Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3313/09.2TBOER.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: ADMINISTRAÇÃO DA HERANÇA
OCUPAÇÃO DE IMÓVEL
BENFEITORIAS
PRIVAÇÃO DO USO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
INDEMNIZAÇÃO DE PERDAS E DANOS
ALTERAÇÃO DA CAUSA DE PEDIR
Data do Acordão: 01/22/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA / CONTRATOS EM ESPECIAL - DIREITOS REAIS / POSSE / DIREITO DE PROPRIEDADE - DIREITO DAS SUCESSÕES - PETIÇÃO DA HERANÇA / ADMINISTRAÇÃO DA HERANÇA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Indemnização do Dano da Privação do Uso, Almedina, 2001, pág. 63/64.
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 7ª edição, pág. 479/480.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 216.º, N.º1 E N.º3, 342.º, N.º1, 473.º, 1024.°, N.°2, 1045.º, 1273.º, 1305.º, 2078.°, 2079.° E 2088.°.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 690.º-A.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 23/3/1999, CJ ANO VII, TOMO I, P. 172;
-DE 26/5/2009, P.º N.º 09A0531, EM WWW.DGSI.PT;
-DE 5/3/2011, P.º N.º 2618/08.06TBOVR.P1 EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 15/3/2012, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Cabe ao possuidor que reclama indemnização pelas benfeitorias úteis o ónus da prova de que as despesas efectuadas valorizaram a coisa e que o levantamento das benfeitorias a iria deteriorar, por se tratar de factos constitutivos de tal direito (art. 342.º, n.º 1, do CC).

II - A simples falta de prova de danos concretos não deve conduzir à necessária recusa da indemnização pela privação do uso, verificados que estejam todos os restantes pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.

III - Tem ampla justificação a concessão duma indemnização ao autor baseada no facto de, sem o seu consentimento, os réus terem ocupado dois imóveis pertencentes às heranças que enquanto cabeça de casal lhe compete administrar.

IV - Enquanto a posse intitulada subsistir, os direitos plenos de uso, fruição e disposição de que o proprietário goza (art. 1305.º do CC) ficam fortemente limitados, não podendo ser exercidos na sua plenitude; estando demonstrado que os réus tinham plena consciência de que o gozo dos imóveis tinha um determinado valor, afigura-se justo e razoável quantificar o correspondente dano da privação do uso no valor locativo dos imóveis que o autor logrou provar.

V - Se se entender não haver lugar à aplicação do regime da responsabilidade civil (arts. 483.º e segs. do CC) por não existir, em concreto, um dano reparável inerente à privação do uso, justifica-se o apelo ao instituto do enriquecimento sem causa.

VI - Nada impede que na falta do dano reparável se ordene a restituição do enriquecimento verificado, considerando, por um lado, que isso não envolve infracção do disposto no art. 664.º do CPC e, por outro, que assim se obedece à determinação legal acerca da natureza subsidiária da obrigação fundada neste instituto.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Resumo dos termos essenciais da causa e do recurso

AA   propôs  uma   acção   ordinária  contra  BB, CC, DD e EE, pedindo a declaração de ineficácia de dois contratos de arrendamento celebrados pela primeira ré com cada um dos co-réus e a consequente condenação dos locatários a entregar as fracções arrendadas, pagando cada um deles a indemnização de  38.000,00 € a título de compensação pela privação do uso e ocupação ilegítima dos prédios arrendados.

Alegou em que é cabeça de casal das heranças indivisas de FF e de GG, das quais fazem parte os imóveis em causa no processo, arrendados, um até Abril de 1999 e outro até Abril de 2001.

Em 4/6/01 a ré BB remeteu uma carta aos herdeiros da herança de FF e AA e sua tia GG na qual informava que os seus filhos - os réus CC e EE - iriam ocupar os R/C dos n°s ..., em Oeiras, o que sucedeu a partir de Junho de 2001.

A Ré BB não obteve consentimento na ocupação, nem dos restantes herdeiros nem da proprietária GG (que só veio a falecer em 5/6/02), os quais lhe transmitiram essa oposição e exigiram a restituição, recusada pelos réus sob a invocação de ocuparem o prédio a coberto de contrato de arrendamento celebrado por sua mãe, BB.

Contra a vontade dos herdeiros, os réus utilizaram os imóveis nas condições descritas até início de 2008.

E apesar de terem deixado de ali residir a partir de 2008, nunca fizeram entrega das chaves, impossibilitando à herança a administração dos imóveis e o seu consequente arrendamento, que permitiria auferir uma renda não inferior a 400 euros/mês por cada um dos prédios.

Contestaram os réus, invocando as excepções de litispendência e de ilegitimidade activa e dizendo, quanto ao fundo da causa, que os andares se encontravam devolutos e não havia qualquer intenção dos herdeiros de os arrendar a terceiros.

Foi nesse contexto que a ré BB, também herdeira, celebrou promessas de arrendamento a favor de seus filhos, dizendo todavia que os restantes herdeiros rejeitaram liminarmente a convocação de uma reunião para fixação do valor da renda.

Pediram a improcedência da acção e, em reconvenção, a condenação da herança a pagar-lhes   a  quantia  de   15.000,00  €,   correspondente   ao  valor  das  benfeitorias necessárias que levaram a efeito nos imóveis, requerendo ainda a intervenção dos restantes herdeiros como associados do autor.

O autor replicou, defendendo a improcedência das excepções e da reconvenção deduzida, bem como o indeferimento da intervenção suscitada.

Por despacho de fls 162 foi deferido o chamamento das heranças indivisas de FFe GG.

No saneador, além do mais, julgaram-se improcedentes as excepções de litispendência e de ilegitimidade.

Realizado o julgamento e estabelecidos os factos foi proferida sentença que, julgando parcialmente   procedentes   a   acção   e   a   reconvenção,   declarou   a   ineficácia   dos arrendamentos   celebrados   entre   os   réus,   condenando-os   a   restituir   à   herança representada pelo autor as fracções em causa, e esta, por seu turno, a pagar-lhes quantia a liquidar em ulterior incidente pelas obras  (discriminadas na sentença) realizadas nos imóveis.

Os autores apelaram.

Por acórdão de 3/7/12 a Relação de Lisboa julgou parcialmente procedente a apelação e, consequentemente:

a) Condenou os réus CC e marido e o réu EE a pagar a quantia de 400,00 €/mês pela privação do uso atinente a cada um dos andares por eles ocupados, desde 5/1/01 até à sua efectiva entrega, livres de pessoas e bens.

b) Condenou a herança representada pelo autor a pagar aos reconvintes CC e marido o valor actual das obras referentes à remodelação integral das canalizações de água e esgotos, incluída a instalação da canalização de água quente, a apurar em incidente de liquidação.

c) No mais, confirmou a sentença.

Agora são os réus que, inconformados, pedem revista, defendendo a reposição da sentença com base nas seguintes - e resumidas - conclusões úteis:

- Porque o pedido de condenação dos réus numa indemnização assenta no facto de a herança ter alegadamente deixado de receber quantias pelo arrendamento a terceiros cabia ao autor, segundo as regras do ónus da prova, alegar e provar que a herança quis arrendar os imóveis e não conseguiu fazê-lo por culpa dos réus;

2ª - O "direito da herança" é o de todos e cada um dos herdeiros; por isso, inexistindo consenso, como ficou provado, quanto ao arrendamento dos imóveis - pelo contrário, pretendem vê-lo livre de arrendatários para demolir e construir prédios novos - não há prejuízo, contrariamente ao que foi decidido no acórdão recorrido;

3ª - E não havendo prejuízo, impõe-se a absolvição dos réus do pedido;

4ª - O autor não alegou nem provou que as obras tenham sido efectuadas pelos réus sem autorização dos herdeiros e que não tenham valorizado o imóvel;

5ª - Ao decidir pela redução das obras pelas quais os réus devem ser indemnizados o acórdão recorrido fez errada interpretação e aplicação do art.º 1273° CC.

Os recorridos contra alegaram, defendendo a confirmação do julgado.

II. Fundamentação

a) Matéria de Facto

De entre os factos que o acórdão recorrido julgou definitivamente assentes, e para os quais se remete, nos termos do art° 713°, n° 6, CPC, destacamos os seguintes, com relevo para a apreciação do recurso:

1) Encontra-se descrito na Ia CRP de Oeiras com o n° ... o prédio denominado "Vivenda ..." situado no n° ..., onde em 23/5/41 foi inscrita a aquisição por Partilha a favor de HH, viúva, e GG.

2) Em 20/9/84 foi inscrita na descrição supra a aquisição de metade, sem determinação de parte ou direito, por sucessão e dissolução da comunhão conjugal, a favor de : FF (casada (...) no regime de Separação de Bens); GG (solteira, maior); II (viúva); JJ (casado (...) no regime da separação de bens); KK (casada (...) no regime de separação de bens); LL (casado (...) no regime da separação de bens); MM (viúva); NN (casado com OO no regime de comunhão de adquiridos); e BB (casada com PP no regime de comunhão geral).

3) Encontra-se descrito na CRP de Oeiras com o n° ... o prédio denominado "Vivenda ..." situado no n° ..., onde em 23/5/41 foi inscrita a aquisição por Partilha a favor de HH, viúva, e GG.

4) Em 5/6/01 os réus BB, na qualidade de herdeira da herança indivisa de HH e de FF, e CC, na qualidade de arrendatária, assinaram o CONTRATO DE  ARRENDAMENTO  PARA  HABITAÇÃO  EM  REGIME   DE  RENDA  LIVRE relativo ao R/C Esq. do prédio referido em 1), junto a fls. 48/49 e 111/112, onde se lê que: "(...) Cláusula Terceira: A renda anual será fixada através de comunicação dos herdeiros em reunião para tal convocada e será pagável pela segunda contraente em duodécimos, anualmente actualizada".

5) Em 5/6/01 os réus BB , na qualidade de herdeira da herança indivisa de HH e de FF, e EE, na qualidade de arrendatário, assinaram o CONTRATO DE ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO EM REGIME DE RENDA LIVRE relativo ao R/C Dt° do prédio referido em 1), junto a fls 117/118, onde se lê que:"

(...) Cláusula Terceira: A renda anual será fixada através de comunicação dos herdeiros em reunião para tal convocada e será pagável pela segunda contraente em duodécimos, anualmente actualizada".

6) Os réus EE e CC (esta casada com o réu DD), são filhos de PPl e de BB.

7) Em 30/11/05 o autor AA prestou declarações como cabeça de casal das heranças abertas por óbitos de FFe GG no processo de inventário 11448/05 (que corre termos pelo 1º Juízo Cível do Tribunal de Oeiras).

8) Em 19/12/05 foi inscrita na descrição referida em 1) a aquisição de ½ (por Partilha de HH) a favor de GG.

9) Em 19/12/05 foi inscrita na descrição referida em 3) a aquisição de ½ (por sucessão e partilha de HH), a favor de FF.

10) Os réus CC e EE nunca pagaram quaisquer quantias, a título de rendas, pela ocupação dos prédios identificados em 1) e 3).

11) Os réus CC e EE não entregaram ao autor as chaves dos prédios identificados em 1) e 3).

12) O R/C da vivenda ... (prédio identificado em 1) esteve ocupado mediante contrapartida monetária mensal até Abril de 2001, data em que ficou vazio de pessoas e bens.

13) Em 5/6/01 a ré CC passou a ocupar o R/C da vivenda ... sem autorização de GG.

14) Em 5/6/01 o réu EE passou a ocupar o R/C da vivenda ... sem autorização de GG;

15) O valor da renda mensal de cada um dos R/C não seria inferior a 400,00 €.

16) O autor nunca informou os réus da existência de interessados no arrendamento dos prédios identificados em 1) e 3) e nunca lhes pediu as chaves desses prédios.

17) A ré CC despendeu 7.000,00 € em obras no rés-do-chão esquerdo do prédio referido em 1) referentes a remodelação integral das canalizações de água e esgotos, instalando pela primeira vez canalização de água quente, substituição das louças sanitárias, mosaicos e azulejos da casa de banho, substituição dos armários bancadas e lava-louças da cozinha e remodelação da chaminé, afagamento dos pavimentos em madeira com acabamento protector, reparação e tratamento das caixilharias, janelas e portas e pintura geral de todas as divisões após prévio tratamento das paredes e tectos.

b) Matéria de Direito

É já ponto assente no processo e nesta fase indiscutido que os imóveis ajuizados pertencem às heranças abertas por morte de FF e GG, de que o autor é cabeça de casal. E também se encontra decidido com trânsito em julgado que,  cabendo-lhe  legalmente  administrá-las  até  à respectiva liquidação e partilha, assiste-lhe o direito de exigir a restituição porquanto não autorizou os arrendamentos celebrados entre a ré BB (co-herdeira) e os réus, seus filhos, CC e EE, arrendamentos estes que são nulos (art°s 1024°, n° 2, 2078°, 2079° e 2088° CC).

Assim, sobram duas questões para resolver na presente revista, a saber:

- Indemnização dos réus/reconvintes pelas benfeitorias;

- Indemnização dos autores pela privação do uso.

a) Quanto à primeira ainda é possível delimitá-la com mais precisão e dizer que as partes aceitam que os réus devem ser indemnizados pelas benfeitorias realizadas nos prédios. Deste modo, o que ainda está em aberto é somente o conteúdo (extensão) desse dever e do correspondente direito. Na verdade, enquanto que a sentença considerou dever a herança representada pelo autor pagar à ré CC o valor correspondente a todas as obras descritas no ponto 17) da matéria de facto, a Relação decidiu circunscrever tal obrigação às obras “referentes a remodelação integral das canalizações de água e esgotos, incluída a instalação da canalização de água quente”.

O art° 1273° CC dispõe:

1- Tanto o possuidor de boa fé como o de má fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito, e bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento dela.

2- Quando, para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das benfeitorias, satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa.

Consideram-se benfeitorias todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa (art.º 216°, n° 1, CC).

Benfeitorias  necessárias  são  as  que  têm  por  fim evitar  a perda,  destruição  ou deterioração da coisa; úteis as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam, todavia, o valor; e voluptuárias as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação nem lhe aumentando o valor, servem apenas para recreio do benfeitorizante (art° 216°, n° 3, CC).

Ora, não há dúvida de que cabe ao possuidor que reclama indemnização pelas benfeitorias úteis o ónus da prova de que as despesas efectuadas valorizaram a coisa e que o  levantamento  das  benfeitorias  a iria deteriorar;  e  isto  porque  os  factos correspondentes são constitutivos de tal direito (art° 342°, n° 1, CC).

Os réus, porém, limitaram-se a alegar nos seus articulados, conclusivamente, que as obras feitas foram necessárias e urgentes: não especificaram nem concretizaram quais as que poderiam ser levantadas sem detrimento do imóvel. Por consequência, pressupondo a indemnização relativa à “substituição das louças sanitárias, mosaicos e azulejos da casa de banho, substituição dos armários, bancadas e lava louças da cozinha e remodelação da chaminé”, como bem se observa no acórdão recorrido, a alegação e prova de que tais obras aumentaram o valor da habitação e não correspondem apenas a uma opção estética da ocupante, mostra-se acertada a decisão recorrida quando restringiu o direito dos reconvintes nos termos que acima se puseram em evidência.

Por outro lado, não se sabe se as obras acabadas de referir representam actualmente um valor acrescido para o imóvel, pois os recorrentes não alegaram em tempo oportuno os factos concretos necessários para se poder tirar semelhante conclusão.

Significa isto que está certa a ilação retirada pela Relação no sentido de que só as obras “referentes a remodelação integral das canalizações de água e esgotos, incluída a instalação da canalização de água quente” podem ser consideradas benfeitorias úteis e, consequentemente, indemnizáveis, já que valorizaram o imóvel, beneficiando “a sua estrutura matricial e fundante”, como se afirma no acórdão do STJ de 15/3/2012[1].

O acórdão recorrido, portanto, contrariamente ao alegado, interpretou e aplicou correctamente o art° 1273° CC.

b) Quanto à segunda questão, na sentença entendeu-se que não havia lugar a indemnização dado que, por um lado, não se provou que a herança deixou de receber quaisquer quantias referentes às rendas e, por outro, provou-se que os restantes herdeiros (além do autor) não tinham, ou têm, intenção de arrendar os imóveis a terceiros. A Relação, por seu turno, depois de ter eliminado este ponto de facto na sequência da impugnação feita pelo autor em conformidade com o art° 690°-A, CPC, considerou que a compensação é devida, baseando-se, para tanto, nos seguintes argumentos, em resumo: 1º) Não é aceitável que, tendo a herança ficado impossibilitada de rentabilizar os imóveis enquanto a ocupação perdurou, seja ainda obrigada a indemnizar por obras efectuadas na sequência de uma ocupação não autorizada; 2º) Num caso como o presente, a simples privação do uso normal do bem é suficiente para justificar a concessão de uma indemnização; e isto porque então ela “não representa uma reacção punitiva contra a ocupação levada a efeito pelos réus, pois se estes sempre pugnaram, sem sucesso, que lhes fosse fixada renda, como poderiam agora sustentar que nada têm a pagar por uma utilização que nunca lhes foi autorizada por quem era dona dos bens (GG), ou detinha a administração das heranças (o cabeça de casal, AA)?”; 3º) O parâmetro que melhor se ajusta à situação ajuizada é valor locativo provado - 400 € - por ser a contrapartida exacta do valor de uso de um dos andares de que a herança ficou privada.

O entendimento que adoptámos acerca desta questão está resumido, no essencial, no sumário do acórdão desta conferência que a seguir se indica (Revª 2618/08.06TBOVR.P1, de 5/3/2011)[2]:

I) - A privação do uso de uma coisa pode constituir um ilícito gerador da obrigação de indemnizar, uma vez que impede o seu dono do exercício dos direitos inerentes à propriedade, isto é, de usar, fruir e dispor do bem, nos termos genericamente consentidos pelo art° 1305.° do CC.

II) - Não é suficiente, todavia, a simples privação em si mesma: torna-se necessário que o lesado alegue e prove que a detenção ilícita da coisa por outrem frustrou um propósito real - concreto e efectivo - de proceder à sua utilização.

III) - A privação do uso é condição necessária, mas não suficiente, da existência de um dano correspondente a essa realidade de facto.

IV) - Tendo o autor demonstrado que usava o veículo sinistrado no apoio à actividade de construção civil a que se dedica, bem como nas suas deslocações diárias e de lazer, tal mostra-se suficiente para justificar a atribuição duma indemnização a título de privação do uso.

V) - O que na essência define o dano da privação do uso, independentemente de outros prejuízos concretos que possam alegar-se e provar-se associados a essa ocorrência (danos emergentes e lucros cessantes), é a impossibilidade de usar a coisa por virtude da conduta ilícita do lesante, e enquanto essa impossibilidade subsistir.

VI) - A avaliação do dano em causa, se outro critério não puder ser adoptado, será determinada pela equidade, dentro dos limites do que for provado, nos termos estabelecidos no art° 566.°, n.° 3, do CC.

Não vemos nenhuma razão substancial para alterar a posição assim expressa quanto ao problema, o que não quer dizer que não devamos ter sempre bem presente em cada caso concreto as circunstâncias específicas que o distinguem, por forma a fazer uma aplicação da lei tão justa quanto possível. Com isto queremos significar que a simples falta de prova de danos concretos não deve levar de modo necessário à recusa da indemnização pela privação do uso, verificados que estejam todos os restantes pressupostos da responsabilidade civil extra contratual (facto ilícito, nexo causal e culpa). Estamos de inteiro acordo com Abrantes Geraldes quando afirma a dado passo do seu trabalho[3] dedicado a este assunto o seguinte: "Exigem frequentemente os tribunais aquilo que, em termos de razoabilidade, não é exigível ou não ê materialmente comprovável. Ou elevam a tal nível a fasquia em matéria de formação da convicção que o ónus da prova se transfigura em prova diabólica, deixando por reconhecer situações que o senso comum francamente admite. Em suma, parte-se da excepção para afirmar a regra. Pretende-se que determinadas actuações ou intenções que a experiência revela serem excepcionais sirvam para integrar os comportamentos regra. Olvida-se, além do mais, que, recaindo sobre o credor o ónus da prova da ocorrência dos danos, a lei não trata com total indiferença o devedor, onerando-o com a prova dos factos impeditivos ou com a contraprova de factos susceptíveis de gerar uma situação de dúvida (art°s 342°, n° 2, e 346° CC). Por detrás deste "manto diáfano da fantasia", a verdade que se evidencia quando os tribunais, como a sociedade o exige, se pautam por critérios de normalidade, revela-nos que, por regra, não é indiferente que um bem entre na posse efectiva do adquirente na data acertada ou apenas 2 ou 5 anos depois, tal como não é inócuo que a aquisição do direito de propriedade, acompanhado da fruição, se concretize na data ajustada ou muito mais tarde ..... É a esta normalidade da vida que deve atender-se quando se trata de apreciar as situações, em vez de aferir o critério valorativo a partir de situações excepcionais, supondo, por exemplo, sem a necessária confirmação, que o proprietário, ao assumir a vontade de adquirir, pretendeu tão só aumentar o seu património imobilizado ou alcançar mais valias unicamente derivadas da valorização do imóvel".

Transpondo as ideias expostas para o caso presente, entendemos que tem ampla justificação a concessão duma indemnização ao autor baseada no facto de sem o seu consentimento os réus terem ocupado ilicitamente dois imóveis pertencentes às heranças que enquanto cabeça de casal lhe compete administrar. É inquestionável que, enquanto a posse intitulada subsistir, os direitos plenos de uso, fruição e disposição de que o proprietário goza, nos termos do art° 1305° CC, ficam fortemente limitados, não podendo ser exercidos na sua plenitude; e estando demonstrado que os réus tinham plena consciência de que o gozo dos imóveis tinha um determinado valor (tanto assim que, celebrando os contratos de arrendamento, se dispuseram a pagar uma renda), afigura-se justo e razoável quantificar o correspondente dano da privação do uso no valor locativo dos imóveis que o autor logrou provar. Se a lei expressamente reconhece ao senhorio o direito a indemnização pelo atraso na restituição da coisa, findo o contrato, mesmo que em concreto nenhum dano se comprove – art.º 1045° CC - indemnização essa que tem por base o valor da renda estipulada, nenhuma razão se vislumbra para que num caso essencialmente análogo como é o presente não se proceda de igual modo; efectivamente o “atraso na restituição da coisa” é aqui a “ocupação ilícita”, conduta cuja antijuridicidade se apresenta tão ou mais evidente do que naquela disposição legal.

De qualquer modo, ainda que se entenda não haver lugar à aplicação do regime da responsabilidade civil - art°s 483° e sgs CC - por não existir, em concreto, um dano reparável inerente à privação do uso, justifica-se o apelo ao instituto do enriquecimento sem causa. E isto porque a situação ajuizada configura claramente uma hipótese de enriquecimento por intervenção, mais precisamente de intromissão em bens e direitos alheios, na qual o intrometido obteve uma vantagem patrimonial à custa do respectivo titular, que deve restituir porque não tem causa justificativa (art° 473° CC). Como ensina Antunes Varela[4] "os direitos reais e direitos absolutos afins reservam para o respectivo titular o aproveitamento económico dos bens correspondentes, expresso nas vantagens provenientes do seu uso, fruição, consumo ou alienação. Tudo quanto estes bens sejam capazes de render ou produzir pertence, em princípio, de acordo com o conteúdo da destinação ou afectação (Zuweisungsgehalt) da tais direitos, ao respectivo titular. A pessoa que, intrometendo-se nos bens jurídicos alheios, obtém uma vantagem patrimonial, obtém-na a custa do titular do respectivo direito, mesmo que este não estivesse disposto a realizar os actos donde a vantagem procede. A aquisição feita pelo intrometido carece de causa porque, segundo a tal correcta ordenação jurídica dos bens, a vantagem patrimonial alcançada pelo enriquecido pertence a outra pessoa - ao titular do direito. Trata-se de uma vantagem que estava reservada ao titular do direito segundo o conteúdo da destinação desse direito”. Nada impede que na falta de dano reparável se ordene a restituição do enriquecimento verificado, considerando, por um lado, que isso não envolve infracção do disposto no art° 664° CPC (alteração da causa de pedir) e, por outro, que assim se obedece à determinação legal acerca da natureza subsidiária da obrigação fundada neste instituto. Este STJ já decidiu no sentido exposto em mais do que uma ocasião. Assim, por exemplo, no acórdão de 23/3/99 (CJ Ano VII, tomo I, pág. 172) e no acórdão de 26/5/09 – Revª 09A0531 (cujo texto completo consta de www.dgsi.pt).

Improcedem, assim, ou mostram-se deslocadas todas as conclusões do recurso.

III. Decisão

Nos termos expostos, acorda-se em negar a revista.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 22 de Janeiro de 2013

Nuno Cameira (relator)

Sousa Leite

Salreta Pereira

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[1] O texto integral deste acórdão encontra-se www.dgsi.pt
[2] O texto integral deste acórdão encontra-se www.dgsi.pt

[3] Indemnização do Dano da Privação do Uso, Almedina, 2001, pág. 63/64.
[4] Das Obrigações em Geral, I, 7ª edição, pág. 479/480.