Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A3954
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
DIREITO COMUNITÁRIO
TRANSPOSIÇÃO DE DIRECTIVA COMUNITÁRIA
OMISSÃO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
Nº do Documento: SJ200711270039546
Data do Acordão: 11/27/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I – A Jurisprudência portuguesa dominante, quando chamada a pronunciar-se sobre a questão da revogação tácita do art. 508º, nº1, pelo art. 6º do DL. 522/85, pronunciou-se no sentido dessa não revogação e, do mesmo passo considerou, na generalidade, que a 2ª Directiva, por não ter sido transposta para o direito interno português não podia ser invocada como fonte de direito.

II – O Estado deveria ter transposto a 2ª Directiva até 31.12.1995 e só o fez através do DL.59/2004, de 19.3.

III – Incumbia ao Estado – para quem entende que as Directivas não são imediatamente aplicáveis – proceder à rápida transposição – sob pena de violação do princípio da igualdade – art. 13º da CRP – e da tutela efectiva e acesso ao direito – art. 20º da Lei Fundamental.

IV – Os Estados-membros estão obrigados a reparar os prejuízos causados às partes pela violação do direito comunitário e essa violação pode resultar da não aplicação na ordem jurídica interna das normas e princípios comunitários – por omissão – ou quando desrespeite Acórdãos do TJCE.

V – A responsabilidade assacada ao Estado resulta de um comportamento omissivo violador do Tratado, omissão que é ético-juridicamente censurável, o que exprime culpa.

VI – Tratando-se de responsabilidade civil extracontratual aquela que os AA. pretendem actuar com a acção, alegaram e provaram factos integradores da causa de pedir, no caso: o facto ilícito, a culpa, o dano, e o nexo de causalidade entre o facto e o dano – art. 483º do Código Civil e arts. 2º e 6º do DL. 48.051, de 21.11.1967 – pelo que a condenação do Réu Estado não merece censura.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA
BB,
CC,
DD,
EE,
FF
GG
HH, e
II.

Intentaram, em 2.5.2003, pelo Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, [que se declarou incompetente em razão da matéria], vindo os autos a tramitar pelo 2° Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Póvoa de Varzim, acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário, contra:

Estado Português.

Pedem:

a) Que o Estado Português seja declarado responsável pela omissão da transposição da Directiva 84/5/CEE, de 30 de Dezembro de 1983, para a ordem jurídica interna;

b) Que o Estado Português seja condenado a pagar aos autores a quantia de € 73.378,91, juros vencidos no valor de € 21.198,91, e vincendos, à taxa legal, até ao integral pagamento resultante do prejuízo sofrido pela não transposição da Directiva em crise;
c) Liquidação em execução de sentença do valor das custas indevidamente aplicada que resultaram do decaimento da acção.

Alegam, em síntese:

- os autores são os filhos de R...F..., falecida no estado de viúva em 24 de Março de 1998 e, consequentemente, os seus únicos e universais herdeiros;

- a mãe dos autores faleceu em consequência das lesões sofridas no acidente de viação constante da acção ordinária nº104/99, que correu os seus termos pelo Tribunal de Círculo de Vila do Conde;

- realizado o julgamento, foi proferida sentença em 14 de Março (por lapso referiu-se Maio) de 2001, que quantificou todos os danos sofridos pelos autores em resultado da morte de sua mãe no valor de 18.711.150$00, sendo certo que sobre essa quantia incidiam juros de mora às taxas legais em vigor desde a citação até efectivo pagamento;

- porém, no mesmo libelo resulta que os autores não conseguiram provar a culpa do condutor do veículo que atropelou mortalmente a sua mãe e apenas condenou a ré Companhia de Seguros, “Mundial Confiança, S.A.”, responsável civil pelo veículo lesante com base na responsabilidade objectiva e com fundamento no disposto no artigo 508°, nº1, do Código Civil, pelo que a indemnização atribuída aos autores foi reduzida a 4.000.000$00;

- não se conformando com a citada sentença, os autores apelaram para o Tribunal da Relação do Porto, em recurso que correu os seus termos com o nº1/2002, pela 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto, onde foi proferido Acórdão, em 4 de Fevereiro de 2002, que decidiu pela improcedência do recurso, confirmando a sentença da 1ª instância;

- de novo inconformados, os autores interpuseram recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo nas suas alegações defendido junto daquele Tribunal a matéria constante das “Conclusões”;

- da cláusula segunda das citadas “Conclusões”, os autores defenderam que não deve haver lugar à limitação do montante da indemnização devida pela responsabilidade pelo risco, tal como ainda prescreve o artigo 508°, nº1, do Código Civil, pois a aludida Directiva Comunitária é directamente aplicável a nossa ordem jurídica;

- efectivamente, à data do sinistro, 24 de Março de 1998, o capital mínimo obrigatoriamente seguro resultante da conjugação dos Decretos-Lei nº522/85, de 31 de Dezembro, e 3/96, de 25 de Janeiro era, de harmonia com o artigo 6°, nº1, do valor de 120.000.000$00, concluindo que o artigo 508°, nº1, do Código Civil Português se encontra tacitamente revogado pelo citado artigo 6°, nomeadamente pela redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei nº3/96, de 25 de Janeiro;

- o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça sobre a matéria em crise decidiu, no seu nº2, no sentido de que a Directiva não influencia a vigência do artigo 508° do Código Civil, nem a sua interpretação, pelo que confirmou o Acórdão da Relação do Porto, por decisão de 5 de Novembro de 2002, transitada em julgado em 21 do mesmo mês;

- os autores percorreram todas as instâncias cíveis portuguesas, tendo obtido decisões que negaram a aplicação da Directiva em crise, o que resultou em que, em vez de terem recebido 18.711.150$00 e respectivos juros, conforme sentença da 1ª instância, apenas foram indemnizados com o capital de 4.000.000$00, acrescidos de juros;

- assim, os autores deixaram de receber a quantia de 14.711.150$00, bem como os respectivos juros a que teriam e têm direito, e que deverão ser contados desde a citação da ré Companhia de Seguros, em 23 de Março de 1999, até ao seu efectivo recebimento, à taxa legal;

- acresce à presente situação que os autores foram condenados em custas proporcionais no seu decaimento e das quais ainda não se conhece o valor final, dado o tribunal competente ainda as não ter contado, pelo que, desde já, requereram que as mesmas sejam liquidadas em execução de sentença.

Contestando a acção, o Magistrado do Ministério Público, em representação do Estado Português, aceitou, no essencial, os factos alegados pelos autores sob os artigos 1º a 8° e 10° da petição inicial, com a correcção de que a douta sentença proferida pelo Tribunal de Círculo de Vila do Conde o foi em 14 de Março de 2001 e não em 14 de Maio de 2001, como é alegado no artigo 3º da petição inicial.

Por excepção, apresentou a seguinte defesa:

- a transposição de directivas comunitárias para o nosso direito faz-se por meio de Lei ou de Decreto-Lei, consoante as matérias, sendo a sua comissão ou omissão actos inequivocamente legislativos, pelo que a presente acção, atenta a sua causa de pedir, está expressamente excluída da jurisdição administrativa, devendo o Tribunal Administrativo ser julgado incompetente em razão da matéria e, em consequência, absolvido o réu da instância.

No mais, sustentou que a questão da presente acção respeita apenas a matéria de direito, concluindo, para além do mais, pela não verificação dos requisitos da responsabilidade civil do Estado por actos ilícitos de gestão pública, nos termos do artigo 2° do Decreto-Lei nº48051, de 21 de Novembro de 1967, pugnando pela absolvição do réu, logo no despacho saneador.

Houve réplica, pugnando-se pela improcedência da excepção de incompetência suscitada.

A fls. 82 a 86 decidiu-se pela procedência da excepção dilatória da incompetência em razão da matéria, com a absolvição do réu da instância.

Remetidos os autos ao Tribunal Judicial da Comarca da Póvoa de Varzim, foi proferida, a fls. 101 ss, decisão a absolver o réu da instância, agora por ineptidão da petição inicial.

Houve recurso desta decisão, tendo a Relação, por Acórdão de fls. 149 ss, decidido anular a decisão que absolveu o réu da instância e ordenado a baixa dos autos à 1ª instância a fim de ser “devidamente fundamentada a decisão no que toca à matéria de facto”.

Assim aconteceu pela decisão de fls. 164 ss, que acabou por, de novo, declarar inepta a petição inicial e absolver o réu da instância.

Desta decisão houve recurso de agravo, tendo a Relação do Porto, por Acórdão de fls. 210 ss, dado provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido e ordenando que o processo prosseguisse os seus regulares trâmites (fls. 220).

Agora é o Tribunal da Póvoa de Varzim a decidir pela sua incompetência em razão da matéria para conhecer da causa, tendo, como tal, absolvido o réu da instância (fls. 226 a 232).

Desta decisão há (novo) recurso de agravo (fls. 238).

Por Acórdão de fls. 260 e segs., a Relação do Porto concedeu provimento ao agravo, revogando a decisão recorrida e julgando competente o tribunal recorrido para o conhecimento da causa.
***

Remetidos (de novo) os autos ao Tribunal da Póvoa de Varzim, foi dispensada audiência preliminar e proferida decisão de mérito, julgando a acção improcedente e, em consequência, absolveu o Réu Estado Português, do pedido.

***

Os Autores recorreram para o Tribunal da Relação do Porto que, por Acórdão de 24.5.2007, julgou procedente a apelação e revogou a sentença recorrida, julgando-se a acção totalmente procedente, em função do que se condenou o Estado Português a pagar aos Autores a quantia de 14.711.150$00 (73.378,91€, setenta e três mil trezentos e setenta e oito euros e noventa e um cêntimos) acrescida dos juros legais em vigor, desde a data da citação na acção da 1ª instância onde lhe foram aplicados os limites do nº1 do art. 508º do Código Civil, até efectivo e integral pagamento.

***

Inconformado recorreu o Ex.mo Magistrado do Ministério Público que, alegando, formulou as seguintes conclusões:

A) Em cumprimento do determinado pela Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho, de 30.12.1983, Portugal alterou em tempo as suas disposições legais nacionais;

B) Com a alteração dos montantes globais mínimos para danos corporais e materiais por sinistro pelos quais o seguro é obrigatório, e com a revogação tácita do nº1 do art. 508° do Código Civil (operada pelo art. 6.° do D.L nº522/85, de 3 1/12, na redacção dada pelo DL nº3/96, de 25/1), foi completa e correctamente transposta, para o direito Nacional, aquela Segunda Directiva;

C) Interpretação diferente constitui erro de julgamento;

D) Não se verifica conduta omissiva por parte do Estado Português, nem se verificam as condições — referidas pela jurisprudência do Tribunal de Justiça –, para que o Estado possa ser responsabilizado pela reparação dos prejuízos peticionados.

E) O acórdão recorrido violou as disposições dos artigos 22° da CRP, e 483° do Código Civil.

Nestes termos, dando provimento ao recurso e revogando o Acórdão recorrido farão Justiça.

Os AA. contra-alegaram, pugnando pela confirmação do Acórdão.
***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta a seguinte matéria de facto:

1) - Os autores, AA, BB, CC, DD, EE, FF GG HH e II, são os filhos de R...F..., falecida no estado de viúva em 24 de Março de 1998.

2) - A mãe dos autores faleceu em consequência das lesões sofridas no sinistro que motivou a instauração da acção declarativa de condenação com forma de processo ordinário, para efectivação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, que, com o n.° 104/99, correu os seus termos pelo Tribunal de Círculo de Vila do Conde, movida pelos ora AA. contra a Companhia de Seguros “Mundial Confiança, S.A.”.

3) - Realizado o julgamento, foi proferida sentença em 14 de Março de 2001, que quantificou todos os danos sofridos pelos autores em resultado da morte de sua mãe no valor de 18.711.150$00, sendo certo que sobre essa quantia incidiam juros de mora às taxas legais em vigor desde a citação até efectivo pagamento.

4) - Como resulta da mesma sentença, não ficou apurada a culpa na produção do acidente, condenando-se, por isso, a ré Companhia de Seguros, “Mundial Confiança, S.A.”, com base na responsabilidade objectiva.

5) - Assim, a indemnização atribuída aos autores foi, nos termos do artigo 508°, n°1 do Código Civil conjugado com o disposto no n°21° da Lei n°38/87, de 23-12, reduzida a 4.000.000$00.

6) - Os autores apelaram para o Tribunal da Relação do Porto, em recurso que correu os seus termos com o nº1/2002, pela 5a secção do Tribunal da Relação do Porto, onde foi proferido Acórdão em 4 de Fevereiro de 2002, que decidiu pela improcedência do recurso.

7) - Os autores interpuseram recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo nas suas alegações defendido junto daquele Tribunal a matéria constante das respectivas “Conclusões”.

8) - Na segunda de tais “Conclusões”, os AA. defenderam que a instância devia ser suspensa até ao recebimento do Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, sobre o Processo de Reenvio Prejudicial que o S.T.J. deverá requerer, a fim de se conhecer se os artigos 1°, n°2, e 5°, n°3 da Directiva n°84/5/CEE obstam à existência de uma legislação nacional que prevê montantes máximos de indemnização inferiores aos montantes mínimos de garantia fixadas por estes artigos quando só estiver em causa a responsabilidade pelo risco e aplicá-lo aos presentes autos.

9) - O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça sobre a matéria em crise nessa 2ª questão decidiu não suspender a instância, dizendo que não tinha cabimento a abertura de um recurso prejudicial para o Tribunal da Comunidade, por entender que a Directiva não influencia a vigência do artigo 508° do Código Civil nem a sua interpretação.

10) - Apreciadas as demais questões suscitadas no recurso, o Supremo Tribunal de Justiça, por decisão de 5 de Novembro de 2002, confirmou o Acórdão da Relação do Porto.

11) - Vêm por esta acção os autores lograr obter seja declarado que o Réu (Estado Português) é responsável pela omissão da transposição da Directiva 84/5/CEE, de 30 de Dezembro de 1983, para a ordem jurídica interna, e, por isso, seja condenado a pagar-lhes, designadamente, a quantia de € 73.378,91 correspondente à diferença entre os “4.000.000$00” em que a ré foi condenada na aludida sentença e os total dos danos por si sofridos em resultado da morte de sua mãe (no aludido valor de “18.711.150$00”).

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso, afora as questões de conhecimento oficioso, importa saber se o Estado incorreu em responsabilidade civil extracontratual pelo facto de não ter transposto atempadamente, a Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho de 30.12.1983, relativa ao seguro automóvel.

Os AA. depois de longamente pelejarem nos Tribunais obtiveram uma sentença que condenou o Estado.

Factualmente podemos sintetizar assim:

- em 24.3.1998 a mãe dos AA. foi vítima mortal de um acidente de viação;

- por sentença de 14.3.2002 o Tribunal da causa considerou que os danos indemnizáveis ascendiam a 18.711.150$00;

- todavia, porque se condenou com fundamento na responsabilidade objectiva do condutor segurado da Ré (seguradora na acção), por aplicação do art. 508º, nº1, do Código Civil, na redacção ao tempo vigente, normativo conjugado com o art. 21º da Lei 38/87, de 23.12, a indemnização foi reduzida para 4.000 contos na velha moeda;

- os AA. recorreram para o Tribunal da Relação do Porto que por Acórdão de 4.2.2002 negou provimento ao recurso;

- os AA. recorreram para este Supremo Tribunal que, por Acórdão de 5.11.2002, confirmou o Acórdão desta Relação.

Os AA. sustentam que o Réu Estado por não ter transposto a referida Directiva até 31.12.1995 (o prazo inicial era até 31.12.1988 – art. 5º da Directiva – Anexo I - Parte IX- F.) incorreu em culpa e como tal deve indemnizar os AA. já que se a Directiva tivesse sido transposta teriam recebido a indemnização na sua totalidade, pelo que pedem, agora, que o Estado seja condenado a pagar-lhes a diferença entre o que receberam e aquilo que deveriam ter recebido.

A questão da Directiva, ligada com a revogação do art.508º, nº1, do Código Civil, foi alvo de divergentes decisões dos Tribunais, até que este Supremo Tribunal, em Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) nº3/2004, de 25 de Março, in DR, I-A, de 13.5.2004 decidiu:

O segmento do art. 508º, nºl, do Código Civil, em que se fixam os limites máximos da indemnização a pagar aos lesados em acidentes de viação causados por veículos sujeitos ao regime do seguro obrigatório automóvel, nos casos em que não haja culpa do responsável foi tacitamente revogado pelo art. 6º do DL nº522/85, de 31.12, na redacção dada pelo DL nº3/96, de 25.1”.

Seis dias antes da publicação daquele AUJ, o DL. 59/2004, de 19.3 alterou a redacção dos arts. 508º, nº1, e 510º do Código Civil.

O art.508º, nº1, ficou com a seguinte redacção: (Limites máximos) – “A indemnização fundada em acidente de viação, quando não haja culpa do responsável, tem como limite máximo o capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel”.

No preâmbulo do DL.59/2004, de 19 de Março, que alterou os arts. 508º e 510º do Código Civil, pode ler-se:

“O nº2 do artigo 1º da Directiva 84/5/CEE, do Conselho, de 30 de Dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis (Segunda Directiva), incidindo sobre o alcance da cobertura garantida pelo seguro obrigatório, fixa para o mesmo limites mínimos com o objectivo de reduzir as discrepâncias que subsistiam entre as legislações dos Estados membros quanto ao alcance da obrigação de cobertura daquele seguro.
O artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, alterado pelos Decretos-Leis nºs 3/96, de 25 de Janeiro, e 301/2001, de 23 de Novembro, procede à transposição do artigo 1.º da Directiva 84/5/CEE, estabelecendo no n.º1 o montante do capital mínimo obrigatoriamente seguro.
Contudo, nos termos do n.º1 do artigo 508.º do Código Civil, o montante máximo de indemnização fixada é inferior ao montante mínimo do capital obrigatoriamente seguro nos casos de responsabilidade civil automóvel.
Com efeito, ainda que as directivas comunitárias sobre seguro automóvel não estabeleçam distinção entre responsabilidade com culpa e responsabilidade pelo risco, dizendo respeito ao seguro obrigatório e não à responsabilidade civil, tem-se entendido que os montantes mínimos do capital seguro fixados pelo nº2 do artigo 1º da Segunda Directiva têm de ser respeitados independentemente da espécie de responsabilidade civil em jogo […].
[…] Contudo, manteve-se o pensamento jurídico fundamental da existência de uma íntima relação entre os limites máximos de responsabilidade civil e o capital do seguro obrigatório.
Segundo este princípio, a manutenção de limites máximos de indemnização inferiores aos do capital obrigatoriamente seguro constituiria um contra-senso do legislador, podendo prejudicar a garantia dos legítimos interesses dos lesados.
Considerando que existe legislação especial que fixa montantes mínimos para o seguro obrigatório nas situações em que estejam em causa, por um lado, acidentes causados por veículos utilizados em transporte ferroviário e, por outro, em diversas situações em que estão em causa danos causados por instalações de energia eléctrica ou de gás, seguiu-se o princípio anteriormente exposto para se fixarem novos critérios de determinação dos montantes máximos de indemnização por responsabilidade objectiva em cada um daqueles casos”. (sublinhámos).

Antes do AUJ e da alteração legislativa dois entendimentos dominavam a jurisprudência.

Para uns, o art. 508º, nº1, do Código Civil não foi revogado pelo art. 6º do DL. 522/85, de 31.12, na redacção dada pelo DL n°3/96, de 25 de Janeiro – Acórdãos deste STJ de 9.5.2002, in CJSTJ, 2002, II, 55 e de 18.12.2002, in CJSTJ, 2002, III, 167.

Para outra corrente, tal normativo do Código Civil foi tacitamente revogado pelo citado DL – cfr. inter alia Ac. deste STJ, de 10.7.2002 – com um voto de vencido – acessível em www.dgsi.pt - Proc.02B4591.

Aí se escreveu:

[…]” O problema da vigência do art°508°, Código Civil, apenas se deve pôr relativamente ao segmento da norma que fixa os montantes do limite máximo da responsabilidade.
Não se discute, obviamente, o princípio geral, ínsito na mesma disposição, de que a responsabilidade pelo risco dos veículos de circulação terrestre não é ilimitada, ao contrário da responsabilidade por facto ilícito.
Isto posto, deve dizer-se que é perfeitamente compreensível a dúvida sobre se os montantes fixados no citado art.508° ainda se encontram em vigor, tendo em conta que, nesse particular, o Estado Português ainda não adaptou a redacção do artigo à Directiva 84/5/CEE, mais concretamente, aos arts.l°, n°2, e 5°, n°3, na redacção que lhes foi dada pelo Anexo I, Parte IX, F, do Acto Relativo às Condições de Adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa e às Adaptações dos Tratados, artigos aqueles que, segundo o entendimento do TJCE, expresso no Acórdão de 14.09.2000, in Proc. C-348/98, publicado na CJ do TJCE8 (…), Ano 2000, p. 1-6711, “obstam à existência de limites máximos de indemnização inferiores aos montantes mínimos do seguro obrigatório neles fixados”. (sublinhámos).

De notar que este aresto de 2002 considerava que Portugal não tinha transposto a Directiva e, por isso, tal como em outras decisões dos Tribunais Superiores, a discussão passou também pela questão de saber se a Directiva, pese embora a sua não transposição, poderia ser ou não ser invocada no âmbito interno.

A esta questão este STJ respondeu negativamente nos Acórdãos proferidos em 1.10.1996, in BMJ 460-313; 19.9.2002, in CJSTJ, 2002, III, 46, e 28.5.2002, este acessível in www.dgsi.pt Proc.02B1313, considerando que por a Directiva não ter sido transposta para o direito português seria inaplicável na ordem interna.

Era praticamente consensual que a Directiva não tinha sido transposta para o direito interno e, tanto assim foi, que o legislador só alterou o art. 508º, nº1, do Código Civil, através do DL. 59/2004, de 19.3, pouco tempo antes do AUJ 3/2004 de 25.3.

Mas, pese embora a não transposição da Directiva, estas produzem efeitos directos nas ordens internas, desde que sejam suficientemente claras e precisas, sejam incondicionais e não estejam dependentes da adopção de ulteriores medidas complementares por parte dos Estados-membros ou das instituições comunitárias.

Ora, do disposto no art.8º, nº3, da Constituição da República, pode concluir-se que as normas comunitárias gozam de primazia sobre o direito interno, o que tem levado a doutrina a afirmar o princípio do primado do direito comunitário sobre o direito interno – Gomes Canotilho e Vital Moreira in “Constituição da República Portuguesa, Anotada”, 2007,1º Volume, págs.263 /264 “…Trata-se aqui de explicitar uma das consequências jurídicas (porventura a mais importante) da adesão a uma organização dessa natureza, a saber, a submissão directa e imediata às normas dela emanadas (regulamentos, directivas), nos termos dos respectivos tratados constitutivos…A fórmula adoptada pela Constituição — vigoram directamente na ordem interna — não deixa dúvidas que as normas emitidas por organizações internacionais dotadas de poderes “legislativos” — seja qual for a sua natureza jurídica — vigoram directamente na ordem jurídica interna, como normas “legislativas” internacionais, vinculando imediatamente o Estado e os cidadãos, independentemente de qualquer acto de mediação, seja aprovação ou ratificação por qualquer órgão do Estado, seja publicação no jornal oficial (mas devendo-o ser no jornal da organização internacional de que elas emanam). É a aplicação à legislação internacional, com as necessárias adaptações, do mesmo princípio de recepção automática ou plena, que, como se mostrou, vale para o direito internacional ordinário, comum ou convencional (nos l e 2), com a diferença de que aquelas não carecem de nenhum acto interno de aprovação ou ratificação…” .

O Tribunal de Justiça das Comunidades também tem afirmado o princípio do primado do ordenamento comunitário sobre os direitos nacionais (Ac. de 78.03.09, in CJ do TJ, 1978, p. 244,), o que implica que a norma de direito interno ceda perante o preceito comunitário que com ela colida e, também, que sobre o juiz nacional recaia a obrigação de respeitar esse primado, designadamente assegurando o pleno efeito das disposições de direito comunitário, interpretando e aplicando o direito nacional em conformidade com o ordenamento comunitário” – cfr. Ac. deste STJ, de 27.5.2004, in www.dgsi.pt, número convencional JSTJ000.

Apesar do Tribunal de Justiça das Comunidades defender a aplicação directa das directivas não transpostas, desde que as suas regras sejam precisas e claras, tendo em conta o carácter vinculativo constante do art. 249º do Tratado de Roma De 25 de Março de 1957. O instrumento de ratificação de Portugal ao presente tratado foi depositado em 27.12.1985 e publicado em Aviso de 22.02.1986. A presente versão, aquando da sua realização, contemplou as alterações introduzidas pelos seguintes diplomas: Tratado da União Europeia-Tratado de Maastricht, de 7 de Fevereiro de 1992; Tratado de Amesterdão, de 2 de Outubro de 1997; Tratado de Nice, de 26 de Fevereiro de 2001. Última alteração: Tratado de Adesão – 2003, de 16 de Abril de 2004, com entrada em vigor em 1 de Maio de 2004, após conclusão do depósito dos instrumentos de ratificação por todos os países signatários.
e do dever dos Estados-Membros conferirem primazia ao direito comunitário sem distinção quanto à fonte – art. 10º – até para evitar que estes retirem vantagens dessa omissão.

Como se refere no citado Acórdão de 27.5.2004:

“Assim se afirmou no TJ Comunidades o efeito vertical (no âmbito das relações entre os particulares e o Estado) das directivas não transpostas que contenham disposições incondicionais (quando enunciam obrigações não sujeitas a condição nem dependentes de actos de terceiros) e precisas (quando enunciam uma obrigação em termos inequívocos para serem aplicadas pelo órgão jurisdicional), em nome do princípio da responsabilidade do Estado pela sua não transposição e, posteriormente, com algumas limitações, o efeito horizontal (força vinculativa dos actos comunitários no âmbito das relações entre os particulares).
Embora a jurisprudência do TJ tenha começado por negar o efeito directo horizontal das directivas não transpostas, há pelo menos um certo consenso no sentido de que a eficácia horizontal das directivas não transpostas se revela através do princípio da interpretação do direito nacional conforme o direito comunitário” – Maria João Palma, in “Breves Notas sobre a Invocação das Normas das Directivas Comunitárias perante os Tribunais Nacionais”, edição da AAFDL, 2000, pp. 17 e ss. (sublinhámos).

Concluímos, assim, que a Jurisprudência portuguesa dominante, quando chamada a pronunciar-se sobre a questão da revogação tácita do art. 508º, nº1, pelo art. 6º do DL. 522/85, pronunciou-se no sentido dessa não revogação e, do mesmo passo considerou, na generalidade, que a 2ª Directiva, por não ter sido transposta para o direito interno português não podia ser invocada como fonte de direito.

Mas será que, como deixa entrever o douto recorrente, pelo facto de alguma Jurisprudência considerar tacitamente revogado aquele art. 508º, nº1, do Código Civil e, por isso, ser possível aos Tribunais proferirem decisões que não acolhessem aquele limite indemnizatório, isso evidencia que o Estado não agiu com culpa?

“Com efeito, a revogação tácita do nº1 do art. 508° determina a inexistência de omissão legislativa, causa de pedir na presente acção (a consubstanciar a “ilicitude”) – lê-se a fls. 363 das doutas alegações do recorrente.

Assim considerar seria admitir que, ante a incerteza na interpretação e aplicação do Direito, alguém pudesse colher a seu bel prazer o sentido que lhe fosse mais favorável, ou melhor dito, no caso como o dos autos, os cidadãos poderiam contar com as decisões que perfilhassem o entendimento da revogação tácita, sempre teriam os seus direitos salvaguardados.

Não podemos deixar de manifestar desacordo.

A jurisprudência, pese embora o seu importante papel na estabilização e interpretação do Direito, não é em si fonte de Direito e, por outro lado, para o cidadão comum o que é perturbador é que os Tribunais não resolvam de modo rápido questões controversas.

O facto de quase simultaneamente o legislador ter alterado a lei e o STJ ter proferido Acórdão Uniformizador de Jurisprudência sobre a questão disputada é sintomático de que o legislador sentiu necessidade de tornar a lei clara.

Ora incumbia ao Estado – para quem entende que as Directivas não são imediatamente aplicáveis – proceder à rápida transposição – sob pena de violação do princípio da igualdade – art. 13º da CR – e da tutela efectiva e acesso ao direito – art. 20º da Lei Fundamental.

Basta pensar no tratamento diferente que tiveram aqueles que viram causa idêntica ser julgada por Tribunal que considerou aplicável a Directiva e ter ocorrido revogação tácita do art. 508º, nº1, do Código Civil, e aqueloutros que por a sua pretensão ter sido julgada por Tribunal que perfilhou diferente entendimento, não viram a sua pretensão decidida tão favoravelmente.

A solução do AUJ, a nosso ver, e ao contrário do que parece entender o Recorrente, nada tem a ver com a questionada existência de culpa na não transposição atempada da directiva, além do mais, porque não tendo aquele AUJ a imperatividade dos antigos Assentos, ele não é vinculativo “Os assentos foram substituídos pela possibilidade de julgamento ampliado do recurso de revista, nos termos dos artigos 732°-A e 732°-B, do Código de Processo Civil, quando tal se revelar necessário ou conveniente para assegurar a uniformidade da jurisprudência. A decisão proferida para tal efeito apenas produz efeitos no processo, e não inclui qualquer norma, com força vinculativa geral (e a sua eficácia uniformizadora da jurisprudência é, assim, predominantemente persuasiva). Além disso, os assentos proferidos anteriormente ao citado Decreto-Lei nº329-A/95 passaram a ter o valor dos acórdãos proferidos nos termos dos referidos artigos 732.°-A e 732.°-B (cfr. o art. 17º, nº2, daquele diploma). Pelo que hoje os assentos também já não são fontes de direito”. – “Teoria Geral do Direito Civil” – 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto – págs. 64 a 69.
e, tanto assim é que o legislador, ciente que a discussão se poderia arrastar em prolongadas discussões jurisprudenciais, alterou a lei no sentido da Directiva, sinal evidente que se “considerava em falta”.

O Estado deveria ter transposto a 2ª Directiva até 31.12.1995 e só o fez através do DL.59/2004, de 19.3.

[À data do sinistro, 24 de Março de 1998, o capital mínimo obrigatoriamente seguro resultante da conjugação dos Decretos-Lei nº522/85, de 31 de Dezembro, e 3/96, de 25 de Janeiro era, de harmonia com o artigo 6°, nºl, do valor de 120.000.000$00, mas porque os Tribunais de Instância e este STJ consideraram que o referido normativo do Código Civil não tinha sido revogado, a indemnização foi de 4.000 contos. Se ao tempo dessas decisões proferidas no processo já estivesse em vigor a alteração legislativa e a doutrina do AUJ os AA. teriam recebido mais 14.711.150$00].

Eis-nos volvidos ao cerne do recurso – terão os AA. direito a ser indemnizados por aquilo que não receberam, em função de ao tempo das decisões judiciais não ter sido transposta a Directiva, ou seja, incorreu o Estado em responsabilidade civil extracontratual, mormente, por ter agido com culpa?

Reafirmamos que, quer o AUJ, quer, sobretudo, a alteração da redacção dos arts. 508º e 510 do Código Civil O nº1 do citado normativo estabelece: “A indemnização fundada em acidente de viação, quando não haja culpa do responsável, tem como limite máximo o capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel”. O art.510º passou a estabelecer – “A indemnização fundada na responsabilidade a que se refere o artigo precedente, quando não haja culpa do responsável, tem, para cada acidente, como limite máximo o estabelecido no nºl do artigo 508°, salvo se, havendo seguro obrigatório, diploma especial estabelecer um capital mínimo de seguro, caso em que a indemnização tem como limite máximo esse capital.” mais não fizeram que reconhecer que Portugal estava em situação de incumprimento da obrigação emergente da referida 2ª Directiva.

Como consta do Acórdão de fls.210 a 220, que relatámos na Relação do Porto:

É inquestionável que a causa de pedir e o pedido têm como fundamento a responsabilidade extracontratual do Estado por não ter transposto para a ordem jurídica interna a 2ª Directiva 84/5/CEE, que visava obstar à existência de legislação nacional que, prevendo montantes máximos de indemnização inferiores aos montantes mínimos de garantia fixados por esses artigos 1º, nº2, e 5º, nº3, na redacção que lhe foi dada pelo Anexo I Parte IX, F, quando, não havendo culpa do condutor do veículo que provocou o acidente, só haja lugar a responsabilidade civil pelo risco.

A responsabilidade assacada ao Estado resulta de um comportamento omissivo violador do Tratado, já que o Estado Português deveria ter transposto a Directiva até 31.12.1988, nos termos das normas antes citadas, prazo que foi prorrogado até 31.12. 1995, sem que o fizesse.

No direito português – art. 486º do Código Civil – “As simples omissões dão lugar à obrigação de reparar os danos, quando, independentemente dos outros requisitos legais, havia, por força da lei ou de negócios jurídico, o dever de praticar o acto omitido”.

Mas importa enfocar a questão na perspectiva do direito comunitário.

Luís Guilherme Catarino, in “A Responsabilidade do Estado pela Administração da Justiça – O Erro Judiciário e o Anormal Funcionamento” – págs. 199/200, escreve:

“A jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades, nomeadamente através do célebre Acórdão Francovich, firmará a responsabilidade do Estado perante os seus nacionais, pelos danos causados pela violação do direito comunitário, com fundamento no próprio Tratado.
Não nos debruçaremos aqui sobre este Acórdão, que decerto vem acordar as consciências para um dado adquirido – a saber, a responsabilidade dos Estados-membros por actos ou omissões do legislador nacional contrários ao direito comunitário –, e para a questão da aplicabilidade directa das directivas.
[…] Mas será que os Estados se podem escudar em princípios internos de irresponsabilidade, ou de falta de procedimentos, de forma a obviar à protecção jurisdicional do lesado?
Se o princípio da garantia e protecção jurisdicional efectiva dos direitos dos cidadãos implica que os Estados-membros tomem “todas as medidas gerais ou especiais capazes de assegurar o cumprimento das obrigações decorrentes” do Tratado de Roma (art. 10°), tal implica que “as vias de direito mais adequadas existentes na ordem jurídica interna devem ser interpretadas de forma a respeitar estas exigências (…) ou mesmo que uma via de direito apropriada seja criada se não existir”, pelos Tribunais”. (sublinhámos).

Os Estados-membros estão obrigados a reparar os prejuízos causados às partes pela violação do direito comunitário e essa violação pode resultar da não aplicação na ordem jurídica interna das normas e princípios comunitários – por omissão O efeito directo das directivas comunitárias permite aos cidadãos comunitários invocar, perante os Tribunais Nacionais, a tutela das normas comunitárias que não sejam directamente aplicáveis no ordenamento jurídico dos Estados-membros, mas que devam ser transpostas no seu ordenamento jurídico. Com a finalidade de resguardar direitos regulamentados pelo ordenamento jurídico comunitário, na hipótese de o Estado-membro não implementar a legislação no prazo ou nas formas previstas, poderá o cidadão europeu prejudicado solicitar ao tribunal que declare a omissão do Estado, condenando-o a uma obrigação de indemnizar por perdas e danos. Esse princípio teve início através da construção jurisprudencial, pelo "caso Francovich" e aplica-se às hipóteses em que o Estado não adopte as orientações emanadas de uma directiva comunitária, ou venha a adoptá-las fora do prazo estipulado, ou mesmo transpondo a directiva no ordenamento jurídico interno, o fizer de modo a que não produza os efeitos previamente estabelecidos.

– ou quando desrespeite Acórdãos do TJCE.

José Luís Caramelo Gomes, in “O Juiz Nacional e o Direito Comunitário” págs. 120 e 121, escreve:

“… Ora, como pensamos ter demonstrado supra, Francovich terá estabelecido um princípio da responsabilidade do estado pela falta de transposição de directivas que tenham em vista a criação de direitos a favor dos particulares, quando o conteúdo desses direitos seja determinável a partir das normas da própria directiva que não foi transposta.
Recordando a jurisprudência constante do TJCE, as directivas serão invocáveis em juízo quando não tenham sido atempadamente transpostas, sejam claras precisas e incondicionadas e criem direitos a favor dos particulares.
Este é precisamente o caso das directivas em causa nos processos Francovich (…) Wagner Miret (…) e Faccini Dori.
De facto, esta parece ser a forma evidente de interpretar alguns dos considerandos do acórdão Francovich “Da responsabilidade do Estado pela violação do direito comunitário” – Marta Chantal da Cunha Machado Ribeiro – Coimbra, Almedina, 1996.:
“ (…) Embora a responsabilidade do Estado seja assim imposta pelo direito comunitário, as condições em que a mesma institui um direito à reparação dependem da natureza da violação do direito comunitário que está na origem do prejuízo causado. (…)
Quando, como no caso dos autos, um Estado-membro ignora a obrigação que lhe incumbe por força do artigo 249º, terceiro parágrafo, do Tratado, de tomar todas as medidas necessárias para atingir o resultado prescrito por uma directiva, a plena eficácia dessa norma de direito comunitário impõe um direito à reparação quando estão reunidas três condições. (…).
A primeira dessas condições é que o resultado prescrito pela directiva implique a atribuição de direitos a favor dos particulares (…). A segunda condição é que o conteúdo desses direitos possa ser identificado com base nas próprias disposições da directiva (…).
Finalmente, a terceira condição é a existência de um nexo de causalidade entre a violação da obrigação que incumbe ao Estado e o prejuízo sofrido pelas pessoas lesadas”.

É abundante a jurisprudência, em matéria de direito a indemnização pelos prejuízos sofridos pelos particulares em consequência de violações do direito comunitário imputáveis a um Estado-Membro – cfr. Acórdãos Francovich e o. de 19.11.1991 (Colectânea de Jurisprudência TJCE, p.I-5357, nº36), Brasserie du Pêcheur e Factortame de 5.3.1996, British Telecommunications de 26.3.1996, Hedley Lomas de 23.5.1996 e Ac. de 4.7.2000, in CJTJCE -2000.

Em tais Acórdãos o Tribunal de Justiça, atendendo às circunstâncias dos casos, julgou que os particulares lesados têm direito a reparação, desde que estejam reunidas três condições:

1. Que a regra de direito comunitário violada tenha por objecto conferir direitos,
2. Que a violação seja suficientemente caracterizada e,
3. Que exista um nexo de causalidade directo entre essa violação e o prejuízo sofrido pelos particulares.

No caso em apreço temos por incontestavelmente aplicáveis os citados princípios jurídicos, razão por que nos parece manifesta a existência de culpa – comissão por omissão do Réu Estado – omissão essa geradora do dever de indemnizar – art. 483º, nº1, e 486º do Código Civil.

A omissão do Estado, em função daquilo a que estava obrigado, por força da Directiva é, só por si, ético-juridicamente censurável, o que exprime culpa.

Tem toda a pertinência a alusão a Rui Medeiros – “Ensaio Sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Actos legislativos”, Almedina, Coimbra 1992, páginas 188 a 194 – quando na decisão recorrida se pondera:

Reportando-se concretamente à culpa do legislador, Rui Medeiros lança mão do conceito geral de culpa para compreender o significado desta figura, a qual ocorre sempre que o Estado legislador podia e devia ter evitado a situação de acção ou omissão, sempre considerando o caso concretamente decidendo, e no pressuposto de que as características que rodeiam a actividade legislativa obrigam a concluir que o grau de diligência exigível do legislador é particularmente elevado”.

Como se decidiu no Ac. destes STJ de 21-03-2006, in www.dgsi.pt,JSTJ000 de que foi Relator o Ex.mo Conselheiro Dr. Azevedo Ramos:
“O art. 22 da C.R.P., abrange quer a responsabilidade do Estado por actos ilícitos, quer por actos lícitos, quer pelo risco (Gomes Canotilho, R.L.J. Ano 124-85; Barbosa de Melo, Parecer, na CJ Ano XI, Tomo IV, pág. 36; Ac. S.T.J. de 1.6.04, CJSTJ, II, 2º, 126; Ac. S.T.J. de 28.4.98, BMJ 476-137, Ac. S.T.J. de 27-3-03, CJSTJ., XI, 1º, 143; Ac. S.T.J. de 29-6-05, também relatado pelo ora relator, na Col. Ac. S.T.J., XIII, 2º, 147).
A jurisprudência e a doutrina vêm aceitando ser o mencionado art. 22 uma norma directamente aplicável, por integrar um direito fundamental de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, sem prejuízo de eventual concretização legislativa.
Os requisitos do dano e da indemnização deverão estabelecer-se através de lei concretizadora, devendo recorrer-se às normas legais relativas à responsabilidade patrimonial da administração”.

Sobre a responsabilidade civil do Estado decorrente da actividade legislativa – cfr. Ac. deste Supremo Tribunal de 14.6.2007 – Proc. 07B190 – in www.dgsi.pt de que foi Relator o Ex.mo Conselheiro Dr. Duarte Soares.

Pertinentes são as considerações vazadas no Ac. deste STJ de 10.4.2003, relatado pelo saudoso Conselheiro Dr. Araújo de Barros, in www.dgsi.pt – Proc. 03B1944:

A responsabilidade civil do Estado legislador – responsabilidade extracontratual por acto ilícito – porque, como tal, assenta na disposição geral do art. 483º do Código Civil, ocorre apenas quando verificados os pressupostos da obrigação de indemnizar: facto voluntário do agente, ilicitude do facto, imputação do facto ao lesante (culpa), dano e nexo de causalidade entre o facto e os danos causados (…).
Está, in casu, essencialmente em questão a eventual caracterização do acto legislativo do Estado (omissão de legislação) como acto ilícito.
Ora, "o acto ilícito é o acto contrário ao direito. No contexto do instituto da responsabilidade civil, o conceito da ilicitude tem um significado bem preciso: indica ele aquela forma particular de contraditoriedade ao direito que fornece um pressuposto típico da génese de um dever de indemnizar; que contém em si mesma força suficiente para dar vida a uma relação obrigacional nos termos da qual o autor do acto ilícito se constitui em dever de ressarcir" […]. A vinculação do Estado ao direito internacional está consagrada, como princípio, no art. 8º da Constituição.
Tal vinculação é mais íntima quando está em causa o direito comunitário. Na verdade, no relacionamento instituído entre esta ordem jurídica e as ordens jurídicas internas dos Estados membros vigoram, entre outros, o princípio da aplicabilidade directa do direito comunitário na ordem jurídica dos Estados membros (sempre que a sua execução não careça de uma intervenção legislativa dos Estados) e o princípio do primado do Direito Comunitário face a toda e qualquer norma nacional… […].
O Tribunal Constitucional tem invocado, também, com alguma frequência o princípio da confiança legítima ou da protecção da confiança como parâmetro constitucional de controlo das acções do Estado, particularmente do legislador. De todas as vezes que tal acontece, a ideia aparece sempre associada à de Estado de Direito. Num Estado como este, diz-se, os cidadãos têm de poder saber com o que contam. E tal significa poder confiar, de algum modo, na previsibilidade do direito, como forma de orientação de vida, de modo que a lei, no seu devir, nunca afecte aquele mínimo de certeza ou segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica" – Maria Lúcia Amaral, "Dever de Legislar e Dever de Indemnizar a propósito do caso Aquaparque do Restelo", in Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, Ano I, nº2, 2000, pág. 93, citando os Acs. TC nºs. 1/97, 330/97 e 517/99.

O regime normativo, após a referida alteração legal, e o citado AUJ, está claramente definido no Acórdão deste STJ, de 4.10.2005, relatado pelo Ex.mo Conselheiro Dr. Azevedo Ramos, in www.dgsi.pt proc.05A2284 – cujo sumário transcrevemos:

“I – A indemnização fundada em acidente de viação, quando não haja culpa do responsável, tem como limite máximo o capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, nos termos do artigo único, do Dec-Lei 59/04, de 19 de Março.
II – Por força do Acórdão Uniformizador de jurisprudência nº3/04,de 25.3.04, o segmento do art. 508, nº1, do Código Civil, em que se fixam os limites máximos da indemnização a pagar aos lesados de acidente de viação causados por veículos sujeitos ao regime do seguro obrigatório automóvel, nos casos em que não haja culpa do responsável, foi tacitamente revogado pelo art. 6º do Dec-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, na redacção que lhe foi dada pelo Dec-Lei 3/96, de 25 de Janeiro.
III – A alteração do art. 6º do Dec-Lei 522/85, pelo citado Dec-Lei 3/96 (que veio elevar para 120.000.000$00 o capital mínimo obrigatoriamente seguro por sinistro) produz efeitos, desde 1 de Janeiro de 1996, aplicando-se a nova redacção introduzida neste art. 6º aos contratos vigentes com capital inferior a 120.000.000$00.
IV – Assim, a partir de 1.1.96, ficaram abolidos os limites máximos de indemnização, então previstos no art. 508, nº1, do Código Civil.
V – O Acórdão Uniformizador do S.T.J. nº3/04 têm natureza interpretativa, pelo que se aplica retroactivamente a um acidente ocorrido em 20.3.97”.

Temos assim por adquirido que a pretensão dos AA., ancorando no regime legal agora vigente se aplica desde 1.1.1996.

Os AA. pretendem socorrer-se deste regime legal, agora, para exigirem do Estado a diferença entre o que a sentença condenatória lhes atribuiu, em função da redacção então vigente do art. 508º do Código Civil, e aquilo que deveriam ter recebido (ainda nos termos de tal sentença) se o Estado tivesse já harmonizado o direito interno, em conformidade com a 2ª Directiva n.º84/5/CEE, de 30 de Dezembro de 1983, cuja transposição apenas se verificou com a nova redacção dada àquele normativo pelo Decreto-Lei n.º59/2004, de 19 de Março.

Tratando-se de responsabilidade civil extracontratual aquela que os AA. pretendem actuar com a acção, alegaram e provaram factos integradores da causa de pedir, no caso: o facto ilícito, a culpa, o dano, e o nexo de causalidade entre o facto e o dano – art. 483º do Código Civil e arts. 2º e 6º do DL. 48.051, de 21.11.1967.

Tais requisitos ocorrem pelo que a condenação do Réu não merece censura Neste sentido o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 7.12.2005, Revista nº3063-2ª secção, que confirmou por remissão o Acórdão recorrido. .

Decisão:

Nestes termos nega-se a revista.

Sem custas face à isenção legal de que goza o Réu.


Supremo Tribunal de Justiça, 27 de Novembro de 2007

Fonseca Ramos (Relator)
Rui Maurício
Cardoso de Albuquerque