Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
85/20.3GBOAZ-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO GAMA
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
PROCESSO SUMARISSIMO
SENTENÇA CRIMINAL
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
PRESSUPOSTOS
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 11/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

I – Fruto do consenso entre os sujeitos processuais intervenientes, a decisão de aplicação da sanção em processo sumaríssimo não comporta recurso ordinário, sendo um dos casos previstos na parte final do art. 399.º e na al. g) do n.º 1 do art. 400.º, CPP.

II – A restrição da menção de irrecorribilidade apenas ao recurso ordinário (n.º 2, 2.ª parte), a equiparação à sentença do despacho que aplica a sanção em processo sumaríssimo (n.º 2, 1.ª parte), como, finalmente, a equiparação à sentença de “despacho que tiver posto fim ao processo” (art. 449.º/2), o que ocorre com o despacho que procede à aplicação da sanção e à condenação no pagamento de taxa de justiça, são fatores que apontam no sentido de que o despacho que aplica a sanção em processo sumaríssimo é suscetível de recurso extraordinário de revisão pro reo,

III – No ordenamento processual penal português rege o princípio geral de que as nulidades – mesmo as insanáveis – ficam sanadas com o trânsito em julgado.

IV – O uso do processo sumaríssimo por parte do M.º P.º, ao contrário do que parece entender o recorrente, não está dependente de prévia concordância do arguido; se a prévia concordância do arguido induz celeridade no procedimento, valor relevante em processo penal, a concordância ou discordância do arguido processa-se em momento posterior ao referido no art. 392.º/1, CPP, aquando da notificação judicial referida no art. 396.º, CPP.

V – Admitindo – por eficácia de argumentação – que o desconhecimento da língua portuguesa, por parte do requerente, pudesse conduzir, no caso, à invalidade do consenso, o certo é que realizadas as pertinentes diligências probatórias, não se evidencia o facto alegado, pois o arguido vivendo em Portugal vai para trinta anos e sendo comerciante com contacto diário com o público, conhece o suficiente a língua portuguesa.

Decisão Texto Integral:


Processo n.º 85/20.GBOAZ.S1

Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça

I

1. AA veio interpor recurso extraordinário de revisão da decisão proferida em processo sumaríssimo que o condenou pela prática de um crime de jogo, p. e p. pelo artigo 115.º da Lei do Jogo, na pena de 100 (cem) dias de multa, no montante diário de €6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos), perfazendo a quantia total de €650,00 (seiscentos e cinquenta euros), com os seguintes fundamentos (transcrição das conclusões do recurso):

«1.º) O presente recurso vem interposto na sequência da condenação do recorrente, por sentença transitada em julgado, numa forma de processo não consentida por ele, e sem lhe terem sido assegurados os mais elementares direitos de defesa, nomeadamente linguísticos. Com feito,

2.º) Os presentes autos foram distribuídos sob a forma de processo sumaríssimo, enquadrando-se, por conseguinte, num processo especial. No entanto,

3.º) Sendo requisito essencial para a escolha desta forma de processo a anuência do arguido, a verdade é que tal nunca aconteceu.

4.º) Ao contrário do mencionado no Douto despacho do Ministério Público com a referência ...94, de 28/07/2021, em que diz que “Tendo sido interrogado a fls. 36 com a expressa finalidade o arguido não manifestou oposição à utilização da forma de processo sumaríssimo”.

5.º) Efectivamente o arguido em momento algum foi confrontado expressamente – ou sem o ser - com a possibilidade de ser julgado sob essa forma de processo, pelo que não poderia ter-se oposto à mesma.

6.º) Facto que só agora foi percepcionado, conduzindo, assim, à necessidade da revisão da Douta Sentença. Pois

7.º) Enferma, ab initio, o processo de uma clara e flagrante nulidade, a qual está prevista na alínea f) do artigo 119.º do Código de Processo Penal, não podendo ser aproveitado nenhum processado, mormente a proposta de aplicação da pena, as notificações feitas ao arguido, a sentença condenatória, bem como os demais actos. Ora,

8.º) O recurso de revisão constitui um meio extraordinário de reapreciação de uma decisão transitada em julgado, e tem como fundamento principal a necessidade de se evitar uma sentença injusta, de reparar um erro judiciário, por forma a dar primazia à justiça material em detrimento de uma justiça formal. In Ac. STJ de 14-05-2008. Acresce ainda que

9.º) Desde o auto de interrogatório do arguido que o Ministério Público e a Meritíssima Juiz a quo têm conhecimento de que ele tem dificuldade em compreender a língua portuguesa, dificuldade essa que não é diminuta. E

10.º) Como encontramos vertido no Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no âmbito do Processo 177/16.3GAPMS.C1, em 16-12-2020, O despacho referido nos n.ºs 1 e 2 do art. 397.º do CPP, que vale como sentença condenatória, cabe no elenco taxativo do art. 113.º, n.º 10, 2.ª parte, do dito diploma, devendo ser notificada pessoalmente ao arguido, sob pena de ocorrência da nulidade (insanável) prevista na al. c) do art. 119.º, ainda do mesmo Código;

11.º) Só que nós não podemos, de forma leviana, entender que a notificação foi feita de forma válida e legal. Na verdade,

12.º) O nosso ordenamento jurídico reconhece o direito do acusado à total compreensão dos actos essenciais do processo, para que este possa prover a sua defesa, conforme lhe é assegurado pela Lei Processual Penal, pela Constituição da República Portuguesa e também pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

13.º) Nesse sentido segue a inúmera jurisprudência que, de forma abrangente, reforça o que mencionamos

Ac. TRE de 1-04-2008, CJ, 2008, T2, pág.272: I. O ordenamento jurídico português reconhece o direito do acusado à total compreensão dos actos essenciais do processo.

Embora seja aceite que, qualquer acusado tem direito a assistência gratuita dum intérprete nomeado pelo Tribunal, é razoável que as notificações feitas ao arguido pessoalmente (por exemplo, medidas de coacção e para dedução do pedido cível) sejam por si inteligíveis, o que só acontece se o respectivo acto for traduzido para a língua do arguido.

Ac. do TRP de 29.03.2017 É nula a busca domiciliária, realizada em casa habitada por estrangeiro que não conhece nem domina a língua portuguesa, não lhe tendo sido nomeado intérprete, nem a autorização assinada se mostra traduzida para a sua língua natal.

14.º) E a notificação efectuada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 396.º, n.º 1 alínea b), sem a devida tradução na língua natal do arguido, conduz-nos a uma situação muito gravosa e com consequências irreparáveis para si, razão pela qual só pode ser subsumida nas nulidades irreparáveis.

15.º) Veja-se em parte o teor do douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em Novembro e consultável em https://jurisprudencia.pt/acordao/203838/, quando refere que “A Directiva 2010/64/UE de 20 de Outubro prevê a tradução do despacho de acusação ou do despacho de pronúncia e das sentenças. Além destes devem

ser igualmente traduzidos todos os elementos que, face à lei portuguesa, devam ser notificados ao próprio arguido.”

16.º) O n.º 1 do artigo 3º daquela directiva estabelece ainda que “os Estados-Membros asseguram que aos suspeitos ou acusados que não compreendem a língua do processo penal em causa seja facultada, num lapso de tempo razoável, uma tradução escrita de todos os documentos essenciais à salvaguarda da possibilidade de exercerem o seu direito de defesa e à garantia da equidade do processo”.

17.º) O que não foi salvaguardado ao arguido, em clara violação dos seus mais elementares direitos, constitucionalmente consagrados. Assim,

18.º) Não tendo sido feita na língua do arguido, e, por conseguinte, não tendo o mesmo até hoje compreendido o seu alcance, a notificação deve considerar-se como inexistente, pois esses é o efeito da diligência de entrega dos documentos em língua portuguesa. E

19.º) Se cabia ao Tribunal, na pessoa do seu Juiz, zelar para que todo o processo decorra dentro da legalidade, até porque no Processo Sumaríssimo, para além de um papel fiscalizador e homologatório, tem ainda que garantir a aplicação da justiça de forma correcta e conforme aos princípios jurídico-constitucionais, guiando sempre a sua atuação pela lei e por exigências de neutralidade e imparcialidade, desempenhando, assim, uma verdadeira função jurisdicional, a verdade é que isso não aconteceu no caso sub judice.

20.º) Por tudo o que acima se expõe, somos forçados a concluir que foram deste modo coarctadas as mais elementares e básicas garantias de defesa do arguido, as quais devem ser sempre asseguradas no estado de direito em que vivemos, não podendo o nosso sistema judicial ficar indiferente à condenação de um arguido sem que lhe tenha sido dada a devida oportunidade para se defender. Assim,

21.º) A decisão recorrida carece de ser revista, porque se encontra em violação das disposições dos artigos 119.º, alínea c) e alínea f) do Código de Processo Penal, por referência ao disposto no artigo 392.º, n.º 1 e 396.º do mesmo Código, e bem assim o disposto na Directiva 2010/64/UE de 20 de Outubro, ofendendo ainda o preceituado nos artigos 13.º, n.º 2, 15.º, 20.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa.

Nestes termos e do muito que há a esperar do douto suprimento para as deficiências do patrocínio, aguarda o recorrente que seja admitido o presente recurso, ao qual deverá ser concedido provimento, autorizando-se a necessária revisão da Douta Sentença recorrida, como é de Direito e de

JUSTIÇA!».


2. O Ministério Público respondeu pronunciando-se pela improcedência do recurso.

3. Pronunciando-se sobre o mérito do pedido (art. 454.º, CPP), disse o juiz do processo (transcrição):

«(…) O arguido é de nacionalidade .... O arguido reside em Portugal há mais de 20 anos.

O arguido explora um estabelecimento comercial em Portugal desde 1995. Nessa exploração ele, ora sozinho ou juntamente com a esposa, encontram-se diariamente a atender clientes que falam língua portuguesa.

À data quer da fiscalização quer da notificação pessoal em causa nos autos, datada de 19 de outubro de 2021, o arguido encontrava-se sozinho à frente do estabelecimento comercial, tendo-se identificados aos Sr. Militares como o responsável pelo mesmo, assinado a aludida notificação

A aludida notificação não foi traduzida em língua portuguesa [...] nem esteve presente um intérprete.

Aquando da notificação pessoal o arguido, quando recebeu e assinou a notificação em causa, no âmbito da qual lhe foi explicado o teor, consequência e prazos processuais em causa, falou em português com o Sr. militar BB tendo-lhe comunicado que iria contactar uma Dra Advogada.

O arguido no decurso da sua tomada de declarações, conforme requereu nestes autos, identificou-se e foi respondendo a algumas perguntas – como a sua identificação - ou solicitações - levantar, sentar, tirar e colocar a máscara - em conformidade com o questionado e de forma espontânea prévia a qualquer tradução, concluindo que compreende também, admitimos com algumas limitações, a própria língua portuguesa, conforme descrevemos e patenteado numa intervenção espontânea, sem aguardar a tradução da intérprete que se encontrava ao seu lado.

Por tudo isto, não temos qualquer dúvida que o arguido conhece a língua portuguesa -embora, admitimos, não a domine -, ao ponto de ter percebido a notificação pessoal que lhe foi efetuada e assim conseguir compreender, no essencial, o teor do requerimento em causa nos autos/da acusação que consta dos autos, tanto bastando para, nos termos do citado art. 92º/1 do Código de Processo Penal, poder dispensar-se a sua tradução.

Mas além disso, e considerando o exposto, não vemos que se impusesse a tradução da acusação/requerimento para que dela fosse o mesmo notificado, pois que, diga-se que, ao tomar conhecimento pessoal do respetivo teor, prazos e consequências, afirmando que iria contactar um advogado, é demonstrativo por si só que o arguido compreendeu o requerimento do Ministério Público e que podia dele defender-se de forma cabal, caso tivesse contactado o Ilustre Advogado nomeado no autos, facto de conhecimento do arguido, mostrando-se nessa medida acautelados todos os seus direitos de defesa – conforme aliás ocorre e sucede com tantos outros arguidos nacionais que não sabem ler.

E assim sendo, não podemos considerar estar em causa uma situação em que a lei obrigasse à tradução do requerimento notificado pessoalmente ao arguido, não dando a omissão dessa tradução origem a qualquer nulidade, nomeadamente a prevista sob o art. 120º/2, c) do Código de Processo Penal ou sequer aquela alegada.

Nestes termos, sem necessidade de quaisquer outras considerações, decide-se julgar totalmente improcedente a invocada nulidade.

Assim sendo, entendemos que o presente recurso de revisão deve ser rejeitado e negada a revisão por manifesta falta de fundamento apresentado, nos termos do preceituado no art 456º do Código de Processo Penal. Concluindo, e prestando a informação a que alude o artº 454º do C. Proc. Penal, considera-se que o pedido de revisão não merece provimento, devendo o recurso ser rejeitado e negada revisão por o pedido ser manifestamente infundado, nos termos do artº 456º do C. Proc. Penal».

4. Já neste tribunal o Ministério Público, em síntese, foi de Parecer que «(…) Os fundamentos invocados traduzem-se em eventuais vícios processuais (inexistência e nulidades) que antecederem a sentença, o que não se pode enquadrar, de forma alguma, no conceito de novos factos do mencionado artigo 449.º, n.º 1, al. d) do CPP;

3.ª- Para a verificação deste fundamento tendente à revisão requerida exige-se, para além do mais, que a novidade ali referida se relacione com a matéria de facto constante da sentença e que motivou a condenação, não se podendo considerar como tal qualquer eventual nulidade que tenha ocorrido na tramitação processual que antecedeu aquela;

4.ª- A eventual verificação das alegadas nulidades deveriam ter sido suscitadas antes do trânsito em julgado da sentença e, no caso não viesse a ser proferida decisão favorável, para defesa dos eventuais direitos preteridos, deveria ter sido apresentada impugnação através da interposição do competente recurso ordinário;

5.ª – Por não estarem preenchidos os pressupostos legais deverá ser negada a pretendida revisão».

5. Colhidos os vistos e após a realização da conferência cumpre decidir.

II

A

Factos relevantes:

Requerimento do M.º P.º a que alude o art. 394.º, CPP:

«Os presentes autos iniciaram-se com base no auto de notícia constante de fls. 3 e ss dos autos, estando em causa a prática por AA de um crime de material de jogo, p. e p. pelo artigo 115.º, n.º 1 da Lei do Jogo (aprovada pelo Decreto-Lei n.º 422/89 de 02/12, na sua redação actualizada pelo Decreto-Lei n.º 64/2015, de 29/04).

O referido crime é punido com pena de prisão até dois anos e com multa até 200 dias.

Ora, pese embora a proposta efectuada da suspensão provisória do processo, certo é que não veio ser lograda junto do arguido a exigida concordância com as concretas condições da mesma, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Penal (cfr. fls. 36 verso).

Não obstante, ao abrigo do disposto no artigo 392.º, do Código de Processo Penal, quando o crime em causa for punível apenas com multa ou com pena de prisão não superior a cinco anos, como in casu, é ainda admissível a aplicação de pena ou medida de segurança não privativa da liberdade em processo sumaríssimo, a requerer pelo Ministério Público, por iniciativa do arguido ou depois de o ter ouvido.

Tendo sido interrogado a fls. 36 com essa expressa finalidade o arguido não manifestou oposição à utilização da forma de processo sumaríssimo.

*

Assim, nos termos do disposto neste último normativo do Código de Processo Penal e obedecendo ao disposto no artigo 394.º do mesmo diploma legal, o Ministério Público vem apresentar o requerimento para uso de processo especial sumaríssimo relativamente ao arguido:

AA, casado, comerciante, natural da ..., nascido a .../.../1965, titular da autorização de residência n.º ... e residente na Rua ..., ...., em ..., ..., sendo os seguintes os factos que lhe são imputados:

1. O arguido exerceu actividade de comerciante, explorando em nome individual um estabelecimento de venda de artigo diversos, designado “G...”, sito na Rua ..., em ....

2. Em data e circunstâncias que também não foi possível concretamente apurar, mas durante o ano de 2020, o arguido decidiu ali colocar numa prateleira em exposição para venda ao público diverso material associado à prática de jogos de fortuna e azar, com características similares e habitualmente utilizados no jogo de casino vulgarmente designado “poker”,

3. cujo desenvolvimento decorre de forma absolutamente aleatória e depende exclusivamente da sorte e não de qualquer perícia ou raciocínio do jogador, que não pode influenciar ou condicionar o resultado final.

4. Neste contexto, no dia 03 de Fevereiro de 2020, pelas 14h25m, no interior do identificado estabelecimento comercial e durante o respectivo horário de funcionamento e abertura ao público, no âmbito da fiscalização ali levada a cabo por militares da G.N.R., foram assim encontrados nas aludidas condições os seguintes artigos em exposição para venda:

a) seis caixas com a designação “profissional poker chips”, contendo cem fichas com valores monetários estampados; e

b) duas caixas com a designação “profissional poker chips”, contendo duzentas fichas e respectivo pano de jogo, com dois baralhos de cartas

5. ali devidamente apreendidos [melhor descritos nos autos de notícia e de apreensão de fls. 4 e 7 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais].

6. O arguido não era na descrita ocasião titular de qualquer licença ou autorização para a exposição ou venda do descrito material caracterizadamente destinado à prática dos jogos de fortuna ou azar.

7. O arguido conhecida as respectivas características, finalidade e natureza de jogo de fortuna ou azar do material que ali dispunha para venda ao público, mais sabendo que o estabelecimento comercial por si explorado não se encontrava autorizado para o efeito.

8. Apesar disso, actuou de forma livre, deliberada, consciente e com intenção de obter proveitos económicos decorrentes da venda do material supra descrito pelos indicados preços de venda ao público, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

9. Pelo exposto, cometeu o arguido, como autor material e sob a forma consumada, um crime de material de jogo, p. e p. pelo artigo 115.º da Lei do Jogo (aprovada pelo Decreto-Lei n.º 422/89 de 02/12, na sua redacção actualizada pelo Decreto-Lei n.º 64/2015, de 29/04).

(…)

Por tudo o exposto, pela prática de um crime de material de jogo, p. e p. pelo artigo 115.º da Lei do Jogo (aprovada pelo Decreto-Lei n.º 422/89 de 02/12, na sua redacção actualizada pelo Decreto-Lei n.º 64/2015, de 29/04), propõe-se a aplicação ao arguido AA da pena global de 100 (cem) dias de multa, no montante diário de €6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos), perfazendo a quantia total de €650,00 (seiscentos e cinquenta euros)»

Despacho judicial:

«O Ministério Público acusou, em autos de processo sumaríssimo com intervenção do Tribunal Singular:

AA, melhor identificado nos autos, imputando-lhe a prática em autoria material de um crime de um crime de material de jogo, p. e p. pelo artigo 115.º da Lei do Jogo (aprovada pelo Decreto-Lei n.º 422/89 de 02/12, na sua redação atualizada pelo Decreto-Lei n.º 64/2015, de 29/04), pelos factos constantes do douto requerimento, onde foi proposta a aplicação ao arguido da pena de 100 (cem) dias de multa, no montante diário de €6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos), perfazendo a quantia total de €650,00 (seiscentos e cinquenta euros)

*

Foi saneado o processo, recebido o requerimento e determinada notificação do arguido, para querendo, em 15 dias, deduzir oposição, nos termos do art.º 396º, n.º 1, al. b), 2, 3 e 4 do Código de Processo Penal.

*

O arguido devidamente notificados para o efeito, não deduziram qualquer oposição.

*

O Tribunal é competente, o processo o próprio, inexistindo quaisquer questões prévias, nulidades ou exceções de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

*

Assim, e pelo exposto, ao abrigo do art. 397º nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal, o Tribunal decide condenar o arguido como autor material pela prática de:

- um crime de um crime de material de jogo, p. e p. pelo artigo 115.º da Lei do Jogo (aprovada pelo Decreto-Lei n.º 422/89 de 02/12, na sua redação atualizada pelo Decreto-Lei n.º 64/2015, de 29/04), na pena de 100 (cem) dias de multa, no montante diário de €6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos), perfazendo a quantia total de €650,00 (seiscentos e cinquenta euros) (…)».

B

O Direito

1. O presente recurso foi interposto do despacho que procedeu à aplicação da sanção, despacho que, na economia do processo sumaríssimo, é o equivalente funcional da sentença, pois vale como sentença condenatória (art. 397.º/1/2, CPP). Essa decisão não admite recurso ordinário (art. 397.º/2, CPP), pelo que importa saber se é admissível o recurso extraordinário de revisão em processo sumaríssimo.

2. Fruto do consenso entre os sujeitos processuais intervenientes, compreende-se que a decisão de aplicação da sanção em processo sumaríssimo não comporte recurso ordinário, sendo um dos casos previstos na parte final do art. 399.º e na al. g) do n.º 1 do art. 400.º, CPP. Todavia, a restrição da menção de irrecorribilidade apenas ao recurso ordinário (n.º 2, 2.ª parte), a equiparação à sentença do despacho que aplica a sanção em processo sumaríssimo (n.º 2, 1.ª parte), como, finalmente, a equiparação à sentença de “despacho que tiver posto fim ao processo” (art. 449.º/2), o que ocorre com o despacho que procede à aplicação da sanção e à condenação no pagamento de taxa de justiça, são fatores que apontam no sentido de que o despacho que aplica a sanção em processo sumaríssimo é suscetível de recurso extraordinário de revisão pro reo, quedando porém duvidosos os limites, precisamente em face do caráter consensual da sanção aplicada (João Conde Correia, O «Mito do Caso Julgado» e a Revisão Propter Nova, 2010, p. 23, 60-62, 449 e 624-625; Pedro Soares Albergaria, CJCPP, Tomo IV, p. 1033-1034).

3. Como agudamente diz João Conde Correia, (ob. cit. p. 23) o consenso não impede o erro, nem a injustiça, ele não é – como se chegou a pensar – um método infalível na busca da verdade e na realização da justiça. A questão fundamental, continua o autor, é a de saber quando e em que circunstâncias estas decisões devem ser revistas. Essa é, em primeira linha, uma questão para o legislador. Admitida a revisão, os seus fundamentos são, por agora, os tipificados no art. 449.º, CPP, salvo patente e manifesta inadequação à decisão proferida em processo sumaríssimo.

4. A Constituição consagra o direito dos cidadãos injustamente condenados requererem a revisão da sentença, nas condições que a lei prescrever (art. 29.º/6, CRP). Concretizando esse direito, dispõe o art. 449.º, CPP:

1 - A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:

a) Uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão;

b) Uma outra sentença transitada em julgado tiver dado como provado crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com o exercício da sua função no processo;

c) Os factos que serviram de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;

d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

e) Se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 126.º;

f) Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação;

g) Uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça.

2 - Para o efeito do disposto no número anterior, à sentença é equiparado despacho que tiver posto fim ao processo.

3 - Com fundamento na alínea d) do n.º 1, não é admissível revisão com o único fim de corrigir a medida concreta da sanção aplicada.

4 - A revisão é admissível ainda que o procedimento se encontre extinto ou a pena prescrita ou cumprida.

5. O recurso extraordinário de revisão é o último remédio processual para ultrapassar erros judiciários dando primazia à justiça material, nos casos tipificados pelo legislador, em detrimento da segurança do direito e a força do caso julgado.

6. O requerente invocando como fundamento a previsão do art. 449.º/1/d, CPP, veio dizer que não se conforma com a sentença que o condenou na pena de cem dias de multa, no montante diário de seis euros e cinquenta cêntimos, perfazendo a quantia total de seiscentos e cinquenta euros. Tal inconformismo decorre de ter sido condenado com recurso a uma forma de processo legalmente inadmissível e, dentro desta, sem a mínima salvaguarda dos seus direitos, mesmo os constitucionalmente consagrados. (…) Com efeito, e tendo já alegado a nulidade do processado, a verdade é que por Despacho proferido com a referência ...80, em 06/01/2022, foi tal alegação indeferida, por ter sido perfilhado pela Meritíssima Juíz “a quo” o entendimento de que essa arguição foi extemporânea.

7. O fundamento jurídico invocado pelo recorrente foi o de que (art. 449.º/1/d, CPP) se descobriram novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação. Considerando a alegação factual do recorrente os novos factos são (1) a forma inadmissível de processo sumaríssimo e (2) a sua confissão, quanto à sanção proposta, não ter valor porque ele desconhecia a língua portuguesa.

8. Sustenta o requerente que ao contrário do «mencionado no douto despacho do Ministério Público com a referência ...94, de 28/07/2021, em que diz que “Tendo sido interrogado a fls. 36 com a expressa finalidade o arguido não manifestou oposição à utilização da forma de processo sumaríssimo” (…), o arguido em momento algum foi confrontado expressamente – ou sem o ser – com a possibilidade de ser julgado sob essa forma de processo, pelo que não poderia ter-se oposto à mesma». O requerente confunde duas realidades: (a) a audição do arguido pelo Mº P.º, tendo em vista a possível aplicação de sanção em processo sumaríssimo (art. 392.º/1, CPP); (b) a oposição à sanção proposta pelo M.ºP.º, cuja notificação ocorreu por ordem do juiz do processo. Se é certo que do presente apenso não resulta que o M.º P.º antes da proposta de sanção tenha «ouvido» o arguido com essa finalidade (art. 392.º/1, CPP), mesmo que se admita que o não ouviu, (terá sido ouvido em vista da suspensão provisória do processo), essa omissão constitui nulidade sanável já coberta pelo caso julgado (art. 120.º/2/d; art. 120.º/3/c), porquanto o arguido não a arguiu nos cinco dias posteriores à notificação do despacho judicial a que se refere o art. 396.º, CPP. No ordenamento processual penal português rege o princípio geral de que as nulidades – mesmo as insanáveis – ficam sanadas com o trânsito em julgado (art. 119.º, corpo, CPP). Realizada esta notificação, perante a qual o arguido e defensora ficaram silentes, resta como infundada a queixa do arguido de que não poderia ter-se oposto à mesma, isto é, à proposta de sanção. O uso do processo sumaríssimo por parte do M.º P.º, ao contrário do que parece entender o recorrente, não está dependente de prévia concordância do arguido; se a prévia concordância do arguido induz celeridade no procedimento, valor relevante em processo penal, a concordância ou discordância do arguido processa-se em momento posterior ao referido no art. 392.º/1, CPP, aquando da notificação judicial referida no art. 396.º, CPP. Contrariamente ao sustentado pelo requerente a forma processual usada é(ra) admissível e adequada. De qualquer forma, o erro na forma de processo não é fundamento típico de pedido de revisão.

9. Bem vistas as coisas o que pretende o requerente afirmar é a violação, no procedimento penal que o condenou, das garantias processuais de que gozam os arguidos que desconhecem a língua portuguesa, em suma a violação de uma das traves mestras do processo justo e equitativo. Só que, para pedir a revisão com esse fundamento exige-se uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional (art. 449.º/1/g, CPP), o que não existe no caso.

10. Há, assim, na invocação do art. 449.º/1/d, CPP), uma patente troca de etiquetas. Admitindo – por eficácia de argumentação – que o desconhecimento da língua portuguesa, por parte do requerente, pudesse conduzir, no caso, à invalidade do consenso, o certo é que realizadas as pertinentes diligências probatórias, não se evidencia o facto alegado, pois o arguido vivendo em Portugal vai para trinta anos e sendo comerciante com contacto diário com o público, conhece o suficiente a língua portuguesa. A tudo acresce que aquando da notificação, que lhe foi devidamente explicada, o arguido encontrava-se assistido por defensor, a quem foi também notificado o requerimento com a sanção proposta.

11. Desenha-se assim, perante o acabado de referir e a irrecorribilidade ordinária da decisão – que não admite recurso ordinário, art. 397.º/2, CPP –, uma utilização inadequada do recurso extraordinário de revisão, como sucedâneo do recurso ordinário o que a lei não permite e por isso não é admissível. A revisão pode ser pedida verificando-se um dos pressupostos taxativos enunciados pelo legislador art. 449.º, CPP, o que não ocorre no caso. Em conclusão não há novos factos ou meios de prova que suscitem dúvidas e menos ainda graves dúvidas da condenação.

III

Decisão:

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar a revisão pedida pelo arguido AA.

Fixa-se em 2 (duas) UC a taxa de justiça pelo recorrente (tabela III do RCP). Pagará ainda o recorrente, nos termos do art.º 456.º, CPP, uma quantia de 6 (seis) UC, por ser manifestamente infundado o pedido.

Supremo Tribunal de Justiça, 09.11.2022

António Gama (Relator)

João Guerra

Orlando Gonçalves

Eduardo Loureiro (Presidente de seção)