Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1776/11.5TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: RECLAMAÇÃO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
DEVER DE INFORMAÇÃO
DECISÃO SURPRESA
BOA FÉ
CONTRATO DE SEGURO
EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE
MATÉRIA DE FACTO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
QUESTÃO NOVA
PODERES DA RELAÇÃO
Data do Acordão: 02/15/2017
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Área Temática:
DIREITO DO CONSUMO - CLAÚSULAS CONTRATUAIS GERAIS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL / PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA ( NULIDADES ) / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / FUNDAMENTOS DA REVISTA.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 615.º, N.º 1, ALS. C) E D), 674.º, N.º 3.
DECRETO-LEI N.º 446/85, DE 25 DE OUTUBRO: - ARTIGO 6.º, N.º 1.
Sumário :
I - O dever de informação incidente sobre cláusulas contratuais gerais dos aspetos nela compreendidos cuja aclaração se justifique cumpre à seguradora “enquanto contratante que recorre a cláusulas contratuais gerais” (art. 6.º, n.º 1, do DL n.º 446/85, de 25-10).

II - Não tendo o dever de informação sido perspetivado no acórdão com o sentido de, uma vez realizado, conferir necessariamente validade à cláusula exoneratória de responsabilidade, mas antes como um elemento que evidencia a falta de boa fé, não incorreu o acórdão reclamado de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.

III - Não tendo o acórdão considerado adquirida matéria de facto fora do âmbito dos seus poderes de cognição (art. 674.º, n.º 3, do CPC), nem tratado de questão nova ou desrespeitado o princípio do contraditório, não constitui o decidido qualquer decisão surpresa.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA - Companhia de Seguros, SA deduziu reclamação considerando o acórdão incurso em nulidade face à menção dele constante segundo a qual "assumindo a seguradora no âmbito de contrato de seguro sujeito ao regime das cláusulas contratuais gerais que consta do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro, a indemnização pelos danos materiais causados em propriedades contíguas ao local de trabalho da empreitada - empreitada que tinha por objeto a demolição de edifício e a edificação de um novo suportado em alicerces instalados após trabalhos de escavação no subsolo -, danos devidos à execução dos trabalhos seguros, a inclusão de cláusula limitativa que, pela sua amplitude, retira a utilidade prática à cláusula geral de responsabilidade, traduz desrespeito das regras de boa fé e dos deveres de informação referenciados nos artigos 5.º, 6.º, 15.º, 16.º e 18.º, alínea b) daquele diploma, constituindo uma limitação desproporcionada à responsabilidade assumida de indemnização de terceiros pelos danos resultantes da execução da empreitada".


2. A reclamante sustenta que o tribunal presumiu que a recorrida não prestou quaisquer informações à contraparte; no entanto, cumpria à A. o ónus de provar que a seguradora prestou as referidas informações, ficcionado o Tribunal o facto contrário; a falta de informação não constituía facto controvertido, não tendo sido sequer levada tal matéria à base instrutória.


3. De acordo com a reclamante o regime do artigo 5.º/3 do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais (Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro) pressupõe a alegação do dever omitido; da invocação do regime do contrato de seguro, as partes, a concluírem algo, só poderiam concluir no sentido de que se encontravam devidamente esclarecidas sobre o conteúdo contratual.


4. Por isso, o acórdão incorreu em nulidade por excesso de pronúncia (artigo 615.º/1, alínea d) do CPC) ao violar o disposto no artigo 349.º do Código Civil, não tendo, aliás, proporcionado o exercício do contraditório no sentido de permitir que a recorrente tomasse posição sobre a omissão de informação.


5. AA - Companhia de Seguros, SA considera ainda que deve ser absolvida do pedido de indemnização por danos morais considerando a contradição entre a fundamentação da decisão onde se refere que " assumiu a seguradora no âmbito do contrato de seguro […] a indemnização por danos materiais causados […] (artigo 615.º/1, alínea c) do CPC/2013).


Apreciando


6. A primeira observação a fazer é que o acórdão não alterou a matéria de facto, não acrescentando nem suprimindo fosse o que fosse.


7. O Tribunal o que fez foi analisar as cláusulas do contrato de seguro na parte que releva - ver §43 - considerando que se impõe perspetivá-las no sentido de saber se podiam ser introduzidas limitações de tal ordem que "afinal o risco que importava assegurar deixasse de estar garantido".


8. A aludida cláusula de exclusão de uma cobertura desrespeita a boa fé, trai a confiança que a cláusula de cobertura conferia.


9. Na verdade, a seguradora, responsabilizando -se pelos danos que atinjam terceiros devidos à execução dos trabalhos seguros, mas "eximindo-se simultaneamente à responsabilização pelos danos resultantes do enfraquecimento das fundações causados pela execução daqueles trabalhos, exime-se ao principal risco que decorre dos trabalhos de escavação que é precisamente o enfraquecimento das fundações dos prédios vizinhos".


10. Não era seguramente este o fim visado pelas partes e, por isso, se fosse essa a finalidade, impor-se-ia a informação, ou seja, impor-se-ia provar que a seguradora tinha prestado tal informação que traduziria por parte da seguradora a sua desresponsabilização pelo pagamento de quaisquer danos resultantes de uma demolição de que resultasse remoção ou enfraquecimento de fundações, vibrações, alterações do nível freático etc.


11. Ou seja, para que se ponderasse - repetimos: para que se ponderasse - que o contrato de seguro não abrangia os danos verificados por ser compreensível o alcance da aludida cláusula excludente de responsabilidade, o facto em causa - a informação prestada pela seguradora quanto ao alcance limitativo da aludida cláusula - teria de estar provado e, como se vê, tal facto não está provado.


12. Não se trata aqui de dar ou deixar de dar como provado um facto, trata-se de analisar as cláusulas contratuais à luz dos princípios que as informam com base na realidade factual que está adquirida, dela resultando que não está provado que a seguradora alguma vez tivesse prestado quaisquer informações quanto ao alcance de uma cláusula que, a adquirir tal sentido, importaria que a "seguradora nem aceitasse celebrar o contrato pois ela a priori não iria suportar quaisquer danos"(ver §59 do acórdão). E o entendimento exposto de que tal facto não está provado não deixa de subsistir tenha ele sido alegado e não tenha sido provado ou não tenha sequer sido alegado.


13. Não assiste razão ao reclamante quando sustenta que o ónus da prova do dever de informação cumpria à autora - aqui, no entanto, estamos fora do âmbito da nulidade, antes no que seria um erro de julgamento - pois o dever de informação incidente sobre cláusulas contratuais dos aspetos nela compreendidos cuja aclaração se justifique - e era o caso - cumpria à seguradora "enquanto contratante que recorre a cláusulas contratuais gerais" (artigo 6.º/1 do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro).


14. A discussão sobre o alcance da aludida cláusula vem desde o início dos autos: logo na contestação (ver fls. 202 dos autos) a ré considerou que os danos verificados estavam excluídos da aludida cobertura e, embora se considerasse que a responsabilidade da seguradora advinha da natureza obrigatória do seguro e, por isso, desde logo por virtude dessa natureza, as cláusulas de exclusão eram absolutamente proibidas, elas como tal assim foram consideradas na sentença (ver sentença, fls. 785); refira-se que a autora, na réplica, já tinha referido que, ainda que o seguro não se houvesse por obrigatório, " também por força do disposto nos artigos 17.º. 15.º e 18.º, alínea b) do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro, as mesmas cláusulas de limitação de responsabilidade se deveriam ter por não escritas".


15. A seguradora, discordando do entendimento de que o seguro em causa era um seguro obrigatório, nas alegações para a Relação trata da "apreciação da validade das cláusulas de exclusão invocadas pela ré e, tendo por base essa validade", reclama a necessária absolvição (ver fls. 812 dos autos). A seguradora teve sucesso na apelação e o Tribunal da Relação, para além de considerar o seguro não obrigatório, considerou válida a cláusula de exclusão interpretada no sentido de estabelecer o princípio de que " onde a responsabilidade civil do predisponente é ilimitada, deve continuar, na relação com a contraparte ou com terceiros, ilimitada".


16. A A., agora vencida, recorreu do acórdão da Relação, sustentando a nulidade da cláusula por violação da boa fé, e isto mesmo considerando, como já tinha sustentado na réplica, que o seguro em causa não é obrigatório, pois, no âmbito do regime das cláusulas contratuais gerais, " o artigo 16.º da mesma lei manda concretizar no sentido da ponderação da 'confiança suscitada pelas partes, pelo sentido global das cláusulas em causa' e o 'objetivo que as partes visam atingir negocialmente, procurando-se a sua efetivação à luz do tipo do contrato utilizado'" sendo manifesto que " o objetivo que preside à celebração de um seguro de responsabilidade civil do industrial de construção é justamente a sua proteção em caso de danos causados pela atividade de construção […]. A exclusão dos danos em propriedades contíguas ou adjacentes constitui naturalmente uma exclusão dos lesados principais por este tipo de atividade. Da mesma forma, a exclusão dos danos causados por vibrações ou enfraquecimento das fundações abrange uma das formas mais comuns de causa de danos na atividade da construção, não fazendo qualquer sentido que fosse excluída. Se estas exclusões fossem válidas, o construtor não teria qualquer vantagem no seguro de responsabilidade civil que contratou, sendo, por isso, totalmente contrária à boa fé a sua introdução no contrato. Ficaria não apenas esvaziado de conteúdo o contrato de seguro mas ainda precludida a intenção prática, o interesse da ré construtora, que levou as partes a celebrar o contrato de seguro, pelo que tais exclusões sempre se encontrariam viciadas de nulidade, por violação das regras do artigo 280.º/2 do Código Civil. As referidas cláusulas de exclusão configuram, assim, cláusulas absolutamente proibidas, enquadráveis na previsão da alínea b) do artigo 18.º do decreto-lei n.º 446/85, de 25 de outubro".


17. Não se pode, pois, duvidar que a questão da interpretação da aludida cláusula à luz dos regime das cláusulas contratuais gerais foi discutida nos autos e a seguradora teve a possibilidade de discutir e de contrariar os argumentos aduzidos pelas partes.


18. A decisão do Supremo Tribunal de Justiça está dentro dos seus poderes de cognição pois estamos no âmbito da interpretação das cláusulas de um contrato, ademais cláusulas contratuais gerais cujo alcance interpretativo estava em cima da mesa desde a primeira hora.


19. O acórdão do STJ pronunciou-se sobre a validade da aludida cláusula e considerou-a contrária à boa fé; a falta de boa fé evidencia-se pois impor-se-ia, perante o alcance que a seguradora conferiu à aludida cláusula, que ela informasse a construtora de que afinal não suportaria os danos em causa. E no acórdão considerou-se que, "a ter tais procedimentos por decisivos no sentido agora sustentado pela seguradora", imporia a boa fé que " esta nem aceitasse celebrar o contrato pois ela a priori não iria suportar quaisquer danos".


20. O dever de informação nem sequer foi perspetivado no acórdão com o sentido de, uma vez realizado, conferir necessariamente validade à aludida cláusula exoneratória de responsabilidade, mas antes como um elemento que evidencia a falta de boa fé, pois nunca seria aceitável que construtor ou a seguradora alguma vez quisessem celebrar um contrato contendo uma cláusula de exclusão que " pela sua amplitude, retira praticamente utilidade ao seguro contratado", "esvazia de conteúdo útil o objeto e finalidade do contrato".


21. Se a seguradora tivesse esclarecido o alcance da cláusula, a violação da boa fé não se situaria também no desconhecimento do segurado quanto ao seu alcance; no entanto, como se disse, daqui não se poderia inferir a validade da cláusula, pois seria incompreensível um seguro de responsabilidade civil em que, assumindo a seguradora a responsabilidade pelos danos causados a terceiros, se esvazia o conteúdo e finalidade essencial do contrato. Não teve o acórdão de avançar por este caminho - veja-se, no entanto, os §§ 47 a 51 - pois, não estando provado que o segurado tivesse sido esclarecido quanto ao alcance da aludida cláusula, ao Tribunal compete a sua interpretação em função do texto que consta do contrato visto à luz do regime das cláusulas contratuais gerais.


22. O elemento surpresa que pode informar uma decisão judicial não se situa no plano argumentativo das razões que justificam uma decisão à luz dos factos e do direito no âmbito de uma questão suscitada nos autos e nele discutida desde a primeira hora, a saber, a de a aludida cláusula ser uma cláusula proibida por contrária à boa fé, mas no suscitar de uma questão nova que não foi objeto de controvérsia. Ora isso não se passou manifestamente no caso vertente.


23. Não incorreu, pois, o acórdão na invocada nulidade de excesso de pronúncia pois não considerou adquirida matéria de facto fora do âmbito dos seus poderes de cognição em matéria de facto (artigo 674.º/3 do CPC) nem tratou de questão nova, não tendo sido desrespeitado o princípio do contraditório, não constituindo a decisão proferida nenhuma decisão surpresa.


24. A referida conclusão I - que consta do sumário a que a lei obriga o relator (artigo 663.º/7 do CPC/2013) - não diz que a seguradora assumiu apenas a indemnização por danos materiais sendo certo que, no seu final, se menciona a responsabilidade " assumida de indemnização de terceiros pelos danos resultantes da execução da empreitada".


25. Reconhece-se que o sumário ficaria mais claro se o vocábulo " materiais" fosse suprimido, mas daqui não resulta nenhuma contradição entre a fundamentação e a decisão pois esta só existiria se o acórdão dissesse que o contrato de seguro cobria tão somente danos materiais e depois se condenasse a seguradora a indemnizar danos morais.


26. Aliás, na fundamentação propriamente dita do acórdão menciona-se nos §5 e 41 que " a cobertura inclui o 'pagamento das indemnizações legalmente exigíveis ao segurado a título de responsabilidade civil extracontratual em consequência de lesões corporais e/ou materiais causadas a terceiros por acidentes diretamente relacionados com a execução dos trabalhos objeto de seguro e ocorridos no local do risco ou nos locais imediatamente contíguos".

27. A ré reconheceu que a cobertura abrangia as indemnizações referidas no §26 que antecede (ver artigo 7.º da contestação a fls. 202), limitando-se, quanto aos invocados danos morais, a impugnar os artigos 130.º e segs da petição (ver contestação, fls. 210).


28. Ora a indemnização por danos morais reclamados pela A. decorre precisamente das lesões materiais que a atingiram conforme resulta dos factos provados 48 a 52.


29. Não se verifica, por conseguinte, a invocada nulidade de contradição entre os fundamentos e a decisão a que alude o artigo 615.º/1, alínea c) do CPC.


Indefere-se a reclamação com custas pelo reclamante com imposto que se fixa em 3UC


Lisboa, 15-2-2017


Salazar Casanova (Relator)

Lopes do Rego

Távora Vítor