Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5331/06.3TBMAI.P1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: URBANO DIAS
Descritores: DIREITO DE RETENÇÃO
TRANSITÁRIO
Data do Acordão: 03/02/2010
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: CJASTJ, ANO XVIII, TOMO I/2010, P. 82
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
I – O simples facto de o artigo 14º do Decreto-Lei nº 255/99, de 7 de Julho, atribuir às empresas transitárias o direito de retenção sobre mercadorias que lhe tenham sido confiadas em consequência dos respectivos contratos, pelos créditos deles resultantes, não permite, sem mais, a uma qualquer empresa transitária concluir pelo direito de retenção em relação a todo e qualquer material.
II – É que é pressuposto da existência deste direito real de garantia que o titular do direito à entrega da coisa seja sujeito passivo da relação creditícia cujo credor é obrigado à entrega da coisa, e que o crédito deste seja conexo com a referida coisa, em termos de resultar de despesas com ela realizadas sobre prejuízos por ela causados.
III – Deste modo, tendo a A. prestado serviços à R. no âmbito de um determinado contrato e esta não tendo pago o respectivo preço por inteiro, tem aquela direito a exercer retenção sobre as respectivas mercadorias, mas já não pode invocar o incumprimento deste mesmo contrato para reter mercadorias relativas a um outro qualquer contrato, precisamente porque, neste caso, falta o elemento “conexão” para legitimar a sua acção.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I.
AA, S. A. intentou, no Tribunal Judicial da Comarca da Maia, acção ordinária contra BB – Transitários Lª, pedindo a sua condenação no pagamento de 17.651,60 € e no que se viesse a liquidar, a título de indemnização pelos danos causados na paragem da produção e na perda de encomendas, pelo facto de, enquanto credora, não ter respeitado a decisão da assembleia de credores, tomada em processo de recuperação de empresa, no que se refere ao pagamento do seu crédito, tendo retido matéria-prima que a si se destinava.
A R. contestou para justificar a legalidade da retenção da dita matéria-prima e pedir a consequente absolvição do pedido.
O processo seguiu, depois, a sua normal tramitação até julgamento e, findo este, foi proferida sentença a julgar a acção totalmente improcedente.
Em vão, apelou a A. para o Tribunal da Relação do Porto, na medida em que viu o julgado inteiramente confirmado.
Continuando inconformada, pede, ora, revista, a coberto das seguintes conclusões (as mesmas que tinham sido já apresentadas na apelação) com que rematou a sua minuta:
1. No acórdão recorrido parte-se do pressuposto de que a quantia que a recorrida reclamava, de € 2.500,80, beneficiava de um direito real de garantia e, como tal, não se encontrava abrangido pela medida recuperatória, sendo, assim, lícito à recorrida reter o material adquirido pela recorrente (substitui-se apenas sentença por acórdão).
2. Com efeito, no direito de retenção, previsto no artigo 754° do Código Civil e no artigo 14° do DL 255/99, de 7 de Julho, terá que existir uma conexão objectiva entre a coisa e o crédito.
3. No caso em apreço o direito de retenção apenas existiria se a recorrente se recusasse a pagar os custos derivados da expedição das mercadorias que pretendia levantar, ou seja € 45,38, como consta do documento de fls. 35 supra referido.
4. A quantia que se encontrava em dívida desde 2004, de € 2.500,80, que a recorrida exigia para proceder à entrega das mercadorias expedidas em 2006, não beneficiava pois de direito de retenção, porque não tinha qualquer conexão com a expedição destas.
5. Nos termos do artigo 761° do Código Civil, o direito de retenção extingue-se pela entrega da coisa.
6. Como as coisas que deram origem ao crédito de € 2.500,80 já tinham sido entregues pelo menos na data constante do n° 2 supra dos factos provados, ou seja, 18 de Julho de 2004, extinguiu-se o direito de retenção, e, por consequência, não existe o direito real sobre as obrigações que caracteriza o direito de retenção sobre aquela quantia de € 2.500,80.
7. Ou seja, quando deu entrada o processo de recuperação, em 14 de Julho, a recorrida não detinha mercadorias em seu poder e, como tal, não existia qualquer direito de retenção.
8. Não existindo direito de retenção, não há a mínima dúvida de que o seu crédito seria comum, sendo-lhe aplicável a medida recuperatória aprovada.
9. De qualquer modo, com a interpretação que foi feita no acórdão recorrido, com o transporte efectuado no início de 2006 viria a renascer um direito que, ao tempo do processo de recuperação, não existia, ou seja, o crédito que, então, indiscutivelemente era comum, passaria a privilegiado.
10. Nesta medida, é ilícita a retenção das mercadorias expedidas em 2006, uma vez que sujeitava a entrega destas ao pagamento de uma quantia que não tinha nenhuma conexão com esta expedição, sendo certo que quanto a esta expedição apenas era devida a quantia de € 45,38 como consta do doc. de fls. 35, dado por reproduzido no n° 11 supra da matéria provada.
11. Na verdade, o direito de retenção apenas pode ser exercido sobre mercadorias que lhe tenham sido confiadas, em consequência dos respectivos contratos e pelos créditos de cada um desses contratos resultante.
12. Assim, não beneficiando o crédito de € 2.500,80 do direito de retenção, até porque este direito se extinguiu pela entrega das coisas que deram origem a este crédito, sempre seria crédito comum, sujeito à medida recuperatória aprovada por sentença transitada em julgado.
13. Seja a responsabilidade civil contratual, uma vez que a recorrida não cumpriu a obrigação de entrega dos bens expedidos, seja extracontratual pela ilícita retenção das mercadorias, deverá a recorrida ser condenada no pagamento dos prejuízos causados.
14. A decisão recorrida viola os artigos artigos 754°, 761º, do Código Civil, e artigo 14° do DL 255/99, de 7 de Julho, 62° n° 1 do C.P.E.R.E.F.

A recorrida respondeu, em defesa da manutenção do aresto impugnado.
II.
As instâncias deram como provados os seguintes factos:
1. A A. e a R., durante vários anos, desenvolveram relações comerciais, no âmbito das respectivas actividades.
2. No decurso das referidas relações comerciais, a R. prestou diversos serviços à A., no montante de € 2.500,80, sendo que, em 18 de Junho de 2004, a A. ainda não havia procedido ao pagamento dessa quantia.
3. Corre termos no juízo de execução do tribunal recorrido, com o n.º 9990/04.3TBMAI, acção de execução comum, em que é exequente a aqui R. e executada a aqui A., acção que deu entrada em 6 de Dezembro de 2004, resultante de requerimento de injunção, que deu entrada em 18 de Junho de 2004, e ao qual foi conferida força executiva.
4. Em 14 de Julho de 2004, a A. intentou, no Tribunal Judicial da Comarca de Felgueiras, um Processo Especial de Recuperação de Empresas, o qual corre termos no 1º Juízo desse tribunal, sob o nº 1759/04.1TBFLG.
5. No âmbito do processo aludido, a assembleia definitiva de credores, que se realizou no dia 27 Setembro de 2005, aprovou uma medida recuperatória de reestruturação financeira.
6. Nos termos da providência recuperatória mencionada, o passivo da A. seria pago da seguinte forma:
“- Créditos que gozam de hipoteca voluntária sobre bens da recuperanda, dos seguintes credores:
- CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS S. A.:
… Dação em cumprimento do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras sob o número 1150/230204, da freguesia de Idães, inscrito na matriz respectiva, sob o artigo 1018º, daquela freguesia, para pagamento da responsabilidades vencidas e reclamadas, pela Caixa Geral de Depósitos, nos presentes autos.
… A escritura pública será celebrada, no prazo de 90 dias, após a data da última assembleia definitiva de credores que aprovar a medida a homologar, devendo, nessa data, encontrar-se o prédio livre de todos os ónus e encargos que sobre ele incidam, devendo ainda possuir a respectiva licença de utilização, emitida pela Câmara Municipal de Felgueiras.
… Caso a recuperanda não consiga reunir as condições para proceder à celebração da escritura pública de dação em cumprimento, considerar-se-á que não foi cumprida a medida, desde já se consignando que se mantém a hipoteca voluntária que incide sobre o prédio, a favor da Caixa Geral de Depósitos.
… Consigna-se ainda que, nos termos do artigo 121º n.º 2, alínea b), do CPEREF, a transmissão será isenta de IMT e pagamento de quaisquer outros encargos dispensados pela lei.
… Obriga-se ainda a requerente a constituir, a favor da Caixa Geral de Depósitos, garantia hipotecária sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras, sob o número 01196/120804, e ainda sobre o prédio inscrito na matriz urbana, sob o artigo 177º, da freguesia de Santo Estêvão de Barrosas, do concelho de Lousada, para contra-garantia das garantias bancárias prestadas a favor da Fazenda Nacional.
- BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS S.A.:
… Dação em cumprimento do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras, sob o número 00007/030485, da freguesia de Idães e inscrito na matriz respectiva, sob o artigo 1019º, daquela freguesia, para integral pagamento das responsabilidades vencidas e reclamadas pelo Banco Comercial Português, nos presentes autos.
… A escritura pública será celebrada, no prazo de 90 dias, após a data da última assembleia definitiva de credores que aprovar a medida a homologar, devendo nessa data encontrar-se o prédio livre de todos os ónus e encargos que sobre ele incidam, devendo ainda possuir a respectiva licença de utilização emitida pela Câmara Municipal de Felgueiras.
… Caso a recuperanda não consiga reunir as condições para proceder à celebração da escritura pública de dação em cumprimento, considerar-se-á que não foi cumprida a medida, desde já se consignando que se mantém a hipoteca voluntária que incide sobre o prédio a favor do Banco Comercial Português.
… Consigna-se ainda que, nos termos do artigo 121º n.º 2, alínea b), do CPEREF, a transmissão será isenta de IMT e pagamento de quaisquer outros encargos dispensados pela lei.
… Modificação por moratória e perdão parcial dos créditos que gozam de privilégio e hipoteca legal sobre bens da recuperanda, dos seguintes credores:
- FAZENDA NACIONAL:
… Os créditos reclamados no processo de recuperação pela Fazenda Nacional são litigiosos, uma vez que se encontram pendentes oposições judiciais.
… Caso não procedam as oposições deduzidas a Fazenda Nacional poderá, de imediato, pagar-se das quantias em débito, uma vez que beneficia de garantias bancárias prestadas pela Caixa Geral de Depósitos.
… Este credor beneficia de hipoteca legal sobre os prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras, sob o número 01196/120804, e ainda sobre o prédio inscrito na matriz urbana, sob o artigo 177º, da freguesia de Santo Estêvão de Barrosas, do concelho de Lousada, que garantem o pagamento da dívida.
- SEGURANÇA SOCIAL:
… Pagamento do capital em dívida, em 60 prestações mensais, vencendo-se a primeira um mês após a data da assembleia de credores que aprove a providência adoptada.
… Perdão de juros vencidos.
… Os juros vincendos serão liquidados à taxa de 2,5% ao ano.
… Este credor beneficia de hipoteca legal sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras, sob o número 01196/120804, que garante o pagamento da dívida.
… Compromete-se o Instituto de Gestão Financeira a emitir documento de distrate das hipotecas legais que incidem sobre os prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras, sob os números 1150/230204, da freguesia de Idães, e inscrito na matriz respectiva, sob artigo 1018º, daquela freguesia e número 00007/030485, da freguesia de Idães, e inscrito na matriz respectiva, sob artigo 1019º, da aludida freguesia.
- Modificação dos restantes créditos por perdão parcial e moratória:
… Perdão total de juros vencidos e vincendos, perdão esse não subordinado à cláusula de «salvo regresso de melhor fortuna».
… Perdão de 90% dos créditos primitivos de capital, perdão esse não subordinado à cláusula de «regresso de melhor fortuna».
… Moratória de 10% dos créditos primitivos de capital em seis prestações iguais, vencendo-se a primeira dois anos após o transito em julgado da sentença homologatória da deliberação da assembleia definitiva de credores e as restantes nas mesmas datas dos anos subsequentes até integral pagamento”.
7. A A. adquiriu ao seu fornecedor italiano as matérias-primas que se encontram discriminadas na factura junta aos autos a fls. 32.
8. Sendo que esse fornecedor expediu tais mercadorias para a A., recorrendo aos serviços da R..
9. Tais matérias-primas destinavam-se à execução de uma encomenda de 1.500 pares de sapatos para o cliente da A., CAD, que deveriam ser entregues no dia 3/2/2006.
10. Quando teve conhecimento que as matérias-primas aludidas se encontravam nas instalações da R., a A. entrou em contacto com a mesma para que lhe fosse entregue a mercadoria.
11. Na sequência do contacto aludido, a R. remeteu à A., que o recebeu, o documento junto a fls. 35 dos autos, datado de 31/1/2006.
12. Em resposta ao documento mencionado, a A. remeteu à R., que o recebeu, o documento junto a fls. 36 dos autos, datado de 1/2/2006.
13. Depois de vários contactos telefónicos em que foi explicada a situação da empresa, a A. remeteu à R., que o recebeu, o documento junto a fls. 37 a 57 dos autos, datado de 2/2/2006.
14. Em resposta ao documento mencionado, a R. remeteu à A., que o recebeu, o documento junto a fls. 58 dos autos, datado de 3/2/2006.
15. No dia 30 de Janeiro de 2006, encontravam-se já cortadas todas as peças que iriam constituir o sapato aludido, apenas faltando cortar a pele que havia sido adquirida em Itália e transportada através dos serviços da R..
16. Os sapatos aludidos eram compostos por distintos materiais de várias cores, sendo que para concluir a encomenda apenas faltava o material e cor que foi expedido de Itália nos termos aludidos.
17. O sapato era composto por várias peças, conforme documento nº 9, sendo que a pele aludida seria aplicada nas peças referenciadas.
18. Em virtude da conduta da R. e uma vez que não podia encomendar, em tempo útil, nova quantidade de pele ao seu fornecedor italiano, a A. ficou impossibilitada de concluir a encomenda mencionada no prazo acordado, tendo o seu cliente cancelado a encomenda.
19. Nessas circunstâncias, por referência à encomenda nº 55044, se encontravam já cortados os seguintes materiais:
a) 325 pés de anilina, com o custo de € 2,65 por pé, no montante global de € 861,25;
b) Cerca de 31 pés de pele perlado, com um custo monetário em montante concreto não determinado;
c) 732,61 pés de pele anilina porco, com o custo de € 0,54 por pé, no montante global de € 395,61.
20. Sendo que a pele cortada se destinava ao fabrico daquele modelo específico, pelo que uma vez cortada ficou completamente inutilizada para outro fim.
21. Nessas circunstâncias, por referência à encomenda nº 55044, a A. tinha adquirido:
a) 1400 fivelas, ao custo unitário de € 0,09, no montante global de € 126,00;
b) 700 caixas, ao custo unitário de € 0,28, no montante global de € 196,00;
c) 700 pares de solas, ao custo unitário de € 1,40, no montante global de € 980,00.
22. Os materiais descritos não podem ser utilizados pela A. para outras encomendas.
23. Nessas circunstâncias, por referência à encomenda nº 55045, se encontravam já cortados os seguintes materiais:
a) 242 pés de pele nubuk, com o custo de € 2,65 por pé, no montante global de € 641,30;
b) Cerca de 35 pés de pele perlado, com um custo monetário em montante concreto não determinado;
c) 837,26 pés de pele anilina porco, com o custo de € 0,54 por pé, no montante global de € 452,12.
24. Sendo que a pele cortada se destinava ao fabrico daquele modelo específico, pelo que uma vez cortada ficou completamente inutilizada para outro fim.
25. Nessas circunstâncias, por referência à encomenda nº 55045, a A. tinha adquirido:
a) 1600 fivelas, ao custo unitário de € 0,09, no montante global de € 144,00;
b) - 800 caixas, ao custo unitário de € 0,28, no montante global de € 224,00;
c) - 800 pares de solas, ao custo unitário de € 1,40, no montante global de € 1.120,00.
26. Os materiais descritos não podem ser utilizados pela A. para outras encomendas.
27. O custo de mão-de-obra utilizado para o corte da pele aludida foi de, pelo menos, € 0,50 por par de sapatos.
28. A A. pagou a pele aludida ao seu fornecedor Italiano, tendo despendido para o efeito a quantia de € 2.565,92.
29. A margem de lucro líquida da A. na encomenda aludida seria de cerca de 5 % sobre o valor da facturação.
30. Em consequência do supra descrito, a A. perdeu um cliente que se encontrava fidelizado à empresa desde 1995 e que, ao longo destes anos, até 2005, lhe adquiriu materiais no valor de mais de € 1.500.000,00.
31. A não entrega, por parte da R., da mercadoria aludida e a impossibilidade de refazer a programação de entrada em fabrico de novos modelos, obrigou a A. a paralisar a empresa durante dois dias.
32. Em consequência da paralisação aludida, a A. teve um prejuízo de valor concreto não determinado.
33. Em 26 de Janeiro de 2006, a R. reteve mercadorias que transportou e que a A. tinha adquirido a um fornecedor italiano.
34. Sendo que, nos termos do acordo efectuado, incumbia à A. o pagamento do preço da mercadoria e do transporte, desde a fronteira até ao Porto.

III.
Quid iuris?
A verdadeira questão que nos é posta é a de saber se há ou não licitude na actuação da R. na retenção que fez e que motivou os danos alegados.
Provada esta, não restando dúvidas sobre a verificação dos restantes pressupostos da responsabilidade civil extracontratual (a responsabilidade que é, aqui, extracontratual, na medida em que sai fora do programa contratual a que as Partes se vincularam, de modo livre; dito de outro modo, a responsabilidade da R. surge, aqui, para além, fora, portanto, dos sucessivos contratos que celebrou com a A.), tal como está consagrada no artigo 483º do Código Civil, terá a A./recorrente necessariamente direito ao peticionado.
Temos, pois, que apreciar a conduta da R./recorrida, à luz dos princípios orientadores do direito de retenção, tal como está consagrado, em termos gerais no Código Civil, e, em particular, no Decreto-Lei nº 255/99, de 07 de Julho.
Defenderam as instâncias que a R./recorrida, tendo a seu favor um direito real de crédito, por mor da sua qualidade de transitária, atento o disposto no artigo 14º do Decreto-Lei nº 255/99, de 07 de Julho, procedeu licitamente ao reter as mercadorias destinadas à A./recorrente, assim afastando, de todo, a responsabilidade pelo pagamento dos danos sofridos por esta.
A recorrente, apesar de repetir as suas conclusões da apelação no recurso de revista, não deixou, com toda a pertinência, de sublinhar o que consta nas 7ª, 8ª e 9ª. Através de tal sinalética quis, com efeito, fazer representar uma cousa que se nos afigura como sendo óbvia: quando deu entrada o processo de recuperação, a recorrida ainda não tinha em seu poder as mercadorias que, posteriormente, reteve, a pretexto de aquela ser sua devedora.
O simples facto de os serviços prestados, à A./recorrente pela R./recorrida, terem sido no âmbito da actividade da actividade transitária não permite, sem mais, concluir pelo direito de retenção desta em relação àquela.
O direito de retenção surge consagrado no Código Civil de 1966 como um verdadeiro direito real de garantia, podendo ser definido como o “direito conferido ao credor, que se encontra na posse de certa coisa pertencente ao devedor de, não só recusar a entrega dela enquanto o devedor não cumprir, mas também de executar a coisa e se pagar à custa do valor dela, com preferência sobre os demais credores” (João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em geral, Vol. II, 6ª edição, páginas 572 e 573).
Uma simples leitura do artigo 754º do Código Civil – “o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou por danos por ela causados” – permite chegar à conclusão de que não existe conexão entre a dívida da A./recorrente e a retenção por parte da R./recorrida.
Para usarmos as palavras de Salvador da Costa, diremos que “é pressuposto da existência deste direito real de garantia que o titular do direito à entrega da coisa seja sujeito passivo da relação creditícia cujo credor é obrigado à entrega da coisa, e que o crédito deste seja conexo com a referida coisa em termos de resultar de despesas com ela realizadas sobre prejuízos por ela causados” (O Concurso de Credores, 4ª edição, página 184).
Em boa verdade, a relação de conexão funcional exigida pela lei não se verifica no caso presente. Com efeito, quando teve lugar a assembleia de credores (14 de Julho de 2004), que deliberou sobre a forma de pagamento das dívidas da A., ainda a R./recorrida não tinha em seu poder a mercadoria que veio a reter.
Que o crédito reclamado, no valor de 2.500 €, resulta de um serviço executado pela R., enquanto transitária, à A., não restam quaisquer dúvidas.
Face à mesma, podia mui bem a R./recorrida ter feito valer o direito real de garantia, retendo a mercadoria que esteve na base do serviço prestado.
Não o tendo feito, o “potencial” direito real de garantia, sobre aquelas concretas mercadorias, acabou por se extinguir (artigo 761º do Código Civil).
Da mesma forma que o dono de uma oficina de reparação de automóveis tem direito de retenção sobre o automóvel que reparou (artigo 755º, nº 1, alínea e), do Código Civil), também a R., enquanto transitária, tem direito a reter a mercadoria que esteve na base do serviço prestado, em concreto.
Mas, se, porventura, este dono de garagem deixar sair o veículo sem pagamento, qualquer que seja a razão que motivou a sua vontade, queda sem sentido falar em direito de retenção sobre o mesmo com vista a obter a garantia de pagamento.
Da mesma forma, entregue a mercadoria que motivou a dívida, a R./recorrida perdeu o direito de retenção sobre a mesma (e só em relação a ela, em concreto, o podia fazer).
Em ambos estes dois casos, meramente exemplificativos, o direito de retenção extinguiu-se por entrega da coisa, nos termos do supra citado artigo 761º.
Em suma, não havendo no caso presente, como, efectivamente, não há, qualquer conexão causal entre o crédito e a coisa, não é lícito falar em direito de retenção por parte da R.: a sua conduta surge, pois, aos olhos da lei como sendo contrária ao Direito, como ilícita.
Desta forma, está, afinal, provado o elemento único constitutivo da responsabilidade aquiliana que faltava e que, na visão das instâncias, impedia a responsabilização da R./recorrida pelos danos sofridos pela A./recorrente.
Como assim, outro caminho não resta à R./recorrida do que pagar à A./recorrente o peticionado.

IV.
Decisão
Concede-se a revista e, consequentemente, condena-se a R./recorrida no peticionado.
Custas, aqui e nas instâncias, pela R./recorrida.

S.T.J., aos 02 de Março de 2010
Urbano Dias (Relator)
Paulo Sá
Mário Cruz