Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
839/22.6T8FND-B.C1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE ATIVA
DIREITO LITIGIOSO
CESSÃO DE CRÉDITOS
Data do Acordão: 11/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :

I- A natureza litigiosa de um crédito, em sentido amplo, ou seja, enquanto sinónimo de crédito impugnado em juízo (art.579º, n.3 do CC), não significa, por si só, que esse crédito não exista e que o credor não consiga demonstra a sua titularidade e a consequente legitimidade para requerer a insolvência.


II- Tendo o requerido, na oposição ao requerimento da insolvência, invocado a natureza litigiosa do crédito e a consequente ilegitimidade do requerente, pelo facto de este não ser o credor original, a “natureza litigiosa” desse crédito dissipa-se, de imediato, com a prova da cedência do crédito pelo credor antecedente.

Decisão Texto Integral:

Processo n.839/22.6T8FNB-B.C1.S1


Recorrente: AA


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO


1. “ERTOW ASSET MANAGEMENT, S.A.” requereu a declaração de insolvência de AA, nos termos dos artigos 1º a 3º e 20º do CIRE, alegando ser o requerido devedor da requerente, da quantia de € 1.010.820,57, tendo incumprido o plano decorrente do PEAP, judicialmente homologado, e encontrando-se absolutamente incapacitado de proceder ao seu pagamento.


2. O requerido apresentou contestação na qual excecionou a ilegitimidade da requerente, por considerar que a mesma não havia comprovado que os créditos invocados na petição inicial lhe tivessem sido efetivamente cedidos, e impugnou a sua alegada situação insolvência, afirmando que apenas se encontrava em situação económica difícil.


Para o caso de assim não se entender, requereu, ainda, a exoneração do passivo restante e indicou os seus cinco maiores credores.


3. Quanto à legitimidade da requerente, nomeadamente para efeitos do art.20º do CIRE, a primeira instância concluiu nos seguintes termos:


«Em face dos factos que resultaram provados, e contrariamente ao que se propôs demonstrar o requerido, dúvidas não se suscitam em concluir que a requerente é credora do requerido, por força dos créditos que lhe foram cedidos e que originariamente eram da CEMG.


Resulta, assim, inequívoco que a requerente se mostra como credora do requerido e, nessa medida, tem legitimidade para intentar a presente ação


Quanto ao pedido de declaração de insolvência, a primeira instância entendeu que o requerido não conseguiu ilidir a presunção de insolvência resultante tanto da alínea a), como da b) do art.20º do CIRE, pelo que declarou a sua insolvência, referindo que:


«Não só o elevadíssimo montante e antiguidade da dívida, desacompanhada da alegação e prova de rendimentos e património capazes de a liquidar, deixam evidente a incapacidade do devedor de proceder ao seu pagamento, como a circunstância de não ter cumprido o plano de pagamentos a que se obrigou demonstram à saciedade que o mesmo se encontra insolvente


4. O requerido, declarado insolvente, interpôs recurso de apelação, invocando a ilegitimidade da requerente e pedindo que se decretasse a improcedência do pedido de declaração de insolvência.


Porém, o TRC, por acórdão de 12.07.2023, julgou a apelação improcedente e manteve a sentença recorrida.


5. O requerido-apelante interpôs recurso de revista, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:


«A) Nos presentes autos a sociedade Ertow Asset Management, S.A., aqui Recorrida, veio requerer a declaração de insolvência do ora Recorrente;


B) Alegou a Recorrida, e em síntese, e para o que interessa ao presente recurso, que era credora da Recorrente, porquanto o crédito que pretende fazer valer nos autos lhe tinha sido transmitido pelo credor inicial;


C) Citada nos presentes autos veio o Recorrente impugnar o crédito invocada pela Recorrida, no artº 18º e ss da sua Oposição, concluindo que: “Face ao alegado conclui-se que a Requerente não é titular dos créditos que invoca pelo que não tem legitimidade para intervir nestes autos na qualidade de credora.”;


D) O mui douto tribunal de 1ª instância, julgou a acção procedente e declarou a insolvência do ora Recorrente, com fundamento – na parte que interessa ao presente recurso – que “Importa, então e antes de mais, averiguar da legitimidade material da requerente para os termos da ação, nomeadamente nos termos e para os efeitos previstos no artigo 20.º, n.º 1 do CIRE. Em face dos factos que resultaram provados, e contrariamente ao que se propôs demonstrar o requerido, dúvidas não se suscitam em concluir que a requerente é credora do requerido, por força dos créditos que lhe foram cedidos e que originariamente eram da CEMG. Resulta, assim, inequívoco que a requerente se mostra como credora do requerido e, nessa medida, tem legitimidade para intentar a presente ação.”;


E) Interposta apelação da referida decisão com fundamento na ilegitimidade da Recorrida, julgou improcedente o tribunal a quo o referido recurso, sustentando – no que interessa ao presente recurso – o entendimento de que será de improceder a arguição de ilegitimidade por parte do Recorrente porquanto se sufraga o entendimento de que para haver legitimidade basta que o credor no requerimento inicial, justifique a origem, a natureza e o montante do seu crédito, independentemente do seu crédito ser ou não litigioso;


F) O Recorrente não concorda com este entendimento. E não está sozinho;


G) Efectivamente, em acórdão, aqui junto como acórdão fundamento, proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, Processo nº 3601/08TJCBR.C1, datado de 03-12-2009, Relator Emídio Costa, sustenta-se um entendimento diametralmente oposto ao do acórdão recorrido;


H) Neste último trata-se de uma situação em que a requerida impugnou igualmente o crédito invocado pela requerente da Insolvência;


I) Ora, no acórdão fundamento sustenta-se a posição da ilegitimidade para requerer a declaração de insolvência daqueles que se arrogam ser titulares de um crédito que é litigioso;


J) Refere-se, ainda, naquele douto aresto que, atribuir legitimidade a alguém que apenas se arroga ser credor, sendo certo que essa qualidade pode vir a não ser-lhe reconhecida, seria permitir que o requerente pudesse fazer uma utilização abusiva do processo de insolvência. E este processo, pela sua forma especial que reveste, também não nos parece ser o local mais apropriado para se decidir sobre a existência ou inexistência do crédito;


K) O acórdão de que se pretende recorrer está em oposição com o acórdão fundamento e ambos tratam da mesma questão;


L) Sendo que ambos foram proferidos no domínio da mesma legislação sem que tenha sido fixada jurisprudência sobre esta questão pelo STJ, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do CPC;


M) Pelo que, com o devido respeito por posição contrária, verificam-se os pressupostos exigidos no artº 14º do CIRE, pelo que deverá o presente recurso de revista ser admitido;


N) Sublinha-se, ainda, que no acórdão recorrido se acrescenta que no caso dos autos não é necessário seguir o seu entendimento de que o crédito litigioso não impede a legitimidade da requerente da insolvência visto que resulta da matéria de facto provada que a mesma é credora do requerido;


O) Contudo, tal asserção não retira fundamento à admissibilidade do presente recurso;


P) De facto, a prova do crédito no processo de insolvência, quando o mesmo é litigioso, é o que separa os dois acórdãos acima referidos. No acórdão recorrido entende-se ser possível a prova do mesmo – e daí sustentar a sua decisão no julgamento da matéria de facto produzido no próprio processo de insolvência – e no acórdão fundamento entende-se que não e daí ter julgado a requerente da insolvência parte ilegítima e julgado improcedente a acção;


Q) Conforme se refere taxativamente neste último aresto: “(…) este processo, pela sua forma especial que reveste, também não nos parece ser o local mais apropriado para se decidir sobre a existência ou inexistência do crédito.”


R) Estipula-se no nº 3 do artº 579º do Código Civil que “diz-se litigioso o direito que tiver sido contestado em juízo contencioso, ainda que arbitral, por qualquer interessado”;


S) Ora, o Recorrente contestou nos presentes autos o crédito invocado pela Requerente;


T) Ao contrário do que se sustenta no mui douto acórdão recorrido, sufraga o Recorrente o entendimento explanado no acórdão fundamento de que se o crédito invocado pelo requerente da declaração de insolvência, for litigioso, este é considerado parte ilegítima,


U) não sendo o processo de insolvência, pela sua forma especial que reveste, o local apropriado para se decidir sobre a existência ou inexistência do crédito;


V) Ao julgar a Recorrida parte legítima, violou, salvo o devido respeito, o mui douto tribunal recorrido, o disposto nos artsº 3º, nº 1, 21º nº 1 e 25º, nº 1, todos do CIRE e 579º nº 3 do Código Civil.


Nestes termos e nos melhores de Direito, com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, verificando-se os requisitos de admissão do presente recurso, deverá o mesmo ser julgado totalmente procedente e, em conformidade, ser revogada a douta decisão recorrida e substituída por outra que julgue a Recorrida parte ilegítima, determinando a improcedência da acção, assim se fazendo a costumada justiça.»


Cabe apreciar.


*


II. FUNDAMENTOS


1. Admissibilidade e objeto do recurso


1.1. A questão prévia da admissibilidade do recurso


Estando em causa um processo no qual o agora recorrente foi declarado insolvente, o regime legal aplicável ao recurso de revista é o previsto no art.14º do CIRE. Desta norma decorre que o tribunal da Relação é, em regra, a última instância em processo de insolvência, só sendo admissível a intervenção do STJ face à existência de oposição de acórdãos que se pronunciam de modo divergente sobre a mesma questão jurídica. Neste sentido pronunciou-se já o STJ, em acórdão de Uniformização de Jurisprudência, proferido no proc. n. 3125/11.3TJCBR-B.C1.S1-A, em 28.09.2023.


Dando cumprimento ao exigido pelo regime legal aplicável, o recorrente invocou a existência de oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 03.12.2009, no processo nº 3601/08TJCBR.C1 (Relator Emídio Costa)1, que indicou como acórdão fundamento, quanto à questão da legitimidade do requerente da insolvência.


Vejamos se a oposição de acórdão se verifica.


Sumariou-se no acórdão fundamento que:


«Carece de legitimidade para requerer a declaração de insolvência o requerente cujo crédito que serve de fundamento ao pedido de declaração de insolvência se mostra litigioso


E justificou-se esse entendimento nos termos que se extratam:


«Salvo o devido respeito pelo entendimento contrário, pensamos, tal como a decisão recorrida, que a posição que defende a ilegitimidade para requerer a declaração de insolvência daqueles que se arrogam ser titulares de um crédito que é litigioso é a mais defensável.


Desde logo, quem se arroga titular de um crédito sobre alguém e esse crédito ainda não é certo e exigível, não pode ainda considerar-se credor do pretenso devedor. Só após o trânsito em julgado da decisão que ponha termo à acção em que tal se discute é que é possível dizer se o crédito existe efectivamente.


Nessas circunstâncias, atribuir legitimidade a alguém que apenas se arroga ser credor, sendo certo que essa qualidade pode vir a não ser-lhe reconhecida, seria permitir que o requerente pudesse fazer uma utilização abusiva do processo de insolvência.


E acrescenta-se:


«(…) como bem refere a decisão recorrida, o crédito cuja titularidade a requerente se arroga e que serve de fundamento ao pedido de declaração de insolvência da requerida é litigioso, atento o disposto no n°3 do artigo 597° do Código Civil, segundo o qual: “diz-se litigioso o direito que tiver sido contestado em juízo contencioso, ainda que arbitral, por qualquer interessado”.


E sendo o crédito litigioso, não pode afirmar-se, desde já, que a requerente é credora da requerida. Daí a ilegitimidade da requerente para formular o pedido de declaração de insolvência da requerida


Embora se afigure que o conceito de crédito litigioso a que o acórdão fundamento pretende referir-se apresenta um sentido mais restrito do que aquele que é invocado nos presentes autos pelo recorrente (parecendo reportar-se à prévia existência se uma ação que tenha a discussão do crédito por objeto, como acontecia nesse caso), certo é que ao remeter para o conceito de crédito litigioso previsto no n.3 do art.597º do CC o acórdão fundamento aponta para um conceito amplo de crédito litigioso que acaba por não se apresentar em sintonia com a posição que é sustentada no acórdão recorrido.


Efetivamente, afirma-se no acórdão recorrido que: «(…) o n.º 1 do artigo 20.º do CIRE, na parte em que confere legitimidade ao credor para requerer a declaração de insolvência do devedor é de interpretar no sentido de que goza de legitimidade para requerer a declaração de insolvência aquele que, no requerimento inicial, justifica a origem, a natureza e o montante do seu crédito. É o que resulta do artigo 25.º do CIRE ao dispor sobre os requisitos do pedido de declaração de insolvência quando ele é deduzido pelo credor. Daí que, mesmo nos casos em que o crédito do requerente da declaração de insolvência é litigioso, ou seja, que tenha sido contestado em juízo contencioso (n.º 3 do artigo 579.º do Código Civil), é de reconhecer legitimidade a quem invoca a qualidade de credor, desde que, na petição inicial, tenha justificado a origem, a natureza e o montante do seu crédito. (…)


Assim, é de concluir que, para além das particularidades de cada um dos casos a que respeitam os acórdãos em confronto, o modo como em cada uma das decisões foi equacionada a legitimidade do credor, titular de um crédito litigioso, para requerer a insolvência não é coincidente. Justifica-se, assim, nos termos do art.14º do CIRE, a admissibilidade do recurso de revista, no que respeita à questão da legitimidade da credora para requerer a insolvência.


Porém, importa ter presente o disposto no art.635º, n.4 do CPC, aplicável ex vi do art.17º do CIRE, do qual resulta que são as conclusões das alegações que delimitam o objeto do recurso.


Assim, decorre das conclusões das alegações do recorrente que este apenas recorre quanto à questão da legitimidade, apresentando acórdão fundamento apenas quanto a esta parte.


Não recorre quanto à parte respeitante à verificação dos pressupostos do art.20º do CIRE para declarar a insolvência, pois não inclui essa questão nas conclusões das suas alegações. Assim, o recorrente não preveniu a hipótese de o tribunal poder concluir que a requerente (agora recorrida) tivesse legitimidade para requerer a insolvência.


Para que, em revista, se conhecesse dessa matéria o recorrente tinha o ónus de demonstrar a existência de oposição de acórdãos quanto ao tipo de fundamentos que sustentaram a declaração de insolvência, tal como fez quanto à questão da legitimidade. Mas assim não aconteceu, pelo que, ainda que tal problemática tivesse integrado o objeto da revista, quanto a essa matéria, não se encontrariam preenchidos os requisitos de admissibilidade do recurso. E ainda que se pudesse entender que, uma vez admitido quanto a uma questão (a da legitimidade) também se poderia considerar admitido para o conhecimento de outra questão (a da correta aplicação dos pressupostos da insolvência), certo é que o recorrente não incluiu essa matéria no objeto do recurso, não constando nem do corpo das alegações nem das suas conclusões, sendo que, como se referiu, nos termos do art.635º, n.4 do CPC é pelas conclusões do recorrente que se delimita o objeto do recurso.


1.2. O objeto da presente revista é, assim, o de saber se o credor tinha legitimidade para requerer a insolvência do agora recorrente.


*


2. Factos provados:


As instâncias deram como provados os seguintes factos:


«1. O requerido AA, em 15 de Setembro de 2020, apresentou-se a processo especial para acordo de pagamento.


2. Por sentença transitada em julgado, em 16 de Abril de 2021, proferida no processo nº. 450/20.6..., que correu termos neste tribunal, foi homologado o plano para acordo de pagamento apresentado.


3. A proposta de acordo de pagamento apresentado nos referidos autos supra pelo requerido AA, nos termos do artigo 222. º-F n.ºs 5 e 8 do CIRE, foi incumprido, pese embora as interpelações efectuadas pela requerente.


4. Por contrato de cessão de carteira de créditos, outorgado em 27.12.2018, a CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL - CAIXA ECONÓMICA BANCÁRIA, S.A. (adiante abreviadamente designada por CEMG) cedeu à MIMULUS FINANCE DAC os créditos decorrentes da operação aqui executadas, bem como todas as garantias a eles inerentes.


5. Posteriormente, a 12.04.2019, a MIMULUS FINANCE DAC cedeu à ARES LUSITANI STC SA, os presentes créditos, bem como todas as garantias a eles inerentes.


6. Ainda, no pretérito dia 12 de Abril de 2019, a ARES LUSITANI celebrou com a ERTOW ASSET MANAGEMENT, S.A., um contrato de Cessão de Créditos.


7. Por escritura pública, lavrada a 16 de Junho de 2004, a CEMG emprestou à sociedade “A...... ....., Lda.” (actualmente designada “I.. . ......... .. ...... .. ...., Lda.”) a importância de Euros 300.000,00, a prazo, a liquidar em prestações mensais, constantes e sucessivas de capital e juros, acrescidas do imposto de selo em vigor, e nas demais condições constantes do referido título.


8. Por contrato de mútuo e fiança, celebrado em 31 de Janeiro de 2013, a CEMG emprestou à sociedade “I.. . ......... .. ...... .. ...., Lda.” a importância de Euros 220.000,00, pelo prazo de quinze anos, a liquidar em prestações mensais, constantes e sucessivas de capital e juros, acrescidas do imposto de selo em vigor, e nas demais condições constantes do referido título.


9. Por documento particular, exarado a 27 de Março de 2013, a CEMG emprestou à sociedade I.. . ......... .. ...... .. ...., Lda, a importância de Euros 200.000,00, a prazo, a liquidar em prestações mensais, constantes e sucessivas de capital e juros, acrescidas do imposto de selo em vigor, e nas demais condições constantes do referido título.


10. Para garantia do bom e pontual cumprimento das obrigações contraídas pela sociedade “I.. . ......... .. ...... .. ...., Lda.”, emergentes dos contratos celebrados em 16 de Junho de 2004 e em 31 de Janeiro de 2013, respectivamente, e supra melhor identificados, em actos simultâneos, constituiu-se o Requerido AA, individual e solidariamente, fiador e principal pagador, com expressa renúncia ao benefício da excussão prévia.


11. Quanto ao contrato celebrado em 27 de Março de 2013, para garantia do bom e pontual cumprimento das obrigações assumidas pela sociedade “I.. . ......... .. ...... .. ...., Lda.”, em acto simultâneo, o requerido AA avalizou uma livrança em branco, subscrita pela mutuária, autorizando expressamente o seu preenchimento nos termos da cláusula 7.ª do contrato.


12. As quantias emprestadas, referidas nos aludidos títulos, foram efectivamente entregues à “I.. . ......... .. ...... .. ...., Lda.”, mediante crédito processado na sua conta de depósitos à ordem, domiciliada na agência do Banco, que a movimentou e utilizou em proveito próprio os valores resultantes daqueles créditos, confessando-se devedora das quantias recebidas perante o Banco cedente.


13. No âmbito do Processo Especial de Revitalização da sociedade “I.. . ......... .. ...... ...., Lda.”, que correu termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial de ... sob o n.º 1123/13.1..., foram os supra identificados contratos reclamados pela CEMG e, posteriormente, alvo de plano de recuperação aprovado e implementado.


14. Nas responsabilidades que se vem fazendo referência, o capital em dívida conforme reestruturação operada ascende a Euros 808.937.10 (oitocentos e oito mil, novecentos e trinta e sete euros e dez cêntimos).


15. Encontra-se em dívida à requerente a quantia global de Euros 1.010.820,57 (um milhão, dez mil, oitocentos e vinte euros e cinquenta cêntimos) discriminada da seguinte forma: a quantia de € 808.937,10 a título de capital; a quantia de € 151.639,49, a título de juros vencido; a quantia de € 50.243,98 juros de mora, calculados à taxa de 4%, desde 21.04.2021 até à data de 31.10.2022.


16. Por contrato de abertura de crédito em conta corrente - crédito integrado flexível n.º 206 - 37.000034-4, exarado em 12.03.2014, a CEMG celebrou com a sociedade “I.. . ......... ...... .. ...., Lda.”, na qualidade de mutuária, e com o Requerido AA e outros, na qualidade de avalistas, um contrato de abertura de crédito em conta corrente, até ao limite máximo de € 40.000,00 (quarenta mil euros), que se destinava outros - crédito à tesouraria, à taxa de juro e demais condições previstas nos termos do contrato, o qual foi de imediato colocado à sua disposição.


17. A abertura de crédito funcionava através de uma conta corrente específica, sendo que a utilização do crédito aberto, bem como as restituições à conta, seriam feitas através da conta de depósitos à ordem n.º .............-2, titulada pela parte mutuária, e efectuadas nos termos previstos no contrato em análise.


18. A taxa de juro contratada foi a taxa Euribor a 3 meses, acrescida de um spread de 8,5%, sendo que em caso de mora ou incumprimento, tal taxa seria elevada de 3%.


19. A quantia emprestada, referida no aludido título, foi efectivamente entregue à mutuária “I.. . ......... .. ...... ...., Lda.”, mediante crédito processado na sua conta de depósitos à ordem, domiciliada na agência do Banco cedente, que a movimentou e utilizou em proveito próprio os valores resultantes daquele crédito, confessando-se devedora da quantia recebida perante o banco cedente.


20. Para garantia do bom e pontual cumprimento das obrigações assumidas pela sociedade “I.. . ......... .. ...... .. .... Lda.”, emergentes do contrato em referência, em acto simultâneo, o requerido AA avalizou uma livrança em branco, subscrita pela mutuária, autorizando expressamente o seu preenchimento nos termos da cláusula 8.ª do contrato.


21. Sucede que a mutuária interrompeu o pagamento das prestações devidas e acordadas referentes ao empréstimo a que se vem fazendo referência, pelo que, em face do incumprimento contratual, a CEMG procedeu ao preenchimento da livrança nos termos acordados.


22. À presente data, no empréstimo a que se vem fazendo referência, o capital em dívida ascende a Euros 40,000.00 (quarenta mil euros).


23. Encontra-se em dívida à requerente a quantia global de Euros 48.765,63 (quarenta e oito mil, setecentos e sessenta e cinco euros e sessenta e três cêntimos) discriminada da seguinte forma: a quantia de € 40.000,00 a título de capital; a quantia de € 6,281.19, a título de juros vencidos; a quantia de € 2.484,44 juros de mora, calculados à taxa de 4%, desde 21.04.2021 até à data de 31.10.2022;


24. A sociedade comercial, cujos negócios foram avalizados pelo requerido, de carácter eminentemente familiar - sendo o requerido sócio e gerente -, desenvolveu durantes anos a actividade comercial de produção e transformação de carnes e outros produtos alimentares ao abrigo de um plano de exploração celebrado com a Sociedade I.... ., integrante do grupo G.., responsável pelo escoamento e comercialização de toda a produção.


25. Atentos os elevados níveis de facturação, a empresa efectuou investimentos de montantes consideráveis, avalizado pelo aqui requerido e pelos seus pais BB e CC.


26. Sucede que, em virtude da queda do grupo G.., a I.. sofreu avultados prejuízos, porquanto não conseguiu escoar a respectiva produção e, bem assim, não se conseguiu reinstalar noutros mercados, pese embora os esforços encetados pelos respectivos sócios e gerentes, incluindo o ora requerido.


27. A referida sociedade também sofrera pesados prejuízos, numa tentativa de entrada, entretanto fracassada, no mercado Angolano, na ordem do montante de 400.000,00€.


28. Tais circunstâncias determinaram, consequentemente, a quebra abruta dos rendimentos do requerido e dificuldades no cumprimento pontual das obrigações assumidas, designadamente emergentes das operações bancárias assumidas pela empresa e avalizada pelo aqui requerido.


29. Para a liquidação dos créditos existentes pretendeu-se concretizar a venda de imóveis de que os seus pais são proprietários - conforme também alegado na oposição à declaração de insolvência deduzida no processo 840/22.0..., que corre termos neste tribunal, intentada contra os seus pais BB e CC - e pelo aumento e/ou compra do capital social da sociedade I.. . ......... .. ...... .. .... Lda por parte de um investidor.


30. O requerido, na qualidade de sócio gerente da I.., tem logrado manter as negociações com um potencial investidor tendo em vista a alienação do capital social da sociedade de que é sócio, e que poderá resultar numa mais-valia na ordem dos € 2.000.000,00 (dois milhões de euros).


31. Sucede que, devido à instabilidade económica e financeira que se tem vivido, designadamente com a inflação e respectivo aumento das taxas de juro para obtenção de financiamento, a concretização do negócio tem-se alongado por tempo superior ao inicialmente estimado.»


3. O direito aplicável


3.1. Como supra referido, o objeto da presente revista é apenas o de saber se o requerente da insolvência (agora recorrido) tinha legitimidade para formular essa pretensão em juízo, quando o crédito invocado para o efeito apresenta natureza litigiosa por ter sido contestado pelo requerido (agora recorrente).


Efetivamente, o requerido, na sua oposição, excecionou a ilegitimidade da requerente, por considerar que a mesma não havia comprovado que os créditos invocados na petição inicial lhe tivessem sido cedidos pelo credor original, o Montepio Geral.

As instâncias entenderam que o requerente era parte legítima, porque a sua qualidade de credor emergia dos autos, atento o disposto na primeira parte do n.º 1 do art. 20º do CIRE.

Sobre a legitimidade dos credores para requererem a declaração de insolvência, extrata-se do art.20º do CIRE o seguinte:


«A declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida (…) por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito (…) verificando-se algum dos seguintes factos: (…)»


A lei não exige, assim, como condição processual prévia, que o credor requerente da insolvência tenha de demonstrar, de imediato, ser titular de um crédito certo liquido e exigível sobre o devedor (como se de uma ação executiva se tratasse), podendo a consistência e exigibilidade de um crédito condicional ou litigioso ser demonstrada no próprio processo de insolvência.


A natureza litigiosa de um crédito em sentido amplo, ou seja, enquanto sinónimo de crédito impugnado em juízo, não significa, por si só, que esse crédito não exista e que o credor não consiga demonstra a sua titularidade e a consequente legitimidade para requerer a insolvência.


Se assim não fosse, sempre que o requerido, na oposição ao requerimento da insolvência, contestasse o crédito invocado pelo credor requerente, como acontece no caso concreto,


a ação seria “paralisada” por falta de legitimidade, pois, a partir desse momento, o crédito passa a ter natureza litigiosa (como decorre do art.579º, n.3 do CC).


Facilmente se compreende que a natureza urgente do processo de insolvência (art.9º do CIRE) e o interesse geral no rápido esclarecimento da situação patrimonial do devedor não se compadeçam com uma eventual suspensão da instância para que, noutro processo, se apurasse a natureza do crédito do credor requerente.


Por outro lado, e como contrapartida de alguma insegurança que esta solução pudesse suscitar, deve ter-se presente que o art.22º do CIRE consagra a responsabilização civil do credor que intencionalmente requer a insolvência infundada do devedor.


3.2. O acórdão recorrido justificou a decisão nos termos que, em síntese, se extratam:


«(…) o n.º 1 do artigo 20.º do CIRE, na parte em que confere legitimidade ao credor para requerer a declaração de insolvência do devedor é de interpretar no sentido de que goza de legitimidade para requerer a declaração de insolvência aquele que, no requerimento inicial, justifica a origem, a natureza e o montante do seu crédito. É o que resulta do artigo 25.º do CIRE ao dispor sobre os requisitos do pedido de declaração de insolvência quando ele é deduzido pelo credor. Daí que, mesmo nos casos em que o crédito do requerente da declaração de insolvência é litigioso, ou seja, que tenha sido contestado em juízo contencioso (n.º 3 do artigo 579.º do Código Civil), é de reconhecer legitimidade a quem invoca a qualidade de credor, desde que, na petição inicial, tenha justificado a origem, a natureza e o montante do seu crédito. (…)


A verdade é que, no caso, não é necessário seguir esta interpretação para afirmar a legitimidade da requerente, ora recorrida, visto que resulta da matéria de facto provada que a mesma é credora do requerido, ora recorrente.


Diga-se, por fim, que compreende-se mal, à luz do princípio da boa fé que impende sobre as partes (artigo 8.º do CPC), que o recorrente sustente que a requerente, ora recorrida, não tem legitimidade para pedir a declaração de insolvência dele por não ter demonstrado a aquisição dos créditos que invoca. E compreende-se mal a posição do ora recorrente porque na lista dos cinco maiores credores, apresentados por ele com a oposição à acção, por imposição do n.º 2 do artigo 30.º do CIRE, indicou precisamente como maior credora, a requerente, ora recorrida.


Pelo exposto julga-se improcedente a alegação de ilegitimidade da requerente para pedir a declaração de insolvência do ora recorrente.»


O entendimento do acórdão recorrido sobre a legitimidade da requerente da insolvência merece a total concordância deste tribunal, pois na factualidade provada, sob os números 4, 5 e 6, encontra-se inequivocamente demonstrado o processo de transmissão dos créditos que originariamente pertenciam ao Montepio Geral até à titularidade do requerente da insolvência. Assim, independentemente do entendimento geral que se possa sustentar quanto à legitimidade do titular de um crédito litigioso para requerer a insolvência do devedor, no caso a que respeitam os presentes autos, sendo a alegada “fonte” de ilegitimidade o facto de o credor requerente da insolvência não ser o credor original da requerida, tal “razão” dissipa-se, de imediato, com a prova da sucessiva cedência de créditos.


3.3. Num caso que apresentava alguma semelhança com aquele a que respeitam os presentes autos, o STJ já se pronunciou sobre a questão de saber se o credor titular de um crédito litigioso tinha legitimidade para requerer a declaração de insolvência do devedor. Trata-se do acórdão de 29.03.2012 (relator Fernandes do Vale)2, processo n. 1024/10.5TYVNG.P1.S1, no qual se sumariou o seguinte:


«O titular de crédito litigioso encontra-se legitimado, ao abrigo do preceituado no art. 20.º, n.º 1, do CIRE, para requerer a declaração de insolvência do respectivo devedor.


Trata-se, in casu, de legitimidade processual ou ad causam, não contendente com o mérito da causa a que diz respeito a existência ou inexistência do controvertido crédito


Afirma-se na fundamentação desse acórdão que:


«(…) porque tal não contraria qualquer disposição do CIRE e em homenagem ao preceituado no art. 17º, deverá aquele conceito de legitimidade processual ser definido ou determinado mediante a convocação da pertinente regulamentação constante do CPC. Sendo, pois, dotado de legitimidade para requerer a declaração de insolvência quem se atribua a qualidade de credor do requerido e não – necessariamente – quem seja, efectivamente, na realidade, credor do demandado (Cfr. art. 26º do CPC). É que a questão de saber se o requerente é ou não credor do requerido prende-se com o mérito ou com o fundo da causa e não com a questão da legitimidade “ad causam” para deduzir o pedido de insolvência, a qual apenas contende com a verificação de um pressuposto processual positivo, consubstanciador, em caso de inverificação, de correspondente excepção dilatória, não podendo, pois, aquele ser privado da subsequente possibilidade processual de justificar e provar a real existência do seu invocado crédito


E acrescenta-se:


«(…) o entendimento contrário traduziria um tratamento discriminatório em desfavor do titular de crédito litigioso relativamente aos credores condicionais (mesmo tendo em conta as especificidades da correspondente previsão legal), sem que qualquer atendível razão material o justificasse. Com efeito, em tal tese, o titular de crédito litigioso seria sempre desprovido de legitimidade para requerer a declaração de insolvência do seu invocado devedor apenas em consequência da verificada litigiosidade do crédito cuja existência real não se poderia ter por excluída, enquanto que ao titular de um crédito sujeito a condição suspensiva que acabasse por não se verificar ou ao titular de um crédito sujeito a condição resolutiva que viesse a verificar-se (pese, embora, o constante do art. 94º) assistiria, sempre, tal legitimidade. O que, além do mais, violaria o princípio da “par conditio creditorum” (cfr. art. 194º), conquanto na antecâmara do processo de insolvência.


(…) a tese adversa à propugnada enferma, a nosso ver, de duas fragilidades passíveis de crítica: por um lado, pressupõe um juiz totalmente passivo e alheado das vicissitudes processuais subsequentes à apresentação da p. i. da declaração de insolvência por iniciativa do credor (apreciação liminar da petição, com possibilidade de indeferimento liminar – art. 27º, nº1 –, eventual dedução de oposição por parte do devedor – art. 30º, nº/s 1 a 4 – e eventual audiência de discussão e julgamento – art. 35º) e que não deixam de possibilitar ao juiz – que há que pressupor sensato e atento à realidade social e económica – um controlo mínimo sobre o bem ou mal fundado do pedido de declaração de insolvência; e, por outro lado, menospreza o princípio da auto-suficiência do processo de declaração de insolvência, quer na vertente da tutela provisória da aparência, quer na perspectiva da extensão da correspondente competência material para o conhecimento de todas as questões cuja decisão se mostre imprescindível para a sentença a proferir no processo de insolvência (Cfr. art. 96º, nº1, do CPC).


(…) negando-se a questionada legitimidade ao titular de crédito litigioso, afunilar-se-ia, gravemente e sem correspondente justificação plausível, o acesso à tutela jurisdicional dos direitos de crédito prosseguida pelo processo de insolvência, ante o soar do “alarme” que, as mais das vezes, promana da respectiva impugnação judicial, tantas vezes com intuitos meramente dilatórios e de simples chicana processual: bastaria, em tal tese, que o devedor contestasse, em juízo, ainda que sem qualquer fundamento, o crédito invocado pelo requerente da insolvência, para retirar a este a correspondente legitimidade


A jurisprudência vertida neste acórdão mantém plena atualidade, e pela sua pertinência se convoca na fundamentação do caso em apreço.


Em resumo, concluiu-se que o acórdão recorrido não merece censura, pois fez a correta aplicação do direito ao caso concreto.


*


DECISÃO: Pelo exposto, decide-se considerar a presente revista improcedente, confirmando-se o acórdão recorrido.


Custas pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que possa beneficiar.


Lisboa, 02.11.2023


Maria Olinda Garcia (Relatora)


António Barateiro Martins


Ricardo Costa


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1. Publicado em:

http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/afe9351e053f898e802576a400583b60?OpenDocument↩︎

2. http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/72be58ed8e65e592802579d100336402?OpenDocument↩︎