ofendida, n.º 2 do CD da prova),

8 – O arguido não possui quaisquer antecedentes criminais.

9 – As necessidades de prevenção geral são elevadas, mas as exigências de prevenção especial serão hoje forçosamente diminutas.

10 – Com efeito, decorreram já nove anos desde a prática dos crimes, o arguido encontrava-se inserido familiar, social e profissionalmente, mantém-se abstinente e frequentou, por sua livre iniciativa, programa psicoterapêutico para controlo de raiva, não havendo registo que tenha praticado qualquer outro ilícito penal desde então.

11 – O grau de ilicitude do facto – atenta a pluridimensionalidade das ofensas e os seus expectáveis reflexos na vida das ofendidas – e a culpa do arguido assumem particular relevo.

12 – Ante tudo quanto supra se expôs, mormente, a culpa, o grau de ilicitude e as condições pessoais do arguido, bem como a conduta anterior e posterior ao crime, as penas parcelares aplicadas excederam as necessidades de prevenção geral e especial, prejudicando a possibilidade de reinserção do Recorrente.

13 – Assim, ao Recorrente deveriam ter sido aplicadas as penas parcelares de

– um ano e sete meses anos de prisão pela prática do crime de abuso sexual de criança agravado por reporte à ofendida BB;

– cinco anos de prisão pela prática de cada um dos três crimes de abuso sexual de criança agravado por reporte à ofendida BB;

– um ano e dois meses de prisão pela prática do crime de coação agravada por reporte à ofendida BB;

– três anos e três meses de prisão pela prática do crime de violência doméstica por reporte à ofendida CC;

– dois anos e nove meses de prisão pela prática do crime de violência doméstica por reporte à ofendida BB; e

– dois anos e quatro meses de prisão pela prática do crime de violência doméstica

por reporte à ofendida DD.

14 – Por tudo o aduzido, ponderadas a ilicitude global do facto e as exigências de prevenção requeridas, cremos que uma pena situada próxima do primeiro terço da moldura penal abstrata aplicável ao concurso (mínimo de cinco anos e máximo de vinte e cinco anos), ainda realizará, de forma suficiente, as finalidades da punição e garantirá a possibilidade de reinserção do Recorrente, considerando-se adequada a aplicação de pena única nunca superior a onze anos e seis meses de prisão.

15 – Ao decidir como decidiu o Tribunal “a quo” fez erradas interpretação e aplicação das normas ínsitas no arts. 124.º e 127.º, ambos do C.P.P., dos arts. 40.º, 70.º, 71.º, 77.º, 78.º, 152.º e 154.º, todos do C.P.

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser o acórdão recorrido substituído por outro que absolva o Recorrente do crime de violência doméstica por referência à ofendida EE e aplique ao Recorrente pena única nunca superior a onze anos e seis meses de prisão, por ser de Direito e de Justiça!.”.»

4. O recurso foi admitido por despacho de 12.07.2022.

5. Ao recurso interposto respondeu o Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa, considerando dever ser negado provimento ao recurso e tendo concluído nos seguintes termos:

 «1. Por douto Acórdão proferido em 31.01.2022, no Juízo Central Cível e Criminal ... J..., o recorrente AA foi condenado na pena de 2 (dois) anos de prisão pela prática do crime de abuso sexual de criança agravado, p.p. pelos artºs.171º, nº.1 e 177º, nº.1, al.a), todos do CP (factos provados nos em II.; A.; AA.; i.; 1., 2., 5. e 6. e por reporte a BB), na pena de 7 (sete) anos de prisão pela prática de cada um dos 3 (três) crimes de abuso sexual de criança agravado, p.p. pelos artºs.171º, nº.2 e 177º, nº.1, al.a), todos do CP (factos provados nos em II.; A.; AA.; i.; 3., 5. e 6. e por reporte a BB), na pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão pela prática do crime de coação agravada, consumada, p.p. pelos artºs.154º, nºs.1 e 2 e 155º, nº.1, al.a), todos do CP (factos provados em II.; A.; AA.; i.; 4., 5. e 6. e por reporte a BB), na pena de 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses de prisão pela prática do crime de violência doméstica, p.p. pelo artº.152º, nºs.1, al.a) e 2 do CP (factos provados nos em II.; A.; AA.; ii.; 7. a 16. e por reporte a CC), na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática do crime de violência doméstica, p.p. pelo arto.152o, nos.1, al.d) e 2 do CP (factos provados nos em II.; A.; AA.; ii.; 7. a 16. e por reporte a BB), na pena de 3 (três) anos e 8 (oito) meses de prisão pela prática do crime de violência doméstica, p.p. pelo artº.152º, nºs.1, al.d) e 2 do CP (factos provados nos em II.; A.; AA.; ii.; 7. a 16. e por reporte a DD) e na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática do crime de violência doméstica, p.p. pelo artº.152º, nºs.1, al.d) e 2 do CP (factos provados nos em II.; A.; AA.; ii.; 7. a 16. e por reporte a EE).

2. Em cúmulo jurídico foi o arguido condenado na pena única de 16 (dezasseis) anos e 2 (dois) meses de prisão.

3. Foi ainda o arguido condenado às penas acessórias de apreço proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, ainda que não remuneradas, cujo exercício envolva contacto regular com menores e proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores pelo período de 16 (dezasseis) anos e 2 (dois) meses - artos.69º-B e 69º-C, ambos do CP;

4. E mais foi condenado a pagar a cada uma das ofendidas BB, EE e DD, a título da reparação a que se reporta o arto.82º-A do Código de Processo Penal, o montante de €2.500,00 (dois mil e quinhentos euros); (...)”.

5. E por douto Acórdão proferido em 09.06.2022, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, foi decidido i. declarar verificado, no acórdão recorrido, o vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão quanto ao crime de violência doméstica [previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea d) e nº 2 do Código Penal] em que figura como vítima EE [originariamente incluído no objecto do processo nº 95/13....], ii. determinar a separação de processos, passando a ser instruído e julgado em separado o processo relativo à apreciação da prática pelo arguido AA de um crime de violência doméstica [previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea d) e nº 2 do Código Penal] em que figura como vítima EE, bem como da indemnização eventualmente a atribuir nos termos do artigo 16º da Lei nº 130/2015, de 04 de Setembro, iii. determinar, nos termos do artigo 426º do Código de Processo Penal, o reenvio para novo julgamento do processo relativo à apreciação da prática pelo arguido AA de um crime de violência doméstica [previsto e punido pelo artigo 152º, nº   1, alínea d) e no 2 do Código Penal] em que figura como vítima EE, iv. determinar a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto (provada e não provada) nos termos acima identificados em D), v. condenar o arguido AA: a. na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão pela prática do crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelo no 1 do artigo 171º e pela alínea a) do nº 1 do artigo 177º 177º, ambos do Código Penal (sendo vítima a BB), b. na pena de 6 (seis) anos de prisão pela prática de cada um de 3 (três) crimes de abuso sexual de criança agravado, cada um previsto e punido pelo nº 2 do artigo 171º e pela alínea a) do nº 1 do artigo 177º 177º, ambos do Código Penal (sendo vítima a BB), vi. confirmar a condenação do arguido AA aplicada em 1a instância: a. na pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão, pela prática do crime de coação agravada, previsto e punido pelos no 1 e 2 do artigo154º, e pela alínea a) do nº 1 do artigo 155º, ambos do Código Penal (sendo vítima a BB), b. na pena de 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses de prisão pela prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea a), e 2, do Código Penal (sendo vítima a CC), c. na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea d), e 2, do Código Penal (sendo vítima a BB), d. na pena de 3 (três) anos e 8 (oito) meses de prisão pela prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea d), e 2, do Código Penal (sendo vítima a DD).

6. Em cúmulo jurídico foi o arguido condenado na pena única de 13 anos de prisão.

7. Foi ainda o arguido condenado, nas penas acessórias de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, ainda que não remuneradas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, e de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, em ambos os casos pelo período de 13 (treze) anos [artigos 69º-B e 69º-C, ambos do Código Penal];

8. Mais foi decidido, manter, no remanescente, a decisão recorrida.

9. O Tribunal da Relação de Lisboa fundamentou, de forma adequada e clara, os motivos pelos quais, ordenou a separação de processos, no que se reporta ao crime de violência doméstica praticado na pessoa de EE.

10. Reportando-se o vício da insuficiência da matéria de facto apenas aos factos relativos a EE, e tendo o Tribunal da Relação de Lisboa fundamentado, de forma detalhada, esse reenvio, não assiste razão ao recorrente quando peticiona, nesta parte, pela sua absolvição.

11. Quanto à invocada questão da medida da pena, e no que se reporta às penas parcelares em que o Recorrente foi condenado, afigura-se-nos dever ser o recurso, nessa parte, rejeitado, por força do disposto na alínea f), do n.º 1, do art.º 400.º do Código de Processo Penal, podendo apenas ser objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça, a pena única, em cúmulo jurídico, em que o Recorrente foi condenado, por ser superior a 8 anos de prisão.

12. Com base em todos os fatores constantes do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, não poderia o arguido ser condenado numa pena inferior a 13 anos de prisão, sob pena de, aí sim, se violar o disposto nos artigos 71.º e 40.º, n.º 2, do Código Penal e no artigo 18.o, n.o 2 da Constituição da República Portuguesa.

13. A pena de prisão de 13 anos, aplicada em cúmulo jurídico, revela-se justa, proporcional, e adequada às elevadas exigências de prevenção geral e especial que se fazem sentir, não merecendo por isso nenhum reparo.»

            6. Subidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta considerou que o recurso deveria improceder porquanto:

            «(...)Como bem refere a magistrada do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa na sua resposta ao recurso, quanto à invocada questão da medida da pena, e no que se reporta às penas parcelares em que o Recorrente foi condenado, deverá ser o recurso, nessa parte, rejeitado, por força do disposto na alínea f), do n.º 1, do art.º 400.º do Código de Processo Penal.

Com efeito, estamos, pois, face ao uma situação de dupla conforme, relativamente a cada uma das condenações parcelares relativas aos crimes pelos quais o recorrente AA foi condenado, dado que, todas elas foram confirmadas e em penas inferiores a 8 anos de prisão. (...)

É inúmera a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (S.T.J.) a considerar irrecorrível decisão como a que ora concretamente se encontra em recurso.

Com a entrada em vigor da Lei 48/2007, de 29-08, foi modificada a competência do STJ em matéria de recursos das decisões proferidas, em recurso, pelas Relações, restringindo-se a impugnação daquelas decisões para o STJ, no caso de dupla conforme, apenas a situações em que tenha sido aplicada pena de prisão superior a 8 anos (cf. art.o 400º, nº 1, al. f), do CPP).

Esta solução quanto à irrecorribilidade de decisões proferidas, em recurso, pelo Tribunal da Relação, enquanto confirmativas da deliberação da 1a instância não ofende qualquer garantia do arguido, nomeadamente o direito ao recurso, expressamente incluído na parte final do nº 1 do art.º 32º da CRP. De facto, o direito ao recurso em matéria penal, inscrito como integrante da garantia constitucional do direito à defesa, está consagrado em um grau, possibilitando a impugnação das decisões penais através da reapreciação por uma instância superior das decisões sobre a culpabilidade e a medida da pena, sendo estranho a tal dispositivo a obrigatoriedade de um terceiro grau de jurisdição, por a CRP se bastar com um duplo grau.

No caso concreto dos autos, a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9/06/2022, após separação dos processos relativamente à ofendida EE, confirmou as condenações parcelares aplicadas pela primeira instância, todas inferiores a 8 anos de prisão.

Veja-se o acórdão de 11-01-2018 Proc.nº 589/15.0JABRG.G1.S3 – 3ª Secção (...)

E ainda o acórdão de 14-02-2018 Proc. Nº 2736/14.3TDPRT.P!.S1 – 3ª Secção: (...)

Atente-se ainda,

No acórdão do STJ de 15-03-2018 Proc. Nº 1053/14.0PFCSC.L1.S1 – 5ª Secção (...)

E no acórdão de 28-06-2018 Proc. Nº362/08.1JAAVR.P1.S1 – 5ª Secção (...)

Assim,

E na compreensão da problemática a considerar, em jurisprudência uniformemente sedimentada ao longo do tempo, na sua quase totalidade, leva-nos a concluir,

Ser irrecorrível a decisão firmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 9/06/2022, relativamente ao arguido AA.

Esta irrecorribilidade abrange, em geral, todas as questões processuais ou de substância, nomeadamente, os vícios elencados no art.o 410º nº 2, do CPP, as nulidades da decisão (arts.379º e 425º, nº 4, do CPP) e aspetos relacionados com o julgamento dos mesmos crimes, aqui se incluindo as questões relacionadas com a apreciação da prova (v.g.,o respeito pela regra da livre apreciação e pelo principio in dubio pro reo ou proibições de prova), com a qualificação jurídica dos factos e com a determinação das penas parcelares.

A irrecorribilidade estende-se a toda a decisão, abrangendo todas as questões relativas à actividade decisória que subjaz e conduziu à condenação, sejam de constitucionalidade, substantivas ou processuais.

E na compreensão sobre a primeira problemática a considerar, em jurisprudência uniformemente sedimentada ao longo do tempo, na sua quase totalidade, leva-nos a concluir,

Ser Irrecorrível a decisão firmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão de 9/06/2022, apenas resultando “elegível” para recurso a matéria relativa à pena única a que foi condenado o recorrente AA, por superior a 8 anos de prisão.

E, repetimos, sobre o seu alcance, verifica-se que, exceptuado tal ponto, a irrecorribilidade estende-se a toda a decisão, abrangendo todas as questões relativas à actividade decisória que subjaz e conduziu à condenação, sejam de constitucionalidade, substantivas ou processuais, confirmadas pelo acórdão da Relação (como se escreveu, a tal propósito, no acórdão de 22-04-2020, do S.T.J., processo nº 63/17.0T9LRS.L1.S1, Relator: Conselheiro Nuno Gonçalves), ou, de forma ainda mais esclarecedora, esta irrecorribilidade abrange, em geral, todas as questões processuais ou de substância que tenham sido objecto da decisão, nomeadamente, as questões relacionadas com a apreciação da prova, com a qualificação jurídica dos factos, concurso efectivo de crimes/crime continuado e com a determinação das penas parcelares. A não apreciação dessas questões elencadas pelo reclamante é, portanto, consequência directa da rejeição do recurso, quanto às penas parcelares (cfr. citado acórdão de 24- 02-2021).

Por outro lado, da conformidade constitucional da compreensão exposta, dá- nos conta o acima citado acórdão de 13-04-2016, e bem assim o acórdão de 19-01- 2017, proferido no processo nº 215/08.3JBLSB.C1.S1, 5a secção, Relator: Conselheiro Arménio Sottomayor, in www.stj.pt, em que se firmou o entendimento de que a interpretação do art. 400º nº 1 al. f) do CPP, segundo a qual são irrecorríveis as questões respeitantes aos crimes singulares punidos com pena não superior a 8 anos de prisão em que tenha havido confirmação, em recurso, por parte do tribunal da relação, não padece de qualquer inconstitucionalidade, nem viola o disposto nos arts 29º e 32º. Nº 1 da CRP.

Também pelo Acórdão no 186/2013 do Tribunal Constitucional, publicado no D.R. nº 89, Série II, de 09-05-2013, foi decidido não julgar inconstitucional a norma constante da alínea f), do nº 1, do artigo 400º, do Código de Processo Penal, na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão.

Finalmente, não se diga, que a eventual nulidade do acórdão do Tribunal da Relação, poderia constituir fundamento de admissibilidade do recurso, porquanto a nulidade só pode ser arguida e integrar o objecto de recurso se a decisão for recorrível, como resulta ser da mais elementar lógica.

Prejudicadas ficam, por conseguinte, a apreciação e discussão de todas as questões suscitadas no recurso que não tenham a ver com a medida da pena unitária aplicada ao recorrente.

DA PENA UNITÁRIA APLICADA AO RECORRENTE.

Na apreciação desta problemática, e recorrendo uma vez mais à jurisprudência do S.T.J., a propósito dos requisitos a atender na efectivação do cúmulo jurídico de penas, considere-se o acórdão de 21-11-2012 proferido no processo n.º 86/98.0GBOVR.P1.S1, da 3ª Secção, Relator: Conselheiro Oliveira Mendes, in www.stj.pt (mais uma das decisões em que se sustenta a irrecorribilidade de decisões com os contornos da que ora nos ocupa): (...)

Sufragamos inteiramente a posição da Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa (...).

Aqui chegados, e porque seguimos a jurisprudência unânime segundo a qual as penas fixadas apenas devem ser alteradas quando as mesmas se mostrem efetivamente desajustadas às razões de prevenção que as legitimam e à culpa do agente que a limita, e as penas fixadas pelo tribunal a quo encontram-se devidamente suportadas nos factos apurados em termos de dolo, ilicitude e culpa, tendo-se ponderado os aspetos relativos à personalidade, condições familiares, laborais e sociais do recorrente, em termos de prevenção especial, sendo que a prevenção geral não se satisfaria com pena mais baixa que a aplicada, somos de parecer que nada deve ser alterado no decidido no acórdão proferido e em recurso.

Carecendo assim o recorrente de razão quando defende que a pena aplicada é demasiado elevada.

Termos em que deve improceder o recurso interposto igualmente nesta parte.

O acórdão recorrido não nos suscita reparo, cumprindo as exigências legais.

Não se lhe atribua o rótulo de nulo, porquanto o dever de fundamentação da pena única não tem que assumir nem o rigor, nem a extensão, exigidos para a fundamentação das penas parcelares, sendo que só a falta absoluta de fundamentação, que, como se vê, não ocorre, é que conduziria à nulidade da decisão.

Acresce dizer que a fundamentação da decisão deve ser vista na sua globalidade, e não segmento a segmento, como parece pretender o recorrente.

Neste sentido, a decisão recorrida cumpre os requisitos legalmente exigidos de fundamentação, não a afectando qualquer nulidade ou sequer irregularidade, nem a mesma padece de inconstitucionalidade.

Nestes termos, e tendo ainda presente a moldura penal abstracta a considerar, facilmente se aquilatará da justeza da fixação da pena única em 13 anos de prisão.

O Ministério Público respondeu ao recurso, demonstrando que os elementos probatórios suportam a indiciação criminal efetuada e subsequente condenação.

As questões suscitadas no recurso foram adequada e sustentadamente analisadas e rebatidas, e que aqui se dão por reproduzidas.

Sufragamos os argumentos constantes da resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público do Tribunal da Relação de Lisboa, que se encontram devidamente desenvolvidos e adequadamente sustentados, quer de facto quer de direito, e por merecerem o nosso acolhimento, nos dispensam, por desnecessário, do aditamento de mais desenvolvidos considerandos.»

            7. Notificado o arguido, nos termos do art. 417.º, n.º 2, do CPP, não respondeu.

8. Colhidos os vistos em simultâneo, o processo foi presente à conferência para decisão.

II

Fundamentação

A. Matéria de facto provada

Matéria de facto dada como provada:

«“i. quanto à matéria destes autos 386/19.3JAPDL:

1. A ofendida BB nasceu a .../.../2004 e é filha do arguido AA e de CC.

O arguido AA e a ofendida residiram na mesma habitação, sita no ..., nº 6, na freguesia ..., no concelho ..., até um certo dia de finais de abril de 2013, data em que o arguido AA abandonou a ilha ..., em fuga, na sequência da denúncia que CC efetuou contra si, imputando-lhe o cometimento dos factos que estão abaixo em ii.

2. Em data não concretamente apurada, mas ocorrida, seguramente, entre os 5 e 6 anos de idade de BB, portanto, durante os anos de 2009 e 2010, na residência acima indicada, mais concretamente na sala, quando o arguido AA e a ofendida se encontravam a ver televisão, aquele pegou na mão desta e colocou-a no seu pénis, por cima da roupa que trajava, instruindo-a para que apalpasse o seu órgão genital.

[Facto provado de acordo com a alteração operada pelo acórdão do Tribunal da Relação (acórdão recorrido) que eliminou a parte final onde constava: “pretensão a que a ofendida, não obstante, não acedeu, retirando a sua mão do ponto onde o arguido a havia colocado”.]

3. Em datas não concretamente apuradas, mas ocorridas, seguramente, quando a ofendida BB tinha entre 5 a 6 anos, na residência acima indicada, mais concretamente no escritório, o arguido AA, em 3 (três) ocasiões distintas, despiu as calças que trajava, bem como as calças que a ofendida trazia vestidas, e sentou-se na beira da cama ali existente, após o que despiu as cuecas que a ofendida trajava.

De seguida, nessas 3 ocasiões, o arguido AA puxou a ofendida para a sua direção, virou-a de costas para si, sentou-a no seu colo e, em ato contínuo, introduziu o seu pénis ereto no ânus da ofendida, penetrando-a, após o que aí o friccionou, num movimento de vaivém, sem que o arguido tivesse utilizado preservativo em qualquer uma dessas ocasiões.

[Facto provado de acordo com a alteração operada pelo acórdão do Tribunal da Relação (acórdão recorrido) que eliminou a parte final onde constava: “No culminar de uma dessas condutas, o arguido AA ejaculou uma vez para cima da cama em que se sentava.”]

4. Além disso, na primeira daquelas 3 (três) ocasiões referias em 3., o arguido AA dirigiu-se à ofendida, dizendo-lhe que, caso contasse a alguém, à sua mãe ou à Polícia, o que ele, arguido, acabara de lhe fazer, a mataria e a «atirava da rocha abaixo».

Não obstante o que lhe foi dito pelo arguido AA, no dia 24 de maio de 2019, cerca das 10h30m, a ofendida relatou à CPCJ de Ponta Delgada o que o arguido AA lhe fizera.

5. A ofendida contava, nas circunstâncias de tempo acima indicadas, com idades compreendidas entre os 5 e os 6 anos de idade, o que a tornava particularmente indefesa perante as investidas do arguido AA, circunstâncias que eram do conhecimento deste, porquanto o arguido é pai da ofendida e vivia com ela e com o respetivo agregado familiar, na mesma residência, convivendo diariamente com aquela.

6. O arguido AA agiu conforme supra descrito, tirando partido da circunstância de viver na mesma residência em que habitava a ofendida, bem como da relação de parentesco existente entre ambos, sendo aquele pai desta, e usando sempre, para o efeito, do ascendente que, em razão dessa paternidade, tinha sobre ela.

Além disso, o arguido AA agiu, ainda, conforme anteriormente descrito, tirando proveito da situação de especial vulnerabilidade da ofendida, em razão da sua tenra idade.

O arguido AA agiu, sempre e em tudo, com o propósito, concretizado, de satisfazer os seus instintos libidinosos, indiferente às consequências que tal atuação provocava na ofendida, bem sabendo que a ofendida, sua filha, era menor de 14 (catorze) anos de idade e bem sabendo, também, que atuava sem o consentimento desta.

Mais sabia o arguido AA que a sua atuação era idónea para produzir dano no desenvolvimento psicológico da ofendida, o que, efetivamente, sucedeu, e que, ao atuar da forma descrita, punha em crise, como se verificou, a livre formação da sua personalidade, o sentimento de pudor e de vergonha desta, além do sentimento de decência inato à generalidade das pessoas, e, não obstante, não se absteve de proceder nos moldes supra apontados.

Ademais, o arguido AA bem sabia que as expressões apontadas em 4., que dirigiu à ofendida, eram adequadas a provocar-lhe sentimentos de insegurança e de intranquilidade, prejudicando a sua liberdade individual de decisão e de ação, o que quis e logrou, amedrontando e assustando a ofendida, por forma a constrangê-la na sua liberdade de decisão e de ação, com o intuito de a determinar ao silêncio e a não relatar o sucedido a ninguém, o que conseguiu até ao momento em que, já em 2019, a relatou o sucedido à CPCJ de Ponta Delgada.

O arguido AA agiu, sempre e em tudo, de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas, supra descritas, eram proibidas e punidas por lei penal.

ii. quanto à matéria dos autos 386/19.3JAPDL-A (outrora 95/13....):

7. CC (= então CC) e AA casaram, entre si, em 21 de julho de 2005, tendo fixado residência no ..., ..., ....

Dessa relação nasceu EE (= EE), em .../.../2008 e BB, em .../.../2004.

Com o casal residia também DD (= DD), nascida em .../.../1998, fruto de um anterior relacionamento de CC.

Desde o nascimento de BB que o arguido passou a usar da violência para impor a sua vontade àquela, bem como a DD.

Tal situação foi despoletada por AA duvidar da paternidade de BB, tendo dito, por várias vezes, a CC, EE e BB que esta não era sua filha, que era «burra, estúpida e não tem cérebro».

O AA esteve desempregado durante os últimos seis anos, passando os dias num café, na ..., onde, quase diariamente, ingeria bebidas alcoólicas em excesso.

8. Assim, desde cerca do dia .../.../2004, quase todos os dias, quando AA chegava a casa, pela noite, embriagado, encetava discussão com a sua esposa e filhas da mesma.

Nesse circunstancialismo, várias vezes por semana, os desentendimentos entre o arguido a DD e a BB resultaram em agressões, tendo o arguido desferido socos na barriga e bofetadas na cara daquelas.

Por diversas vezes, em ato contínuo, AA desferia várias séries de três chicotadas, com um cinto, na zona do rabo de DD e BB.

Nessas ocasiões, AA puxava as calças de DD e de BB, atingindo-as com a fivela do cinto diretamente no rabo.

Logo que se apercebia que o arguido estava a agredir as suas filhas, CC interpunha-se entre AA e as mesmas.

Perante isso, o arguido apelidava-a de «tola, estúpida, burra, ruim» e dizia-lhe, em língua ..., «fuck you».

Após, AA passava a agredir a sua esposa, desferindo-lhe socos, pontapés, cabeçadas e manietando-a pelo pescoço.

[factos que por força da decisão do acórdão recorrido — insuficiência da matéria de facto e separação de processos com reenvio para novo julgamento (cf. dispositivo pontos i., ii. e iii.) — não serão relevantes em sede de determinação da pena única)

9. Também por diversas vezes, no decorrer destes episódios, AA muniu-se de uma faca de características não concretamente apuradas e empunhou-a na direção da sua esposa, dizendo-lhe que a ia matar.

10. Também desde aquela data, pelo menos uma vez por semana, AA desentendia-se com a sua esposa por esta não aceder à sua vontade, desferindo-lhe socos na barriga, chapadas na cara e chicotadas com um cinto na zona do rabo.

11. Quando as discussões terminavam AA dizia à sua esposa e filhas que caso relatassem os factos suprarreferidos à polícia que as matava, motivo pelo qual nenhuma delas denunciou previamente tais episódios.

12. Como consequência de tais condutas, CC, DD e BB, sofreram, direta e necessariamente, escoriações, hematomas e dores nas zonas atingidas.

13. No dia 20 de abril de 2013, no interior do quarto das crianças, o AA apercebeu-se que DD detinha consigo um telemóvel.

O AA havia previamente proibido DD de tal conduta.

Assim, de imediato e na presença de BB e da EE, o AA dirigiu-se para junto da DD e tentou tirar-lhe o telemóvel.

Como não conseguiu, desferiu-lhe um soco nas costelas e empurrou-a para cima da cama.

Depois, enquanto procurava o telemóvel naquele quarto e na roupa que DD trajava, o AA manietou-a pelo pescoço e cabelos e desferiu-lhe bofetadas na cara e vários socos que a atingiram na zona das costelas, na cabeça e na barriga tendo ainda, em ato contínuo, a apelidado de «puta, cabra, burra» e lhe dito que a ia matar e para parar «de chamar alguém senão eu aperto-te o pescoço até ficares sem respirar».

Como consequência de tais condutas, DD sofreu, direta e necessariamente, «equimose no pavilhão auricular esquerdo (…) edema no dorso do nariz (…) equimose na face direita do pescoço com pequenas escoriações».

Tais lesões determinaram a DD um período de sete de dias de doença.

A DD conseguiu fugir para a rua.

Após, encontrou-se com a sua mãe e contou-lhe o que havia ocorrido, passando, desde então, a morar noutra residência.

14. Pelas 20h00 do mesmo dia, CC chegou a casa e questionou o AA sobre o que se havia passado com a DD.

O casal desentendeu-se, tendo AA manietado a sua esposa pelos cabelos e lhe desferido um soco no ouvido esquerdo e uma dentada na zona da testa.

Após o AA muniu-se de uma faca de cozinha e encostou a sua lâmina ao pescoço de CC, pressionando-a.

No entanto, a CC agarrou a lâmina daquela faca com as mãos e debateu-se contra o AA, tentando afastar a faca do seu pescoço.

Entretanto apareceu a BB que começou a gritar ao seu pai para que parasse.

O AA afastou a faca do pescoço da CC dizendo-lhe que a ia matar e atirar ao mar.

De seguida, a CC fugiu para a rua, abandonando também a residência.

Como consequência de tais condutas, a CC sofreu, direta e necessariamente, área eritematosa no crânio, «com alopecia traumática descontínua na região frontal à direita; (…) escoriações na face que provocaram dermografismo na região frontal à direita, que iniciava junto à linha de implantação dos cabelos e se prolongava para baixo, originando uma forma ovalada, como aquelas produzidas por mordedura humana, com 5cm de altura e 2,5 cm de largura; corte superficial com 2cm de extensão e sem afastamento dos bordos, na palma da mão» esquerda.

Tais lesões determinaram à CC um período de cinco dias de doença, sendo o primeiro com incapacidade para o trabalho habitual.

15. Ainda nesse dia, o AA proibiu a BB e a EE de saírem à rua, tendo a BB faltado à escola na manhã do dia 22 de abril, a segunda-feira seguinte.

Nesse circunstancialismo, pelas 13h45 daquele dia, o Agente da PSP Marco Simas deslocou-se àquela residência e após diálogo prolongado com o AA, este anuiu em deixar sair as suas filhas daquela casa.

A CC e as suas filhas passaram a residir noutra morada.

Nas duas últimas semanas de Abril até, AA telefonou, diversas vezes ao longo dos dias, para o número de telemóvel ...79, pertença de CC e disse-lhe «deste cabo da minha vida, não prestas, vou-te matar, se vou para a cadeia, vou consolado».

16. O AA agiu de forma voluntária, livre e conscientemente, com o propósito concretizado de molestar o corpo e o bem-estar psíquico da CC, da DD e da BB, bem como a sua liberdade de decisão e de formação da vontade, resultado este que representou, quis e conseguiu.

O AA bem sabia que as agressões por si infligidas e as expressões que proferiu a sua esposa, à DD e à BB eram aptas a causar-lhes temor e humilhação, sujeitando-as a um tratamento cruel, degradante e desumano, que colocou em causa a sua dignidade através da degradação da sua personalidade.

O AA sabia, também, que era casado com CC e que atuava no interior do seu domicílio, bem como na presença e nas próprias pessoas de DD e BB, então, todas, menores de idade, as quais se encontravam ao seu cuidado.

O AA sabia igualmente que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, que podia e devia ter observado.

iii. da contestação do arguido:

17. O arguido, por ter sofrido uma grave fratura da perna direita, foi sujeito a duas intervenções cirúrgicas, a que se seguiu um longo período de incapacidade, carecendo nessa altura de ajuda de terceiros para algumas tarefas e do auxílio de canadianas para se locomover, coisa que e prolongou entre os anos de 2010 a 2012.

iv. quanto ao PIC formulado por CC:

18. Na sequência das condutas do arguido que estão acima em ii.; 7. a 16., CC ficou física e psicologicamente afetada;

v. Resulta do relatório social e do CRC do arguido:

19. O AA tem de 43 aos de idade, está habilitado com o 12º ano, é trabalhador por conta própria, e à data dos factos residia com a esposa, CC, de 46 anos, em conjunto com as duas filhas do casal, BB, atualmente com 16 anos e EE, de 12 anos, e com a enteada, DD. O agregado residia em casa própria, sita na freguesia ..., com boas condições de habitabilidade e conforto. Àquela data o arguido era tido consumidor regular de álcool, hábito esse identificado como fator desestabilizador, levando-o a agir impulsivamente, e nesse contexto interveniente em conflitos com terceiros e em âmbito conjugal. Natural da ilha ... e é o sexto de uma fratria de 7 elementos, oriundo de agregado familiar de baixa condição socioeconómica e onde o alcoolismo da figura paterna era responsável por conflitos intrafamiliares, com episódios de violência doméstica, que condicionaram o processo de socialização de AA. O agregado, que já tinha familiares nos ..., emigrou para aquele país quando AA contava 3 anos aí fazendo o percurso escolar, com bons resultados, terminando os estudos aos 17 anos, concluído o 12º ano de escolaridade no país de acolhimento. Não se conhecendo a ocupação profissional do pai, sabe-se que a mãe era trabalhadora fabril. O abandono do agregado por parte do pai, e o consequente corte de relações com a família, quando tinha ele 14 anos, forçou-o a procurar trabalho para ajudar nas despesas do agregado, ocupando-se a cortar relva, a limpar neve ou a transportar os tacos e restante material de jogadores num campo de golf próximo da casa dele. Aos 19 anos, e na sequência de uma detenção policial por ter sido detetado na posse de uma pequena quantidade de canábis, foi repatriado para Portugal, escolhendo a ilha ..., e não a ilha de origem, porque não tinha familiares na ilha ..., preferindo uma ilha maior onde dispunha, em princípio, de melhores oportunidades de trabalho. Arrendou uma casa em ..., inscreveu-se na Agência para a Qualificação e Emprego a 3.12.1999 e acabou por iniciar atividade laboral numa empresa de audiovisuais, vindo depois a obter outras ocupações laborais, entre os quais de talhante na empresa A... através da referida Agência, onde veio a conhecer a esposa, contraindo com ela matrimónio quando contava 24 anos, relacionamento que terá durado cerca de 10 anos. Em 2012, AA, na qualidade de desempregado, aceitou o encaminhamento para formação em Escola Profissional, abandonando a frequência das aulas quando saiu da ilha em abril de 2013. AA adquiriu, aquando do matrimónio, e com recurso a crédito bancário, a casa onde residiu com a ex-mulher e filhas e enteada, e onde estas ainda hoje residem, ali permanecendo com estas até abandonar a ilha no ano de 2013, tendo como destino ..., onde já tinha um irmão a residir.

Durante os 10 anos que durou o casamento, AA tinha por hábito frequentar um Café na freguesa de residência, onde convivia e jogava às cartas, tendo, nesse contexto, consumos de álcool regulares e de canábis de forma esporádica. O ambiente familiar seria estável, no início, contudo o nível de conflitualidade do casal foi crescendo com o passar do tempo, culminando com a saída da esposa de casa na sequência do avolumar dos conflitos do casal, ficando ele com as duas filhas ao seu cuidado, até as entregar à mãe por via da intervenção da Polícia de Segurança Pública em abril de 2013. A sua primeira experiência sexual foi por volta dos 15/16 anos, com uma jovem da mesma idade com quem namorou na escola, assumindo uma vida sexual normalizada no âmbito das poucas relações de namoro que foi tendo até se casar. Em ..., estabeleceu relação de namoro com uma mulher, a qual mantém até à data, tendo ela conhecimento da sua atual situação jurídica, com exceção dos factos respeitantes aos crimes de natureza sexual. Foi para ... sem levar bens pessoais, deixando a casa, o carro e algum dinheiro que tinha no Banco aos cuidados da ex-mulher e filhas. Está integrado em ..., onde trabalhou na construção civil como carpinteiro e canalizador, tendo criado uma empresa em nome próprio nesta área, contudo, a situação atual, fez-lhe perder esta oportunidade de negócio. Não se revê nos factos, manifestando indignação, vergonha e surpresa, mantendo a expetativa de retomar o seu projeto de vida em ... após desfecho dos presentes autos. Em meio prisional não tem ocupação laboral, nem se encontra integrado em nenhum programa terapêutico, constando uma infração disciplinar ocorrida na fase inicial, ainda no Estabelecimento Prisional .... Não beneficia de apoio exterior, nem recebe visitas. Como fatores de risco, identificam-se os consumos de álcool como potenciadores de comportamentos mais impulsivos, a falta de suporte familiar ou de relações de amizades que contribuam para um suporte emocional, a par das dificuldades de expressão/compreensão do português. Natural da ilha ..., AA acompanhou o núcleo de origem quando os pais decidiram emigrar para território americano e onde se manteve até ao início da idade adulta, vindo o seu processo de socialização a ser marcado pela disfuncionalidade familiar decorrente da conduta desajustada da figura paterna.

Resultante do seu contacto com o sistema formal da justiça no país de acolhimento, foi obrigado a regressar à Região Autónoma dos Açores, fixando-se na ilha ... onde se integrou laboralmente, acabando por contrair matrimónio com cerca de 24 anos com uma das presumíveis vítimas, vindo o relacionamento a terminar de forma abrupta pouco antes dele emigrar para ..., o que aconteceu há cerca de oito anos, onde se mantinha aquando da sua atual reclusão. Tendo em conta a sua atual condição jurídico-penal, distanciando-se da prática dos crimes pelos quais vem acusado, não se consegue projetar no cenário de condenação, mantendo a expetativa de regressar ao País onde se encontrava inserido laboralmente. Como fatores de risco no arguido, identificam-se os consumos de álcool como potenciadores de comportamentos mais impulsivos, a falta de suporte familiar ou de relações de amizades que contribuam para um suporte emocional, a par das dificuldades de expressão/compreensão do português, submergindo como fatores de proteção os hábitos de trabalho que ganhou, alguma capacidade de adaptação a novos contextos.

Ao arguido não se encontram antecedentes criminais, sabendo-se, contudo, porque ele o declarou, que veio repatriado dos ... na sequência de condenação ali sofrida que não se logrou apurar mau grado os esforços feitos nesse sentido.»

            B. Matéria de direito

1.1. Do recurso interposto pelo arguido resulta, em síntese apertada, que são as seguintes as questões a resolver:

- entende o recorrente que, tendo o Tribunal da Relação concluído pela insuficiência da matéria de facto para a decisão no respeitante às agressões do arguido a EE, deveria o arguido ter sido absolvido e não sido determinado o reenvio dos autos para novo julgamento:

- entende que, apesar da diminuição das penas (parcelares e única) operada pelo acórdão do Tribunal da Relação, ainda assim estas excedem as necessidades de prevenção geral e especial.

Além disto, o Ministério Público suscita a problemática da irrecorribilidade do acórdão por “dupla conforme” in mellius, considerando que é apenas recorrível a parte da decisão relativa à determinação da medida da pena única.

1.2. Comecemos por analisar em que medida pode haver recurso para este Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação que confirmou in mellius a condenação do arguido por diversos crimes em penas de prisão inferiores a 8 anos.

As penas aplicadas a cada um dos crimes pelos quais o arguido vem condenado são todas inferiores a 8 anos de prisão e resultam de uma decisão em conformidade com a condenação em 1.ª instância, apenas sendo diferente daquela quanto à medida das penas concretas e da pena única que foram reduzidas.

Ora, tendo em conta o disposto no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, onde apenas se admite (a contrario) o recurso de acórdãos da Relação que, confirmando decisão anterior, apliquem pena de prisão superior a 8 anos, e sabendo que, ainda que a pena única seja superior a 8 anos de prisão, se analisa a recorribilidade do acórdão relativamente a cada crime individualmente considerado, necessariamente temos que concluir não ser admissível o recurso das condenações, relativas a cada crime, do Tribunal da Relação, quando seja confirmada in mellius a aplicação de penas de prisão superiores a 5 anos de prisão e não superiores a 8 anos de prisão.
Na verdade, todos os acórdãos proferidos na Relação que confirmem decisão da 1.ª instância e que apliquem pena de prisão inferior a 8 anos são considerados definitivos. E, para saber da admissibilidade (ou não) do recurso, ter-se-á de analisar não só a pena única conjunta atribuída ao concurso de crimes, mas também as penas parcelares atribuídas a cada um dos crimes que integram o concurso. Assim se fazendo uma clara separação entre o momento da determinação da pena em relação a cada crime e o momento da determinação da sanção em sede de concurso. Nada que o nosso direito o não permita. Na verdade, e tendo em conta o regime do concurso superveniente, verifica-se que, neste caso, por exemplo, a pena do concurso é determinada já depois do trânsito em julgado de todas as condenações, isto é, sem possibilidade de recurso relativamente a nenhuma das decisões relativas a cada crime que integra o concurso, e é determinada em audiência específica para o efeito (de acordo com o estipulado no art. 78.º, n.º 2, do CP e 472.º, do CPP). Ou seja, claramente o nosso CP permite-nos perceber que a determinação da pena do concurso de crimes constitui um ponto a decidir distinto e autónomo dos outros. Pelo que também aqui podemos autonomizar esse momento, permitindo que relativamente aos crimes, individualmente considerados, e às respetivas penas parcelares atribuídas, se constitua um caso julgado parcial. E não se diga que o momento de determinação da culpabilidade é intrínseco ao momento de determinação da sanção ─ não só porque em sede de sentença o CPP assim o distinguiu (veja-se os arts. 368.º e 369.º do CPP), como também se admite que haja caso julgado parcial relativamente a cada uma das penas que estejam fixadas na sentença ─ isso mesmo nos diz o art. 403.º, n.º 2, al. f), quando estabelece que há possibilidade de limitação do recurso a uma parte da decisão, considerando como sendo “autónoma, nomeadamente, a parte da decisão que se referir: (...) f) dentro da questão da determinação da sanção, a cada uma das penas ou medidas de segurança”. Nada impede, pois, que haja caso julgado relativamente aos crimes e penas parcelares correspondentes, independentemente do caso julgado relativo à determinação da pena em sede de concurso de crimes.

Dito de outro modo: apenas é admissível o recurso de uma decisão do Tribunal da Relação relativamente aos crimes aos quais se tenha aplicado pena de prisão superior a 5 anos e não superior a 8 anos quando não haja “dupla conforme”, e de uma decisão da Relação relativamente a todos os crimes cuja pena seja superior 8 anos, ainda que haja “dupla conforme”.
Aliás, em sentido idêntico se tem pronunciado o Tribunal Constitucional que, no acórdão n.º 186/2013, entendeu "não julgar inconstitucional a norma constante da alínea f), do n.º 1, do art. 400.º, do Código de Processo penal, na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão" (e isto mesmo foi já entendido perante a redação do CPP dada pela Lei n.º 20/2013 ─ assim, no acórdão n.º 269/2014 ─ acessível aqui: http:/www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20140269.html). Isto sem referir jurisprudência anterior do mesmo tribunal, como o acórdão n.º 649/2009, onde se concluiu não ser inconstitucional o art. 400.º, n° 1, al. f), do CPP, interpretado no sentido de que "no caso de concurso de infrações tendo a Relação confirmado, em recurso, decisão de 1.ª instância que aplicou pena de prisão parcelar não superior a 8 anos, essa parte não é recorrível para o STJ" nos termos daquele dispositivo. Acrescentando:
"Quer dizer: o direito ao recurso para o STJ só poderia considerar-se violado se, por via da cisão, ao Supremo Tribunal de Justiça nada restasse, a final, para apreciar, no recurso perante este tribunal interposto e admitido.
Tal, porém, não sucede. É possível ao Supremo Tribunal de Justiça apreciar a matéria do cúmulo jurídico e as questões relativas à pena única aplicada, sem concomitante apreciação das questões relativas às penas parcelares, como o demonstra o regime do artigo 78.º do Código Penal: decorre, na verdade, deste preceito que é possível aplicar uma pena única tendo já transitado em julgado a decisão respeitante à pena parcelar, o que, em virtude do caso julgado desta decisão, inviabiliza a reapreciação das questões relativas a esta pena parcelar aquando da ponderação daquele cúmulo"[1].

Assim sendo, o arguido foi condenado em diversos crimes com penas inferiores a 8 anos de prisão, pelo que relativamente a estes, por força do disposto no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, sem prejuízo da possibilidade de verificação da existência (ou não) dos pressupostos para que se conclua pela existência de um concurso de crimes, não é admissível o recurso para este Supremo Tribunal de Justiça. Isto para além de não ser admissível recurso de decisões do Tribunal da Relação que apliquem penas não superiores a 5 anos de prisão, não tendo havido absolvição na 1.ª instância [cf. art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP].

Sabendo que o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa constitui um acórdão condenatório que confirmou in mellius as condenações anteriores dos arguidos, ou seja, tratando‑se de um acórdão a confirmar a decisão de 1.ª instância e com aplicação de penas de prisão inferiores a 8 anos de prisão, por força do disposto no art. 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, articulado com o art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, deve (ao abrigo do disposto no art. 417.º, n.º 6, al. b), do CPP) ser o recurso rejeitado por inadmissibilidade legal, nos termos do art. 420.º, n.º 1, al. b), e art. 414.º, n.º 2, todos do CPP.

            Acresce que tem sido jurisprudência uniforme deste Tribunal o entendimento de que uma confirmação in mellius da condenação em primeira instância cabe ainda dentro do conceito de dupla conforme pressuposto pelo art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP. Tal como se afirmou no acórdão de 26.02.2014 (proc. n.º 851/08.8TAVCT. G1. S1, relator: Maia Costa), “a confirmação não significa nem exige a coincidência entre as duas decisões. Pressupõe apenas a identidade essencial entre as mesmas, como tal devendo entender-se a manutenção da condenação do arguido, no quadro da mesma qualificação jurídica, e tomando como suporte a mesma matéria de facto.” E esta confirmação admite “a redução da pena pelo tribunal superior; ou seja, haverá confirmação quando, mantendo-se a decisão condenatória, a pena é atenuada, assim se beneficiando o condenado.” (ac. cit.)  E a identidade na qualificação jurídica abrange “não só a manutenção da mesma pelo tribunal superior, como também a desagravação da imputação penal, por meio da desqualificação do tipo agravado para o tipo simples do mesmo crime. Já não haverá confirmação se for imputado ao condenado um tipo de crime diferente.” (idem).

            Ora, não só houve uma confirmação da decisão condenatória (sem qualquer alteração da qualificação jurídica dos factos), como as penas foram modificadas no sentido da diminuição. De referir ainda que este entendimento tem sido acolhido, no que respeita à sua conformidade com a Constituição, pelo Tribunal Constitucional — cf. acórdão n.º 20/2007 (e outros aí referidos)[2].

A única problemática que cumpre ainda resolver é a de saber se as pequenas correções feitas nos factos provados 2 e 3 constituem uma alteração essencial da matéria de facto. Na verdade, aqueles factos permitiram considerar que o arguido praticou um crime de abuso sexual de criança agravado, nos termos dos arts. 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal (CP) e 3 crimes de abuso sexual de criança agravado, nos termos dos arts. 171.º, n.º 2, e 177.º, n.º 1, al. a), ambos do CP; em ambos os casos a pena foi diminuída: no primeiro caso, o arguido deixou de ser punido com uma pena de prisão de 2 anos e passou a ser punido com uma pena de prisão de 1 ano e 8 meses; e, no segundo, deixou de ser punido com uma pena de prisão de 7 anos por cada um deles e passou a ser punido com uma pena de prisão de 6 anos, por cada um deles. E como fundamentação para as penas aplicadas considerou o Tribunal da Relação que:

«No que respeita aos crimes de natureza sexual: partindo da moldura abstracta aplicável; tendo presente as elevadas exigências de prevenção geral de reintegração que se fazem sentir [a banalização da utilização do tema sexual um pouco por todos os meios de relação hoje disponíveis, se positivamente nos desperta a consciência para uma faceta essencial da vida humana, exige a clara definição dos limites inultrapassáveis na forma como cada um exerce a sua liberdade na matéria]; a concreta natureza dos actos sexuais praticados; a idade extremamente jovem da vítima; a circunstância de a conduta do arguido não ter deixado marcas físicas na vítima; e o facto de o recorrente não apresentar antecedentes criminais, tendo mantido bom comportamento após os factos; considera-se adequado fixar em 1 ano e 8 meses de prisão a pena correspondente aos factos vertidos no ponto 2- da matéria de facto provada, e em 6 anos de prisão a pena correspondente a cada um dos abusos sexuais descritos no ponto 3- da matéria de facto provada.» (cf. ac. recorrido, p. 84 do “pdf” constante do Citius).

Ora, não resulta da fundamentação da pena aplicada a cada um destes crimes que a alteração da pena tenha sido consequência da alteração (não essencial) da matéria de facto. O que se bem compreende, pois não só aquela alteração não deu lugar a qualquer alteração da qualificação jurídica dos factos, como a alteração que ocorreu (nos pontos 2 e 3 da matéria de facto) não teve qualquer relevo. A eliminação das duas frases que integravam aqueles factos provados[3] não determinou que se deixasse de considerar que as condutas do arguido integravam um crime de abuso sexual de criança (agravado em função da relação existente entre o agente e a ofendida), como para além disso aquela eliminação das duas frases foi/é irrelevante para o tipo legal de crime onde os factos foram/estão integrados — o art. 171.º, n.ºs 1 e 2, do CP — dado que sempre se manteve a prova dos atos sexuais de relevo, (sendo que em 3 situações houve coito anal mediante a introdução anal de partes do corpo). Acresce que a eliminação daqueles últimos segmentos dos factos provados foi irrelevante em sede de determinação da pena. A apreciação jurídico-criminal do comportamento do arguido manteve-se a mesma, sem alteração. A mesma realidade relevante para a subsunção dos factos ao tipo legal de crime manteve-se exatamente a mesma — a prática de ato sexual de relevo e coito anal com penetração de partes do corpo —, sendo irrelevante para o tipo de crime se a ofendida retirou a mão depois de o arguido nela ter pegado e colocado no seu pénis (tal como se encontra provado no facto 2) ou se houve ejaculação ou não, após o ato, na cama. Poder-se-ia dizer que tal facto poderia ser relevante em sede de determinação da medida da pena; todavia, nada disso resulta do texto da decisão recorrida que diminuiu a pena sem que da fundamentação resulte que a modificação da pena derivou de não ter resultado provado que a ofendida retirou a sua mão ou de não ter resultado provado o local em que o arguido ejaculou após o coito anal. Isto é, aquando da determinação da medida concreta da pena, nada se refere (na fundamentação do acórdão recorrido e transcrito supra) que a sua diminuição tenha sido consequência daquela alteração.

E não estamos com isto a fazer um juízo distinto daquele que necessariamente temos de fazer para saber se o recurso é ou não admissível; na verdade, mesmo que o tribunal tivesse diminuído a pena, sempre teríamos de ver se, por exemplo, a diminuição da pena se deveu a uma alteração da qualificação jurídica caso em que necessariamente o recurso seria admissível por não existir dupla conforme. Ou seja, sempre que o legislador nos impõe que avaliemos da existência ou não da dupla conforme não nos podemos bastar com uma análise superficial do quantum das penas aplicadas, sendo sempre necessário verificar se o acórdão da Relação confirma a decisão de 1.ª instância[4].

Cumpre ainda referir que a limitação de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça através da regra da irrecorribilidade inscrita no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, tem em vista não permitir o recurso de decisões que, tendo sido apreciadas por dois tribunais, mantêm a essencialidade dos factos provados, subsumindo-os ao mesmo tipo legal de crime (sem alteração, pois, da qualificação jurídica) assim evidenciando uma conformidade entre ambas as decisões; no caso, a realidade relevante para a subsunção dos factos ao respetivo tipo legal de crime manteve-se exatamente a mesma. Admitir o recurso em situações em que a alteração da matéria de facto é inócua, quando analisada à luz do tipo legal de crime, em que os factos foram subsumidos à mesma norma jurídico-penal, seria admitir o recurso de uma decisão confirmativa cujo recurso está vedado pelo legislador. Além disto, considerar que estamos perante um caso em que não se verifica a confirmação da decisão, seria alargar o âmbito do recurso desta decisão em dessintonia com outras já tomadas por este Supremo Tribunal de Justiça.

            Conclui-se, pois, pela irrecorribilidade do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa na parte em que confirmou as diversas penas aplicadas ao arguido, por cada um dos crimes praticados, em medida inferior à condenação pelo Tribunal de 1.ª instância, e em medida inferior a 8 anos de prisão, nos termos dos arts. 432.º, n.º 1, al. b) e 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, confirmando in mellius as condenações em 1.ª instância.

Pelo que, quaisquer questões a este relativas, quando referidas a cada crime individualmente considerado, não serão conhecidas, nomeadamente, não se analisarão as penas aplicadas a cada crime de per si. E por isto tudo o referente à matéria de facto provada encontra‑se estabilizado sem possibilidade de conhecimento por este Supremo Tribunal de Justiça e sem possibilidade de alteração.

Apenas é passível de recurso para este Supremo Tribunal de Justiça a medida da pena única aplicada, e a verificação dos pressupostos de que depende a aplicação desta pena, nomeadamente, a existência de um concurso de crimes, mas apenas no que respeita às penas únicas superiores a 8 anos de prisão, de acordo com o estipulado no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP.

Consequentemente, também não é recorrível a parte da decisão que concluiu pela insuficiência da matéria de facto provada e determinou a separação dos processos e o reenvio para novo julgamento de parte dos factos relativos ao crime de violência doméstica contra a ofendida EE.

Mas, para além disto, esta parte da decisão é irrecorrível com base no disposto nos arts. 432.º, n.º 1, al. b) e 400.º, n.º 1, al. c), ambos do CPP.

Com efeito, a decisão mediante a qual o tribunal de recurso determina a separação de processos e o reenvio parcial para novo julgamento não põe termo à causa, entendendo-se como tal aquela que estatui o termo da relação jurídica processual penal no aspeto considerado, ou seja, uma decisão que, versando sobre pressupostos processuais ou sobre o mérito, configure definitivamente a situação jurídico-criminal do arguido relativamente a todo o processo ou a determinada imputação. O reenvio para novo julgamento, com base num juízo interlocutório de insuficiência da matéria de facto, impõe que o processo prossiga relativamente à imputação a que respeita o processo separado. É um conteúdo decisório de sentido oposto ao de pôr termo ao processo.

Por fim, a partir do texto da decisão recorrida (quanto à determinação da pena única) não se vislumbra nenhum dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.

Analisemos, pois, a pena única aplicada ao arguido.

2. O recorrente entende excessiva a pena única aplicada.

A determinação da pena tem como limite máximo o admitido pela culpa de cada arguido — a culpa de cada um é individualizável e insuscetível de equiparação entre os diversos arguidos, pois estes participam de forma diferente e de modo diverso nos diferentes factos praticados, assim revelando uma atitude particular contra o direito —, e como limite mínimo o determinado pelas exigências de prevenção geral impostas pela comunidade de acordo com os crimes praticados; será dentro destas balizas que em função das exigências de prevenção especial de cada arguido que se determinará a medida concreta da pena, necessariamente diferente consoante as distintas exigências que cada um impõe.

A determinação da pena, realizada em função da culpa e das exigências de prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização (de harmonia com o disposto nos arts. 71.º, n.º 1 e 40.º, do CP), deve, no caso concreto, corresponder às necessidades de tutela dos bens jurídicos em causa e às exigências sociais decorrentes daquela lesão, sem esquecer que deve ser preservada a dignidade da pessoa do delinquente. Para que se possa determinar o substrato da medida concreta da pena, dever-se-á ter em conta todas as circunstâncias que depuseram a favor ou contra o arguido, nomeadamente os fatores de determinação da pena elencados no art. 71.º, n.º 2, do CP. Nesta valoração, o julgador não poderá utilizar as circunstâncias que já tenham sido utilizadas pelo legislador aquando da construção do tipo legal de crime, e que tenham sido tomadas em consideração na construção da moldura abstrata da pena (assegurando o cumprimento do princípio da proibição da dupla valoração).

Acresce que o nosso sistema de reações criminais é claramente caracterizado por uma preferência pelas penas não privativas da liberdade ─ cf. art. 70.º do CP ─ devendo o tribunal dar primazia a estas quanto se afigurem bastantes para que sejam cumpridas, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.

Mas, a determinação da medida da pena, em sede de concurso de crimes, apresenta especificidades relativamente aos critérios gerais do art. 71.º do CP.

Nos casos de concurso de crimes (e em obediência ao princípio constitucional da legalidade criminal, a pena única apenas pode ser aplicada caso estejam verificados os seus pressupostos de aplicação, isto é, caso estejamos perante uma situação de concurso efetivo de crimes), a determinação da pena única conjunta tem que obedecer (para além daqueles critérios gerais) aos critérios específicos determinados no art. 77.º, do CP. A partir dos critérios especificados é determinada a pena única conjunta, com base no princípio do cúmulo jurídico. Assim, após a determinação das penas parcelares que cabem a cada um dos crimes que integram o concurso, é construída a moldura do concurso, tendo como limite mínimo a pena parcelar mais alta atribuída aos crimes que integram o concurso, e o limite máximo a soma das penas, sem, todavia, exceder os 25 anos de pena de prisão (de harmonia com o disposto no art. 77.º, n.º 2, do CP).

A partir desta moldura, é determinada a pena conjunta, tendo por base os critérios gerais da culpa e da prevenção (de acordo com o disposto nos arts. 71.º e 40.º, ambos do CP), ao que acresce um critério específico — na determinação da pena conjunta, e segundo o estabelecido no art. 77.º, n.º 1, do CP, "são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente". Assim, a partir dos factos praticados, deve proceder se a uma análise da "gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique”. Na avaliação da personalidade, ter-se-á que verificar se dos factos praticados pelo agente decorre uma certa tendência para o crime ou se estamos apenas perante uma pluriocasionalidade, sem possibilidade de recondução a uma personalidade fundamentadora de uma "carreira" criminosa. Apenas quando se possa concluir que se revela uma tendência para o crime, quando analisados globalmente os factos, é que estamos perante um caso onde se suscita a necessidade de aplicação de um efeito agravante dentro da moldura do concurso. Para além disto, e sabendo que também influem na determinação da pena conjunta as exigências de prevenção especial, dever se á atender ao efeito que a pena terá sobre o delinquente e em que medida irá ou não facilitar a necessária reintegração do agente na sociedade; exigências, porém, limitadas pelas imposições derivadas de finalidades de prevenção geral de integração (ou positiva).

São estes os critérios legais estabelecidos para a determinação da pena e, em particular, para a determinação da pena única conjunta.

Nos termos do art. 77.º, n.º 2, do CP, a pena única conjunta, a aplicar a um caso de concurso crimes, é determinada a partir de uma moldura que tem como limite mínimo “a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”, e como limite máximo “a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”. Pelo que as penas concretas aplicadas a cada crime constituem os elementos a partir das quais se determina aquela moldura.

Nestes termos, a moldura do concurso de crimes a partir da qual deve ser determinada a pena concreta a aplicar tem como limite mínimo a pena concreta aplicada mais elevada, e como limite máximo a soma das penas concretas aplicáveis, ou no máximo, 25 anos de prisão, de acordo com o disposto no art. 77.º, n.º 2, do CP.

Assim sendo, a moldura da pena única oscila entre 6 anos de pena de prisão (a pena concreta mais alta) e 25 anos (dado o limite imposto no art. 77.º, n.º 2, do CP uma vez que a totalidade das penas ascendia a 34 anos).

Não há dúvida de que a medida da pena única que concretamente foi aplicada ao arguido ora recorrente foi ponderada e analisada com pormenor, depois de graduadas as penas parcelares aplicadas por cada infração em que foi condenado, e que se atendeu ao grau de ilicitude colocado na comissão de cada ilícito-típico, revelada no modo da sua execução, persistência de prosseguimento da ação e intensidade do propósito de concretizar o desígnio criminoso.

A forma como os crimes foram cometidos, agindo em condições de manifesta superioridade física e o elevado grau de violência física e psicológica que empregou sobre as vítimas indefesas e incapazes de oferecer resistência (no caso, filha e mulher), o facto de não ter revelado qualquer interiorização da sua conduta ou qualquer expressão reveladora de consciência crítica sobre os atos cometidos, nem ter evidenciado qualquer ato destinado a reparar os danos causados, mostram bem que o arguido tem dificuldade em conduzir a sua vida de modo, pessoal e socialmente integrado. Globalmente considerada, a conduta do arguido suscita um juízo ético-jurídico de condenação extremamente grave, porquanto, os fins ou motivos manifestados nos factos, demonstram que o arguido não se deixou penetrar por contra motivações impostas pelo direito, pelo contrário, não olhou a meios para atingir os seus intentos.

Do exposto, evidencia-se a partir da análise global do comportamento do arguido uma atitude persistente contra o direito. Além disto, os factos praticados determinam fortes exigências de prevenção numa comunidade que recentemente despertou para a prática destes crimes em meios onde presumivelmente as vítimas menores estariam protegidas.

Mas as exigências de prevenção especial são igualmente relevantes.

Saliente-se que as únicas circunstâncias apontadas pelo ora recorrente no sentido de diminuir a necessidade e adequação da pena única foram as relacionadas com o seu bom comportamento social posterior aos factos, alegando bom comportamento após ter ido para o .... Porém, tal facto não é revelador de que o mesmo tenha um comportamento adequado a uma sã convivência em família e em sociedade, pois, os factos provados quanto às palavras e ações dirigidas aos seus familiares, em particular à sua filha e mulher (factos 6 a 8, 10 e 11, da matéria de facto), denotam um grau baixíssimo de autocontrolo e de autoimposição das regras vigentes na sociedade em que se integra, demonstrando pouco reconhecimento pelos valores sociais de preservação da dignidade humana e de respeito e consideração pela vida pessoal e familiar de quem lhe estava mais próximo e lhe merecia proteção.

Em concreto, o seu comportamento é de molde a impor, justa, objetiva e proporcionalmente uma pena graduada nos limites da culpa com que o mesmo atuou, atenta à gravidade dos crimes que cometeu, praticados ao longo dos anos que viveu com a sua família, em particular filha e mulher aqui vítimas, e a necessidade de prevenção geral e especial perante o tipo de criminalidade de natureza sexual e de violência no seio da família. No caso, ainda se mostram mais exigíveis as necessidades preventivas, considerando a violência doméstica vivida pelo agregado familiar do arguido, perpetuada na sua conduta atentatória do bem-estar e integridade física da sua filha e mulher, a sua atitude persecutória e injuriosa, comportamento que se repercutiu (perpetuamente) nas vidas das vítimas; além disto, trata-se de condutas que são suscetíveis de causar alarme social.

Em suma, a análise global do comportamento do arguido e a personalidade demonstrada através das suas condutas impõem uma pena claramente acima da metade da moldura penal (que ronda os 15 anos). Não pode assim deixar de se considerar que a pena única de 13 (treze) anos aplicada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, ainda que de forma benevolente, integra-se ainda dentro do limite imposto pela culpa e satisfaz minimamente as exigências de prevenção geral e de prevenção especial.

Do exposto, improcede o recurso apresentado e confirma-se a decisão recorrida, na parte em que se conheceu do recurso.

III

Conclusão

Nos termos expostos, acordam em conferência na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA mantendo o acórdão recorrido.

Custas em 5 UC.

Supremo Tribunal de Justiça, 10 de novembro de 2022

Os Juízes Conselheiros,

Helena Moniz (Relatora por vencimento)

António Gama

Leonor Furtado (com o voto de vencida que junta)

*

Voto de vencida

Fiquei vencida, apenas, quanto à questão da admissibilidade do recurso na parte respeitante à apreciação da dosimetria das penas parcelares aplicadas nos termos da al.  b), do ponto v., do dispositivo do acórdão recorrido.

Relativamente aos crimes a que se refere este ponto do dispositivo – crimes de abuso sexual cometidos pelo ora Recorrente contra sua filha BB –, apreciando o ataque dirigido pelo arguido à decisão do tribunal de 1ª instância, o acórdão recorrido procedeu a alteração da matéria de facto, como se explicitou na seguinte passagem:

“De tudo o que antecede retira-se inexistir no processo meio de prova que, em concreto, imponha decisão diversa da proferida pelo tribunal a quo. Com 2 excepções. Reconhecendo-se credibilidade ao depoimento prestado em julgamento pela BB, desde logo inexiste meio de prova que permita afirmar, primeiro, que a BB tenha, contra a vontade do arguido, retirado a mão do pénis deste ao ser instada a massajá-lo; segundo, que o arguido tenha ejaculado sobre a cama em que se sentava/deitava na altura de um dos abusos – logo, o último parágrafo do ponto 3. da matéria de facto provada deve ser retirado; e no ponto 2. da matéria de facto provada deve retirar-se o segmento «(…) pretensão a que a ofendida, embora a contragosto, acedeu», passando tais factos a constar da matéria de facto não provada”.

Em conformidade, a Relação procedeu às correspondentes alterações no elenco dos factos provados, e essa matéria de facto alterada pela Relação teve influência relevante no sentido de ser alterada a decisão recorrida e a sua fundamentação, não confirmando integralmente a sentença de 1ª instância. E, embora mantendo a qualificação jurídico-criminal dos factos quanto ao tipo legal de crime cometido, condenou o arguido em penas de prisão ligeiramente inferiores – 1 ano e 8 meses e 6 anos de prisão quando a 1ª instância aplicara 2 anos e 7 anos, respectivamente –, não se verificou um duplo juízo condenatório quanto às questões de facto. 

Nestas circunstâncias, embora sem alteração substancial, regista-se que não há rigorosa coincidência entre as duas instâncias na matéria de facto considerada provada para a determinação da responsabilidade penal do arguido, mas que tal alteração é relevante quanto à fundamentação das circunstâncias que fundamentaram a decisão. Assim, no que a esta parte da decisão respeita, não pode falar-se em “dupla conforme”, pelo que não tem aplicação o disposto na al. f), do n.º 1, do art.º 400.º, do CPP, como fundamento de rejeição.

É certo que a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem considerado que a aplicação pela Relação de uma pena mais favorável ao arguido, a chamada reformatio in mellius, não obsta a que, para este efeito, se considere verificada uma situação de decisão conforme das duas instâncias para efeito de determinação do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça – conforme, de entre vários, Ac. do STJ, de 14/07/2022, Proc. 42/19.2JAPTM.E1.S1, em www.dgsi.pt.

Efectivamente, nessa hipótese em que, mantendo-se intocada a decisão de facto e a sua qualificação jurídica, se aplica uma pena mais favorável ao arguido, pode sustentar-se que os dois tribunais de instância coincidiram na apreciação jurídico-criminal daquele “pedaço de vida” que constitui objecto do processo, pelo menos, até à concorrência das penas aplicadas, que é o factor primário da atribuição de relevo da questão para acesso ao Supremo na estruturação normativa do art.º 400.º do CPP. Nestas condições, em que mais nada diverge, justifica-se a pressuposição de acerto inerente à coincidência substancial das instâncias que confere racionalidade à introdução desta limitação no acesso ao órgão de cúpula da jurisdição. Aliás, pelo menos na perspectiva da defesa, seria pouco razoável que não fosse recorrível o acórdão que mantivesse a  pena aplicada em 1ª instância, mas já o fosse aquele que a baixasse, coincidindo as instâncias em tudo o mais relevante. Portanto, não se contesta que se verifique a reformatio in mellius.

Mas isto em situações em que se mantenha intocada a decisão de facto. Se o tribunal de 2ª instância altera a factualidade provada, já não pode dizer-se que a mesma realidade foi apreciada duas vezes, do mesmo modo, por dois tribunais. No âmbito penal a matéria de facto é essencial e a alteração pode comportar consequências valorativas. Desaparece, assim,  o pressuposto que está subjacente à solução legislativa de  inadmissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça com fundamento na  verificação da “dupla conforme”, pelo que a transposição daquele entendimento jurisprudencial ampliativo do conceito de “confirmação”, introduziria uma solução desfalcada da ratio que suporta a norma da al. f) do n. 1, do art.º 400.º do CPP.

Adianta-se que não há que, nesta sede de apreciação da admissibilidade do recurso, pré-valorar o alcance ou repercussão desse expresso juízo desconforme das instâncias quanto aos factos sobre a solução que o caso merece no domínio da qualificação jurídica dos factos e da determinação da sanção. Isso é tarefa que supõe a admissão do recurso e substancia a apreciação do mérito da decisão – neste sentido Ac. do STJ, de 06/11/2014, Proc. 161/05.2JAGRD.C2.S1, em www.dgsi.pt – que precisou “(…) não pondo em causa a tese da confirmação in melius como preenchendo o requisito da dupla conforme para efeitos do preceituado naquele normativo, obstando, assim, à possibilidade de recurso para o STJ, o certo é que essa tese seguida pela maioria da jurisprudência deste Tribunal e caucionada pela jurisprudência do Tribunal Constitucional (cf. acórdãos n.ºs 2/2006, de 3 de Janeiro e 20/2007, de 17 de Janeiro) pressupõe que a alteração para melhor das penas aplicadas seja apenas devida a uma diferente aplicação dos critérios de determinação da medida concreta da pena, nesses casos feita de forma mais favorável ao recorrente. Não assim, quando simultaneamente haja uma alteração da matéria de facto ou da qualificação jurídica (veja-se neste sentido o acórdão de 25/06/2009, proc. n.º 726-09.9SPLSB.S1, da 5.ª Secção).

Por outras palavras, a confirmação parcial estriba-se: no facto de a divergência se verificar apenas em relação à pena aplicada, a alteração redundar em benefício do arguido (ou seja, traduzir-se numa melhoria ou abaixamento da pena – confirmação in melius) e ter resultado de uma diferente apreciação dos critérios de determinação concreta da pena.     

 No caso sub judice, a Relação procedeu a alteração da matéria de facto, embora em pequenos segmentos, e não se pode dizer, de todo, que a alteração é irrelevante, porque (…) as alterações foram favoráveis ao recorrente. Portanto, se foram “favoráveis”, não se pode dizer que a confirmação in melius ficou a dever-se única e simplesmente à aplicação de critérios de determinação concreta da pena.” – sublinhado nosso.

É, exactamente, o que ocorre nos presentes autos em que a Relação alterou a matéria de facto, sem que, contudo, se possa considerar que tal alteração fosse irrelevante e, sendo certo que as circunstâncias factuais foram favoráveis ao arguido. A apreciação da relevância ou não da alteração da matéria de facto já é entrar no mérito da discussão, porque, em nosso entendimento, o sistema está estruturado para verificação formal dos requisitos de admissibilidade do recurso. Quando o legislador pretende que a (in)admissibilidade dos recursos fique dependente de ponderações substantivas como aquelas a que o acórdão procede, di-lo expressamente, como sucede no n.º 3, do art.º 671.º, do Código de Processo Civil ( “sem fundamentação essencialmente diferente“). O que, por muito boas razões, não fez relativamente aos recursos em processo penal, pelo que a interpretação ampliativa da restrição, em que se traduz a tese que fez vencimento, introduz jurisprudencialmente uma limitação contrária ao programa legislativo.
Leonor Furtado


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[1] Consultável aqui: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20090649.html
[2] Já neste sentido a subscritora deste voto de vencido no acórdão de 22.06.2017, proc. n.º 627/13.0PBFIG.E2.S1, onde foi relatora (acórdão não publicado; sumário do acórdão in Sumários dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça — https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/06/criminal_sumarios_2017.pdf).
[3] No facto provado 2 “pretensão a que a ofendida, não obstante, não acedeu, retirando a sua mão do ponto onde o arguido a havia colocado”, e no facto provado 3: “No culminar de uma dessas condutas, o arguido AA ejaculou uma vez para cima da cama em que se sentava.”.
[4] E a este entendimento não se opõe o acórdão de 22.06.2017 citado supra dado que também neste aresto se acabou por indiretamente analisar a decisão recorrida quando ainda se estava somente a verificar da admissibilidade (ou não) do recurso, quando expôs que “No caso sub judice, a Relação procedeu a alteração da matéria de facto, embora em pequenos segmentos, e não se pode dizer, de todo, que a alteração é irrelevante, porque a própria Senhora Procuradora- Geral Adjunta afirma que as alterações foram favoráveis ao recorrente. Portanto, se foram “favoráveis”, não se pode dizer que a confirmação in melius ficou a dever-se única e simplesmente à aplicação de critérios de determinação concreta da pena. Acresce que o Tribunal “a quo” avaliou com rigor, como veremos a seu tempo, a gravidade relativa de cada uma das situações e nessa operação não pode deixar de ter tido influência a avaliação das circunstâncias concretas, por menos relevantes que aparentem ser.” Ou seja, acabou por valorar a desconformidade das decisões em confronto, considerando que as alterações foram favoráveis ao arguido.