Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
12548/18.6T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
REGIME APLICÁVEL
LEI ESPECIAL
MASSA INSOLVENTE
ADMINISTRAÇÃO DANOSA
Data do Acordão: 05/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. No artigo 59.º, n.º 1, do CIRE estabelece-se um regime especial de responsabilidade do administrador da insolvência pelos danos causados ao devedor / insolvente e aos credores da insolvência e da massa insolvente pela inobservância culposa dos deveres que lhe incumbem.

II. Sempre que estejam em causa danos deste tipo, o regime especial do artigo 59.º o CIRE prevalece sobre o regime geral da responsabilidade delitual contido nos artigos 483.º e s. do CC.

III. O prazo de prescrição fixado no artigo 59.º, n.º 5, do CIRE é de dois anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, mas está subordinado a um limite absoluto: o direito do lesado prescreve quando se completem dois anos sobre a data da cessação de funções do administrador da insolvência.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I. RELATÓRIO


1. Aquaplásticos, S.A. e AA intentaram a presente acção declarativa de condenação contra BB, alegando, em síntese, que o réu foi nomeado administrador judicial provisório no âmbito do Processo Especial de Revitalização (PER) que, sob o n.º 1904/12...., correu termos no ... Juízo do Tribunal do Comércio ....

Segundo os autores, no decurso desse processo, de forma infundada e ilegal, o réu requereu que fosse decretada a insolvência da 1.ª autora, na sequência do que o Senhor Juiz titular do processo, ordenou a extracção de certidão do PER e determinou a abertura do processo de insolvência.

No âmbito do processo insolvencial, já na qualidade de administrador da insolvência, o 1.º réu voltou a não cumprir os deveres e as obrigações que lhe incumbiam, o que causou graves danos à 1.ª autora.

A responsabilidade pela reparação de parte dos danos foi transferida para a sociedade seguradora Hiscox Unerwriting  Limited - Sucursal em Portugal.

Alegam ainda que, “sendo, o Autor, o único acionista da sociedade Aquaplásticos, todos os prejuízos sofridos pela Autora, são diretamente, sofridos por si”, “pois que os dividendos que a sociedade deixou de gerar, causados pelo acima referido, são dividendos que o Autor deixa de receber,pelo que, o Autor sofre os mesmos prejuízos que a Autora, assim sendo, por isso, legítimo que, juntamente com a sociedade, de que é único dono, reclame a reparação dos prejuízos que sofre, em simultâneo com a mesma” (cfr. artigos 59.º, 60.º e 61.º da p.i.).

A Hiscox informou a 1.ª autora de que o limite da sua responsabilidade nunca ultrapassaria os € 250.000,00.

Os autores concluem assim a petição inicial:

Termos em que se requer seja a ação julgada procedente, por provada e, consequentemente, a condenada no pagamento aos autores de uma indemnização de 6.009.243,86 (6.259.243,86 - 250.000,00 €) (...), acrescido de juros de mora, a título de danos patrimoniais, sofridos em consequência da actuação do Senhor Administrador da Insolvência, aqui Réu, não transferida para a Seguradora”.


2. O réu BB contestou, começando por arguir, pela seguinte ordem:

- a excepção dilatória consistente na ilegitimidade da 1.ª autora para os termos da presente acção;

- a excepção peremptória consistente na prescrição do direito que a 1.ª autora pretende fazer valer através desta acção; e

- a excepção dilatória consistente na ilegitimidade do 2.º autor para os termos da presente acção.

No mais, defende-se por impugnação.

Suscita ainda o incidente de intervenção principal provocada da Hiscox.

E conclui assim a contestação:

Termos em que:

a) as excepções deduzidas devem ser julgadas procedentes, desde no douto despacho saneador, absolvendo-se o R. dos pedidos formulados, ou, quando assim se não entenda, a Acção deverá ser julgada improvada e improcedente, condenando-se sempre os AA. e seu ilustre Mandatário como litigantes de fé, em multa e numa indemnização à parte contrária, a fixar a final nos termos do art 543.º do CPCivil, com as legais consequências.

b) Se requer seja admitida a intervenção acessória provocada de HISCOX EUROPE UNDERWRITING LTD - Sucursal em Portugal (...), nos termos do art. 321º e ss. do CPCivil.


3. Julgado procedente o incidente, foi a Hiscox citada para contestar, o que fez, começando por arguir, sucessivamente:

- a excepção dilatória consistente na nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial, com fundamento na falta ou ininteligibilidade da causa de pedir;

- a excepção dilatória consistente na ilegitimidade do 2.º autor para os termos da presente acção; e

- a excepção peremptória consistente na prescrição do direito que os autores pretendem fazer valer através desta acção.

No mais, defende-se por impugnação.

Conclui assim a contestação:

Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis, requer-se a V. Exa. Que se digne a:

(...)

b) Julgar procedentes, por provadas, as exceções dilatórias de ineptidão da Petição Inicial e de ilegitimidade ativa do Autor, e em consequência, absolver a da instância;

c) Julgar procedente, por provada, a exceção perentória da prescrição e, em consequência, absolver totalmente a do pedido;

d) Caso assim não se entenda, julgar a presente ação totalmente improcedente, por não provada e, em consequência, que absolver a dos pedidos contra si deduzidos”.


4. Notificados para o efeito, os autores responderam à matéria de excepção arguida pelo réu e pela interveniente, pugnando pela sua improcedência.


5. Dispensada a audiência prévia, a Exma. Senhora Juíza do Tribunal de 1.ª instância proferiu, em 16.11.202, despacho saneador, no qual julgou improcedentes as excepções dilatórias relativas:

- à nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial com com base na falta de causa de pedir; e

- à ilegitimidade dos autores para os termos da causa.

Julgou, no entanto, procedente a excepção peremptória consistente na prescrição do direito que os autores pretendem fazer valer contra o réu, absolvendo-o do pedido.

O teor do dispositivo é o seguinte:

Termos em que se julga procedente por provada a exceção de prescrição e, em consequência, se absolvem os réus do pedido”.


6. Inconformados e pugnando pelo sucesso da acção, os autores interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação ....


7. Em 14 de Setembro de 2021 pronunciou-se o Tribunal da Relação ... por Acórdão, no qual que se decidiu:

Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a ... Secção do Tribunal da Relação ..., em julgar a apelação improcedente, confirmando, por conseguinte, a decisão recorrida”.


8. Ainda inconformados, vêm os autores interpor recurso de revista excepcional, invocando o artigo 672.º do CPC e sustentando que:

a. Está em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;

b. Está em causa interesses de particular relevância social;

c. O acórdão da Relação está em contradição com outros, já transitados em julgado, proferido por Tribunais da Relação, no domínio da mesma legislação e sobre as mesmas questões fundamentais de direito”.

São as seguintes as conclusões da revista:

1. Nos presentes autos de ação declarativa com a forma de processo comum, vêm os autores Massa Insolvente da Aquaplásticos, S.A., S.A. e AA demandar BB e e Hiscox Europe Unerwriting Limited  – sucursal em Portugal, formulando o seguinte pedido:

§ Condenação do réu BB no pagamento de indemnização no valor de €6.009.243,86; por danos causados aos autores no exercício das funções de Administrador Judicial Provisório, no âmbito de Processo Especial de Revitalização, e Administrador de Insolvência, no âmbito do processo de insolvência subsequente.

§ Condenação da ré Hiscox no pagamento de indemnização no valor de €250.000,00; correspondente ao capital máximo assumido no contrato de seguro de responsabilidade profissional celebrado com o réu BB, por danos causados aos autores no exercício das funções de Administrador Judicial Provisório, no âmbito de Processo Especial de Revitalização, e Administrador de Insolvência, no âmbito do processo de insolvência subsequente.

2. O Tribunal de Primeira Instância concluiu pela prescrição dos direitos dos Autores, com base no disposto no artigo 59.º do CIRE.

3. O Tribunal da Relação manteve esta decisão.

4. Impondo-se, por isso, interpor o presente recurso, de revista excecional, previsto no artigo 672.º do Código de Processo Civil, porquanto:

a. Está em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;

b. Está em causa interesses de particular relevância social;

c. O acórdão da Relação está em contradição com outros, já transitados em julgado, proferido por Tribunais da Relação, no domínio da mesma legislação e sobre as mesmas questões fundamentais de direito.

5. O objecto do recurso cinge-se a apreciar se prescreveu efectivamente o direito que os autores pretendem fazer valer através desta acção.

6. Em causa, no caso concreto, está a aplicação, aos autos, do disposto no artigo 59.º do CIRE.

A Primeira questão, prende-se com o início do prazo previsto no artigo 59.º do CIRE:

7. Quanto a esta questão, importa, desde logo, deixar claro que, não ficou provado que havia decorrido o prazo de dois anos a contar da data em que os lesados / Autores tiveram efectivo conhecimento do direito que lhe compete.

8. Por isso, nomeadamente, não poderia considerar-se prescrito o direito dos Autores.

9. Mas, sem prescindir, sempre, não havia decorrido o período de dois anos sobre a data da cessação de funções.

10. De facto, como documentado nos autos, o Administrador da Insolvência, Réu nos Autos, praticou actos nos dois anos que precederam a instauração dos presentes autos.

11. Mesmo após a deliberação de substituição do Recorrido, que determinou a cessação de funções, o mesmo Dr. BB continuou a praticar atos no processo de insolvência.

A Segunda questão, prende-se com o acto que determina a interrupção do prazo de prescrição:

12. No caso concreto, sempre se verificou uma interrupção do prazo de prescrição, por efeito da interpelação de 12 de Abril de 2016, acompanhada das negociações que decorreram até 22 de Novembro de 2016.

13. De facto, a prescrição pode ser interrompida (arts 323.º a 327.º do CC), como decidido no acórdão referido supra, “por actos do beneficiário da prescrição, ou seja do devedor. (art. 325.º)”.

14. Ora, sempre os Réus, com as negociações em curso, e que duraram até 22 de Novembro de 2016, praticaram actos que determinaram a interrupção da prescrição.

15. Aconteceu, no caso, a interrupção da prescrição, por reconhecimento do direito, nos termos do art. 325º do CC.

16. É, pois, manifesta, a interrupção do prazo de prescrição, por efeito da interpelação de 12.04.2016.

17. Conforme documento 23, junto com a Petição Inicial, só a 23 de Novembro de 2016, os Autores foram conhecedores da recusa, por parte da Ré, em proceder à reparação dos danos sofridos.

18. Antes disso, nada justificava o recurso às vias judiciais.

19. Sendo que, com a interpelação da Ré, por parte dos Autores, e as consequentes negociações, se interrompeu um qualquer prazo de prescrição.

20. Prazo que, apenas se voltou a iniciar a 23 de Novembro de 2016.

A Terceira questão, prende-se com a não aplicação do artigo 59.º do CIRE ao aqui Autor:

21. Sempre, quanto a AA não é aplicável o prazo previsto no art.º 59º nº 4 do CIRE, porquanto este apenas diz respeito aos lesados descritos no nº1.

22. Sendo o autor AA um terceiro, quanto a este aplica-se o regime geral previsto nos artigos 483º e ss do CC.

23.“O âmbito subjectivo de aplicação do artigo 59.º do CIRE, rectius do n.º 1, não é extensível a terceiros prejudicados, como tal, não resta senão concluir pela aplicabilidade do regime jurídico geral da responsabilidade civil, plasmado nos artigos 483.º e ss do CC.

24. De relevante, será a imposição da observância do prazo de prescrição de três anos a contar da data do conhecimento pelo lesado do direito que lhe compete, dentro do prazo prescricional ordinário de vinte anos desde a prática do facto danoso (art. 498.º, n.º 1 do CC), distinto do aplicável ao devedor e aos credores – dois anos contados da data em que o lesado tome conhecimento do direito que lhe assiste, dentro do prazo de dois anos a contar da data da cessação de funções do administrador da insolvência (art. 59.º, n.º 4 do CIRE).

25.O disposto no art. 59º do CIRE não é aplicável aos autos, porquanto o mesmo só se aplica nos casos em que o lesado é o insolvente, ou um credor da insolvência ou da massa insolvente.

26. Sendo qualquer outro o lesado, como são os Autores – Administrador da Insolvente e Massa Insolvente, mesmo que por actos do administrador no exercício das suas funções, aplica-se o regime geral estabelecido nos arts. 483º e segs. do CC.

27. Importando aplicar aos autos o regime geral previsto nos artigos 483º e ss do CC.

28. Designadamente, o autor AA age como terceiro,

29. Sendo, “o papel processual do autor AA” “autonomizável”, bem como “é autónomo o seu ... dano”.

30.O Autor é lesado porque administrador e acionista da insolvente – manifestamente um terceiro.

31. Devendo concluir-se que,

a. Primeiro, não decorreu o prazo de prescrição, atenta, sempre, o início do mesmo e, em qualquer dos casos, a sua interrupção, até 22 de Novembro de 2016 e,

b. Depois, que, sempre, não é de aplicar aos autos o prazo de dois anos, mas, antes, o prazo de prescrição de três anos e, logo,

32. Concluir-se, sempre, não ter decorrido o prazo de prescrição do direito que os autores pretendem exercer.

33. Devendo ser julgada improcedente por não provada a exceção de prescrição e, em consequência, ordenar-se o prosseguimento dos autos.

34. Sendo que a decisão recorrida viola o disposto nos artigos 59.º do CIRE e 323.º a 327.º e 483.º e seguintes estes do Código Civil.

35. O que há-de determinar a revogação da decisão recorrida


9. No exercício do seu direito, o réu BB veio apresentar a sua resposta às alegações dos autores / recorrentes.

Alega a inadmissibilidade da revista excepcional e pugna pela rejeição do recurso e, subsidiariamente, pela sua improcedência.

Não apresenta, em rigor, conclusões, mas termina a sua alegação assim:

É, assim, claro, que os Recorrentes, enquanto putativos lesados, tiveram conhecimento dos factos constitutivos do direito no próprio dia em que ocorreu a cessação de funções do R. BB.

Pelo que, não existindo causas de interrupção ou suspensão da prescrição, atenta a data da instauração da acção, deve ter-se tal prazo por prescrito, assim como bem se decidiu.

Não colhem, assim, as Conclusões apresentadas pelos recorrentes”.


10. Também a interveniente Hiscox apresentou a sua resposta, sustentando, da mesma forma, que o recurso de revista excepcional não deve ser admitido ou, em última análise, não deve ser julgado procedente.

Conclui nos seguintes termos:

1. Os Recorrentes vêm interpor recurso, ao abrigo do artigo 672.º n.º 1 do CPC, da decisão proferida Tribunal da Relação, alegando em suma que (i) o recurso de revista excecional é admissível uma vez que se encontram preenchidos os pressupostos nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 671.º do CPC, (ii) que o acórdão do Tribunal da Relação viola o disposto nos artigos 59.º do CIRE e artigos 323.º, 327.º e 483.º e ss do Código Civil.

2. Os Recorrentes defendem a admissibilidade do recurso de revista excecional quanto a questões que rodeiam o artigo 59.º do CIRE, nomeadamente o início do prazo previsto no artigo 59.º do CIRE e o momento de uma eventual interrupção do prazo prescricional.

3. Sustentam a admissibilidade do presente recurso alicerçando os seus argumentos nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, sem, contudo, justificarem ou fundamentarem criteriosamente, como impõe o artigo 672.º do CPC quais os fundamentos.

4. No entanto, o presente recurso deve ser rejeitado, não sendo admissível a revista excecional, conforme abaixo se passará a expor.

(Ausência do requisito da alínea a) do artigo 672.º n.º 1 CPC)

5. Alegam os Recorrentes nas suas considerações iniciais que “importa que os cidadãos e empresas tenham noção: 1. Do momento exacto em que se inicia o prazo fixado no artigo 59.º do CIRE, 2. Do acto que determina a interrupção do prazo de prescrição e, bem assim, 3. Dos sujeitos a quem se aplica esta prescrição. (…) E nessa medida, esta definição/ apreciação destas questões é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.” (cfr. pág. 5 e 6 das alegações dos Recorrentes).

6. Salvo o devido respeito que é muito, entende a Recorrida que não se verifica o pressuposto previsto na alínea a) d n.º 1 do artigo 672.º, porquanto desde logo a questão de fundo trazida pelos Recorrentes (a prescrição nos termos e para os efeitos do n.º 4 do artigo 59.º do CIRE) não assume uma interpretação duvidosa, complexa ou de difícil resolução.

7. Aliás os próprios Recorrentes não abordam, densificam ou fundamentam qualquer dúvida, complexidade ou dificuldade de resolução na interpretação da norma prevista no artigo 59.º do CIRE, tanto assim é que tal questão não é sequer abordada nas suas conclusões, as quais como bem sabemos delimitam o objeto do recurso.

8. Pelo que, sem mais considerações, impera a rejeição do recurso, uma vez que a revista excecional não pode ser admitida com base no requisito da referida alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC.

(Ausência do requisito da alínea b) do artigo 672.º n.º 1 CPC)

9. Fundamentam os Recorrentes parte do seu recurso em interesses de particular relevância social previstos na alínea b), do n.º 1, do artigo 672.º, do CPC, alegando para tanto os processos de insolvência têm vindo a ganhar relevância social e que “importa que a sociedade civil tenha a verdadeira noção de quando prescrevem os direitos de que sejam titulares a exigir aos Administradores de Insolvência, por conta das suas condutas.” (cfr. pág. 7 das alegações de recurso

10. Mais uma vez, não alcança a Recorrida a pertinência dos argumentos esgrimidos pelos Recorrentes, uma vez que resulta evidente que o acórdão recorrido não aborda uma situação em que se equacione qualquer colisão de uma decisão jurídica com valores sócio-culturais dominantes.

11. É manifesto que os presentes autos mais não são que a defesa de meros interesses das partes, aliás, tanto assim é, que os próprios Recorrentes não fundamentaram a verificação dos requisitos da alínea b) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, limitaram-se sim a referir a alínea sem mais considerações sobre a mesma

12. Assim tanto basta para concluir, pela não verificação do pressuposto de admissibilidade de revista excecional previsto na alínea b) do n.º 1 do 672.º do CPC, pugnando-se pela rejeição imediata do recurso.

(Ausência do requisito da alínea c) do artigo 672.º n.º 1 CPC)

13. Por fim, fundamentam os Recorrentes parte do seu recurso na oposição de julgados prevista na alínea c), do n.º 1, do artigo 672.º, do CPC, que a par das alíneas a) e b), permite, não obstante a verificação de dupla conforme, a parte vencida possa recorrer de revista quando o acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado e julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

14. Ora, lamentavelmente, também aqui os Recorrentes limitaram-se a indicar e transcrever sumários de dois acórdãos fundamentos (!), para fazerem valer as suas pretensões, sem, contudo, fundamentarem ou percorreram os acórdãos referidos por contraposição com o acórdão recorrido.

15. Lidas e relidas as alegações dos Recorrentes, quanto à alegada oposição de fundamentos, apenas foram transcritos os sumários dos acórdãos (i) sobre a aplicação do artigo 59.º do CIRE e (ii) sobre o início da contagem do prazo prescricional.

16. Assim e seguindo o entendimento unânime da doutrina e da jurisprudência, incluindo o da formação de apreciação liminar4, a contradição de acórdãos prevista no artigo 672.º, nº 1, alínea c), do CPC, justificativa da admissão de revista excecional exige a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: (i) A identidade da questão de direito sobre que incidiram os acórdãos em confronto, a qual tem pressuposta a identidade dos respetivos pressupostos de facto; (ii) Oposição emergente de decisões expressas e não apenas implícitas; e (iii) Oposição com reflexos no sentido da decisão tomada.

17. Ora, in casu, o recurso não preenche estes pressupostos, nem tão pouco os mesmos foram escrutinados pelos Recorrentes pelo que não deve o recurso ser admitido.

18. Senão vejamos, para haver oposição de acórdãos justificativa da admissão da revista excecional é necessário que um caso concreto caracterizado por um núcleo factual

19. No caso em apreço, os Recorrentes não identificam se quer o núcleo factual dos dois acórdãos fundamento que juntam, mas ainda assim e por mera cautela de patrocínio, sempre se dirá que não obstante em ambos os acórdãos ser abordado o regime do n.º 4 do artigo 59.º do CIRE e o conceito de “responsabilidade aquiliana” a verdade é que não só a situação fática é substancial e integralmente diferente como também o é a regra de direito aplicada em cada um deles.

20. Pelo exposto se conclui que, no presente caso, verificando-se, nos termos do n.º 3, do artigo 671.º, do CPC, dupla conforme entre a sentença da 1ª instância e o acórdão do Tribunal da Relação e não se verificando os pressupostos das alíneas a), b) e c), do n.º 1 ,do artigo 672.º, alíneas invocadas (mas não) fundamentadas pelos Recorrentes, que permitiria excecionalmente o recurso para este Supremo Tribunal, deve o mesmo ser desde já objeto de indeferimento em acórdão preliminar da formação.

21. Caso, por mera hipótese de patrocínio, o presente recurso excecional de revista seja aceite, o que absolutamente se não concede, quanto ao mérito do mesmo, sempre se dirá que, andou bem o tribunal “a quo”, ao confirmar a exceção perentória de prescrição, razão pela qual não deve o tribunal “ad quem” alterar o teor do acórdão recorrido, o que desde já se requer, para os devidos efeitos legais.

22. Os Recorrentes insistem na tese de que o seu direito a reclamar uma indemnização contra os Recorridos não se encontra prescrito, invocando para tal que: (i) não havia decorrido o período de dois anos sobre a data de cessação de funções do Recorrido, pelo que não se iniciou o prazo prescricional previsto no artigo 59.º do CIRE; (ii) nos presentes autos verificou-se a interrupção do prazo de prescrição, por efeito da interpelação de 12 de abril de 2016, acompanhada de negociações que decorreram ate 22 de novembro de 2016; (iii) não aplicação do artigo 59.º do CIRE ao Recorrido AA, por este ser um terceiro, e assim aplica-se o regime geral previsto nos artigos 483.º e ss do CC.

23. Ora, conforme já se referiu, nas alegações em crise os Recorrentes centraram a questão no facto de o direito a que se arrogam não se encontrar prescrito, mas não têm razão.

24. Quanto à conclusão dos Autores de que “não havia decorrido o período de dois anos sobre a data de funções”, e por essa razão não se iniciou o prazo previsto n.º 4 do artigo 59.º do CIRE, quer a sentença de 1ª Instância, quer o acórdão recorrido, são claros quando explanam que por deliberação votada em 1 de março de 2016 foi aprovada a destituição do Dr. BB, aqui Recorrido, sendo claro que o início da contagem do prazo prescricional começou pelo menos desde esta data.

25. Carecendo de uma vez mais de qualquer fundamento fático legal a tese dos Recorrentes, quando afirmam que o prazo de dois anos sobre a data da cessação de funções não se iniciou na data da destituição, mas sim em momento posterior, momento esse que os Recorrentes não referem.

26. Com efeito, a data do conhecimento do direito que compete aos Recorrentes, ou seja, o direito a peticionar indemnização pelos alegados prejuízos causados pelo Administrador de Insolvência, conta-se a partir do momento em que os Recorrentes se sentiram lesados pela conduta do Administrador de Insolvência.

27. O que in casu resulta provado em ambas as instâncias, que os Recorrentes tiveram conhecimento do seu direito, pelo menos em 01.03.2016,

28. E mais, são os próprios Recorrentes que afirmam que enviaram uma carta no dia 12 de abril de 2016 (carta essa que supostamente interrompe o prazo de prescrição, que na tese dos Recorrentes não se iniciou em março de 2016), reconhecimento esse que, à luz dos pressupostos de que depende o início da contagem do prazo de prescrição do direito dos Recorrentes, se traduz num facto desfavorável a estes e, como tal, uma confissão judicial expressa do mesmo, nos termos conjugados dos artigos 352º do CC e 46º do CPC, e como tal, com força probatória plena.

29. É evidente que a partir de, pelo menos essa data que os Recorridos tinham conhecimento de todos os factos que constituem os pressupostos da responsabilidade civil que ora invocam, a saber: o ato ilícito e culposo (acima descrito), os danos causados e o nexo de causalidade entre um e outros.

30. Como tal, desde essa data que os Recorrentes poderiam exercer o seu direito de indemnização contra o Administrador de Insolvência, ora Recorrido, mas que não o fizeram, pelo menos atempadamente, nem através da competente ação judicial, nem tão pouco através de notificação judicial avulsa, conforme exige o artigo 323º do Código Civil.

31. Não podendo agora os Recorrentes contrariar a sua confissão – o momento em que tomaram conhecimento do seu direito – lançando mão de um hipotético conhecimento, o qual relegaram para uma data que se pudesse enquadrar dentro do prazo de 2 anos, por forma a rebaterem a prescrição, a qual, que como bem sabem, se verificou.

32. Resulta claro que os Recorrentes ainda antes do dia 12 de abril de 2016 (data da carta de interpelação enviada à Recorrida), tiveram conhecimento dos pressupostos de que depende o exercício do seu direito à indemnização, mas só vieram a exercê-lo mais de 2 anos depois do conhecimento do alegado direito que lhes compete.

33. Em relação ao que deve entender-se por “conhecimento do direito”, a jurisprudência tem reiteradamente decidido que: “O início da contagem do prazo de prescrição não está dependente do “conhecimento jurídico” do respetivo direito, bastando ao lesado o conhecimento dos seus factos constitutivos, isto é, que o ato foi praticado ou omitido por alguém e que dessa prática ou omissão resultaram danos.” (cfr. Ac. STJ de 11-05-2000, Processo 00B268, Relator Duarte Soares; destaque nosso)5.

34. Assim, é por demais evidente que os Autores tiveram conhecimento do seu direito em data anterior a 01.03.2016 ou, no limite, pelo menos em abril de 2016, pelo que não há dúvida que o direito dos Autores contra os Réus prescreveu, nos termos do disposto no artigo 59º, nº 5, do CIRE.

35. Quanto à conclusão dos Recorrentes de que “com a interpelação da Ré [a ora Recorrida Hiscox], por parte dos Autores, se interrompeu um qualquer prazo de prescrição. / Prazo que, apenas se voltou a iniciar a 23 de novembro de 2016.”.

36. Resulta também à evidência que a carta de interpelação enviada pelos Recorrentes à Recorrida Hiscox. não interrompe qualquer prazo de prescrição, porquanto não cumpre o disposto no artigo 323º, nº 1, do Código Civil, como bem explica o acórdão recorrido: “Não ocorreu, obviamente, in casu, qualquer facto interruptivo da prescrição. (…) Não ocorreu a notificação judicial do réu, nem se vislumbra a ocorrência de qualquer outro meio judicial pelo qual tenha sido dado conhecimento do ato ao réu. Não basta sequer, como é evidente, para efeitos de interrupção da prescrição, exercício extrajudicial do direito, como a interpelação feita diretamente ao devedor, situação que não tem na letra da lei o mínimo de correspondência.”

37. Assim, para que a intenção de exercer o direito seja suscetível de interromper a prescrição, nos termos do artigo 323º, nº 1, do Código Civil, é necessário que cumulativamente: i) seja manifestada judicialmente, na citação ou em notificação judicial avulsa; ii) vise o exercício do direito concreto que é agora objeto de prescrição e ii) seja dirigida à parte contrária, isto é, àquele contra quem se pretende exercer o direito.

38. Na verdade, é jurisprudência abundante que não basta ao credor manifestar a intenção de exercer qualquer direito contra os Réus para que possa ter o efeito interruptivo da prescrição, pois este efeito só se verifica com a manifestação da intenção de exercer o direito concreto.

39. Assim, ao contrário do alegado pelos Recorrentes e conforme resulta quer da sentença de 1ª instância quer do acórdão recorrido, os aqui Recorridos não foram citados/notificados judicialmente da intenção de exercício de qualquer direito pelos Recorrentes.

40. A mera interpelação à Recorrida Hiscox não é bastante para que o prazo de prescrição por atos geradores de responsabilidade civil por parte de Administrador de Insolvência qualquer causa de interrupção do prazo de prescrição do direito dos Recorrentes.

41. Quanto à conclusão dos Recorrentes, pouco clara ou inteligível, que existiu um putativo reconhecimento do seu direito, pela Ré Hiscox “conforme documento 23 junto com a Petição Inicial, só a 23 de Novembro de 2016, os Autores foram conhecedores da recusa, por parte da Ré, em proceder à reparação dos danos sofridos.”, também não pode proceder, também não poderá proceder.

42. Desde logo nos termos do disposto no artigo 325º do Código Civil, o reconhecimento do direito da contraparte tem de ser expresso, evidenciando, sem qualquer dúvida, que a parte reconhece o contradireito, o que não se verificou.

43. Só podendo ser tácito quando resulte inequivocamente de factos que o exprimam, o que manifestamente não se verifica. Em momento algum, a Recorrida reconheceu expressa ou tacitamente o direito dos Recorrentes.

44. Além do mais, não existiram quaisquer negociações entre os Recorrentes e a Recorrida, mas apenas uma fase de averiguação do sinistro comunicado à Hiscox na qualidade de seguradora do Administrador de Insolvência, que mediou entre a reclamação do sinistro enviada em 12.04.2016 e o encerramento e comunicação pela seguradora em 22.11.2016.

45. Por outro lado, não tem qualquer correspondência no regime da prescrição afirmar-se, como pretendem os Recorrentes, que a contagem do prazo prescricional pode ser diferida para o momento em que cessaram hipotéticas negociações entre a Recorrida e os Recorrentes.

46. O Doc. 23 junto com a Petição Inicial e referido pelos Recorrentes, é a prova cabal de que não existiu qualquer reconhecimento do direito pela Hiscox uma vez que comunicou expressamente aos Recorrentes não ser possível assumir qualquer responsabilidade pelo sinistro, pelo que também não se verifica esta causa interruptiva da prescrição.

47. Por fim, os Recorrentes alegam ainda que pelo menos o direito do Recorrente AA nunca estaria prescrito uma vez que “não é de aplicar aos autos o prazo de dois anos, mas, antes o prazo de prescrição de três anos…”

48. Quanto a este ponto é o acórdão recorrido bastante assertivo quando conclui que: “É evidente, tendo em conta a relação material controvertida tal foi como configurada, ainda que deficientemente, na petição inicial, que o prazo prescricional de dois anos previsto no art. 59.º, n.º 5, do CIRE, se aplica à pretensão à(s) pretensão(ões), também elas deficientemente formulada(s), por ambos os autores.

Não merece, pois, qualquer censura a decisão recorrida, a qual, por isso, deve ser mantida.”

49. Dito isto, andou bem o Tribunal a quo ao considerar que é aplicável o disposto no n.º 5 do artigo 59.º do CIRE, tendo em conta a configuração da relação material controvertida, a qual foi, como se diz na sentença de 1ª instância e no acórdão recorrido configurada pelos próprios Recorrentes.

50. Ao contrário da tese dos Recorrentes, resulta sim, evidente, que os Recorrentes lançaram mão da ação de responsabilidade civil por alegados danos causados pelo Recorrido BB no exercício das suas funções de Administrador de Insolvência e que se aplica o disposto no artigo 59.º do CIRE, não podendo agora vir dar o dito por não dito.

51. Face ao supra exposto, entende a Recorrida que andou bem o Tribunal a quo quando decidiu que se encontra prescrito o direito dos Recorrentes, devendo, assim, improceder o recurso na íntegra”.


11. Em 27.11.2021 o Exmo. Senhor Desembargador Relator determinou a subida dos autos a este Supremo Tribunal de Justiça.


12. Apreciando o recurso, proferiu a presente Relatora um despacho em que se determinou a remessa dos autos à Formação referida no artigo 672.º, n.º 3, do CPC.


13. Efectuada a sua análise, proferiu a Formação um Acórdão admitindo a revista excepcional.

Cumpre transcrever aqui as partes mais relevantes desta decisão:

As questões suscitadas pelos Recorrentes podem ser assim enunciadas:

1. Questão relativa ao início da contagem do prazo de prescrição da responsabilidade do administrador da insolvência (art° 59.°, do CIRE):

- na vertente, relativa ao prazo de dois anos a contar da data em que os lesados / Autores tiveram efectivo conhecimento do direito que lhe compete;

- na vertente relativa à cessação de funções, na alegação de que foram praticados actos após a cessação das mesmas;

2. Saber como funcionam as regras da suspensão e interrupção dos prazos de prescrição nos indicados regimes;

3. A quem se aplica o regime do artigo 59.° e como se delimita o seu âmbito face ao regime do artigo 483.° do Código Civil.

O pressuposto colocado na al. a) do n.° 1 do artigo 672.° do Código de Processo Civil, exprime-se em razões suscetíveis de revelar a relevância jurídica - de elevado interesse geral, que não se quede pelo mero interesse particular.

Uma análise da jurisprudência deste STJ dos últimos anos não evidencia que o STJ tenha tomado posição sobre as indicadas problemáticas, ainda que existam alguns arestos dedicados à responsabilidade civil do administrador da insolvência - tendo-se identificado apenas 2 casos - processo n.° 1350/17.2T8AVR.P1.S1., Acórdão de 6/10/2021 e processo n.° 139/12.0TBFLG-M.S1, Acórdão proferido em 29/10/2019, disponíveis em www.dgsi.pt.

Quanto à aplicação do regime do artigo 59.° do ORE a sócio único da sociedade insolvente, em vez do regime do artigo 483.° do Código Civil, referem os Recorrentes que alguma doutrina tem defendido esta interpretação da norma, em sentido diverso da solução encontradas nas instâncias, citando uma dissertação de Mestrado - "A responsabilidade civil do administrador da insolvência", Autor: Garcia, Vanessa Cristina de Velez, Orientador: Martinez, Pedro Romano,2011, disponível em http://hdl.handle.net/10451/11783 - tornando justificada a análise da situação por este STJ para melhor clarificação dos regimes e âmbitos de aplicação, de interesse geral da sociedade.

Não é de excluir o relevo jurídico das questões suscitadas, sabendo que o CIRE tem soluções especiais face ao regime geral do Código Civil, mas este pode ainda ter um âmbito de aplicação, que cumpre definir com precisão.

Assim, é de entender que as questões suscitadas pelos Recorrentes cumprem os requisitos indicados pelo artigo 672.°, n.°2, ai. a), do Código de Processo Civil, pois as mesmas questões jurídicas assumem um caráter paradigmático e exemplar, transponível para outras situações, assumindo relevância autónoma e independente (em relação às partes envolvidas), havendo conveniência na consolidação e aprofundamento da questão o que justifica a admissão do presente recurso nos termos da alínea a) do n° 2 do artigo 672.° do Código de Processo Civil, (tornando-se desnecessária a apreciação dos fundamentos constantes das alíneas b) e c) do n.° l do artigo 672.° do Código de Processo Civil)”.


*


Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a questão a decidir, in casu, é a de saber se o direito que os autores pretendem fazer valer através desta acção prescreveu ou não.


*

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

O único facto dado como provado no Acórdão recorrido é o seguinte:

A decisão recorrida tem o seguinte teor:

Da Prescrição

Vieram os réus arguir a exceção de prescrição, por já ter decorrido o prazo previsto no art.º 59º do CIRE.

Prevê o nº 1 de tal normativo que “o administrador de insolvência responde pelos danos causados ao devedor e aos credores da insolvência e da massa insolvente pela inobservância culposa dos deveres que lhe incumbem; (…)”, sendo que no nº 4 se estipula que “a responsabilidade do administrador de insolvência prescreve no prazo de dois anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, mas nunca depois de decorrido igual período sobre a data de cessação de funções.”

Conforme decorre dos elementos já constantes dos autos:

- A presente ação e apenso deu entrada em juízo em 25.05.2018;

- Por deliberação votada em 1 de março de 2016 foi aprovada a substituição do Dr. BB, como Administrador de Insolvência, pelo Dr. CC, (cf. fls. 66);

- Por carta enviada sob registo à ré Hiscox em 12.04.2016 (cf. fls. 97 apenso A) a Aquaplásticos, S.A. participou o sinistro relativo ao segurado BB, e reclamou o pagamento de indemnização;

- Por carta datada de 22.11.2016 a ré Hiscox declinou qualquer responsabilidade.

Dos factos descritos resulta que a presente ação e apenso deram entrada em juízo cerca de dois meses e dois anos após a data de cessação de funções do réu BB, enquanto administrador de insolvência, pelo que se encontrava já decorrido o prazo previsto na segunda parte do nº 4 do art.º 59º do CIRE.

Defendem os autores que mesmo após a deliberação de substituição deste, que determinou a cessação de funções, BB continuou a praticar atos no processo de insolvência. Para tanto, juntaram os autores documentos que mais não são que notificações relativas a pagamento de honorários, e onde é tal réu referido como “administrador substituído”, (cf. fls. 107 verso a 108º verso). Ou seja, não se trata de atos praticados enquanto Administrador de Insolvência de facto, sendo indiscutível que a cessação de funções se deu com a deliberação de 1 de março de 2016.

Defendem ainda os autores uma interrupção do prazo de prescrição, por efeito da interpelação de 12.04.2016; não lhes assiste razão, todavia. Com efeito, e como prevê o art.º 323º nº 1 do CC, apenas a citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima a intenção de exercer o direito interrompe o prazo de prescrição. A mera interpelação por carta registada, não se tratando de citação ou notificação judicial, não tem qualquer efeito interruptivo do prazo, portanto.

Defendem ainda os autores que quanto a AA não é aplicável o prazo previsto no art.º 59º nº 4 do CIRE, porquanto este apenas diz respeito aos lesados descritos no nº1. Sendo o autor AA um terceiro, quanto a este aplica-se o regime geral previsto nos artigos 483º e ss do CC.

Entende-se que não lhe assiste razão, considerando a relação material controvertida tal como configurada pelos autores. Como resulta da causa de pedir exposta na petição e pedido formulado, os autores agem em litisconsórcio voluntário, e entendem que o dano de uma parte é igual ao dano da outra parte. Ou seja, o autor AA não age como terceiro, mas como único acionista e, portanto, lesado na mesma medida que a sociedade. Do exposto resulta que o papel processual do autor AA não é autonomizável, bem como não é autónomo o seu alegado dano; o autor entende-se lesado na mesma medida que a sociedade autora, por ser o seu único acionista e os danos desta se refletirem diretamente na sua esfera jurídica.

Tal configuração da relação material controvertida leva a entender que o prazo prescricional do nº 4 do art.º 59º do CIRE é aplicável ao caso, agindo o autor AA como um verdadeiro credor da sociedade autora.

Conclui-se então que, tendo decorrido o prazo de dois anos sobre a data de cessação de funções do réu BB à data de entrada em juízo da presente ação, prescreveu o direito que os autores pretendem exercer.

Termos em que se julga procedente por provada a exceção de prescrição e, em consequência, se absolvem os réus do pedido”.


O DIREITO

A questão a apreciar e a decidir no presente recurso foi apreciada e decidida no Acórdão recorrido, onde aparece formulada como sendo a de “saber se prescreveu efetivamente o direito que os autores pretendem fazer valer através desta ação” ou, adiante, “se está, ou não prescrito, o direito que os autores pretendem fazer valer contra o réu”.

Tal como havia acontecido na 1.ª instância, respondeu-se aí afirmativamente, fundamentando-se a decisão com extenso recurso às razões expostas e, por vezes, mesmo às palavras usadas pelo Tribunal de 1.ª instância. Pode ler-se aí, na parte mais relevante:

É, salvo o devido respeito, inequívoco o acerto da decisão recorrida, nenhuma razão assistindo, por isso, aos recorrentes.

 (…)

Estando provado que por deliberação votada em 1 de março de 2016, foi aprovada a substituição do Dr. BB, como Administrador de Insolvência, pelo Dr. CC, e que a presente ação deu entrada em juízo no dia 25 de maio de 2018, dúvidas não subsistem de que prescreveu o alegado direito pretendido fazer valer através desta ação.

É que, aquando da instauração da ação haviam decorrido mais de dois anos sobre a data em que o réu cessou funções como administrador da insolvência da 1.ª autora.

Não ocorreu, obviamente, in casu, qualquer facto interruptivo da prescrição.

(…)

Não ocorreu a notificação judicial do réu, nem se vislumbra a ocorrência de qualquer outro meio judicial pelo qual tenha sido dado conhecimento do ato ao réu.

Não basta sequer, como é evidente, para efeitos de interrupção da prescrição, o exercício extrajudicial do direito, como a interpelação feita diretamente ao devedor, situação que não tem na letra da lei o mínimo de correspondência

(…)

Assim, nenhuma relevância assumiu, para efeitos de interrupção da prescrição, o facto de em 12 de abril de 2016, a 1.ª autora ter sido enviada carta registada à interveniente, a participar o hipotético sinistro «relativo ao segurado BB», e a reclamar o pagamento de indemnização.

Não se vislumbra, da parte de quem que seja, réu ou interveniente, a prática de qualquer ato demonstrativo de reconhecimento, ainda que tácito, do alegado direito que os autores pretendem fazer através desta ação, nos termos e para os efeitos do art. 323.º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Civil.

Como bem se refere na decisão recorrida, «defendem os autores que mesmo após a deliberação de substituição deste, que determinou a cessação de funções, BB continuou a praticar atos no processo de insolvência. Para tanto, juntaram os autores documentos que mais não são que notificações relativas a pagamento de honorários, e onde é tal réu referido como “administrador substituído”, (cf. fls. 107 verso a 108º verso). Ou seja, não se trata de atos praticados enquanto Administrador de Insolvência de facto, sendo indiscutível que a cessação de funções se deu com a deliberação de 1 de março de 2016».

É exatamente assim!

Afirma-se ainda na decisão recorrida:

«Defendem ainda os autores que quanto a AA não é aplicável o prazo previsto no art.º 59º nº 4 do CIRE, porquanto este apenas diz respeito aos lesados descritos no nº 1. Sendo o autor AA um terceiro, quanto a este aplica-se o regime geral previsto nos artigos 483º e ss do CC.

Entende-se que não lhe assiste razão, considerando a relação material controvertida tal como configurada pelos autores. Como resulta da causa de pedir exposta na petição e pedido formulado, os autores agem em litisconsórcio voluntário, e entendem que o dano de uma parte é igual ao dano da outra parte. Ou seja, o autor AA não age como terceiro, mas como único acionista e, portanto, lesado na mesma medida que a sociedade. Do exposto resulta que o papel processual do autor AA não é autonomizável, bem como não é autónomo o seu alegado dano; o autor entende-se lesado na mesma medida que a sociedade autora, por ser o seu único acionista e os danos desta se refletirem diretamente na sua esfera jurídica.

Tal configuração da relação material controvertida leva a entender que o prazo prescricional do nº 4 do art.º 59º do CIRE é aplicável ao caso, agindo o autor AA como um verdadeiro credor da sociedade autora».

É, de novo, exatamente assim, sendo desnecessários considerandos adicionais para demonstrar, também neste particular, a total ausência de razão dos recorrentes.

É evidente, tendo em conta a relação material controvertida tal foi como configurada, ainda que deficientemente, na petição inicial, que o prazo prescricional de dois anos previsto no art. 59.º, n.º 5, do CIRE, se aplica à pretensão à(s) pretensão(ões), também elas deficientemente formulada(s), por ambos os autores.

Não merece, pois, qualquer censura a decisão recorrida, a qual, por isso, deve ser mantida”.

Os autores não se conformam com a aplicação do direito efectuada pelas instâncias e recorrem para este Supremo Tribunal, alegando, essencialmente, os seguintes argumentos (pela ordem em que vêm enunciados):

1.º) não está provado nos autos o momento em que os autores tiveram conhecimento do direito que lhes competia (cfr. conclusão 7);

2.º) os autores propuseram a acção antes de terem decorrido dois anos sobre a data de cessação de funções do réu administrador judicial, atendendo a que este continuou a praticar actos mesmo após a sua substituição por outro administrador judicial (cfr. conclusões 9 e 10);

3.º) o prazo de prescrição interrompeu-se em 12 de Abril de 2016, com o envio da carta registada em que os autores reclamavam o pagamento de uma indemnização à ré seguradora por danos causados pelo réu administrador judicial e esteve interrompido até 22 de Novembro de 2016, data em que a ré seguradora enviou resposta àquela carta (cfr. conclusões 12 a 20);

4.º) o prazo de prescrição aplicável não é o previsto no artigo 59.º do CIRE, mas sim o previsto no artigo 498.º do CC porque o autor sócio – mas também a autora massa insolvente – são terceiros em relação ao réu administrador judicial (cfr. conclusões 21 a 30).

Considera-se conveniente reordenar estes argumentos de forma a responder-lhes de forma (mais) lógica.

O ponto prioritário será o de identificar o regime aplicável à presente acção (saber se é o regime da responsabilidade civil disposto nos artigos 483.º e s. do CC ou o regime especial do artigo 59.º do CIRE) para (só) depois partir para o esclarecimento dos pontos a que os autores se referem e respeitam ao início e ao fim do prazo de prescrição e à hipótese da sua interrupção.


*


1. Do regime aplicável

Decorre da petição inicial que a presente acção é proposta pela massa insolvente de certa sociedade (Massa Insolvente da Aquaplásticos, S.A.) e pelo accionista único e administrador (AA) contra certo administrador judicial (BB) e a sua seguradora (Hiscox Europe Unerwriting Limited – sucursal em Portugal).

O pedido formulado pelos autores é a condenação dos réus na obrigação de indemnização aos autores por danos causados pelo réu administrador judicial – o réu administrador judicial no montante de € 6.009.243,86 e a ré seguradora no montante de € 250.000,00, correspondente ao capital máximo assumido no contrato de seguro de responsabilidade profissional celebrado com o 1.º réu.

Existe um regime especial de responsabilidade do administrador da insolvência – o disposto no artigo 59.º do CIRE. Regula-se aí, em primeira linha, a responsabilidade do administrador da insolvência pelos danos causados ao devedor e aos credores da insolvência e da massa insolvente causados por actos (positivos ou negativos) praticados após a sua nomeação e com a inobservância culposa dos seus deveres (cfr. artigo 59.º, n.ºs 1 e 4 do CIRE).

Contra a aplicabilidade do artigo 59.º do CIRE vêm os autores apresentar duas linhas de argumentos, que são, na verdade, contraditórios entre si. O primeiro tende a aproximar as posições de ambos sob o ponto de vista da relação material com os réus; o segundo destina-se a autonomizá-las.

Dizem os autores que, sendo eles quem são, ou seja, a massa insolvente da sociedade e o sócio único e administrador desta, não estão sujeitos ao regime do artigo 59.º do CIRE, dado que este é aplicável apenas quando o lesado é o devedor ou um credor da insolvência ou da massa insolvente (cfr. conclusões 25 e 26).

Dizem eles, depois, que o autor AA, enquanto accionista único e administrador da sociedade, age como terceiro, sendo o seu “papel processual” “autonomizável” do da insolvente bem como “autónomo” o seu dano (cfr. conclusões 28 a 30).

Como se verá, não é possível validar nenhum destes argumentos.

Desde logo, diga-se que, estando em causa uma sociedade declarada insolvente, o devedor a que se refere o artigo 59.º, n.º 1, do CIRE não pode deixar de ela, representada embora, a partir da declaração de insolvência, para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência, pelo administrador da insolvência (cfr. artigo 81.º, n.º 4, do CIRE).

Quanto ao autor AA, teria sido possível ele apresentar-se em posição distinta e autónoma da posição da massa insolvente e arrogar-se a titularidade de uma pretensão ou de direito ou distinto e autónomo do direito desta. A verdade é que não o fez. Bem ao contrário, dos termos em que os autores formulam o pedido e a causa de pedir resulta que se pressupôs a identidade / unidade da relação jurídica.

Como é possível ler na petição inicial, a participação do autor AA justificada com base em que, “sendo, o Autor, o único acionista da sociedade Aquaplásticos., todos os prejuízos sofridos pela Autora, são diretamente, sofridos por si”, “pois que os dividendos que a sociedade deixou de gerar, causados pelo acima referido, são dividendos que o Autor deixa de receber,pelo que, o Autor sofre os mesmos prejuízos que a Autora, assim sendo, por isso, legítimo que, juntamente com a sociedade, de que é único dono, reclame a reparação dos prejuízos que sofre, em simultâneo com a mesma” (cfr. artigos 59.º, 60.º e 61.º da p.i.).

Perpassa claramente desta formulação, não uma dualidade / pluralidade de relações jurídicas ou pretensões, mas uma unidade de relação jurídica ou pretensão – a unidade de relação jurídica ou pretensão que caracteriza a situação de litisconsórcio voluntário[1].

Significa isto, por outras palavras, que o autor AA não se apresentou nos autos como terceiro titular de uma pretensão distinta e autónoma e, não se tendo apresentado nos autos como terceiro titular de uma pretensão distinta e autónoma, não pode agora pretender que se lhe aplique (porque não deixou margem para que se lhe aplicasse), um regime diverso daquele que é aplicável à autora massa insolvente.

A situação dos autos tem de ter uma resposta unitária e esta passa pela aplicação, não do regime geral da responsabilidade civil, contido nos artigos 483.º e s. do CC, mas do regime especial previsto no artigo 59.º do CIRE. Como se sabe, existindo um regime especial aplicável, é este que deve prevalecer.

Cabe agora interpretar o regime do artigo 59.º do CIRE com o intuito de verificar se, à luz desta norma, prescreveu ou não o direito de acção que os autores pretendem exercer.


2. Do artigo 59.º do CIRE (o prazo especial de prescrição)

A norma do artigo 59.º do CIRE tem o seguinte teor:

1 - O administrador da insolvência responde pelos danos causados ao devedor e aos credores da insolvência e da massa insolvente pela inobservância culposa dos deveres que lhe incumbem; a culpa é apreciada pela diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado.

2 - O administrador da insolvência responde igualmente pelos danos causados aos credores da massa insolvente se esta for insuficiente para satisfazer integralmente os respectivos direitos e estes resultarem de acto do administrador, salvo o caso de imprevisibilidade da insuficiência da massa, tendo em conta as circunstâncias conhecidas do administrador e aquelas que ele não devia ignorar.

3 - O administrador da insolvência responde solidariamente com os seus auxiliares pelos danos causados pelos actos e omissões destes, salvo se provar que não houve culpa da sua parte ou que, mesmo com a diligência devida, se não teriam evitado os danos.

4 - A responsabilidade do administrador da insolvência prevista nos números anteriores encontra-se limitada às condutas ou omissões danosas ocorridas após a sua nomeação.

5 - A responsabilidade do administrador da insolvência prescreve no prazo de dois anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, mas nunca depois de decorrido igual período sobre a data da cessação de funções”.

Contempla-se nesta norma, como se disse, um regime especial de responsabilidade do administrador da insolvência.

A regra que está no centro da discussão é a do n.º 5 do artigo 59.º do CIRE, onde se fixa o prazo de prescrição.

O funcionamento do prazo especial do artigo 59.º, n.º 5, do CIRE pressupõe, em rigor, uma coordenação entre dois prazos.

Estabelecem-se, por um lado, o prazo de dois anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete e, por outro lado, o prazo de dois anos a contar da data da cessação de funções do administrador da insolvência[2].

Por si só, o primeiro prazo já é mais curto do que o prazo de prescrição do regime geral da responsabilidade delitual (cfr. artigo 498.º do CC), o que pode imputar-se à necessidade de garantir a estabilidade das relações jurídicas criadas e à presunção de que o conhecimento da lesão é mais rápido aqui do que na generalidade das situações[3].

O segundo é, claramente, um prazo máximo, que fixa um limite absoluto e inultrapassável ao primeiro. Quer dizer: o lesado tem até dois anos a contar da data em que teve conhecimento do direito que lhe compete para exercer o seu direito mas este direito prescreve, inapelavelmente, quando se completem dois anos sobre a data da cessação de funções do administrador da insolvência – quer dizer: seja qual for o tempo decorrido daquele primeiro prazo, ou, como dizem Carvalho Fernandes e João Labareda, “mesmo que, então, o lesado não tivesse tido ainda conhecimento do direito que lhe compete [4].

Têm os autores razão quando dizem que não resulta da factualidade provada em que momento é que tiveram conhecimento do direito que lhes assistia, não sendo, portanto, possível saber quando se iniciou o primeiro prazo. A verdade é que esse dado é dispensável uma vez que quando a presente acção foi interposta, em 25 de Março de 2018, já haviam decorrido dois anos sobre a data da cessação das funções do administrador da insolvência, em 1 de Março de 2016. Perante isto, torna-se irrelevante aferir e ponderar a data do conhecimento, dado que, nos termos acima explicados, aquele segundo prazo fixa um limite absoluto.

Os autores alegam que a data de 1 de Março de 2016 não pode ser considerada a data da cessação de funções porque, não obstante a cessação formal de funções, o réu continuou a praticar actos no processo. Sugerem, em suma, os autores que o administrador da insolvência continuou a exercer funções como administrador de facto.

Mas, analisando os actos em causa, não pode sufragar-se a tese sustentada pelos autores. Trata-se, como bem se assinala na sentença, de notificações relativas a pagamento de honorários, em que aquele réu é designado como “administrador substituído”. Ora, estes actos configuram actos naturais, previsíveis e típicos de um administrador da insolvência cessante e, se alguma coisa, apenas confirmam que a cessação de funções ocorreu anteriormente.

Contrapõem ainda os autores que o prazo de prescrição se interrompeu, em 12 de Março de 2016, com o envio, à ré seguradora, da carta registada em que reclamavam o pagamento de uma indemnização por danos causados pelo réu administrador judicial.

Mas tão-pouco é possível dar-se-lhes razão.

Dispõe-se no artigo 323.º, n.º 1, do CC:

A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o tribunal seja incompetente.

2. Se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias.

3. A anulação da citação ou notificação não impede o efeito interruptivo previsto nos números anteriores.

4. É equiparado à citação ou notificação, para efeitos deste artigo, qualquer outro meio judicial pelo qual se dê conhecimento do acto àquele contra quem o direito pode ser exercido”.

O n.º 1 é bem claro no sentido de se exigir que o acto interruptivo seja ou a citação ou a notificação judicial de um acto que exprima a intenção de exercer o direito.

Dizem Pires de Lima e Antunes Varela, “decorre claramente deste preceito que não basta o exercício extrajudicial do direito para interromper a prescrição: é necessária a prática de actos judiciais (…)[5].

Afirma também Júlio Gomes que “no nosso regime, apenas a prática de atos judiciais (…) pode operar a interrupção da prescrição. A interrupação da prescrição não ocorrerá, por exemplo, com o envio de comunicações extrajudiciais pelo credor [6].

Mesmo os actos equiparáveis à citação ou notificação, admitidos no n.º 4, pressupõem o carácter judicial, ou seja, por razões de certeza, têm de ser “atos judiciais específicos (…), não sendo suficiente a mera interpelação ou outro modo de comunicação extrajudicial [7].

Há ainda outras normas que, por enumerarem outros factos interruptivos, poderiam, em tese, ser relevantes. Veja-se os artigos 324.º e 325.º do CC, em que, respectivamente, se refere o compromisso arbitral e o reconhecimento[8]. Mas não é possível considerar, em concreto, que tenha ocorrido qualquer destes factos.

Em particular quanto ao último, não é possível dizer que a carta de resposta enviada pela ré seguradora e datada de 22 de Novembro de 2016 configure o “reconhecimento do direito, efectuado perante o respectivo titular por aquele contra quem o direito pode ser exercido” (cfr. artigo 325.º do CC). Compulsando os documentos juntos à petição inicial (cfr. doc. 23), verifica-se que, nesta carta, a ré seguradora diz: “subsistem ainda, no N. entender, sérias dúvidas relativamente ao nexo de causalidade entre os actos praticados pelo Segurado, na qualidade de administrador da insolvência, e os danos invocados por V. Exas., pelo que nesta fase não nos é possível assumir qualquer responsabilidade pelo sinistro”.

Apreciados todos os argumentos, não resta senão concluir que, seja qual for a data em que os autores tiveram conhecimento do direito que lhes competia, a acção foi proposta quando o administrador já havia cessado funções há mais de dois anos e, sendo assim, o direito que os autores pretendem fazer valer nesta acção encontra-se prescrito.



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III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.


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Custas pelos autores / recorrentes.

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Lisboa, 24 de Maio de 2022


Catarina Serra (relatora)

Rijo Ferreira

Cura Mariano

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[1] Cfr., entre outros, Antunes Varela / Miguel J. Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de processo civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1885, p. 161, e Remédio Marques, Curso de processo executivo comum à face do código revisto, Coimbra, Almedina, 2000, pp. 120-121, e José Lebre de Freitas, A acção executiva à luz do código revisto, Coimbra, Coimbra Editora, 1997, p. 113 (nota 1).
[2] No que toca ao prazo estabelecido na norma do artigo 59.º do CIRE tem-se a jurisprudência deste Supremo Tribunal concentrado na dilucidação do significado do “conhecimento do direito que lhe compete”. Veja-se o Acórdão de 6.10.2021 (Proc. 1350/17.2T8AVR.P1.S1).
[3] Cfr. Carvalho Fernandes / João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Lisboa, Quid Juris, 2015 (3.ª edição), p. 346.
[4] Cfr. Carvalho Fernandes / João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, cit., p. 346.
[5] Cfr. Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p. 290 (sublinhados dos autores).
[6] Cfr. Júlio Gomes, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2014, p. 772.
[7] Cfr., por exemplo, Rita Canas da Silva, in: Ana Prata (coord.), Código Civil Anotado, volume I, Coimbra, Almedina, 2017, p. 395.
[8] Perante o artigo 300.º do CC (que fixa a inderrogabilidade do regime da prescrição), é geralmente entendido que os únicos factos interruptivos admissíveis são os enumerados nos artigos 323.º a 325.º do CC, devendo excluir-se a admissibilidade de factos interruptivos inominados. Cfr., por exemplo, Rita Canas da Silva, in: Ana Prata (coord.), Código Civil Anotado, volume I, cit., pp. 394-395.