Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1786/17.9T8STB.E1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
USUCAPIÃO
AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
POSSE
DIREITO DE PROPRIEDADE
FRACCIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA
FRACIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA
UNIDADE DE CULTURA
ANULABILIDADE
Data do Acordão: 06/18/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS COISAS / DIREITO DE PROPRIEDADE / PROPRIEDADE DE IMÓVEIS / FRACCIONAMENTO E EMPARCELAMENTO DE PRÉDIOS RÚSTICOS.
Doutrina:
- Borges Araújo, colaboração de Albino Matos, Prática Notarial, 4.ª edição p. 339;
- Durval Ferreira, Posse e Usucapião, 3.ª edição, p. 525 e ss.;
- Fernando Pereira Rodrigues, Usucapião, Constituição Originária de Direitos Através da Posse, p. 35.
- Mónica Jardim e Dulce Lopes, Acessão industrial imobiliária e usucapião parciais versus destaque, Da Intersecção entre o Direito Civil e o Direito Urbanístico, p. 810;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª edição, p. 269.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1376.º E 1379.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 11-01-2005, PROCESSO N.º 05B2072, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 03-03-2009, PROCESSO N.º 09A0020;
- DE 12.01.2012, PROCESSO N.º 136/05.1TBFUN.L1.S1;
- DE 04-02-2014, PROCESSO N.º 314/2000.P1.S1;
- DE 30-04-2015, PROCESSO N.º 10495/08.9TMSNT.L1.S1;
- DE 26-01-2016, PROCESSO N.º 5434/09.2TVLSB.L1.S1;
- DE 06-04-2017, PROCESSO N.º 1578/11.9TBVNG.P1.S1;
- DE 01-03-2018, PROCESSO N.º 5733/15.4T8GMR.G1.S1;
- DE 01-03-2018, PROCESSO N.º 1011/16.0T8STB.E1.S2, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 01-03-2018, PROCESSO N.º 1011/16.0T8STB.E1.S1;
- DE 12-04-2018, PROCESSO N.º 2895/15.4T8BRG.G1.S1;
- DE 03-05-2018, PROCESSO N.º 2089/11.8TVLSB.L1.S1;
- DE 03-05-2018, PROCESSO N.º 7859/15.5T8STB.E1;
- DE 12-07-2018, PROCESSO N.º 7601/16.3T8STB.E1.S1;
- DE 19-09-2018, PROCESSO N.º 1802/15.9T8BJA-A.E1.S1;
- DE 08-11-2018, PROCESSO N.º 6000/161T8STB.E1.S1;
- DE 08-11-2018, PROCESSO N.º 6000/16.1T8STB.E1.S1;
- DE 15-11-2018, PROCESSO N.º 2769/17.4T8STB.E1.S1.
Sumário :

I - A justificação notarial constitui um instrumento jurídico simplificado para estabelecimento de trato sucessivo no registo predial e visa suprir a falta de documento que comprove o direito real sobre imóvel.

II - A escritura de justificação notarial, não sendo em si própria um negócio jurídico de que resulte o fraccionamento de prédio rústico em violação do artigo 1376.º, do Código Civil, constitui o título justificativo (por via da invocação de razões de ciência) da aquisição originária do direito real pela usucapião invocada, cujos efeitos retroagem à data do início da posse das parcelas de terreno, posse decorrente de acto de divisão material. 

III - A aquisição, por usucapião, do direito de propriedade não se encontra ferida de invalidade por desrespeito das regras do fraccionamento dos prédios rústicos cominadas com anulabilidade.

IV – Mostra-se válida a posse sobre parcelas inferiores à unidade de cultura vigente que levou à usucapião do direito de propriedade sobre os terrenos, invocada nas escrituras de justificação notarial, não obstante ter subjacente a violação do então vigente artigo 1379.º, n.º 1, do Código Civil (na redacção anterior à alteração dada pela Lei 111/2015, de 27-08).

Decisão Texto Integral:



Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,

I – relatório
1.O MNISTÉRIO PÚBLICO propôs (em 08-03-2017) contra AA e BB acção declarativa sob a forma comum pedindo que seja declarada a anulabilidade das escrituras públicas de 13 de Março de 2014 que justificaram a posse dos Réus sobre duas parcelas de terreno desanexadas de dois prédios rústicos identificados nos autos, com fundamento em que as parcelas de terreno foram destacadas com violação das regras prescritas no Código Civil quanto ao fraccionamento de prédios rústicos.

2. Os Réus contestaram pugnando pela improcedência da acção considerando inexistir fundamento para a pretendida anulação das escrituras de justificação. Excepcionaram a caducidade do direito do Autor.

3. No saneador foi julgada improcedente a excepção de caducidade.

4. Realizado julgamento foi proferida sentença (datada de 27-02-2018) que julgou a acção improcedente.

5. Inconformado apelou o Autor, tendo o Tribunal da Relação de Évora proferido acórdão (28-06-2018) que julgou improcedente a apelação, confirmando a sentença.

6. O Autor veio interpor recurso de revista normal e, subsidiariamente, revista excepcional, nos termos do disposto no artigo 672.º, n.º1, alíneas a), b) e c), do Código de Processo Civil, formulando as seguintes conclusões:

“I – O acórdão recorrido confirmou a sentença proferida em 1ª instância mas com diversa fundamentação, pelo que não ocorre uma situação de dupla conforme, sendo o mesmo recorrível nos termos gerias previstos na artº671ºn.º1 do NCPC.

II – Se assim não se entender, deve o recurso ser admitido como revista excepcional, nos termos do artº672º, nº1,als. a), b) e c), por se verificarem os respectivos pressupostos, nomeadamente a existência do acórdão contraditório proferido em 25/5/2017, na Relação de Évora, no Proc. n.º 1214/16.78STB.E1, já transitado.

III – As escrituras de justificação, embora não constituindo actos translativos da propriedade, não deixam por isso de constituir actos de fracionamento, que só a partir da sua celebração é possível impugnar, porque só então é possível ao Estado ter acesso a um documento escrito que permite verificar a existência de violação das regras impeditivas do fracionamento previstas no art° 1376° do CC - e no caso dos autos violam efectivamente o regime previsto em tal norma, uma vez que a área de cada uma das parcelas fraccionadas é inferior à unidade de cultura fixada para a região pela Portaria n° 202/70 - 2,5 hectares, para terrenos de regadio arvense.

IV - Uma adequada interpretação do art° 1379° n° 3 do CC, quando dispõe que " A acção de anulação caduca no fim de três anos, a contar da celebração do acto ..." leva a concluir que o único acto "celebrado", a partir do qual começa a correr o prazo para anulação do fracionamento, só pode ser o da " celebração" da escritura de justificação onde é invocada a usucapião, dado que no início da posse não houve qualquer acto "celebrado", mas apenas uma divisão material verbal.

V - Deve, por isso entender-se que, na realidade, o fracionamento só se tornou operante com as escrituras de justificação, uma vez que só nesse momento os justificantes obtiveram titulo jurídico válido do fracionamento realizado.

VI - Dado que as parcelas de cuja propriedade os RR se afirmam titulares são contíguas, conforme resulta do ponto 11. da matéria de facto provada, o seu fracionamento é proibido, nos termos do art° 1376° n° 3 do CC.

VII - A não realização de escritura pública de divisão de um imóvel tem como consequência que a posse sobre as fracções se exerce de forma oculta, porque tal impede que possa ser conhecida pelo interessado Estado, não sendo, pois, de considerar posse pública, nos termos do art° 1262° do CC.

VIII - A posse não pública ou oculta, não pode constituir fundamento para a usucapião, como resulta claramente do disposto no art° 1297° do CC, pelo que "os prazos da usucapião só começam a contar-se desde que cesse a violência ou a posse se torne pública" - e assim, no caso dos autos, dado que a posse só se tornou pública com a celebração das escrituras de justificação, em 2014, só então se iniciou o prazo para a usucapião, que obviamente, ainda se não completou.

IX - Tendo o acórdão recorrido considerado que as escrituras de justificação não constituem actos de fracionamento e que estes ocorreram na data das divisões verbais realizadas em 1960 e 1966, deveria então ter apreciado se esses actos de fracionamento violavam as normas proibitivas do mesmo, vigentes nessas datas, o que não fez.

X - Dado que se manteve em vigor até 1970 o disposto no art° 107° do Decreto n° 16 731, de 13/4/1929, que proibia, sob pena de nulidade, a divisão de prédio rústico em novos prédios de menos de meio hectare, como sucede no caso dos autos, o fracionamento realizado pelos justificantes nos presentes autos é nulo, podendo ser como tal declarado a todo o tempo.

XI - Não está vedado ao tribunal superior declarar tal nulidade, uma vez que esta é invocável a todo o tempo por qualquer interessado - pelo que o A. Estado aqui a invoca expressamente - e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos art°s 286°, 294° e 295 do CC .

XII - Dispondo o art° 1287° do CC, que a usucapião opera, "salvo disposição em contrário", deverá entender-se que tal disposição em contrário é a constante do art° 1376° do CC, que impede o fracionamento de prédios rústicos em novos prédios com área inferior à unidade de cultura.

XIII - Afirmar a prevalência da usucapião sobre a proibição de fraccionamento significa manifestamente esvaziar de conteúdo o disposto no art° 1376° n° 1 do C. Civil, tornando-o na prática letra morta, face a uma mera decisão dos proprietários de dividir" de facto" um terreno cuja divisão a lei proíbe, bastando-lhes assim aguardar que o decurso do prazo da usucapião venha " legalizar" um acto cometido com violação de norma legal imperativa.

XIV - As regras de ordenamento do território, nelas se incluindo tanto as respeitantes a loteamentos e destaques, como as de proibição de fracionamento, por revestirem inequívoca natureza pública, devem prevalecer sobre as normas de direito privado relativas à usucapião, sob pena de, assim não se entendendo, se estar a deixar sem qualquer protecção o ordenamento do território nacional - e do mesmo passo a possibilitar actuações em fraude à lei.

XV - Ao alterar a redacção do disposto no art° 1379° n° 1 do CC, passando a impor a sanção de nulidade para os actos de fracionamento violadores da unidade de cultura, a Lei n° 111/2015, de 27/08, reafirmou o carácter imperativo do disposto no art° 1376° do CC e confirmou, sem qualquer dúvida, a não prevalência da usucapião sobre as regras legais de proibição de fracionamento.

XVI - O legislador demonstrou claramente, na exposição de motivos da Lei n° 111/2015, que pretendeu intervir "através da possibilidade de impedimento dos atos jurídicos que contrariem esses limites, com o objetivo de se garantir a sustentabilidade das estruturas fundiárias."

XVII - Assim, é de acolher, no caso dos autos, a posição jurisprudencial que decorre dos Acórdãos do STJ de 30/4/2015 e de 26/1/2016 (Procs. n° 10495/08.9TMSNT.L1.S1 e n° 5434/09.2TVLSB.L1.S1), bem como do acórdão da Relação de Évora de 25/5/2017 (Proc. n° 1214/16.7T8STB.E1), os quais decidiram, em situações absolutamente idênticas, no sentido de que a usucapião não prevalece sobre as regras de proibição do fracionamento.

XVIII - Uma vez que, na presente acção, cada uma das parcelas fraccionadas tem área de 4 400 m2, - inferior à unidade de cultura de regadio arvense prevista na Porta n° 202/70 e igualmente inferior à área de 0,5 ha, prevista no art° 107° do Decreto n° 16731 de 13/4/1929, - não pode a usucapião ser reconhecida como válida, dado que não prevalece sobre norma imperativa de proibição de fracionamento, quer a contida no art° 1376° n° 1 do C. Civil, quer a contida no art° 107° do Decreto n° 16731, de 13/4/1929.

XIX - Não tendo assim decidido violou o douto acórdão recorrido o disposto nos art°s 286°, 294°, 295°, 1262°, 1287°, 1297°, 1376° e 1379° do Código Civil, devendo ter interpretado os mesmos com o sentido que decorre das conclusões que antecedem.”.

7. Nas contra alegações os Réus defendem a inadmissibilidade da revista normal por se verificar uma situação de dupla conformidade e concluem pela improcedência do recurso.

II – APRECIAÇÃO DO RECURSO

De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil – doravante CPC) mostra-se submetida à apreciação deste tribunal a seguinte questão:
ð  Admissibilidade da revista normal
ð Natureza jurídica da escritura de justificação notarial e viabilidade da acção
ð Prevalência da usucapião sobre a proibição de fraccionamento

1 Os factos provados

1. No dia 13 de Março de 2014, por escritura pública celebrada no Cartório Notarial da Lic. CC, em ..., os réus justificaram a posse de uma parcela de terreno com a área de 4.400m2, sita em .../…, freguesia e concelho de ..., composta de terras de cultura arvense e arenitos, confrontando de norte com AA e BB, de sul DD, de nascente com aceiro e a poente com EE, declarando adquirida «a referida parcela, por usucapião, invocando, por isso, esta forma originária de aquisição, para todos os efeitos legais» - cfr. doc. junto com a p.i.

2. Tal parcela foi desanexada do prédio rústico composto de árvores de fruto e vinha, inscrito na matriz sob o artigo … H da freguesia de ....

3. No dia 13 de Março de 2014, por escritura pública celebrada no Cartório Notarial da Lic. CC, em ..., os réus justificaram a posse de uma parcela de terreno com a área de 4.400m2, sita em .../…, freguesia e concelho de ..., composta de vinha, cultura arvense e árvores de frutos, confrontando de norte com DD, de sul o próprio, de nascente com aceiro e a poente com EE, declarando adquirida «a referida parcela, por usucapião, invocando, por isso, esta forma originária de aquisição, para todos os efeitos legais» - cfr. doc. junto com a p.i.

4. Tal parcela foi desanexada do prédio rústico composto de árvores de fruto e vinha, inscrito na matriz sob o artigo … H da freguesia de ....

5. Por escritura de 03 de Dezembro de 1960, do Primeiro Cartório Notarial de ..., a cargo do notário, FF, o réu em comum e em partes iguais conjuntamente com os seus irmãos GG e DD, comprou uma parcela de terreno do prédio então designado por Colónia Agrícola de ..., medindo o terreno objecto da compra cerca de 13.200m2.

6. Logo na época dessa aquisição, em 1960, essa parcela de terreno foi dividida por acordo verbal entre os irmãos em 3 parcelas de aproximadamente de 4.400 m2 cada, devidamente demarcadas.

7. Por escritura de 13 de Dezembro de 1966, do Cartório Notarial de ..., então a cargo do respectivo notário, Bacharel em Direito, HH, o réu comprou a II e mulher, JJ, respectivamente seus cunhado e irmã, livre de qualquer ónus, encargo ou responsabilidade, uma terça parte de uma outra parcela alienada e por aqueles adquirida pela mesma escritura celebrada em 1960, em compropriedade com mais dois outros irmãos.

8. A terça parte que adquiriu do referido prédio correspondia na realidade a uma parcela com a área de cerca de 4.400 m2, que, à semelhança do que sucedeu com o terreno por si adquirido, os titulares haviam autonomizado e delimitado entre si após a celebração da escritura pública celebrada em 1960.

9. Desde essa data o réu AA, conjuntamente com o respectivo cônjuge, e até ao presente, tem vindo a realizar culturas e trabalhos agrícolas e colhendo os respectivos frutos sobre as concretas parcelas de terreno objecto das escrituras referidas em 1) e 3), à vista de toda a gente e sem oposição de terceiro.

10. Desde essa data que os réus têm possuído aquelas parcelas em nome próprio, sem interrupção, respeitando as suas extremas, com total independência, na convicção de serem os seus legítimos donos com exclusão de outrem.
11. As parcelas objecto das escrituras de justificação são confinantes entre si.

2. O direito

1. Da admissibilidade da revista

Nos termos do artigo 671º, nº 3, do CPC, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida pela 1ª instância.

No caso, verifica-se uma situação de aparente dupla conformidade de decisões uma vez que o acórdão recorrido, sem voto de vencido, julgando improcedente a apelação, confirmou a sentença, mantendo a acção improcedente.

Coloca-se assim a questão de saber, como pugna o Recorrente, se o acórdão ao confirmar a sentença enveredou por fundamentação essencialmente diversa.

Na sequência do que tem vindo a ser o entendimento deste Tribunal quanto à exigência legal (dupla conformidade nas decisões) para afastar o limite à recorribilidade do acórdão da Relação que confirme a sentença de 1ª instância, a diversidade essencial na fundamentação tem de ser encontrada na estruturação lógica argumentativa das decisões proferidas pelas instâncias e não se basta com qualquer alteração ou desvio adicional ou lateral da fundamentação jurídica acolhida no acórdão recorrido, impondo que se trate de uma alteração ou modificação qualificada da base jurídica da decisão, resultante do apelo a um diferente enquadramento normativo do pleito: não cabem, pois, seguramente no referido conceito de fundamentação essencialmente diferente os casos em que – movendo-se inquestionavelmente a Relação, no que respeita à efectiva ratio decidendi do acórdão proferido, no campo dos mesmos institutos ou figuras jurídicas – se limita a aditar um mero reforço argumentativo no que toca à solução jurídica do pleito que alcançou[1].

A sentença julgou improcedente a acção sustentando que embora no caso se encontrassem reunidos os pressupostos para que fossem anuladas as escrituras de justificação (por os actos de fraccionamento consubstanciarem violação do disposto no artigo 1376.º, do Código Civil, e por as parcelas em causa não se encontrarem abrangidas pelo previsão do artigo 1377.º, alínea b), do Código Civil), uma vez que se encontravam preenchidos os requisitos constitutivos da usucapião, devia esta sobrepor-se e prevalecer sobre o fraccionamento ilegal do prédio que esteve na respectiva génese, concluindo, nessa medida, inexistir impedimento legal ao reconhecimento do direito justificado pelos Réus.

         O acórdão recorrido, porém, alicerçou a sua decisão de improcedência da acção na natureza jurídica da justificação notarial considerando que a mesma não constitui acto translativo nem constitutivo de direito, antes consubstanciando um negócio jurídico unilateral declarativo caracterizado pela declaração do direito adquirido por usucapião. Nesse sentido considerou não existir causa de nulidade decorrente da ilegalidade de fraccionamento do prédio uma vez que este não ocorre por via do acto declarativo, antes por via da aquisição, no caso, quando do início da posse do direito de propriedade declarado, aspecto que entendeu cair fora do âmbito da acção.

         Mostra-se assim bem patente que a justificação ínsita no acórdão para a improcedência da acção encontra-se radicada em realidade jurídica diversa e autónoma da que havia sido sustentada pela 1ª instância e, como tal, há que lhe atribuir fundamentação essencialmente diversa.

         Importa, por isso, conhecer do recurso enquanto revista normal por inexistência de dupla conformidade decisória por parte das instâncias.


2. Da natureza jurídica da escritura de justificação notarial e da viabilidade da acção

O acórdão recorrido, desviando-se da fundamentação da sentença[2], perspectivou a situação sob apreciação fixando-se na natureza jurídica da(s) escritura(s) de justificação não tendo, por isso, tomado posição quanto à questão da prevalência da usucapião sobre a proibição de fraccionamento.

A decisão a quo encontra-se sustentada no seguinte raciocínio:

- à data de outorga das escrituras de justificação o artigo 1379.º, do Código Civil, sancionava com anulabilidade os actos de fraccionamento em violação do disposto no artigo 1376.º, do Código Civil;

- a escritura de justificação constitui um expediente técnico simplificado de titulação de factos jurídicos relativos a imóveis por forma a que o interessado possa fazer prova plena (atenta a sua natureza de documento autêntico) do facto jurídico que titula: declaração (do direito adquirido por usucapião) efectuada perante o oficial público que consubstancia negócio jurídico unilateral declarativo da aquisição de um direito;

- a escritura de justificação não formou, por isso, o acto translativo ou constitutivo de direito de propriedade nem foi constitutiva do fraccionamento do prédio rústico pois que apenas titulou a declaração do direito adquirido por usucapião;

- o fraccionamento do prédio rústico teve lugar por via da aquisição (quando do início da posse) do direito de propriedade declarado na escritura de justificação;

- enquanto acto notarial a escritura de justificação pode padecer de nulidade por vícios de forma nos termos do artigo 70.º, do Código do Notariado, ou ser impugnada judicialmente, de acordo com o previsto no artigo 101.º, do Código do Notariado, visando a eliminação dos efeitos aquisitivos nela declarados; 

- independentemente da questão da inexistência/nulidade do direito fundado na usucapião face à imperatividade das normas jurídicas atinentes ao ordenamento do território, não consubstanciando a escritura de justificação um acto de fraccionamento, a pretensão visada pelo autor – anulação dos negócios jurídicos pelos quais se operou a divisão dos prédios originais – não pode ser obtida através da presente acção.

Insurge-se o Autor apoiado em duas ordens de argumentos:

1 – as escrituras de justificação constituem actos de fraccionamento nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 1376.º e 1379.º, ambos do Código Civil;

2 – a usucapião não tem prevalência sobre a proibição de fraccionamento.

Invoca para o efeito:

- embora não constitua um acto translativo de propriedade, a escritura de justificação terá de ser considerada acto de fraccionamento operante (título jurídico válido de fraccionamento) uma vez que é no momento da sua celebração que a usucapião se mostra visível (os justificantes obtiveram um título jurídico válido do fraccionamento realizado) e, por isso, passível de poder ser impugnada;

- até à celebração da escritura a posse dos Réus não pode ser considerada pública uma vez que até lá a mesma é oculta do Estado;

- só com a celebração das escrituras se iniciou o prazo da usucapião que, por isso, não está completado;

- as divisões verbais de terreno rústico ocorridas no caso, realizadas entre 1960 e 1966, encontravam-se sujeitas às regras de proibição de fraccionamento constante do artigo 107.º, do Decreto n.º 16731, de 13-04-1929, que sancionava com nulidade as parcelas com área inferior a 0,5 hectares; como tal, não estava o tribunal da Relação impedido de apreciar a validade dos actos de fraccionamento e declarar a sua nulidade;

- a interpretação consentânea com a unidade do sistema jurídico nos termos do artigo 9.º, do Código Civil, impõe considerar que o artigo 1376.º, do Código Civil, que impede o fraccionamento de prédios rústicos em novos prédios com área inferior à unidade de cultura, constitui disposição em contrário para efeitos do artigo 1287.º, do mesmo Código, assumindo tal proibição legal prevalência sobre a usucapião;

- o predomínio das regras relativas ao fraccionamento rural sobre a usucapião mostra-se evidenciado na alteração legislativa introduzida pelo DL 111/2015, de 27-08, ao artigo 1379.º, do Código Civil, que passou a impor a sanção de nulidade para os actos de fraccionamento violadores da unidade de cultura patenteando, assim, a natureza imperativa das regras relativas ao fraccionamento dos prédios.

Vejamos.

Ainda que não se partilhe o posicionamento do Ministério Público ao defender que as escrituras de justificação notarial constituem actos de fraccionamento, desde já se adianta que não podemos concordar com o fundamento seguido pelo tribunal a quo ao concluir pela inviabilidade da presente acção para alcançar o efeito pretendido pelo Autor.

A justificação notarial consiste num instrumento jurídico simplificado para estabelecimento de trato sucessivo no registo predial (cfr. artigo 116.º, n.º 1, do Código do Registo Predial)[3]. Trata-se, por isso, de uma forma especial de titulação de direitos sobre imóveis para efeito de descrição na conservatória do registo predial que assenta em declarações dos próprios interessados (ainda que confirmadas por três declarantes) e visa suprir a falta de documento que comprove o direito de propriedade sobre imóvel[4].

Enquanto acto notarial a escritura de justificação pode padecer de vícios de forma ou outros que determinam a sua nulidade (cfr. artigo 70.º e 71.º do Código de Notariado), prevendo o artigo 101.º, do mesmo Código, a possibilidade de algum interessado impugnar jurisdicionalmente o facto justificado (devendo para o efeito requerer simultaneamente ao tribunal a imediata comunicação ao notário da pendência da acção – n.º1 do mesmo preceito), ou seja, interpondo acção com a finalidade de proceder à eliminação dos efeitos dos factos aquisitivos declarados.

O tribunal recorrido afastou a possibilidade da presente acção assumir tal configuração colocando ênfase na circunstância de o acto cuja anulação é pretendida através da presente acção – fraccionamento do prédio rústico – não ter sido constituído pela(s) escritura(s) de justificação notarial por esta(s) apenas contemplar(em) a declaração do direito adquirido por usucapião.

Com esta tomada de posição, enveredando por uma solução formal sem se pronunciar sobre a (in)validade dos actos de fraccionamento ocorridos quando da divisão verbal dos prédios, o acórdão recorrido descurou os termos em que a acção se encontra delimitada[5], bem como a natureza e a finalidade da escritura de justificação notarial em que fez assentar a sua própria decisão.

Na verdade, enquanto meio expedito destinado a possibilitar o registo da aquisição de um direito, de natureza probatória, que permite harmonizar a situação jurídica com a registal[6] a(s) escritura(s) de justificação configura(m) para o efeito em causa um meio de prova do direito real justificado, ou seja, consubstancia(m) documento(s) que comprova(m) a propriedade do imóvel e o processo causal da sua aquisição sendo que, no caso, tal como preceitua n.º2 do artigo 89.º do Código do Notariado, alegada a usucapião baseada em posse não titulada foram mencionadas as circunstâncias de facto que determinaram o início da posse, bem como as que consubstanciaram e caracterizaram a posse geradora da usucapião.

Porém, o entendimento do acórdão recorrido, com o qual, aliás, não podemos deixar de concordar no que respeita a que o fraccionamento dos prédios em apreciação não ocorreu por via do acto declarativo titulado na escritura de justificação em que é invocada a usucapião (mas resultou dos actos de divisão verbal dos prédios), de modo algum permite justificar qualquer impossibilidade legal em conhecer da pretensão visada através da presente acção (apreciar da (in)validade desses actos de fraccionamento que as aludidas escrituras de justificação corporizam) pois que, sublinhe-se, as escrituras de justificação, não sendo em si próprias um negócio jurídico de que resulte o fraccionamento em violação do artigo 1376.º, do Código Civil, constituem o título justificativo (por via da invocação de razões de ciência) da aquisição originária do direito real pela usucapião invocada[7], cujos efeitos retroagem à data do início da posse das parcelas de terreno, posse essa despontada pelo acto de divisão material que o Autor visa atingir.

Assim sendo, porque as escrituras de justificação apenas se reconduzem ao mero instrumento jurídico de obtenção do título justificativo da aquisição originária, não colhe a pretensão do Recorrente ficcionando a data do fraccionamento com a data de celebração das escrituras (para concluir que só com as justificações notarias a invocação usucapião se tornou pública[8]).

Improcedem, assim, as conclusões III a VIII das alegações de recurso.


3. Da prevalência da usucapião sobre a proibição de fraccionamento

O acórdão recorrido, ainda que não tenha tomado posição relativamente à questão de saber se a usucapião, como forma originária de adquirir o direito de propriedade deve (ou não) prevalecer sobre as normas relativas ao fraccionamento de prédios rústicos, ao julgar improcedente o recurso da sentença (que havia concluído não ocorrer impedimento legal - por fraccionamento ilegal - ao reconhecimento do direito de propriedade justificado pelos Réus) fez resultar que este entendimento vingasse no processo, sendo, por isso, contra ele que o Autor se insurge.

         Vem pois o Autor pugnar na revista (cfr. conclusões IX a XIX) pela prevalência das regras de ordenamento de território, no caso, as relativas à proibição de fraccionamento de prédios rústicos sobre as regras da usucapião.

Apoiado em Jurisprudência e Doutrina, o Ministério Público defende a sua posição erigida no princípio da prevalência da salvaguarda de um interesse público preeminente argumentando essencialmente:

- vigorando à data dos actos verbais de fraccionamento em causa (1960 e 1965) legislação – Decreto n.º 16731 de 13-04-1929 – que proibia, sob pena de nulidade, a divisão de prédio rústico de superfície inferior a 1 hectare, encontram-se os mesmos sujeitos ao referido regime (artigo 107.º, do citado Decreto) e, por isso, feridos de nulidade por contrariarem norma imperativa;

- o artigo 1287.°, do Código Civil, exclui a possibilidade de se verificar a usucapião quando haja disposição em contrário, como é o caso do artigo 1376.°, n.° 1, do Código Civil, que impede o fraccionamento de parcelas de terreno inferiores à unidade de cultura, não sendo exigível que tal norma afirme expressamente a exclusão da usucapião;

- são de incontestável interesse público os interesses salvaguardados pelo citado artigo1376.º n.º1, visando a estruturação fundiária nacional e o ordenamento territorial em termos socialmente adequados;

- a alteração da redacção do artigo 1379.° n.° 1, do Código Civil[9], ao passar a impor a sanção de nulidade para os actos de fraccionamento violadores da unidade de cultura, constitui uma inequívoca reafirmação da natureza imperativa da norma e da não prevalência da usucapião sobre tais regras legais, conforme se mostra explicitado na exposição de motivos da Lei n.° 111/2015[10];

- na hierarquização de normas de defesa de interesses de ordem pública (interesse na estabilidade e certeza das relações jurídicas que norteia o regime da usucapião e o interesse no correcto ordenamento do território e na legalidade urbanística presidido nas situações de proibição de fraccionamentos ilegais) há que dar prevalência à defesa e tutela de um interesse público mais amplo por estar em causa o reconhecimento jurídico de interesses da própria comunidade onde se inserem as regras respeitantes ao correcto ordenamento do território e à legalidade urbanística.

A força desta argumentação defendida por alguma (ainda que minoritária) Jurisprudência e Doutrina[11] cede perante a orientação dominante à qual aderimos[12], que confere prevalência ao reconhecimento da estabilidade de uma situação jurídica duradoura assente na constituição do direito de propriedade por efeito da usucapião, que não pode ser afectado pelo regime de fraccionamento de prédios rústicos que envolvam regras proibitivas cominadas com anulabilidade, como acontece no caso dos autos.

Reportemos à situação sob apreciação.

3.1. Importa, em primeiro lugar, determinar o regime jurídico a aplicar.

Invoca o Recorrente o regime previsto no artigo 107.º, do Decreto 16731, de 13-04-1929[13] (que sancionava com nulidade a divisão de prédio rústico em novos prédios de menos de meio hectare) vigente à data da divisão dos imóveis (parcela de terreno do prédio Colónia Agrícola de ... e a terça parte de uma outra parcela de terreno do mesmo prédio), que datam de 1960 e 1966 – n.ºs 5, 6, 7 e8

Na sequência do já referido, tendo presente o escopo da acção[14] e a natureza da escritura de justificação (titulo justificativo da aquisição do direito de propriedade sobre os imóveis por usucapião), há que considerar que, de acordo com o disposto no artigo 12.º, do Código Civil, o regime jurídico aplicável à situação é o que se encontrava em vigor à data da celebração das escrituras de justificação (por efeito das quais os Réus obtiveram o reconhecimento do direito de propriedade, com base na usucapião) por as mesmas constituírem a celebração do acto de reconhecimento, nos termos indicados pelo artigo 1379.º, n.º3, do Código Civil.

Assim sendo, contrariamente ao defendido pelo Recorrente, mostra-se aplicável o regime dos artigos 1376.º e 1379.º, do Código Civil, na redacção então vigente, que cominava com anulabilidade os actos de fraccionamento contrários ao disposto no citado artigo 1376.º[15].

3.2 Afastada que se encontra a tese defendida pelo Autor de que, no caso, os prazos de usucapião apenas podem ser contados a partir da celebração das escrituras de justificação notarial[16], atenta a factualidade apurada no processo (n.ºs 9 e 10 da matéria de facto provada), na sequência do concluído pelas instâncias, não oferece dúvida de que se mostram verificados os requisitos para que os Réus tenham adquirido, por usucapião, o direito de propriedade sobre os terrenos em causa (cfr. artigos 1287.º, 1288.º, 1291.º e 1296.º, todos do Código Civil)[17].

Importa por isso determinar se essa aquisição do direito de propriedade se encontra ferida de invalidade por desrespeito das regras do fraccionamento dos prédios rústicos.

Elegendo o posicionamento que quanto à questão vem sendo maioritariamente defendido na jurisprudência e na doutrina, uma vez que se considera que a usucapião prevalece sobre as regras do fraccionamento[18], há que concluir que a posse dos Réus sobre parcelas inferiores à unidade de cultura vigente, que levou à usucapião do direito de propriedade sobre os terrenos e invocada nas escrituras de justificação notarial não se mostra impedida pela violação do então vigente artigo 1379.º, n.º 1, do Código Civil[19].

         Na sequência do acima invocado, o Recorrente insurge-se contra este posicionamento maioritário fundando-se nos seguintes pilares que vêm sendo defendidos pelo entendimento oposto ao que aderimos:

         - excluir o artigo 1287.°, do Código Civil, a possibilidade de se verificar a usucapião quando haja disposição em contrário, constituindo o n.º1 do artigo 1376.° do Código Civil, disposição em contrário, não sendo exigível que aquela norma expressamente contemple a exclusão da usucapião.

- serem de manifesto interesse público os interesses visados com a proibição ínsita na citada norma (artigo 1376.°, n.°1, do Código Civil) tendo em vista a estruturação fundiária nacional e o ordenamento territorial em termos socialmente adequados, sendo os actos cometidos em violação da mesma geradores de nulidade, nos termos do artigo 294.°, do Código Civil.

- ter o legislador reforçado e afastado qualquer dúvida quanto à natureza imperativa da norma (e, nessa medida, a não prevalência da usucapião sobre as regras legais de proibição de fraccionamento) alterando a redacção do disposto no artigo 1379.°, n.° 1, do Código Civil (com a Lei n° 111/2015, de 27-08), passando a impor a sanção de nulidade para os actos de fraccionamento violadores da unidade de cultura.

         Contrapondo tais considerações cabe mais uma vez realçar que a situação sob apreciação terá de ser analisada e dirimida sob o regime da anulabilidade dos actos previsto pelo n.º1 do artigo 1379.º do Código Civil.

         Por outro lado e no que se reporta à expressão legal disposição em contrário que o artigo 1287.º, do Código Civil, ressalva, há que considerar que a mesma não abarca o referido artigo 1376.º uma vez que inexiste qualquer norma excepcional que estabeleça, taxativamente, que a posse mantida sobre parcelas de terreno com área inferior à unidade de cultura não conduz à usucapião, ou seja, que as mesmas não podem ser adquiridas por usucapião.

Relativamente a este aspecto cabe transcrever o que se encontra realçado pelo acórdão deste tribunal, de 1-03-2018, proferido no âmbito do Processo n.º 1011/16.0T8STB.E1.S2[20]:

- “(…) como é consabido e resulta do citado art. 1287º, que o instituto da usucapião assenta na existência da posse, definida, nos termos do art. 1251º do C. Civil, como o poder de facto (corpus) que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (corpus), mantido, de forma ininterrupta pacífica e pública (arts. 1261º e 1262º, do C. Civil), durante um certo lapso de tempo, que varia em função da natureza do bem ( móvel ou imóvel) sobre que incide e de acordo com os caracteres da mesma posse (titulada ou não titulada e de boa fé ou de má fé – cfr. arts. 1259º , 1260º e 1294º, todos do C. Civil).

Invocada a usucapião, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse (cfr. art. 1288º do C. Civil), adquirindo-se o direito de propriedade no momento em que se iniciou a posse (cfr. art. 1317º, al. c), do C. Civil).

A usucapião é, assim, uma forma de aquisição originária do direito de propriedade, que no dizer do Acórdão do STJ, de 27.06.2006 (proc. nº 06ª1471), «se funda direta e imediatamente na posse, cujo conteúdo define o do direito adquirido, com absoluta independência relativamente aos direitos que antes dessa aquisição tenham incidido sobre a coisa».

Dito de outro modo e nas palavras de Oliveira Ascenção, «o novo titular recebe o seu direito independentemente do direito do titular antigo. Em consequência, não lhe podem ser opostas as excepções de que seria passível o direito daquele titular»[.

No mesmo sentido, afirma Abílio Vassalo Abreu, que «o direito adquirido por usucapião surge ex novo na esfera jurídica do sujeito, pois não depende geneticamente de um direito anterior, depende tão só, do facto aquisitivo em que o processo de usucapião se analisa».

E daí concluir-se, no citado Acórdão do STJ, de 27.06.2006, que «irrelevam quaisquer irregularidades precedentes e eventualmente atinentes à alienação ou transferência da coisa para o novo titular, sejam vícios de natureza formal ou substancial. O que passa a relevar e a obter tutela jurídica é a realidade substancial sobre a qual incide a situação de posse. Concorrendo, aferidas pelas características desta, os requisitos da usucapião, os vícios anteriores não afectam o novo direito, que decorre apenas dessa posse, em cujo início de exercício corta todos os laços com eventuais direitos e vícios, incluindo de transmissão, anteriormente existentes».”

         Igualmente não colhe a argumentação referente à sobreposição do interesse público que a norma do artigo 1376.°, n.°1, do Código Civil, visa salvaguardar e, bem assim, do intuito alcançado pela alteração da redacção do citado preceito com a Lei 111/2015, de 27-08, pois que não pode ser descurado que as regras em que assenta a usucapião também são determinadas por razões de interesse público radicadas na relevância social da necessidade de asseverar a certeza da existência e da titularidade dos direitos reais de gozo sobre as coisas[21]. Por outro lado, no que se refere ao elemento teleológico de interpretação, cumpre salientar que o propósito visado pelo legislador ao ter optado por manter (até às alterações que foram introduzidas em 2015 pela Lei n.º 111) a sujeição dos actos de fraccionamento contrários ao disposto no artigo 1376.º, n.º1, do Código Civil, a um regime menos severo de invalidade (a anulabilidade), arguível num curto prazo, apenas permite, a nosso ver, ter uma leitura que é a de querer fazer prevalecer a consolidação de certas situações, designadamente de aquisição do direito por usucapião, pois que, após o decurso de um prazo curto, a violação da lei deixava de relevar.

Neste sentido importa, igualmente, socorrermo-nos do que a tal respeito se encontra referido no acórdão de 1-03-2018 supra citado:

- “(…) É que também as regras da usucapião são determinadas por razões de interesse público.

Com efeito, como refere Durval Ferreira, a usucapião não visa satisfazer um interesse individual do possuidor, mas, antes, o interesse público de «assegurar, no tráfego das coisas, quer a certeza da existência dos direitos reais de gozo sobre elas e de quem é o seu titular, quer em proteger o valor da publicidade/confiança que nesse tráfego lhe é aduzido pela posse, quer em fornecer, através do usucapião, um meio de prova seguro, de fácil utilização e consentâneo com a confiança, quanto à existência do direito e á sua titularidade».

Do mesmo modo não colhe o argumento avançado pelo recorrente no sentido de que a sanção de nulidade, agora, imposta pelo art. 1379º, n.º 1 do C. Civil, na redação dada pela Lei nº 111/2015, para os actos de fracionamento violadores da unidade de cultura, é bem elucidativa da vontade do legislador reafirmar o caráter imperativo dessa norma e confirmar a não prevalência da usucapião sobre as regras legais de proibição de fracionamento, tanto mais, que ficando sujeita ao regime estatuído nos art.ºs 294º e 286º, ambos do C. Civil, pode ser invocada a todo o tempo por qualquer interessado e pode até ser declarada oficiosamente pelo tribunal.

Desde logo, porque, como já ensinava Manuel de Andrade, «o princípio de que a nulidade absoluta pode, por via de acção, ser invocada a todo o empo, não prevalece sobre a doutrina da prescrição aquisitiva».

No mesmo sentido, afirma Mota Pinto que a possibilidade da invocação perpétua da nulidade, pode ser precludida pela verificação da prescrição aquisitiva (usucapião)”.

         Por conseguinte, uma vez que, no caso, cabe fazer prevalecer a usucapião sobre a proibição de fraccionamento de terrenos rústicos com área inferior ao mínimo legal, não pode proceder a pretensão do Autor sustentada na anulabilidade dos actos de fraccionamento titulados nas escrituras de justificação notarial em causa.

Improcedem, assim, as conclusões das alegações.       

IV. DECISÃO
Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar a revista improcedente.

Sem custas.


Lisboa, 18 de Junho de 2019

Graça Amaral (Relatora)
Henrique Araújo
Maria Olinda Garcia

_____________________
[1] Cfr. entre outros Acórdãos do STJ de 01-03-2018, 12-04-2018, 03-05-2018 e 19-09-2018, proferidos, respectivamente nos Processos n.ºs 5733/15.4T8GMR.G1.S1, 2895/15.4T8BRG.G1.S1, 2089/11.8TVLSB.L1.S1 e 1802/15.9T8BJA-A.E1.S1.
[2] A sentença focalizou-se no acto de divisão/desanexão dos terrenos de que resultou as parcelas cuja posse os Autores justificaram na escritura. Assim, embora reconhecendo que se mostrava violado o regime legal relativo à unidade de cultura mínima fixado para a zona geográfica em causa, entendeu que as normas reportadas ao fraccionamento dos prédios rústicos cediam perante a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre as referidas parcelas. 
[3] (…) Na génese do sistema em que assenta a justificação notarial está o principio do trato sucessivo. Partindo da ideia de que, respeitando este princípio, se poderia criar um documento que substituísse, para efeitos de registo, títulos faltosos, criou-se um sistema em que nos aparece a nova escritura, de natureza excepcional, para apoiar e servir as necessidades do registo obrigatório, que se pretendia estabelecer. O novo título foi buscar ao princípio do trato sucessivo a sua razão de ser, servindo não só o registo obrigatório como o registo predial em geral, ao possibilitar registos que de outro modo seriam impossíveis. - Borges Araújo com a colaboração de Albino Matos, Prática Notarial, 4.ª edição p. 339.
[4] O direito real em causa é justificado por via de declaração do interessado confirmada por três declarantes
[5] Pretende o Autor a anulação dos actos de fraccionamento com fundamento na sua invalidade por desrespeito do artigo 1376.º, n.º1, do Código Civil, independentemente da questão da via por que foram operados: fraccionamento ocorrido nas datas das escrituras de justificação notarial ou quando da divisão verbal dos prédios - Cfr. artigos 5º, 8º e 9º da petição.
[6] Acórdão do STJ de 11-01-2005, Processo n.º 05B2072, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.
[7] Conforme resulta do disposto nos artigos 303.º, 1288.º e 1292.º, todos do Código Civil, a usucapião como forma de aquisição originária do direito de propriedade e de outros direitos reais de gozo precisa de ser invocada; nesse caso, verificados os respectivos requisitos legais (posse por determinado período de tempo – 1287.º, do Código Civil) a aquisição retrotrai-se à data do início da posse, no caso, quando dos actos de divisão.
[8] Extrapolando tal raciocínio para defender que até à celebração das escrituras a posse dos Réus não poderia ser considerada pública por até aí ter sido oculta do Estado a quem incumbe velar pela não violação da regra contida no artigo 1376.º, do Código Civil.
[9] Operada pela Lei n.°111/2015, de 27-08.
[10] Onde expressamente se indica a finalidade da intervenção: possibilidade de impedimento dos atos jurídicos que contrariem esses limites, com o objetivo de se garantir a sustentabilidade das estruturas fundiárias.
[11] Na doutrina e conforme invocado no acórdão de 08-11-2018 (processo n.º 6000/161T8STB.E1.S1):

- Mónica Jardim e Dulce Lopes, em “Acessão industrial imobiliária e usucapião parciais versus destaque”, Da Intersecção entre o Direito Civil e o Direito Urbanístico, p. 810;

- Fernando Pereira Rodrigues, Usucapião, Constituição Originária de Direitos Através da Posse, p. 35.

Na jurisprudência deste Supremo Tribunal:

- Acórdão de 30-04-2015, Processo n.º 10495/08.9TMSNT.L1.S1.

- Acórdão de 26-01-2016, Processo n.º 5434/09.2TVLSB.L1.S1

[12] Cfr. Na jurisprudência deste Tribunal defendeu-se este entendimento, entre outros, nos seguintes Acórdãos:

- de 03-03-2009, Processo n.º 09A0020;

- de 12.01.2012, Processo n.º 136/05.1TBFUN.L1.S1;

- de 04-02-2014, Processo n.º 314/2000.P1.S1;

- de 06-04-2017, Processo n.º 1578/11.9TBVNG.P1.S1;

- de 01-3-2018, Processo n.º 1011/16.0T8STB.E1.S1;

- de 03-05-2018, Processo n.º 7859/15.5T8STB.E1

- de 12-07-2018, Processo n.º 7601/16.3T8STB.E1.S1

- de 08-11-2018, Processo n.º 6000/16.1T8STB.E1.S1;

- de 15-11-2018, Processo n.º 2769/17.4T8STB.E1.S1

Na Doutrina, cfr. entre outros:

- Durval Ferreira, Posse e Usucapião, 3ª ed., pp. 525 e ss.;

- Pires de Lima e Antunes Varela Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª edição, p. 269;
[13] De acordo com o artigo 2.º, do Regulamento que Fixa a Unidade de Cultura para Portugal Continental, Nos termos do n.º 2 da base XXXIII da Lei n.º 2116, de 14 de Agosto de 1962, deixam de ser aplicáveis em Portugal Continental os artigos 106.º e 107.º do Decreto n.º 16731, de 13 de Abril de 1929. – cfr. Portaria n.º 202/70, de 21-04.
[14] Proposta pelo Ministério Público, em 08.03.2017, ao abrigo do disposto no artigo 1379.º, do Código Civil.
[15] Estando pois excluída a nova redacção dada ao artigo 1379.º do Código Civil, introduzida pela Lei n.º 111/2015, de 27 de Agosto, que comina a violação dos mesmos actos com a nulidade, e que só entrou em vigor 30 dias depois da sua publicação (Artigo 65.º),
[16] Por até essa altura se estar perante posse não pública por não poder ser conhecida pelo Estado.
[17] Detinham os Réus uma posse não titulada (presumida de má fé), mantida por mais de 20 anos, de forma pacífica e pública.
[18] No âmbito do regime anterior à entrada em vigor da Lei n.º 111/2015, de 27-08.
[19] O quadro legal a considerar para o efeito era o que decorrida da Lei nº 2116, de 14-08-1964 (cfr. Base XXXIII, n.ºs 1 e 2) e da Portaria n.º 202/70, de 21-04 (artigo 1.º), que fixou a área das unidades de cultura para a região de Setúbal, onde se integram os prédios em causa, tendo a 1ª instância concluído serem terrenos de regadio arvenses com área inferior ao 2,50 hectares, isto é, inferior ao limite mínimo de superfície previsto legalmente (2,50 hectares).
[20] Acessível através das Bases Documentais do ITIJ.
[21] A importância da usucapião enquanto direito originário de aquisição de direitos reais, designadamente do direito de propriedade decorre desde logo de os seus efeitos retroagirem à data do início da posse – 1288.º, do Código Civil.