Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
361/14.4TBVVD.G1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
COMUNICAÇÃO
VIA PÚBLICA
CIRCULAÇÃO AUTOMÓVEL
PRÉDIO DOMINANTE
CASA DE HABITAÇÃO
PRÉDIO ENCRAVADO
PRÉDIO RÚSTICO
PEÃO
Data do Acordão: 10/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS COISAS / DIREITO DE PROPRIEDADE / PROPRIEDADE DE IMÓVEIS – SERVIDÕES PREDIAIS / CONSTITUIÇÃO DAS SERVIDÕES / SERVIDÕES LEGAIS / EXERCÍCIO DAS SERVIDÕES.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS .
Doutrina:
-Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1987, 114;
-José Luís Santos, Servidões Prediais (Serventias), Coimbra Editora, 2.ª Edição, 1983, 38;
-Oliveira Ascensão, Direito Civil – Reais, Coimbra Editora, 5.ª Edição, 2000, 489;
-Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1987, 637.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1349.º, 1543.º, 1544.º, 1545.º, N.º 1, 1547.º, N.º 2, 1550.º, N.ºS 1 E 2, 1551.º, N.º 1, 1554.º E 1567.º, N.º 1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 635.º, N.ºS 3, 4 E 5 E 639.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 02/12/2010.

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:


- DE 21-01-2010, IN CJ, XXXV, TOMO I, 83.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:


- DE 29-03-2007, IN CJ, ANO XXXII, TOMO II, 173.
Sumário :
I. Para efeitos de constituição de uma servidão legal de passagem com fundamento em encravamento relativo, nos termos previstos no artigo 1550.º, n.º 2, do CC, a comunicação insuficiente deve ser aferida em função do leque de utilidades normais inerentes à afetação específica do prédio dominante, de modo a proporcionar ao seu proprietário um aproveitamento objetivo dessas utilidades, condizente com o destino económico da coisa e com a função social do respetivo direito de propriedade.

II. Não relevam, para tal, as potencialidades de desfrute de raiz meramente subjetiva, nem as pretensões de particular incremento na valorização da coisa, nem tão pouco a simples satisfação de melhores níveis de comodidade do proprietário do prédio dominante.

III. Todavia, em caso de servidão de passagem para habitações, não se poderá deixar de atender aos padrões de vida correntes no tipo de agregado populacional em referência nem às exigências de acessibilidade e desfrute de uma habitação em condições de salubridade, higiene e conforto humanamente condignas.

IV. No caso, como o dos autos, de uma habitação situada num trato topográfico de características rurais, desprovida de garagem e sem dispor de espaço para a construir, que tem sido, ao longo dos anos, servida por uma passagem pedonal para a via pública, numa extensão de 28,80 metros de comprimento, não se mostra lícito concluir, sem mais, que essa comunicação seja insuficiente em termos de exigir a constituição de uma servidão de passagem com automóvel.

V. Nem para tal releva a eventual necessidade de acesso a serviços de ambulância ou de bombeiros, dada a sua natureza esporádica, que pode ser satisfeita, conforme as circunstâncias de cada caso, por via de medidas pontuais de passagem forçada momentânea, à semelhança dos casos previstos no artigo 1349.º do CC. 

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



I – Relatório


1. AA e cônjuge BB (A.A.) intentaram, em 04/04/2014, ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra CC (R.), alegando, no essencial, que:  

1.1. Os A.A. são proprietários de um prédio urbano, composto de habitação e logradouro, sito no lugar do F…, freguesia da V… do P…, município de V… V…, que confronta a norte com um prédio urbano da R., composto de casas de rés-do-chão com logradouro e quintal, o qual, por sua vez, confronta a norte com a Estrada Nacional n.º 2…5;

1.2. Até agosto de 1997, aqueles dois prédios pertenceram aos mesmos donos que circulavam neles por onde lhes convinha, nomeadamente por uma faixa de terra batida que se estendia, no lado poente, ao longo de 37,20 metros, a partir do lado sul até ao prédio do A.A., com aproximadamente 80 a 90 centímetros de largura, e desde aí até à estrema norte que confronta com a Estrada Nacional n.º 2…5, numa largura de cerca de 3,40 metros;

1.3. O referido prédio dos A.A. foi por eles adquirido mediante compra, realizada em 13/05/2005, a DD que, por seu turno, o havia comprado, em 12/01/1998, a EE e marido FF;

1.4. Por seu lado, o prédio da R. foi também por ela comprado, em 06/08/1997, a EE e marido FF;              

1.5. A partir daí, quer os A.A. quer a R. acediam, tal como os seus antepossuidores, a pé e de automóvel aos respetivos prédios urbanos através da sobredita faixa de terreno do lado poente desde a Estrada Nacional n.º 2…5, situada a norte, faixa essa que se estende, junto da habitação da R., por cerca de 28 metros até ao prédio dos A.A. e na largura de 3,40 metros;

1.6. Entretanto em ação proposta pela ora R. contra os ora A.A., foram estes condenados, por sentença de 12/04/2010, a abster-se de passar naquela faixa de terreno com veículos motorizados, mas com a permissão de lá passar a pé;

1.7. Porém, dada a configuração dos referidos prédios, os A.A. não podem aceder com automóvel da Estrada Nacional n.º 2…5 à sua habitação, seja para transportar produtos domésticos, seja para transporte de familiares com dificuldades de locomoção;

1.8. Nem se mostra viável estabelecer tal acesso pelo lado sul, dada a existência de muros, edificações e de um desnível de cerca de 1,80 metro;             

1.9. Nessas circunstâncias, verifica-se uma situação de encravamento relativo do prédio dos A.A., por insuficiente comunicação com a via pública, a qual pode ser suprida pela constituição de uma servidão legal de passagem a pé e de automóvel pela faixa de terreno que se estende do lado poente da habitação da R..

Concluíram os A.A. a pedir o reconhecimento do direito de propriedade do prédio urbano que lhes pertence e a constituição, em benefício dele, de uma servidão legal de passagem, a pé e de automóvel, sobre a faixa de terreno do prédio da R. que se situa, em linha reta, do lado poente, numa extensão de 28,40 metros com a largura de 3,40 metros, desde a Estrada Nacional n.º 2…5 até à habitação dos mesmos A.A.

2. A R. contestou a ação, invocando a exceção de autoridade de caso julgado e, no mais, impugnando os factos pertinentes à pretendida constituição da servidão legal de passagem, sustentando que:

- O logradouro do lado poente da casa da R. tem uma largura de cerca de 3 metros, dos quais 1,40 metro é ocupado por dois canteiros ajardinados, um deles junto à parede da habitação da R. que tem entrada para a sala de jantar, ficando apenas livre entre aquele a largura de 1,60 metro;

- Em 2005, os A.A. demoliram o prédio urbano que haviam comprado, construindo um novo com uma área coberta superior à precedente, destinando-o à sua residência permanente;

- Ao executarem as obras, deixaram a fachada principal da casa virada para o terreno sobrante do lado poente com 3 metros de largura e 8,80 metros de comprimento;

- Possuindo os A.A. um automóvel Mercedes Benz, aproximadamente, com a largura de 2,20 metros e o comprimento de 4,68 metros, não existe espaço suficiente aparcar a viatura e deixar terreno livre para a servidão de passagem a pé judicialmente reconhecida;

- Os A.A., ao terem consentido que o proprietário do lado sul construísse uma parede junto ao logradouro daqueles, impedindo assim o acesso de automóvel à Rua … situada desse lado, criaram uma situação de encravamento voluntário.

Concluiu a R. pela improcedência da ação e requereu que fosse fixa-da uma indemnização a seu favor por litigância de má fé dos A.A..

4. Findo os articulados, foi fixado o valor da causa em € 30.000,01 e proferido saneador, a julgar improcedente a exceção de caso julgado ou de autoridade de caso julgado invocada pela R., procedendo-se, de seguida, à identificação do objeto do litígio e à enunciação dos temas da prova.

5. Após a realização de inspeção ao local, conforme auto de fls. 160/ 161, e concluída a audiência final, foi proferida a sentença de fls. 166/194, datada de 19/05/2016, a julgar a ação parcialmente procedente, decidindo-se o seguinte:

a) – declarar os A.A. proprietários do prédio urbano como tal acima indicado;      

b) – declarar constituída, em benefício daquele prédio, a servidão de passagem por pessoas e veículos automóveis sobre o prédio da R. também acima indicado através uma faixa de terreno em linha reta, paralela ao limite poente deste prédio, na largura de 3,40 metros e no comprimento de 28,80 metros, com início a norte, junto à Estrada Nacional n.º 2…5, e termo a sul no limite norte do logradouro do prédio dos A.A.;

c) – condenar a R. a abster-se de praticar quaisquer atos que atentem contra e perturbem os assim reconhecidos direitos de propriedade e de servidão predial de passagem dos A.A..

6. Inconformada com tal decisão, a R. interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, em sede de impugnação de facto e de direito, no âmbito do qual foi proferido o acórdão de fls. 241-256, datado de 02/02/ 2017, a julgar, por unanimidade, a apelação parcialmente procedente, revogando a decisão recorrida na parte em que declarou constituída a servidão legal de passagem e condenou a R. em abster-se de atentar contra ela ou a perturbá-la, absolvendo a R. quanto às respetivas pretensões.

7. Desta feita, vêm agora os A.A. pedir revista, formulando as seguintes conclusões:       

1.ª - Vem esta revista interposta do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que julgou parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revogou a sentença recorrida na parte em que declarou constituída em benefício do prédio dos AA a servidão de passagem a onerar o prédio da R., absolvendo a R. dos pedidos formulados nas alíneas b) e c);

2.ª - Face à oposição e insuficiência da matéria dada como provada para fundar a decisão recorrida e tendo ocorrido violação da lei substantiva traduzida no erro de interpretação e de aplicação da norma em apreço nestes autos, terá o acórdão recorrido de ser revogado, não podendo a R. deixar de ser condenada conforme peticionado ou, caso assim não se entenda, o que não se concede, pelo menos nos mesmos moldes em que o havia sido em 1.ª Instância;

3.ª - Nos presentes autos, em essência, os AA., ora Recorrentes, por o seu prédio urbano não ter qualquer outro acesso à via pública que permita a passagem de um automóvel que não o caminho ora em causa, ao abrigo do disposto no art.º 1550.º e ss. do CC, pretendem que se declare constituída, a favor do seu prédio identificado em 1.º da p.i., uma servidão legal de passagem a pé e com viatura automóvel pela parte da faixa de terreno - (utilizada como caminho pedonal e de automóvel) referida e descrita nos artigos 15.º a 20.º (também da p.i.) - que faz parte do prédio da R., melhor identificado no artigo 10.º dessa p.i.;

4.ª - Das múltiplas alegações produzidas pela R. no seu recurso, e tendo sido todas apreciadas pelo Tribunal “a quo”, apenas lhe foi conferida razão quanto à falta de verificação dos requisitos legais para a constituição da almejada servidão de passagem;

5.ª - A Relação entendeu, sem sustento na lei e/ou nos autos, que a comunicação do prédio daqueles com a via pública não é insuficiente, considerando que a travessia do prédio da R. com automóvel não é condição necessária para a satisfação das normais utilidades inerentes à habitação do prédio urbano dos A.A.;

6.ª - Ora, decorre do art.º 1550.º do CC que os proprietários de prédios que tenham comunicação insuficiente com a via pública têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem mesmo que por terreno alheio;

7.ª - A doutrina dominante vai também no sentido de se considerar encravado, para o efeito de lhe conceder a servidão legal de passagem, não só o prédio que carece de qualquer comunicação com a via pública (encrave absoluto), mas também aquele que dispõe de comunicação insuficiente para as suas necessidades normais.

8.ª - Já a mais moderna e avisada jurisprudência adverte que o conceito de insuficiência é relativo e tem de ser ponderado casuisticamente, no sentido de se aferir se a comunicação de que dispõe o prédio encravado com a via pública é insuficiente para as suas necessidades normais e para a sua normal fruição.

9.ª - Face à matéria considerada provada nos autos, mormente nos pontos 18, 20, 21 e 29 dos factos provados - que o prédio não tem acesso via pública que permita a passagem de automóvel, não lhes sendo possível aceder da via pública ao seu prédio sequer para transportar os seus familiares e / ou descarregar compras, que a faixa de terreno referida em 17 e 18 (dos factos provados) permite à R. aceder de automóvel, por uma entrada lateral, ao prédio referido em 8 (também os factos provados), apresentando-se em terra batida e sem vegetação desde a estrema norte até ao limite norte da casa aí existente e que o prédio referido em 8 (dos factos provados) tem a sua entrada junto da E.N. e desta até ao limite norte do logradouro do prédio referido em 1, percorre-se uma distância de 28,80 metros, em piso de terra batida - não se compreende nem aceita que se considere, como fez o Tribunal a quo, que não representa excessivo incómodo ou dificuldade terem de percorrer, cada vez que querem sair de casa - faça chuva ou faça sol, com lama ou sem, jovens ou idosos, doentes ou saudáveis, ágeis ou com dificuldades de locomoção, pelo seu próprio pé ou de cadeira de rodas, de mãos vazias ou carregados de mercearias -, quase 30 metros em piso de terra batida até à estrada nacional;

10.ª - De igual modo, também não se conformam os A.A. que não possa chegar até junto da sua habitação, sempre que necessário, uma ambulância, uma viatura dos bombeiros, polícia, serviços;

11.ª - Circunstâncias estas que, por frequentes e inerentes à vida doméstica típica do século XXI, têm, forçosamente, de ser consideradas normais utilidades de qualquer domicilio português e não meras utilizações esporádicas;

12.ª - É inegável que as necessidades que cumpre satisfazer com a constituição de uma servidão relativamente a um prédio urbano respeitam a todas as utilidades que uma casa de habitação proporciona a quem lá mora e à normal e típica fruição da mesma.

13.ª - Em pleno século XXI, numa época em que literalmente todas as superfícies comerciais dispõe de serviços de entregas diárias ao domicílio, em que os lares entregam diariamente as refeições na casa dos utentes, os centros de dia vão buscar e levar os doentes de mobilidade limitada, os médicos fazem inúmeros domicílios na casa de qualquer dos seus utentes, os bombeiros vão buscar e levar utentes a consultas médicas e tratamentos, não se pode ter como exceção a possibilidade de um veículo automóvel aceder à porta de uma habitação,

14.ª - Para mais quando a alternativa é, mesmo de inverno - com chuva e neve -, transitar a pé por um piso em terra batida e a servidão não causa sequer qualquer prejuízo à R., sendo certo que, para além da indemnização que se fixar, como se provou, esta já por aí pode aceder - e acede - ao seu prédio de automóvel.

15.ª - Socorrem-se os A.A. das palavras vertidas pelo Mm.º Juiz da 1.ª instância que, aludindo à matéria provada e face à situação de facto que desta resulta, considerou que se impõe concluir que o prédio dos A.A. se encontra encravado, por não dispor de comunicação suficiente com a via pública, por com esta não confinar nem dispor de qualquer acesso direto à mesma, cabendo-lhes o direito potestativo à constituição coativa da servidão,

16.ª - Concluiu bem, a 1.ª instância que “(...)Estando em causa um prédio urbano composto por uma casa destinada a habitação, afigura-se que o acesso de veículos ao respectivo logradouro é essencial ao seu normal aproveitamento (...)”;

17.ª - O acórdão recorrido viola, entre outros, os princípios e as normas constantes dos artigos 1547.º e 1550.º do CC.

     Pedem os Recorrentes que se revogue a decisão recorrida e que se julgue a ação conforme o peticionado ou, pelo menos, nos mesmos moldes do julgado na 1.ª instância.  

8. A R./Recorrida apresentou contra-alegações, a pugnar pela confirmação do julgado, rematando com as seguintes conclusões:

1.ª - Todas as conclusões dos A.A. deverão de ser julgadas improcedentes.

2.ª - Os A.A. são donos do prédio urbano destinado a habitação identificado no ponto 1 dos factos provados na sentença, onerado com uma servidão de passagem a pé e de animais a favor do prédio propriedade da R.;

3.ª - Em 12.04.2010, foi proferida sentença no processo n.º 379/07.3TBWD, a qual, confirmada pelo TRG e pelo STJ, os aqui autores foram condenados:

"a reconhecer o direito de propriedade da ora R. sobre o prédio identificado no artigo 1.º da p.i. (aqui ponto 8 da sentença);

- a reconhecer a posse sobre o caminho pedonal referido nos artigos 14.º e 15.º, da p.i., pontos 9) e 10) da matéria assente na sentença, como assento da servidão de passagem, na parte em que tal caminho atravessa o prédio dos réus (ponto 1 da sentença) e a respeitarem essa posse, abstendo-se de a turbar ou estorvar seja por que modo for;

4.ª - Em 27/09/2010 os AA. intentaram a ação ordinária contra a R., que correu termos no do Tribunal Judicial de V… V… sob o n.º 1152/10.7TBVVD, onde foram formulados os seguintes pedidos:

"a) - reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre o prédio identificado no art.º 1.° supra da p.i. abstendo-se de praticar quaisquer actos que atentem ou perturbem tal direito;

b) - declarar-se constituída por destinação de pai de família e por usucapião, uma servidão de passagem a pé e de automóvel, mercê do reconhecimento da posse que os Autores têm sobre o caminho, pedonal e de automóvel, referido e descrito nos antecedentes artigos 15.° a 20.°, como assento da servidão de passagem também, ai alegada, na parte em que tal caminho atravessa o prédio possuído pela ré, identificado no artigo 10.° e a respeitarem essa posse, abstendo-se de o turbar ou estorvar seja por que modo for."

5.ª - Em 28/01/2013 foi proferida sentença no processo n.º 1152/10.7TBVVD que julgou verificada a exceção inominada de autoridade de caso julgado, determinando a absolvição da instância da R., sentença que foi confirmada pelo TRG, por acórdão de 21.05.2013;

6.ª - O direito previsto no n.º 1 do art.º 1.550.º do CC, concede a faculdade de constituição de servidão de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos, estando, portanto, excluído o direito sobre prédios urbanos, o que é o caso;

7.ª - Os A.A. já beneficiam de servidão de passagem a pé desde o seu prédio urbano até à via pública, pelo que não pode considerar-se encravado, devendo o acórdão recorrido ser confirmado;

8.ª - O prédio urbano dos A.A. esteve sempre afeto à habitação, não tendo sido dado outro uso, antes ou após as obras executadas;

9.ª - Os A.A. e seus antecessores sempre tiveram servidão pedonal para a sua habitação e não invocaram nem provaram a existência de factos supervenientes que justifiquem a constituição da servidão de passagem automóvel/carral – vide ac. STJ de 10-12-2013 P.º 719/07.5TBBCL.GI.S1;

10.ª - A servidão legal de passagem em benefício de prédio encravado está prevista, no art.º 1550.º, n.º 1, do CC, para a situação em que “os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos" - ac TRC de 11/09/2012, P.º n.º 24108.OTBMGL;

11.ª – “Evidentemente, não pode ser reconhecido esse invocado direito contra os RR, desde logo porque ele sacrificaria o direito de privacidade implicado no direito à habitação dos RR.. A devassa resultante do exercício do direito de passagem pelo prédio urbano, ademais destinado à habitação, não é compatível, em qualquer grau, com o direito à privacidade ínsita no direito de habitação.”

12.ª - O prédio urbano dos A.A. não tem garagem, nunca teve garagem, não tem terreno ou condições para nele construir uma garagem, assim como também não tem espaço suficiente para deixar parado um automóvel junto à casa de habitação e se quiserem ter acesso de carro somente para cargas e descargas, têm acesso mais cómodo e menos dispendioso através da Rua …;

13.ª - A R. beneficia do direito de passagem a pé e com animais sobre o prédio dos A.A. identificado no artigo 1.º da p.i., penetrando por um portão localizado junto à Rua … no prédio descrito na Conservatória sob o n.º 008…4N… DE P…, inscrito na matriz sob o artigo 1.6…3.º, propriedade de GG e mulher e seguindo no sentido Sul - Norte, atravessando o logradouro do prédio do GG e penetrando depois no logradouro do prédio identificado no art.º 1.º da p.i, dos A.A., até chegar ao logradouro do seu prédio identificado no art.º 10.º da p.i., caminho esse de leito fixo, desde a Rua até ao logradouro da casa da ré, bem trilhado e calcado, com a largura aproximada de 2 metros, a correr pelo lado poente dos referidos logradouros de A.A. e GG, durante todo o ano;

14.ª - O prédio dos A.A. está onerado com uma servidão de passagem a pé e com animais, a correr pela estrema poente do prédio identificado no art.º 1.º da p.i. com a largura de 2 metros, - veja-se factos n.ºs 9, 10 e 11 provados na sentença da ação n.º 397/07.3TBWD;

15.ª - Até 06/08/97, EE e marido FF e dessa data em diante a autora e arrendatários para acederem ao prédio identificado em 1), vindo da Rua … do lugar do F…, seguiam no sentido sul para norte, atravessando o logradouro do prédio identificado em 5) e depois o logradouro do prédio identificado em 3);

16.ª - A poente dos logradouros desses prédios verifica-se uma faixa de terreno com dois metros de largura e com o cumprimento de 15 a 20 metros;

17.ª - Essa faixa de terreno sempre foi utilizada pela A. e pelos seus antecessores para acesso à propriedade do prédio identificado em 1) para nele entrarem a pé ou com animais);

18.ª - O rossio dos A.A. tem 3,10 metros de largura, considerando a distância que vai desde a parede da casa dos A.A. situada a poente e o terreno a poente; e 8,70 metros de comprimento, considerando a distância compreendida desde a estrema com o 1.º prédio, situado a sul, e a estrema do 3.º prédio, situado a norte dos do A.A., o que perfaz a área de 26,97 m2 de terreno existente a poente da casa dos A.A., sendo neste espaço que pretendem construir a garagem e/ou aparcar os automóveis e deixar ainda terreno livre para a servidão de passagem com que esse terreno está onerado;

19.ª - Sabendo-se que os A.A. possuem um automóvel de marca Mercedes-Benz, atendendo que o terreno deles possui a largura de 3,10 metros, atendendo a que esse terreno está onerado com uma servidão de passagem a pé e com animais a favor do prédio da ré/recorrida, com a largura de 2 metros, não resta terreno aos A.A. suficiente para aparcar viaturas automóveis e deixar terreno livre para a servidão de passagem que estão obrigados a respeitar;

20.ª - Resultando uma impossibilidade na procedência do recurso porque, ao conceder aos A.A. a constituição de servidão de passagem com automóveis para o seu terreno, esta decisão vai colidir com a sentença proferida no processo n.º 379/07.3 TBVVD, porque permite o aparcamento de automóveis em terreno destinado à servidão de passagem a favor da R., o que consequentemente, revoga esta decisão nesta parte, ao impedir a aqui R. de continuar a passar pelo prédio dos A.A.;

21.ª - Finalmente, a ser constituída uma servidão de passagem de veículos automóveis para o prédio dos A.A., sempre se dirá que pela Rua … é mais próximo, mais cómoda e muito menos dispendiosa, seja pelo prédio propriedade de GG (irmão da A.), seja pelo prédio rústico propriedade da HH;

22.ª - Os A.A., em 2005, procederam à demolição do prédio urbano que haviam comprado e construíram um novo, destinado à sua habitação permanente, executarem as obras, deixaram a fachada principal da casa virada para o terreno sobrante situado do lado poente, medindo este terreno 3,10 metros de largura, e 8,70 metros de comprimento;

23.ª - O prédio urbano dos A.A. esteve sempre afeto à habitação, não tendo sido dado outro uso, antes ou após as obras executadas;

24.ª - Ao executarem estas obras novas, os A.A. não construíram nenhum lugar de aparcamento de viaturas automóveis no rés-do-chão do edifício, assim como não deixaram espaço para poderem aparcar os automóveis na parte restante do seu terreno, não prevendo nessas obras a eventualidade futura de aparcarem no seu terreno viaturas automóveis;

25.ª - Após essas obras, o proprietário do prédio situado a sul, GG, irmão da A., construiu uma parede junto do seu logradouro de modo a impedir a passagem de automóvel provindo da Rua … não se tendo a isso oposto os A.A.;

26.ª - A ser constituída uma servidão de passagem de veículos automóveis para o prédio dos A.A., sempre se dirá que pelo 1.º prédio propriedade de GG e pela Rua … é mais próximo, mais cómoda, muito menos dispendiosa e que causa menor prejuízo ao prédio a onerar;

27.ª - A Rua … tem 3,95 metros de largura, pavimentada em asfalto, utilizada somente para acesso local, às habitações edificadas nessa rua, o prédio confinante com a Rua … tem o seu acesso com um portão instalado com a largura de 2,57 metros de largura, suficiente para entrar um automóvel e por onde já entram os automóveis do GG e presentemente os automóveis dos autores, tem todo o percurso desde a Rua … até à casa dos A.A. já pavimentado em cimento, onde são aparcadas viaturas automóveis, por este local os autores/recorrentes somente percorrem 20 metros por terreno alheio para acederem ao seu prédio, sendo que o muro aí construído após a reconstrução da casa dos autores, só terá que ser cortado em 1 metro de largura;

28.ª - Através do prédio da R., o acesso seria feito com acesso situado junto da E.N. n.º 2…5, a qual configura uma estrada permanentemente muito movimentada de circulação automóvel, com perigosidade nas manobras de entrada e saída, da E.N. até ao prédio dos autores teriam que percorrer 28,80 metros em piso de terra, mais 8,80 metros que se o fizerem pela Rua …, teriam que ser destruídos 2 canteiros de jardim medindo os dois 1,40 metros de largura e cerca de 8 metros de comprimento, teria de ser destruída toda a parede da fachada principal da casa da ré, atendendo que "- o rocio referido no ponto 30 da sentença tem, entre a parede poente da casa e o prédio vizinho, a largura de 3,10 metros, (v.d. ponto 31 da sentença) e a sentença recorrida concede "... direito de servidão de passagem, com pessoas e veículos automóveis, a onerar o prédio identificado no ponto 8 dos Factos Provados, através de uma faixa de terreno em linha recta, paralela ao limite poente do prédio identificado no ponto 8 dos Factos Provados, com a largura 3,40m e o comprimento de 28,80 metros, com início, a norte, junto à Estrada Nacional n.º 2…5 e termo, a sul, no limite norte do logradouro do prédio identificado no ponto 1 dos Factos Provados, o que não se concebe; passariam junto à casa da ré pelo local onde está localizada a entrada principal, da sua habitação e a sala de jantar, retirando à ré toda a privacidade que as passagem carrais acarretam, iriam impedir a ré de passar pelo prédio dos autores sempre que neste estivesse aparcado um automóvel, o que iria contrariar a sentença do processo de 2007 que lhe deu esse direito – Ponto 43: O terreno referido em 35 não tem largura suficiente para, quando nele estejam aparcadas viaturas automóveis, deixar 2 metros de largura de terreno livre - facto este que impede a constituição da servidão de passagem carral pelo prédio da ré e pelo prédio do irmão da autora, situado a sul;

29.ª - Assim deve ser julgado procedente o pedido de ampliação do âmbito do recurso e, nos termos do artigo 636.º do CPC, deve fazer parte do acórdão recorrido, além do mais, a impossibilidade de constituição da servidão de passagem automóvel pelos motivos invocados nas conclusões supra.


      Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II - Delimitação do objeto do recurso


Como é sabido, o objeto do recurso é definido em função das conclusões formuladas pelo recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do CPC.

Das conclusões dos Recorrentes resulta que o objeto da revista consiste em ajuizar sobre o invocado erro de interpretação das normas do artigo 1550.º do CC e da sua aplicação à factualidade provada, no que respeita ao pretenso encravamento relativo, por comunicação insuficiente, do prédio dos A.A. à via pública.

Por sua vez, a Recorrida pretende que seja ampliado o objeto do recurso no sentido de nele se apreciar a questão da impossibilidade de constituição da servidão de passagem pelo seu prédio.   


     III – Fundamentação


1. Factualidade provada


Vem dada como provada pelas instâncias a seguinte factualidade:

1.1. Os autores (A.A) têm inscrita em seu nome no registo predial a propriedade do prédio urbano, composto de casa de habitação com logradouro, com a superfície coberta de 94 m2 e área descoberta de 105 m2, sito no lugar do F…, freguesia da V… de P…, concelho de V… V…, a confrontar do norte com a Ré, sul com FF, nascente com II e de poente com caminho de servidão, descrito na Conservatória sob o n.º 008…3/V… de P…, atualmente inscrito na matriz urbana respetiva sob o artigo 2…6, que teve origem no extinto artigo 16…6 da mesma matriz;

1.2. Por escritura pública exarada a fls. fls. 79 até 81v°, do livro 19-E, do Cartório Notarial de V… V…, em 12/01/1998, EE e FF declararam vender a DD, pelo preço de 2.700.000$00, e esta declarou aceitar, o prédio urbano referido em 1.1;

1.3. Por escritura pública exarada a fls. 103 até 105v°, do livro 234-C, do Cartório Notarial de A…, em 13/05/2005, DD, declarou vender aos A.A., pelo preço de € 16.000,00, e os A.A. declararam aceitar, o prédio urbano referido em 1.1;

1.4. Os A.A., por si e seus antecessores, habitam ocupam, limpam e conservam o prédio referido em 1.1, sem quaisquer interrupções, decorridos que são mais de 20 e 30 anos;

1.5. No seu exclusivo interesse e proveito, com ânimo e espírito de donos exclusivos;

1.6. À vista e com o conhecimento da R. e demais gente interessada;

1.7. Sem qualquer estorvo, turbação ou perturbação alheia;

1.8. A R., CC, tem inscrita em seu nome no registo predial a aquisição do prédio urbano, composto de casa de rés-do-chão, com logradouro e quintal, com a área coberta de 71 m2, e área descoberta com 517 m2, sita no lugar do F…, freguesia da V… de P…, concelho de V… V…, a confrontar do norte com a Estrada Nacional n.º 2…5, nascente com JJ, sul com os aqui A.A. e de poente com caminho de servidão, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 008…2/V… de P…, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 16…5.

1.9. Por escritura pública exarada a fls. 38vº, do livro 740-B, do Cartório Notarial de A…, em 6.08.1997, EE e marido FF declararam vender à R., que declarou aceitar, pelo preço de 4.500.000$00, o prédio referido em 1.8;

1.10. Os dois prédios urbanos descritos em 1.1 e 1.8 pertenceram, até agosto de 1997, aos mesmos donos, os referidos EE e marido FF;

1.11. Em 29/03/2007, foi proposta ação ordinária pela aqui R. contra os aqui A.A., a qual correu termos pelo 2.º Juízo deste Tribunal, sob o n.º 379/07.3TBVVD, onde foi pedida a condenação daqueles:

“(…) a reconhecerem a autora como dona e legítima proprietária do prédio identificado no artigo 1.º da p.i.;

(…) a reconhecer a posse que a autora tem sobre o caminho pedonal referido nos artigos 14.º e 15.º, da p.i. como assento da servidão de passagem também aí alegada, na parte em que tal caminho atravessa o prédio possuído pelos réus identificado no artigo 10.º da p.i. e a respeitarem essa posse, abstendo-se de a turbar ou estorvar seja por que modo for;

(…) a reconstruírem os canteiros do jardim da autora e ajardiná-los nos moldes em que os mesmos se encontravam antes de ser destruídos;

(…) a permitir que a autora execute todas e quaisquer obras no seu prédio identificado no artigo 1.º da p.i., de modo a impedir o acesso de pessoas e animais ou veículos automóveis estranhos à autora, seja vindos do lado da Estrada Nacional, seja vindo do lado do prédio dos réus;

(…) a absterem-se de penetrar no prédio da autora identificado no artigo 1º desta p.i., com animais, veículos motorizados, automóveis ou quaisquer outros veículos com ou sem motor, a respeitarem a posse e propriedade da autora sobre o referido prédio, abstendo-se de a turbar ou estorvar seja por que modo for”.

1.12. Em 12/04/2010, foi proferida sentença no processo n.º 379/07. 3TBVVD por via da qual, após ser confirmada pelo Tribunal da Relação de Guimarães e pelo Supremo Tribunal de Justiça, os ali réus, aqui A.A., foram condenados:

“(…) a reconhecer o direito de propriedade da autora sobre o prédio identificado no artigo 1.º da p.i.;

(…) a reconhecer a posse sobre o caminho pedonal referido nos artigos 14.º e 15.º, da p.i., pontos 9) e 10) da matéria assente na sentença, como assento da servidão de passagem, na parte em que tal caminho atravessa o prédio dos réus e a respeitarem essa posse, abstendo-se de a turbar ou estorvar seja por que modo for;

(…) a reconstruir os canteiros do jardim da autora nos moldes em que os mesmos se encontravam antes de ser destruídos;

(…) a abster-se de passar no caminho provindo da EN 2…5 se inicia na Rua … e passa junto do prédio da autora com veículos motorizados ou aí estacionar veículos”.

1.13. Em 27/09/2010, os aqui A.A. intentaram a ação declarativa contra aqui R., que correu termos pelo 1.º Juízo do Tribunal Judicial de V... V… sob o n.º 1152/10.7TBVVD, onde foram formulados os seguintes pedidos:

“a) - reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre o prédio identificado no artigo1.º supra da p.i. abstendo-se de praticar quaisquer actos que atentem ou perturbem tal direito;

b) - declarar-se constituída por destinação de pai de família e por usucapião, uma servidão de passagem a pé e de automóvel, mercê do reconhecimento da posse que os Autores têm sobre o caminho, pedonal e de automóvel, referido e descrito nos antecedentes artigos 15.º a 20.º, como assento da servidão de passagem também, ai alegada, na parte em que tal caminho atravessa o prédio possuído pela ré, identificado no artigo 10.º e a respeitarem essa posse, abstendo-se de o turbar ou estorvar seja por que modo for”.

1.14. Em 28/01/2013, foi proferida sentença no processo n.º 1152/10. 7TBVVD, que julgou verificada a exceção de caso julgado, determinando a absolvição da instância da ré, sentença que foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 21.05.2013:

1.15. No acórdão referido em 14 foi decidido o seguinte:     

«Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência, revogando, em parte, a decisão recorrida confirma-se a verificação da exceção da autoridade do caso julgado

a) - Na improcedência relativa ao pedido de condenação no reconhecimento da existência do direito dos A.A. de servidão e passagem de automóvel sobre o caminho identificado nos artigos 15º a 20.º da petição inicial na parte em que tal caminho atravessa o prédio da R., CC;

b) - Na afirmação de uma servidão de passagem a favor dos A.A. relativamente ao caminho que liga o seu prédio à Rua … e à EN 2…5, estando a R. obrigada a respeitá-la.»

1.16. Da sentença proferida na ação n.º 397/07.3TBVVD e do acórdão da Relação de Guimarães de 22.03.2011, proferido no mesmo processo, resultou provada a seguinte matéria de facto:

“1 - O prédio urbano, composto de casa de rés do chão com logradouro, sito no lugar do F…, freguesia de P…, S… M…, com a área coberta de 71 m2 e a descoberta de 517 m2, confronta a norte com a Estrada Nacional, a nascente JJ, a sua com AA e a poente com KK, encontra-se inscrito na respectiva matriz sob o artigo 16…5 e descrito na Conservatória do Registo Predial de V… V… sob o número 8…2,encontrando-se a propriedade registada a favor da autora pela inscrição G-2.

2 - A autora adquiriu a propriedade do prédio acima identificado a EE e marido FF, por escritura pública de compra e venda celebrada em 06.08.97.

3 - O prédio urbano composto de casa de rés-do-chão com logradouro, sito no lugar do F…, freguesia de P…., S… M…, com a área coberta de 71 m2 e a descoberta de 128 m2, confronta a norte com a autora e sul com FF, nascente com JJ e poente com caminho de servidão, encontra-se inscrito na matriz respetiva sob o artigo 16…6 e descrito na Conservatória do Registo Predial de V… V… sob o número 8…3, encontrando-se a propriedade registada a favor de AA e mulher BB.

4 - AA e mulher BB adquiriram a propriedade prédio identificado em 3) por compra a DD, que por sua vez o tinha adquirido por contrato de compra e venda a EE e marido FF.

5 - O prédio urbano composto de casa de rés-do-chão com logradouro, sito no lugar do F…, freguesia de P…, S… M…, com a área coberta de 71 m2 e a descoberta de 186 m2, confronta a norte com AA e nascente com FF, sul com caminho público e poente com KK, encontra-se inscrito na matriz respectiva sob o artigo 1693 e descrito na Conservatória do Registo Predial de V… V… sob o número 8…4, encontrando-se a propriedade registada a favor de GG e mulher LL.

6 - GG e mulher LL adquiriram a propriedade prédio identificado em 5) por compra a EE e marido FF.

7 - Os réus AA e mulher BB em 2005 efectuaram obras no prédio identificado em 3).

8 - A autora por si e antepossuidores, há mais de 20 anos, de forma continuada, sem oposição de ninguém e com o conhecimento de todas as pessoas da localidade, vem utilizando e retirando as utilidades do prédio identificado em 1), como se sua proprietária fosse.

9 - Até 06.08.97, EE e marido FF e dessa data em diante a autora e arrendatários para acederem ao prédio identificado em 1), vindo da Rua …, do lugar do F…, seguiam no sentido sul para norte, atravessando o logradouro do prédio identificado em 5) e depois o logradouro do prédio identificado em 3).

10 - A poente dos logradouros desses prédios verifica-se uma faixa de terreno com dois metros de largura e com o cumprimento de 15 a 20 metros.

11 - Essa faixa de terreno sempre foi utilizada pela autora e pelos seus antecessores para acesso à propriedade do prédio identificado em 1) para nele entrarem a pé ou com animais.

12 - Faixa esta de terreno com um trilho bem visível, trilhado e calcado.

13 - A autora por si e antecessores para satisfação de todas as necessidades de trânsito pedonal, vindo de e para a Rua …, para acesso ao seu prédio identificado em 1), vem, passando por esse caminho, atravessando a propriedade de GG e mulher LL e dos réus AA e mulher BB.

14 - A pé e com animais.

15 - O que fazem desde há mais de 10, 20 e 30 anos, sem qualquer interrupção.

16 - Sempre no seu interesse e proveito e com ânimo de quem exerce direitos próprios.

17 - À vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.

18 - Na ignorância de prejudicarem direitos de outrem e sem qualquer estorvo ou embaraço.

19 - Por ocasião das obras referidas em 7), uma máquina ao serviço dos réus destruiu dois canteiros de jardim, propriedade da autora, medindo um cerca de 80 cms e outro cerca de 60 cm de largura.

20 - Entre os dois canteiros existia um espaço de cerca de 1,60m.

21 - No período de execução das obras referidas em G) os réus AA e mulher BB passaram com máquinas e materiais de construção civil pelo caminho de servidão pedonal que tem início na Rua … e passa junto da casa da autora, dando acesso ao seu prédio.

22 - Sem autorização e contra a vontade da autora.

23 - Os canteiros que os réus construíram, tinham menos 0,20 m de largura cada um que os primitivos.

24 - A autora a partir do prédio referido em 1) pode aceder à Rua …, pela Rua … ou Estrada Nacional 2…5.

25- Após a construção de um muro de vedação pelo GG e mulher no prédio referido em 3), os réus continuam a passar a pé e numa parte de automóvel pelo caminho pedonal que tem início na Rua …, passa junto da casa da autora e dá acesso ao prédio dos réus.

26 - Sem o consentimento da autora.

27 - Penetrando nele vindo da E.N. 2…5 pela estrema norte/poente, seguindo pela estrema poente, no sentido norte/sul, até penetrar no prédio referido em 3).

28 - Os réus estacionam o automóvel junto à casa da autora a impedir o acesso de outros automóveis.

29 - Os réus impediram a autora de vedar o acesso ao prédio do lado da E.N.»

1.17. A poente das casas referidas em 1.1 e 1.8 existe uma faixa de terreno com 37,50 metros de comprimento, atentos os sentidos norte-sul e sul-norte;

1.18. A qual, a partir do limite sul do prédio referido em 1.1 e no sentido sul-norte, mede 3,10 metros de largura, ao longo da face poente da casa referida, estreitando para dois metros entre dois canteiros de pedra situados a poente da casa referida em 1.8, voltando a alargar, a partir daí e até ao limite norte do prédio referido em 1.8, para uma largura de cerca de 3,40 metros.

1.19. O prédio referido em 1.1 não tem qualquer acesso à via pública que permita a passagem de um automóvel, porquanto, do lado norte, entre tal prédio e a via pública situa-se, de permeio, o prédio referido em 1.8, situando-se, do lado sul, um outro prédio de habitação.

1.20. Face à configuração atual dos prédios, não é possível aos A.A. aceder de automóvel da via pública ao prédio referido em 1.1, onde residem, seja para descarregar compras, seja transportar qualquer dos seus familiares.

1.21. A faixa de terreno referida em 1.17 e 1.18 permite à R. aceder de automóvel, por uma entrada lateral, ao prédio referido em 1.8, apresentando-se em terra batida e sem vegetação desde a estrema norte até ao limite norte da casa aí existente.

1.22. O prédio situado a sul do prédio referido 1.1 confina com um caminho municipal denominado Rua …, que é mais estreito que a Estrada Nacional (E.N.) n.º 2…5.

1.23. Entre a Rua … e o prédio referido em 1.1 existe um muro e um telheiro, que teriam de ser demolidos para possibilitar a passagem, bem como um desnível de sensivelmente 1,67 metro.

1.24. O prédio dos A.A. não tem nem nunca teve garagem, não dispondo de espaço suficiente para nele ser construída uma garagem.

1.25. Junto à Rua …, no prédio situado a sul do referido em 1.1, existe um portão em chapa com a largura de 2,57 metros, que permite o acesso ao logradouro daquele prédio.

1.26. O portão referido em 1.25, permite o acesso a pé e de automóvel à casa de habitação situada no prédio localizado a sul do prédio referido em 1.1;

1.27. A partir do logradouro referido em 1.25 é possível o acesso a pé aos prédios referidos em 1.1 e 1.8, através de uma abertura com 1 metro de largura, existente no muro que veda aquele logradouro pelo respetivo lado norte.

1.28. Desde o portão referido em 1.25 até ao limite sul do logradouro do prédio referido em 1.1 percorre-se uma distância de 20 metros em piso pavimentado com cimento, onde são estacionados automóveis.

1.29. O prédio referido em 1.8 tem a sua entrada junto da E.N. 2…5 e, desta até ao limite norte do logradouro do prédio referido em 1.1, percorre-se uma distância de 28,80 metros, em piso de terra batida.

1.30. No logradouro do lado poente da casa referida em 1.8 existem dois canteiros ajardinados, um canteiro a correr junto à parede da casa de habitação do lado em que a R. tem a entrada para a sala de jantar e outro canteiro a correr pelo seu limite poente.

1.31. O logradouro referido em 1.30 tem, entre a parede poente da casa e o prédio vizinho, a largura de 3,10 metros, sendo 1,10 metro de largura dos 2 canteiros, um com 50 centímetros e outro com 60 centímetros de largura, e 2,00 metros de espaço entre os 2 canteiros.

1.32. Para ser estabelecido o acesso pretendido pelos A.A. é necessária a destruição dos canteiros referidos em 1.31;

1.33. Os A.A., em 2005, procederam à demolição do edifício existente no prédio urbano referido em 1.1 e construíram um novo com mais um piso, destinando-o à sua residência permanente;

1.34. Os A.A, ao executarem as obras, deixaram a fachada principal da casa virada para o terreno sobrante situado do lado poente.

1.35. Medindo este terreno 3,10 metros de largura, considerando a distância que vai desde a parede poente da casa dos A.A. e o prédio situado imediatamente a poente, e 8,70 metros de comprimento, considerando a distância compreendida desde a estrema com o prédio situado a sul e a estrema com o prédio situado a norte.

1.36. Os A.A. utilizam um automóvel de marca Mercedes-Benz;

1.37. Ao executarem as obras referidas em 1.33, os A.A. não construíram qualquer lugar de aparcamento de viaturas automóveis no rés-do-chão do edifício;

1.38. O proprietário do prédio situado a sul do prédio referido em 1.1 construiu um muro no limite norte do seu logradouro, que impede a passagem de automóveis entre a Rua … e o prédio referido em 1.1;

1.39. A Rua … tem cerca de 3,95 metros de largura entre muros, dos quais 3,65 metros correspondem a faixa de rodagem pavimentada em asfalto, sendo utilizada para acesso local, às habitações edificadas nessa rua;

1.40. Tem todo o percurso desde a Rua … até à casa referida em 1.1 já pavimentado em cimento.

1.41. A E.N. 2…5 tem mais circulação automóvel do que a Rua …;

1.42. O acesso de automóvel pela faixa referida em 1.17 passaria junto à casa existente no prédio referido em 1.8.

1.43. O terreno referido em 1.35 não tem largura suficiente para, quando nele estejam aparcadas viaturas automóveis, deixar dois metros de largura de terreno livre.


 2. Do mérito do recurso


    2.1. Da posição das partes na delimitação do litígio


A pretensão dos A.A. de constituir uma servidão legal de passagem de automóvel, em benefício do seu prédio indicado em 1.1 da factualidade provada, sobre uma faixa de terreno do logradouro do prédio da R. indicado no ponto 1.8 da mesma factualidade foi fundada na alegação de que a servidão de passagem pedonal sobre aquela faixa, já judicialmente reconhecida, não lhes proporciona, no entanto, uma adequada satisfação das normais utilidades da sua habitação, segundo os padrões de vida atual, por não lhes permitir transportar por automóvel, diretamente da Estrada Nacional n.º 2…5 para essa habitação, os produtos domésticos do quotidiano nem o transporte de familiares, nomeadamente daqueles que tenham dificuldades de locomoção, não permitindo também o acesso de ambulância ou de viatura dos bombeiros.


  Por seu turno, a R. contrapôs que a implantação da servidão de passagem com automóvel sobre aquela faixa implicará a demolição de dois canteiros ajardinados, um deles ao longo da parede da própria habitação da R. que tem entrada para a sala de jantar, além de que teriam sido os próprios A.A. a criarem uma situação de encravamento voluntário por consentirem ao proprietário do lado sul construir um muro que impede o acesso, então viável, a uma rua existente desse lado. Acrescentam ainda que a instalação de uma tal servidão de passagem colidiria com a decisão constante da sentença indicada em 1.11.

        

2.2. Soluções adotadas pelas instâncias


A 1.ª instância, ante os factos dados como provados nos pontos 1.17, 1.18, 1.21, 1.22, 1.23, 1.25, 1.26, 1.28, 1.29 a 1.32 e 1.42 acima transcritos, considerou o seguinte:    

«[…] em ambos os casos, estão em causa prédios urbanos composto por habitações e logradouros, sendo certo que ambos também já dispõe de acessos de e para a via pública destinados a veículos automóveis.

Por outro lado, sendo certo que a passagem pelo prédio da Ré implica a oneração de uma faixa de terreno de maiores dimensões, não menos certo é que a passagem pelo prédio situado a sul implicaria a demolição de um muro e de um telheiro, a qual se afigura mais relevante do que a demolição de dois canteiros, dado que estes têm uma função essencialmente decorativa.

Tudo ponderado, afigura-se ser o prédio da Ré aquele que sofrerá menor prejuízo com a constituição da servidão.

Deve, assim, ser constituída a servidão de passagem a pé e de carro sobre o prédio dos Ré, no trajecto situado no seu limite poente, desde a entrada junto à Estrada Nacional n.° 2…5 e em linha recta até ao limite norte do prédio dos Autores, com um comprimento de 28,80 e largura de 3,10m – a qual se impõe considerar indispensável à realização das manobras destinadas ao ingresso e saída de um veículo automóvel, ainda assim com recurso a marcha-atrás.

Por fim, refira-se que, apesar da constituição potestativa de uma servidão de passagem acarretar o pagamento de uma indemnização correspondente ao prejuízo sofrido pelo titular do prédio serviente – Cfr., art.° 1554.°, do Código Civil –, a sua fixação poderá ter lugar após a sua constituição, designadamente em fase executiva – Cfr., neste sentido, Ac. da Relação do Porto, de 29.03. 2007. CJ, Ano XXXII, t. II, pág. 173; Ac. da Relação de Lisboa, de 21.01. 2010, CJ, XXXV, t. 1, pág. 83.

Todavia, face ao disposto no art.° 1567.°, n.° 1, do Código Civil, as despesas com a constituição da servidão, incluindo a remoção dos obstáculos pré-existentes, devem ser suportadas pelo proprietário do prédio dominante, pelo que não há que condenar a Ré na sua realização – sobre esta recai apenas a obrigação passiva, de não impedir essas obras.»

    Em face disso, julgou a ação parcialmente procedente nos termos descrito no ponto 5 do relatório supra.


    Porém, o Tribunal da Relação, mantendo a mesma factualidade e tendo em linha de conta o critério adotado no acórdão do STJ de 02/12/ 2010, ponderou o seguinte:

  «As anteriores decisões reconheceram aos autores o direito à passagem a pé e com animais pelo prédio da ré, como vem referido no recurso na tentativa de contrariar o sentido da decisão que considerou existir encravamento do prédio dos autores. Embora esse direito não tenha sido peticionado na acção 379/ 07.3tbvvd, à respectiva sentença foi atribuída na posterior acção 1152/10.7tba autoridade de caso julgado não apenas sobre a improcedência do pedido dos autores relativo à servidão de passagem automóvel pelo caminho que atravessa o prédio da ré CC, mas também quanto à «afirmação de uma servidão de passagem a favor dos autores relativamente ao caminho que liga o seu prédio à Rua … e à EN 2…5, estando a ré obrigada a respeitá-la», nesse aspecto é bem claro o acórdão da Relação de Guimarães proferido em 21 de Maio de 2013.

   Com o reconhecimento desse direito deixa de haver encrave do prédio dos autores, e isso obsta à constituição doutra servidão?

  A faculdade da constituição de servidão predial de passagem em benefício de prédio encravado é igualmente concedida ao proprietário que tenha comunicação insuficiente com a via pública, por terreno seu ou alheio (cfr. n.º 2 do artigo 1550.º do CC), e a situação dos autos consubstanciará insuficiência de comunicação com a via pública caso se reconheça que a travessia pelo prédio da ré com automóvel seja condição necessária para satisfação das normais utilidades inerentes à habitação do prédio urbano dos autores, que a passagem pedonal não pode garantir, por mor designadamente da natureza e/ou extensão do percurso representar excessivo incómodo ou dificuldade.

   A resposta é negativa.

  A distância a percorrer pelos autores no prédio contíguo da ré é tão só de 28,80 metros. É inegável a comodidade que dá o acesso com automóvel, mas convém anotar que estamos a tratar duma servidão predial e não duma servidão pessoal, e a acessibilidade ao prédio dos autores de ambulâncias e bombeiros é uma utilização esporádica pela sua própria natureza, e só as normais utilidades justificam a constituição da peticionada servidão.» 

Nessa base, concluiu a Relação pela improcedência da pretensão dos A.A. de constituir a peticionada servidão de passagem, sem prejuízo da servidão de passagem pedonal já judicialmente reconhecida.


2.3. Os contornos da questão fundamental a resolver


Atentas as posições das partes espelhadas nas conclusões acima transcritas, a questão fundamental a resolver consiste em saber se, face à factualidade provada no respeitante à configuração e posicionamento correlativo dos prédios dos A.A. e da R. identificados nos pontos 1.1 e 1.8 e aos respetivos tipos de fruição, ocorre uma situação de “comunicação insuficiente” de acesso do prédio daqueles A.A. à via pública que, ao abrigo do artigo 1550.º, n.º 2, do CC, justifique a constituição, em benefício deste prédio, de uma servidão legal de passagem a pé e de automóvel sobre uma faixa de terreno em terra batida, integrada no prédio da R., a qual se estende, do lado poente, junto à habitação desta, no comprimento de 28,80 metros e com a largura de 3,40 metros, desde a EN 2…5 até ao limite norte do logradouro do referido prédio dos A.A..


   2.4. Apreciação crítica


Segundo a noção dada pelo artigo 1543.º do CC, a servidão predial é o encargo imposto num prédio, dito prédio serviente, em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente, designado por prédio dominante.

Trata-se pois de um direito real de gozo limitado de coisa imobiliária que, embora incidindo sobre um objeto materialmente definido no prédio serviente, possibilita um desfrute de tipo aberto em proveito (objetivo) do prédio dominante[1], compreendendo, nos termos do artigo 1544.º do mesmo Código, quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, suscetíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor. E, salvo as exceções previstas na lei, as servidões são inseparáveis dos prédios a que, ativa ou passivamente, dizem respeito (art.º 1545.º, n.º 1, CC). Estão assim excluídas as chamadas servidões pessoais.

No quadro da tipologia das servidões prediais, no que aqui releva, destacam-se as servidões legais, de constituição coativa ou potestativa, designadamente por via de sentença judicial (art.º 1547.º, n.º 2, do CC), figurando entre elas a denominada “servidão legal de passagem” em benefício de prédio encravado.

O artigo 1550.º do CC, sob a epígrafe servidão em benefício de prédio encravado, preceitua que:

1 – Os proprietários que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos.

2 – De igual faculdade goza o proprietário que tenha comunicação insuficiente com a via pública, por terreno seu ou alheio.

 Embora esteja excluída a constituição de servidão de passagem sobre prédios urbanos, conforme a restrição constante da parte final do n.º 1 acima transcrito, com o que se pretende evitar a eventual colisão entre “as exigências próprias do exercício da actividade instalado no prédio” e as reservas da intimidade inerentes à vivência habitacional[2], o certo é que do artigo 1551.º, n.º 1, do CC, decorre a possibilidade de constituir servidão daquela natureza sobre quintas muradas, jardins ou terreiros adjacentes a prédios urbanos, mas com a faculdade de os respetivos proprietários se poderem subtrair a tal encargo, adquirindo o prédio encravado pelo justo valor.

    Assim, a constituição de servidão legal de passagem implica, antes de mais, a verificação de encravamento do prédio a beneficiar, o qual se pode traduzir numa das seguintes situações[3]:

i) – o encravamento absoluto, derivado da inexistência de qualquer comunicação do prédio com a via pública (art.º 1550.º, n.º 1, 1.ª parte, do CC);       

ii) – o encravamento relativo nos casos em que só seja possível estabelecer a comunicação com a via pública com excessivo incómodo ou dispêndio;

iii) – o encravamento relativo, traduzido em comunicação insuficiente com a via pública (art.º 1550.º, n.º 2, CC).  


     Nos presentes autos, é com esta última hipótese que nos deparamos. 

      Sucede que a locução “comunicação insuficiente” exprime um conceito jurídico indeterminado para cujo “preenchimento valorativo”[4] concorrem as especificidades de cada caso e os parâmetros sedimentados no lastro da movediça experiência social em que aquele se inscreve, à luz da ratio subjacente à norma aplicável.

     Para tanto, importa, desde logo, ter presente que a servidão legal de passagem, postulada pela função social da propriedade, tem em vista garantir “as condições regulares de acesso” de prédios à via pública, “imprescindíveis à sua normal fruição”, atento o seu destino económico[5].

Nas palavras de José Luís Santos[6]:

«Dada a função social da propriedade, a concessão da servidão legal de passagem funda-se na necessidade de condicionar o destino económico das coisas e no interesse geral que não permite a existência de propriedades condenadas à esterilidade por falta de acesso.»   

    Nessa linha, a dita comunicação insuficiente deve ser aferida em função do leque de utilidades normais inerentes à afetação específica do prédio dominante, de modo a proporcionar ao seu proprietário um aproveitamento objetivo dessas utilidades, condizente com o destino económico da coisa e com a função social do respetivo direito de propriedade. Não relevam assim, para tal, as potencialidades de desfrute de raiz meramente subjetiva, nem as pretensões de particular incremento na valorização da coisa, nem tão pouco a simples satisfação de melhores níveis de comodidade do proprietário do prédio dominante.

     Todavia, em caso, de servidão de passagem para habitações não se poderá deixar de atender aos padrões de vida correntes no tipo de edificação e de agregado populacional em causa nem às exigências de acessibilidade e desfrute de uma habitação em condições de salubridade, higiene e conforto humanamente condignas.

        

      Da factualidade provada destaca-se o seguinte:

i) – O prédio urbano dos A.A. é composto de casa de habitação com logradouro, com a superfície coberta de 94 m2 e área descoberta de 105 m2, sito no lugar do F…, freguesia da V… de P…, no município de V… V…, que confronta a norte com um prédio urbano da Ré, a sul com FF, a nascente com II e a poente com um caminho de servidão;

ii) – O referido prédio urbano da R. é composto de casa de rés-do-chão, com logradouro e quintal, com a área coberta de 71 m2, e área descoberta com 517 m2, sita no lugar do F…, freguesia da V… de P…, no município de V… V…, que confronta a norte com a Estrada Nacional n.º 2…5, a nascente com JJ, a sul com o sobredito prédio dos A.A. e a poente com caminho de servidão;

iii) – Os indicados prédios urbanos dos A.A. e da R. pertenceram, até agosto de 1997, aos mesmos donos, EE e marido FF;

iv) – O mencionado prédio da R. foi por ela comprado, em 06/08/ 1997, aos anteriores proprietários EE e marido FF;

v) – O prédio dos A.A. foi por eles comprado, em 13/05/2005, a DD que, por sua vez, o havia comprado, em 12/01/1998, a EE e FF;

vi) -  Em 2005, os A.A. procederam à demolição do edifício existente no seu prédio urbano e construíram um novo com mais um piso, destinando-o à sua residência permanente;

vii) - Ao executarem as obras, os A.A. deixaram a fachada principal da casa virada para o terreno sobrante situado do lado poente, terreno este que tem a largura de 3,10 metros (considerando a distância que vai desde a parede poente da casa dos A.A. e o prédio situado imediatamente a poente) e o comprimento de 8,70 metros de comprimento (considerando a distância compreendida desde a estrema com o prédio situado a sul e a estrema com o prédio situado a norte);

viii) - O prédio situado a sul do prédio dos A.A. confina com um caminho municipal denominado Rua …, que é mais estreito que a Estrada Nacional (E.N.) n.º 2…5;

ix) - A referida Rua 4 tem cerca de 3,95 metros de largura entre muros, dos quais 3,65 metros correspondem a faixa de rodagem pavimentada em asfalto, sendo utilizada para acesso local, às habitações edificadas nessa rua;

x) - A E.N. 2…5, situada na estrema norte do prédio da R., tem mais circulação automóvel do que a Rua 4;

xi) - O proprietário do prédio situado a sul do prédio urbano dos A.A. construiu um muro no limite norte do seu logradouro, que impede a passagem de automóveis entre a Rua … e o referido prédio dos A.A.;

xii) - Junto à Rua …, no prédio situado a sul do prédio dos A.A., existe um portão em chapa com a largura de 2,57 metros, que permite o acesso ao logradouro daquele prédio.

xiii) - O referido portão permite o acesso a pé e de automóvel à casa de habitação situada no prédio localizado a sul do prédio dos A.A.;

xiv) - A partir do logradouro do prédio situado a sul do prédio dos A.A., referido xii), é possível o acesso a pé aos referidos prédios dos A.A. e da R., através de uma abertura com 1 metro de largura, existente no muro que veda aquele logradouro pelo respetivo lado norte.

xv) - Desde o sobredito portão até ao limite sul do logradouro do prédio dos A.A. percorre-se uma distância de 20 metros em piso pavimentado com cimento, onde são estacionados automóveis;

xvi) - Entre a Rua … e o prédio dos A.A. existe um muro e um telheiro, que teriam de ser demolidos para possibilitar a passagem, bem como um desnível de sensivelmente 1,67 metro;

xvii) - A poente das referidas casas dos A.A. e da R. existe uma faixa de terreno com 37,50 metros de comprimento, atentos os sentidos norte-sul e sul-norte;

xviii) – Essa faixa de terreno, atento o sentido sul-norte, a partir do limite sul do prédio dos A.A., mede 3,10 metros de largura, ao longo da face poente da casa daqueles, estreitando para dois metros entre dois canteiros de pedra situados a poente da casa da R., voltando a alargar, a partir daí e até ao limite norte do prédio da mesma R. para uma largura de cerca de 3,40 metros;

xix) - O referido terreno não tem largura suficiente para, quando nele estejam aparcadas viaturas automóveis, deixar dois metros de largura de terreno livre;

xx) - O prédio dos A.A. não tem qualquer acesso à via pública que permita a passagem de um automóvel, porquanto, do lado norte, entre tal prédio e a via pública situa-se, de permeio, o referido prédio da R., situando-se, do lado sul, um outro prédio de habitação;

xxi) - Face à configuração atual dos prédios dos A.A. e da R., não é possível aos A.A. aceder de automóvel da via pública ao seu prédio urbano, onde residem, seja para descarregar compras, seja transportar qualquer dos seus familiares;

xxii) - A faixa de terreno referida em xvii e xviii permite à R. aceder de automóvel, por uma entrada lateral, ao seu prédio, apresentando-se em terra batida e sem vegetação desde a estrema norte até ao limite norte da casa aí existente;

xxiii) - O prédio da R. tem a sua entrada junto da E.N. 2…5 e, desta até ao limite norte do logradouro do prédio dos A.A., percorre-se uma distância de 28,80 metros, em piso de terra batida;

xxiv) - No logradouro do lado poente da casa da R. existem dois canteiros ajardinados, um canteiro a correr junto à parede da casa de habitação do lado em que a R. tem a entrada para a sala de jantar e outro canteiro a correr pelo seu limite poente;

xxv) - O referido logradouro tem, entre a parede poente da casa e o prédio vizinho, a largura de 3,10 metros, sendo 1,10 metro de largura dos 2 canteiros, um com 50 centímetros e outro com 60 centímetros de largura, e 2,00 metros de espaço entre os 2 canteiros;

xxvi) - O prédio dos A.A. não tem nem nunca teve garagem, não dispondo de espaço suficiente para nele ser construída uma garagem;

xxvii) Os A.A. utilizam um automóvel de marca Mercedes-Benz;

xxviii) – Para possibilitar o acesso de automóvel pela faixa referida em xvii) será necessário destruir os canteiros da R. referidos em xxiv), passando tal acesso junto à casa da R..


      Sucede ainda que:

   . Em 29/03/2007, a aqui R. propôs uma ação contra os aqui A.A., que correu termos sob o n.º 379/07.3TBVVD, no âmbito da qual foi proferida sentença em 12/04/2010, em cuja decisão:

 a) – se reconheceu, além do direito de propriedade da ali autora e aqui R. sobre o prédio aqui em referência, a posse da mesma sobre o caminho pedonal como assento da servidão de passagem, na parte em que tal caminho atravessa o prédio dos aqui A.A.

 b) – se condenou os ali réus e aqui A.A. a absterem-se de turbar ou estorvar aquela posse e a reconstruir os canteiros do jardim da ora R. nos moldes em que os mesmos se encontravam antes de ser destruídos;

 c) – se condenou os mesmos ali réus e ora A.A. a absterem-se de passar no caminho provindo da EN 2…5 e de passar junto do prédio da ali A. e aqui R. com veículos motorizados ou aí estacionar veículos”.

. Em 27/09/2010, os aqui A.A. intentaram também uma ação declarativa contra aqui R., que correu termos sob o n.º 1152/10.7 TBVVD, em que pediram, além do reconhecimento do direito de propriedade sobre o seu prédio em referência, a declaração de constituição por destinação de pai de família e por usucapião, de uma servidão de passagem a pé e de automóvel, sobre o prédio da ora R.;

. Tal ação foi decidida por sentença de 28/01/2013, alterada por acórdão da Relação de Guimarães, de 21.05.2013, no sentido de:  

   a) – julgar improcedente o pedido de reconhecimento dos A.A. da existência do invocado direito de servidão de passagem de automóvel sobre o caminho que atravessa o prédio da R.;

   b) - afirmar a existência de uma servidão de passagem a pé e com animais, favor dos A.A., relativamente ao caminho que liga o seu prédio à EN 2…5.


   Como se encontra bem espelhado no quadro da relação litigiosa existente entre os A.A. e R., aqueles procuraram, inicialmente, obter o reconhecimento da servidão de passagem com automóvel pelo prédio da R., como base em usucapião e destinação de pai de família, mas apenas lograram obter o reconhecimento de uma servidão de passagem pedonal. Foi então que vieram lançar mão de uma nova via como é a de constituir servidão legal de passagem com automóvel com base em alegado encravamento relativo do seu prédio.  

        

    Ora, do universo factual acima destacado extraem-se elementos demonstrativos de que os A.A. não dispõem de acesso com automóvel da via pública – seja da EN n.º 2…5, seja da Rua … (municipal) – para a sua habitação e de que a forma mais viável de o fazer seria pela faixa de terra batida que, integrada no prédio da R., se estende, em linha reta, do lado poente deste prédio com o comprimento de 28,80 metros, desde a EN n.º 2…5 até àquela habitação dos A.A., e com a largura de 3,40 metros. Está também provado que a implantação dessa servidão implicaria a demolição dos dois canteiros ajardinados que a R. ali detêm e que a via de acesso passaria junto à parede da casa da R. que dá entrada para a sala de jantar.

   Resta, porém, saber se um tal acesso de automóvel se mostra indispensável para o aproveitamento pelos A.A. das utilidades normais de fruição da sua habitação, em termos de configurar uma comunicação insuficiente à luz do disposto no artigo 1550.º, n.º 2, do CC e de harmonia com os critérios de interpretação acima expostos.        

Em sentido afirmativo, argumentam os A.A., em termos algo genéricos, com a necessidade de transportar os produtos domésticos do dia-a-dia, bem como de transporte de familiares, nomeadamente daqueles que tenham dificuldades de locomoção, e ainda de eventual acesso de ambulância ou de viatura dos bombeiros, tudo isso tido por inerente aos atuais padrões de vida.


Vejamos se assim é.


Da factualidade provada em foco depreende-se que a habitação dos A.A. se situa num trato topográfico de características rurais com alguns constrangimentos de acesso direto à via pública rodoviária, sendo que, ao longo dos anos, tal acesso tem-se processado a pé sobre uma faixa de terra batida que, integrada, a poente, nos prédios da R. e dos A.A., se estende, de norte para sul, desde a Estrada Nacional n.º 2…5, prolongando-se para sul do prédio dos A.A. até à Rua municipal n.º …. Tal faixa tem a largura de 3,40 metros numa extensão de 28,80 metros, desde a dita EN n.º 2…5 até ao limite norte do prédio dos A.A., mas, na parte que passa ao longo da habitação da R., essa largura é ocupada por dois canteiros ajardinadas que a limitam a 2 metros.

Por outro lado, o prédio dos A.A. não tem nem nunca teve garagem, nem dispõe de espaço suficiente para nele ser construída, mesmo depois das obras por eles executadas em 2005, o que significa tratar-se de uma habitação, como tantas outras no nosso País, não predisposta para acesso com automóvel.

Nestas circunstâncias objetivas, não se divisa nem os A.A. demonstram que o acesso a pé por aquela faixa de terreno, como tem sido feito ao longo dos anos, tenha restringido, de modo essencial, a fruição normal das utilidades proporcionadas pela sua habitação. Nem demonstram sequer a emergência de novas condições habitacionais que o façam supor.

De resto, algo sintomático disso parece ser o facto de nem aos A.A. ter ocorrido perspetivar a ora alegada situação de encravamento relativo, ainda que a título subsidiário, quando anteriormente pretenderam o reconhecimento da servidão de passagem com base na usucapião ou na destinação de pai de família.

Quando muito, poderá admitir-se a maior comodidade de dispor de automóvel até “à porta de casa”, o que não se traduz, mesmo assim, num fator indispensável à normal fruição da habitação. Com efeito, muitos serão ainda os fogos existentes em Portugal, quer no meio urbano, quer no meio rural, em que se percorrem a pé distâncias similares à referida nos autos com “sacos de compras” provenientes das grandes superfícies comerciais, o que, de resto, se tende a acentuar pelos conhecidos constrangimentos de circulação e parqueamento automóvel.

E quanto à necessidade de transporte de pessoas com dificuldades de mobilidade, os A.A. não provaram nem tão pouco alegaram que seja essa a situação concreta dos autos, além de que tal acessibilidade não tem de passar, necessariamente, pela constituição de uma servidão de passagem com automóvel, podendo ser satisfeita por outros meios alternativos de adequado conforto.

De igual modo, a eventual necessidade de acesso a serviços de ambulância ou de bombeiros, sendo como é de natureza esporádica, pode ser satisfeita, conforme as circunstâncias de cada caso, por via de medidas pontuais de passagem forçada momentânea, à semelhança dos casos previstos no artigo 1349.º do CC. 

Por outro lado, não se pode ignorar que a implantação do pretendido acesso de automóvel, passando a escassos centímetros da parede da casa da R. que dá entrada para a sala de jantar constituiria também um forte constrangimento ao desfrute dessa habitação, nomeadamente no que toca à segurança requerida pela saída de pessoas dela.  

Em suma, não se afigura que a afetação específica da habitação dos A.A., com as características e o modus vivendi que é possível colher dos factos provados, revele insuficiência de comunicação com a via pública, por carência de acesso automóvel através da sobredita faixa de 28,80 me-tros, nos termos e para os efeitos do artigo 1550.º, n.º 2, do CC.

Termos em que improcede a revista.


IV - Decisão

Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se a decisão recorrida.

As custas do recurso ficam a cargo dos A.A./Recorrentes.

Lisboa, 12 de Outubro de 2017

Manuel Tomé Soares Gomes (Relator)

Maria da Graça Trigo

Maria Rosa Tching

______________


[1] Sobre a distinção entre o objeto e o desfrute do direito de servidão predial, vide Oliveira Ascensão, in Direito Civil – Reais, Coimbra Editora, 5.ª Edição, 2000. p. 489.   
[2] Vide, José Luís Santos, Servidões Prediais (Serventias), Coimbra Editora, 2.ª Edição, 1983, p. 38.
[3] Vide, por todos, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1987, p. 637.
[4] Segundo expressão adotada por Baptista Machado, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1987, p. 114.
[5] Vide Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit. p. 637.
[6] Servidões Prediais (Serventias), Coimbra Editora, 2.ª Edição, 1983, p. 38.