Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
048676
Nº Convencional: JSTJ00027955
Relator: CASTRO RIBEIRO
Descritores: BURLA
CONSUMAÇÃO
TRIBUNAL COMPETENTE
COMPETÊNCIA
Nº do Documento: SJ199602140486763
Data do Acordão: 02/14/1996
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N454 ANO1996 PAG516
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFLITO COMPETÊNCIA.
Decisão: DECLARAÇÃO DE COMPETÊNCIA.
Área Temática: DIR PROC PENAL.
Legislação Nacional: CPP87 ARTIGO 19 N1.
CP82 ARTIGO 313 N1 ARTIGO 314 C.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1990/04/18 IN BMJ N396 PAG250.
Sumário : O crime de burla consuma-se quando a coisa objecto da infracção sai da esfera patrimonial do lesado e entra no circulo das disponibilidades do agente do crime.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça:
1. No processo comum agora pendente sob o n. 51/95 da
1. Secção da 9. Vara Criminal de Lisboa, a Meritíssima
Juiz suscitou a resolução do conflito de competência entre a mesma 9. Vara Criminal de Lisboa, e a 1. Vara Criminal do Porto, por isso que, em despachos transitados, ambas se atribuíram mutuamente competência, negando a própria, para conhecer da acusação em que o Ministério Público atribui a A, e B, a autoria de um crime de burla agravada previsto e punido pelos artigos 313 n. 1 e 314 alínea c) do Código Penal (na redacção anterior ao Decreto-Lei 48/95).
Ouvidas as autoridades em conflito (Artigo 36 n. 2 do
Código de Processo Penal), nada disseram.
O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido de se atribuir a competência à Vara
Criminal do Porto; os arguidos não se pronunciaram.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
2. Como prescreve o artigo 19 n. 1 do Código de
Processo Penal, é competente para conhecer de um crime o tribunal em cuja área se tiver verificado a consumação; assim, e para a resolução do presente conflito negativo de competência, importa decidir onde se terá consumado o crime de burla que vem atribuído aos arguidos, nos exactos termos que constam da acusação certificada em folha 21 destes autos.
3. Basicamente, a aí descrita conduta criminosa dos arguidos teria consistido no seguinte: em fins de 1991, no Porto, o arguido Joaquim apresentou-se no estabelecimento da firma "... Limitada", armazenista de vinhos, para aí adquirir bebidas no valor de 4706357 escudos, as quais se destinavam a ser comercializadas num estabelecimento comercial dos arguidos e dum filho deles, em Odivelas; para pagamento da mercadoria, o arguido B entregou a C, gerente daquela firma armazenista, um cheque titulando os 4706357 escudos, sacado sobre conta bancária em nome da arguida A e por esta assinado; após a entrega do cheque, o C enviou as referidas bebidas, em viaturas e com pessoal da sua firma, para serem descarregadas, como foram, no estabelecimento dos arguidos, sito na Quinta ..., Famões-Odivelas; e entregue aí a mercadoria, "os arguidos comercializaram-na, integrando no seu património os respectivos produtos"; entretanto, apresentado aquele cheque a pagamento, viria o mesmo a ser devolvido com a indicação de
"cheque roubado", de acordo com o que a A comunicara ao Banco; a suposta aquisição das bebidas e entrega do cheque para seu pagamento, mais não foram que artifício usado pelos arguidos para induzirem em erro o gerente da "... Limitada", com vista à transmissão da mercadoria e integração dos respectivos produtos no património deles, que agiram com o intuito de se locupletarem
à custa do prejuízo causado àquela firma.
4. Perante o descrito circunstancionalismo, e salvo todo o respeito por entendimento contrário, pensamos que o crime de burla sub judice apenas se consumou em Odivelas, área da comarca de Lisboa.
Com efeito, e como se escreveu no acórdão de 18 de
Abril de 1990 deste Supremo Tribunal de Justiça, in
Boletim 396 página 250, "tem-se entendido que o crime de burla se consuma... quando o defraudado larga mão da coisa, de modo a já não poder obstar a que ela não chegue ao poder do burlão e regresse à sua própria esfera de poder; na realidade, ... perdido completamente o domínio sobre a coisa, está verificado o prejuízo patrimonial..."; ou, como bem anota o Excelentíssimo Procurador-Geral
Adjunto em seu douto parecer de folha 33, aliás, após citar aquele acórdão, o crime "consuma-se quando a coisa objecto da burla sai da esfera patrimonial do defraudado e entra no círculo das disponibilidades do agente do crime".
5. Ora, no caso em apreço, a mercadoria não deixou de estar sob a efectiva disponibilidade da firma "..., Limitada" quando saiu do Porto e passou a ser transportada para ser descarregada em Odivelas, pois que, sendo esse transporte efectuado em viaturas e com pessoal próprios, isso significa que, até se concretizar a descarga, sempre estava ao dispor daquela firma fazer regressar a mercadoria ao seu armazém; por outro lado, nada autoriza afirmar que a mercadoria entrou na disponibilidade dos arguidos ainda no Porto, ou que aí eles entraram na sua posse (cfr. folha 31), já que não lhes foi aí entregue nem efectuaram qualquer negócio válido de onde resultasse a imediata transferência de posse; embora verdade, esta só se concretizou com a entrega da mercadoria que lhes foi feita no seu estabelecimento em
Odivelas, pois que, até então, nada assegurava o poderem eles dispôr do objecto da burla, como coisa própria.
Em suma, a firma ofendida só largou mão da mercadoria em causa, ao entregá-la no estabelecimento dos arguidos, por isso que, só então deixou de, por si só, poder fazer regressar à sua esfera patrimonial a mesma mercadoria; de resto, e como muito claramente consta da acusação, só "após a entrega da mercadoria" os arguidos a comercializaram, "integrando no seu património os respectivos produtos".
De concluir, pois, que o crime de burla imputado aos arguidos apenas se consumou em Odivelas.
6. Pelo exposto, acordam na conferência do Supremo
Tribunal de Justiça em derimir o suscitado conflito, atribuindo a competência à 9. Vara Criminal de Lisboa.
Não são devidas custas.
Observe-se o artigo 36 n. 5 do Código de Processo Penal.
Lisboa, 14 de Fevereiro de 1996.
Castro Ribeiro,
Augusto Alves,
Andrade Saraiva.