Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
284040/11.0YIPRT.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: PODERES DA RELAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
GRAVAÇÃO DA PROVA
TRANSCRIÇÃO
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 07/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVOGADO O ACÓRDÃO
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / RECURSOS.
Doutrina:
- Centro de Estudos Judiciários, “Notas sobre o novo regime dos recursos no Código de Processo Civil”, in O Novo Processo Civil, Contributos da doutrina para a compreensão do novo Código de Processo Civil, caderno I, Dezembro de 2013, pág. 395 e segs..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 371.º, N.º1, 1154.º, 1156.º, 1157.º, 1158.º, N.º 2.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 572.º, 640º, Nº 2, A), 671.º, N.º3.
-*-
EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS DA PROPOSTA DE LEI Nº 113/XII APRESENTADA À ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA, DE CUJA APROVAÇÃO VEIO A RESULTAR O ACTUAL CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, DISPONÍVEL EM WWW.PARLAMENTO.PT .
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 9 DE OUTUBRO DE 2008, WWW.DGSI.PT, PROC. Nº 07B3011, OU DE 18 DE JUNHO DE 2009, WWW.DGSI.PT, PROC. Nº 08B2998.
-DE 4 DE NOVEMBRO DE 2010, WWW.DGSI.PT, PROC. Nº 7006.05.1TBBRG.G1.S1 E JURISPRUDÊNCIA NELE CITADA, E AINDA OS ACÓRDÃOS DE 29 DE NOVEMBRO DE 2011, WWW.DGSI.PT, PROC. Nº 39/2002.E1.S1 OU DE 30 DE JUNHO DE 2011, WWW.DGSI.PT, PROC. 6450/05.9TBSXL.L1.S1.
-DE 24 DE SETEMBRO DE 2013, WWW.DGSI.PT, PROC. Nº 1965/04.9TBSTB.E1.S1:
-DE 29 DE OUTUBRO DE 2013, WWW.DGSI.PT, PROC. Nº 1410/05.2TCSNT.L1.S1,
-DE 22 DE JANEIRO DE 2015, WWW.DGSI.PT, PROC. Nº 24/09.2TBMDA.C2.S2,
Sumário :
I - Recai sobre o autor o ónus de provar o conteúdo do contrato de prestação de serviços que alega ter celebrado com a ré, sendo que deste conteúdo faz parte, além do serviço a prestar, a remuneração acordada ou o respectivo critério de cálculo; só se nada estiver estipulado quanto a este aspecto é que valem os critérios supletivos previstos no art. 1158.º, n.º 2, do CC, entre eles o da equidade.

II - Atenta a limitação dos poderes do STJ, em sede de matéria de facto, não pode este dar por provada a celebração de um contrato de mandato, tendo por base os documentos indicados pelo recorrente – vg actas de reunião de obra, certidão da Câmara Municipal, entre outros – posto que nenhum deles prova plenamente a celebração do contrato, mas antes constituem elementos de prova sujeito à livre apreciação do tribunal.

III - Não obstante, pode o STJ sindicar o mau uso que a Relação fez dos poderes de alteração da decisão da matéria de facto, nomeadamente ao rejeitar a sua reapreciação por não cumprimento das regras de impugnação da mesma.

IV - Tendo o apelante, nas suas alegações de recurso, (i) identificado os pontos de facto que considerava mal julgados, por referência aos quesitos da base instrutória, (ii) indicado o depoimento das testemunhas, que entendeu mal valorados, (iii) fornecido a indicação da sessão na qual foram prestados e do início e termo dos mesmos, apresentado a sua transcrição, (iv) bem como referido qual o resultado probatório que nos seu entender deveria ter tido lugar, relativamente a cada quesito e meio de prova, tanto bastava para que a Relação tivesse procedido à reapreciação da matéria de facto, ao invés de a rejeitar.

Decisão Texto Integral:
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:



1. AA apresentou um requerimento de injunção, dirigido contra a Irmandade de BB, pedindo o pagamento de € 84.891,57 (€ 73.800,00 de capital, dos quais € 60.000,00 de honorários e o restante de IVA, e € 10.938,57 de juros de mora), correspondentes a honorários devidos por ter procedido à "direcção técnica da obra de construção da Unidade de Cuidados Continuados do Hospital de CC, propriedade da requerida", na qualidade de arquitecto e "sob adjudicação e mandato" da mesma. Disse ainda tê-la interpelado por diversas vezes, mas que a requerida nada pagou, apesar de ter reconhecido a dívida.

A ré contestou, negando dever qualquer quantia ao requerente. Alegou que a sociedade DD, Arquitectos, Unipessoal, Ldª, mas não o requerente, lhe prestou serviços de arquitectura, que foram integralmente pagos. Disse ainda ser inepto o requerimento de injunção, por falta de causa de pedir, ser falso que alguma vez tivesse reconhecido tal dívida e pediu a condenação do requerente como litigante de má fé, em multa e em indemnização não inferior a € 5.000,00.

A autora replicou; e pediu que fosse a ré a ser condenada por litigância de má fé, em multa e indemnização não inferior a € 8.000,00.

No saneador, determinou-se que a acção seguisse a forma de processo comum ordinário.

A acção foi julgada improcedente pela sentença de fls. 418, com o fundamento de que “o autor não logrou demonstrar, como lhe competia, os factos constitutivos do direito que alega”; considerou-se ainda não haver razão para condenar nenhuma das partes como litigante de má fé.

O autor recorreu, impugnando a decisão sobre a matéria de facto e a improcedência da acção; mas a Relação confirmou a sentença, nestes termos:


“Desde logo se salienta que a reapreciação da matéria de facto, pela Relação, no âmbito dos poderes conferidos pelo artº 712º do CPC, ora com igual referência ao artº 662º do NCPC, não pode confundir-se com um novo julgamento, destinando-se essencialmente à sanação de manifestos erros de julgamento, de falhas mais ou menos evidentes na apreciação da prova, sendo entendimento dominante na jurisprudência que a convicção do julgador, firmada no princípio da livre apreciação da prova (artº 607º-nº4 do Código de Processo Civil), só pode ser modificada pelo tribunal de recurso quando fundamentada em provas ilegais ou proibidas ou contra a força probatória plena de certos meios de prova, ou então quando afronte as regras da experiência comum, por verificação de erro de julgamento.

(…) Atento o comando do art.º 640º do Código de Processo Civil e os ónus que por via do indicado preceito legal são impostos aos recorrentes que pretendam impugnar a matéria de facto, conclui-se que, no caso sub judice, não cumpriu o apelante o ónus imposto pelo n.º 2-a) do citado artigo, designadamente, desde logo, nas alegações do recurso de apelação, o recorrente não procede à indicação das “exactas” “passagens da gravação em que funda” o seu recurso para basear o alegado erro de julgamento com referência às provas gravadas – depoimentos de parte e depoimentos testemunhais –, tendo, no caso, a recorrente, distintamente, procedido tão só à mera indicação do início e termo da gravação de cada depoimento por referência ao assinalado na acta nos termos que vigoravam na redacção dos art.º 690º-A-n.º2 e 522º-C-n.º2 do Código de Processo Civil na redacção anterior à decorrente das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, não sendo já tais preceitos aplicáveis no caso em apreço; sendo, ainda, que nos termos expressos no art.º 640º-n.º2-a)-parte final, do Código de Processo Civil, a faculdade de a parte proceder à transcrição total ou parcial dos depoimentos não exclui o indicado ónus imposto no mesmo artigo.

E, a lei sanciona o incumprimento do indicado ónus com a imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, na parte respectiva parte.

(…) Assim, relativamente aos depoimentos gravados invocados pelo recorrente, designadamente depoimentos de parte e depoimentos testemunhais indicados, não poderão os mesmos, por imperativo legal, ser reapreciados em sede de recurso, consequentemente, não relevando quaisquer considerações referentes a tais depoimentos expostas pelo recorrente.

(…) Relativamente às declarações da legal representante da Ré, inexiste nos autos confissão judicial escrita,

(…) Os indicados documentos e os demais documentos assinalados, e juntos aos autos, reportam-se, todos, e quaisquer deles (…), à intervenção do Autor na obra em referência como “Projectista de Arquitectura” ou “Coordenador de Projecto” em representação da firma “ DD, Arquitectos, Lda.”, nunca em nome próprio, singular, e, todos eles, constituem mero escrito particular conforme a legal definição dada pelo art.º 363º-n.º 1 e 2 do Código Civil, e, de livre apreciação pelos Tribunais, (…)

(…) consequentemente, nenhuma prova vinculada resultando assim de tais documentos nos termos do indicado preceito legal, e, não constituindo ainda, em qualquer caso, e quanto aos documentos  de intervenção da Ré, “confissão”,

(…) devendo manter-se as respostas dadas aos artigos da Base Instrutória em referência, nenhuma prova tendo sido oferecida pelo Autor que “documente” a responsabilidade da Ré pela peticionada divida invocada na petição inicial.

Nestes termos, inexistindo erro de julgamento que se evidencie, e não ocorrendo violação ou preterição de meio de prova vinculada, improcedem os fundamentos de impugnação da matéria de facto.”

Mantendo a decisão de facto, a Relação confirmou a improcedência da acção.

2. O autor recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça. Nas alegações que apresentou, formulou as seguintes conclusões:


«1. Nos termos do art. 662° n° 1 do CPC, a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa;

2. Em qualquer destes casos, a Relação limitando-se a aplicar regras vinculativas extraídas do direito probatório, deve integrar na decisão o facto que considere provado ou, retirar dela facto que ilegitimamente foi considerado provado;

3. 0 Recorrente levou ao conhecimento do Tribunal da Relação todos os elementos probatórios que impunham a modificação da decisão sobre a matéria de facto;

4. 0 Tribunal da Relação fez mau uso dos poderes que lhe são conferidos pelo art. 662º do CPC, ao considerar que não houve erro de julgamento, não alterando a decisão sobre a matéria de facto;

5. O STJ tem poderes para sindicar o mau uso, ou o não uso, da prorrogativa que o art. 662° do CPC confere à Relação, quando tal se imponha por violação das regras de direito probatório material e errada interpretação da prova – hipóteses verificada no caso vertente;

6. No caso dos autos, estes contêm elementos probatórios bastantes ao nível da prova documental, incluindo prova vinculada, para concluir, sem qualquer dúvida pela celebração de um contrato de mandato entre Recorrente e Recorrida, com vista ao exercício pelo primeiro da direcção técnica da obra em apreço sob ajuste e a pedido da Recorrida;

7. Refere-se, sem rigor a fls. 16 do douto acórdão recorrido que, todas as actas de reunião reportam-se à intervenção do Autor em obra como "Projectista de Arquitectura" ou "Coordenador de Projecto" e não a qualquer intervenção em nome próprio, afirmação contrariada pelas actas de reunião de obra nºs 7 e 9;

8. Colhe-se da acta de reunião de obra nº7, de 02/03/2010, ponto 25 que "O Arquitecto AA na qualidade Director de Obra, solicitou que as actas de reunião se encontrassem no livro de obra alertando que em virtude de ser solicitada a prorrogação do prazo da licença de demolições deverá ser realizada uma visita da fiscalização camarária. Pediu ainda ao Dono de Obra para se assegurar da tolerância da Câmara Municipal de … relativamente ao prosseguimento da obra sem que esteja emitida licença de construção";

9. Na mesma acta de reunião de obra – ponto 26 refere-se "O Arquitecto AA na qualidade de Director de Obra informou o empreiteiro da necessidade da apólice de seguros da obra dever cobrir todas as responsabilidades, independentemente de a licença de construção estar emitida ou não ";

10. Também na acta de reunião de obra n° 9, de 18/ /03/2010, no seu ponto 1 refere-se "Seguro de Responsabilidade Civil de Obra – o Arquitecto AA perguntou ao empreiteiro se já tinha conseguido a alteração do seguro de responsabilidade civil de modo a cobrir situações em que não existe Licença de obra";

11. Tais actas de reunião de obra não obstante consubstanciarem documentos particulares, mostram-se assinados quer pela legal representante da Ré, quer pelo Autor, quer pelos demais intervenientes em obra e, nelas o Autor é expressamente identificado como Director de Obra;

12. Nos termos e para os efeitos do disposto no art.374° nº1 do CC, a letra, assinatura e consequentemente o teor das referidas actas de reunião, consideram-se verdadeiras, porque reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado;

13. Dispõe o art. 376° nº1 do CC que, o documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes (hipótese dos autos), faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento – hipótese não verificada no caso dos autos;

14. Dispondo o nº2 do mesmo preceito legal que, os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante;

15. É a própria Ré quem, nas actas de reunião nºs 7 e 9, declara que o autor esteve presente nessas reuniões como Director de Obra, o que impõe considerar que tais documentos fazem prova plena que o Autor exerceu sob ajuste da Ré tal mandato;

16. Da certidão emitida pela Câmara Municipal de … a fls, junta pelo Autor sob o Doc. nº 1 com o seu requerimento probatório sob a refª 11723323 lê-se" Compulsado o processo de obras n0 736/06, verificou-se que do mesmo consta um pedido de obras de demolição apresentado em 11/01/2010, registado sob o na 184, O qual foi instruído com termo de responsabilidade pela Direcção Técnica da Obra de Instalação da Unidade de Cuidados Continuados do Hospital de CC, em nome de AA, Arquitecto, membro na … -N da Ordem dos Arquitectos ";

17. Em igual sentido vai o termo de responsabilidade de fls 328, do qual resulta, in que,"o Autor se responsabiliza pela direcção técnica da Obra de Instalação da Unidade de Cuidados Continuados do Hospital de CC – Processo n° 736/06, localizado em … – …, cujo licenciamento foi requerido pela Santa Casa da Misericórdia de …";

18. A Câmara Municipal de … enquanto entidade licenciadora do respectivo processo de obras, ao emitir a certidão a que acima se alude, certifica que o mesmo foi instruído com termo de responsabilidade pela direcção técnica da obra em nome do Autor;

19. Tal termo como se extrai da certidão emitida pela Câmara Municipal de …, instruiu o processo de obras entregue pela Ré junto daquela edilidade, com vista ao levantamento da licença de obras;

20. 0 Autor ao entregar à Ré termo de responsabilidade pela Direcção técnica da obra, obrigou-se perante esta ao exercício do cargo e da função subjacente sob mandato da Ré, e, é isto que resulta da certidão emitida pela Câmara Municipal de …;

21. Consubstanciando esta certidão documento autêntico, nos termos do disposto no art.369° do CC., o mesmo reveste-se de força probatória plena, nos termos definidos no art. 371 nº1 do mesmo código;

22. E, só cede perante prova em contrário através da demonstração de que nele foi atestado como tendo sido objecto de percepção da autoridade ou oficial público, qualquer facto que na realidade não se verificou (falsidade ideológica), ou como tendo sido praticado pela entidade responsável qualquer acto que na realidade não o foi (falsidade material);

23. A consequência da ilisão da presunção de autenticidade do documento autêntico é a de que o documento passa a ser reconhecido como particular, passando a valer como mera fonte de prova livre e, já não como prova vinculada;

24. No caso dos autos a Ré não logrou ilidir a presunção de autenticidade deste documento, pelo que o mesmo faz prova plena dos factos nele declarados e atestados;

25. Extrai-se dos documentos de fls 339 a 344, declaração confessória da Ré quanto ao exercício da direcção técnica da obra pelo Autor;

26. As declarações da legal representante da Ré, tem a virtualidade confessória, nos termos da hipótese normativa consignada no art 352 do CC, tratando-se de confissão eficaz, porque feita por pessoa com capacidade e poder para dispor do direito a que os factos confessados se referem –cfr art.353 n° 1 do CC;

27. Constituindo essas declarações da Ré, confissão extrajudicial feita à parte contrária em documento particular, tem força probatória plena nos termos do disposto no art.358 nº2 do CC;

28. Resulta, em termos de subsunção jurídica que, entre as partes foi celebrado um contrato de mandato, nos termos do qual, o Autor se obrigou a prestar serviços de direcção técnica em obra da Ré;

29. Nos termos do artigo 1157° do CC, mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga um ou mais actos jurídicos por conta da outra;

30. Estatui o art. 1158° nº1 do CC que, o mandato presume-se gratuito, excepto se tiver por objecto actos que o mandatário pratique por profissão; neste caso presume-se oneroso;

31. Subsumindo esta ultima disposição normativa ao caso dos autos, há que concluir pela onerosidade do mandato, porque praticado pelo Autor no exercício da sua actividade profissional de Arquitecto;

32. Competia á Ré ilidir esta presunção legal de onerosidade do mandato; não o fez, nem o alegou, pelo que terá de ter-se por assente a natureza onerosa do mandato conferido ao Autor;

33. Presumido oneroso o mandato e demonstrada a sua execução pelo Autor sob ajuste da Ré e, porque o pagamento constitui facto extintivo da obrigação cuja prova competia à Ré, que não o fez, nem o alegou, deverá a acção proceder;

34. Nos termos do artigo 1157 nº2 do CC, a medida da retribuição, não havendo ajuste entre as partes, é determinada pelas tarifas profissionais, ou na falta destas, pelos usos, e, na falta de umas e outros, por juízos de equidade;

35. A Ré não impugnou o valor dos honorários da prestação do Autor, pondo unicamente em causa a execução do mandato;

36. Demonstrada a execução do mandato e a sua natureza onerosa, deverão ter-se por aceites, porque não impugnados, os peticionados pelo Autor no libelo inicial;

37. 0 douto acórdão recorrido viola o disposto nos artigos 607° nº4, 662° nº1 e 663° nº2 do CPC e bem assim as disposições normativas contidas nos artigos 342° n° 2, 344° nº1, 352°,353° nº1, 358° nº2, 369°, 370°, 371° nº1, 374° nº1, 1157° e 1158°, todos do CC;»


A ré contra-alegou. Sustentou que o recurso era inadmissível e que, de qualquer forma, não poderia proceder. Alegou ainda não ter qualquer fundamento a afirmação de que, não tendo impugnado o montante dos honorários peticionados, deviam os mesmos ter-se por aceites.


3. Vem provado o seguinte:

- O Requerente exerce a actividade profissional de arquitecto. (A).

- A Sociedade DD, Arquitectos Unipessoal, L.dª, prestou à Requerida serviços próprios de arquitectura que se acham pagos. (4.º).

- Os preços ou honorários reclamados não foram ajustados entre Requerente e Requerida, e esta, aos mesmos, jamais deu o seu consentimento, ou se vinculou ao pagamento dos mesmos. (5.º)

4. Estão em causa as questões seguintes (artigo 635º, nº 4 do Código de Processo Civil):

Mau uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão sobre a matéria de facto;

– Existência de prova, susceptível de apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça, que demonstra a “celebração de um contrato de mandato [isto é, de um contrato de prestação de serviços] entre Recorrente e Recorrida, com vista ao exercício pelo primeiro da direcção técnica da obra em apreço sob ajuste e a pedido da Recorrida”;

– Presunção de onerosidade do contrato, prova da sua execução, pelo autor, e acordo quanto aos honorários.

5. Antes de mais, no entanto, cumpre verificar o seguinte:

– O presente recurso de revista é admissível, uma vez que, apesar de ter confirmado a sentença, com os mesmos fundamentos, o acórdão recorrido foi aprovado com um voto de vencido, não sendo correcta a interpretação preconizada pela recorrida para o nº 3 do artigo 671º do Código de Processo Civil. O que ali literalmente se prevê é que não cabe revista “do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida em primeira instância, salvo…”: o que manifestamente significa que, faltando uma das condições para a não admissibilidade de revista, vale a regra definida pelo nº 1 do mesmo preceito: o recurso é admissível, se estiverem reunidos os requisitos gerais de admissibilidade de revista;

– Não tem qualquer fundamento a afirmação do recorrente de que “A Ré não impugnou o valor dos honorários da prestação do Autor, pondo unicamente em causa a execução do mandato” e que, portanto, “Demonstrada a execução do mandato e a sua natureza onerosa, deverão ter-se por aceites, porque não impugnados, os peticionados pelo Autor no libelo inicial”. A ré impugnou a existência de qualquer contrato com o autor, com o objecto por este descrito, e negou ter ajustado com o autor os honorários reclamados; admitir que estaria a aceitar o montante indicado, por não o pôr directamente em causa, seria contraditório com a sua contestação, não significando a sua atitude qualquer aceitação ou, na terminologia do nº 2 do artigo 490º do Código de Processo Civil, vigente na altura em que foram apresentados os articulados (e correspondente ao actual artigo 572º do Código de Processo Civil), qualquer admissão por acordo; cfr. nº 2 do referido artigo 490º (nº 2 do artigo 572º vigente).

Cumpre aliás, recordar que é ao autor que cabe o ónus de provar o conteúdo do contrato de prestação de serviços que alega ter celebrado com a ré (não de mandato, porque se não destina à prática de actos jurídicos, mas regido pelas respectivas regras, cfr. artigos 1154º, 1156º e 1157º do Código Civil). Desse conteúdo faz naturalmente parte, além do serviço a prestar, senão a remuneração acordada, pelo menos o respectivo critério de cálculo; se nada estiver ajustado, então vale a disposto no nº 2 do artigo 1158º do Código Civil, que prevê supletivamente diversos critérios, a concluir pela equidade. Cabe ao autor, aliás, o ónus da prova do conteúdo de tarifas profissionais que existam e, se as não houver, dos usos seguidos. O recurso à equidade apenas é legítimo se não existirem, nem tarifas, nem usos.


6. O Tribunal da Relação de Guimarães interpretou de forma restritiva os poderes que são conferidos à segunda instância de controlo da decisão em matéria de facto, no âmbito do recurso de apelação. Em seu entender, tal controlo limita-se à “sanação de manifestos erros de julgamento, de falhas mais ou menos evidentes na apreciação da prova”, quando a livre convicção formada na primeira instância se tenha fundamentado “em provas ilegais ou proibidas ou contra a força probatória plena de certos meios de prova, ou então quando afronte as regras da experiência comum (…)”.

No entanto, e transcrevendo o que se disse no acórdão deste Supremo Tribunal de 29 de Outubro de 2013, www.dgsi.pt, proc. nº 1410/05.2TCSNT.L1.S1, “este Supremo Tribunal tem afirmado repetidamente que não foi esse o modelo de impugnação de facto que a lei acolheu. Recorda-se o que se escreveu por exemplo no acórdão de 21 de Maio de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 08B1466: «Como se sabe, o Decreto-Lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro, introduziu, no âmbito do Processo Civil, a documentação e registo da prova produzida na audiência final, assumidamente com o objectivo de permitir “um verdadeiro e efectivo 2º grau de jurisdição da matéria de facto, facultando às partes na causa uma maior e mais real possibilidade de reacção contra eventuais – e seguramente excepcionais – erros do julgador na livre apreciação da prova (…)”, como se escreveu no seu preâmbulo. E nesse mesmo preâmbulo, o legislador reconheceu que “a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”. É inevitável reconhecer que, com o sistema assim introduzido, a lei fez prevalecer a garantia do segundo grau de jurisdição sobre as vantagens da imediação na apreciação da prova testemunhal; e que aceitou que, para a 2ª Instância, esta falta de imediação não prejudicava a efectividade do princípio da livre apreciação da prova. (…)

Neste mesmo sentido, e também apenas como exemplo, cfr. o acórdão de 1 de Junho de 2010 (www.dgsi.pt, proc. nº 3003/04.2TVLSB.L1.S1), chamando a atenção para que a falta de imediação, por si só, não é motivo que impeça a Relação de formar a sua convicção sobre os meios de prova registados (maxime, os depoimentos das testemunhas); e ainda o acórdão de 24 de Maio de 2012 (www.dgsi.pt, proc. nº 850/07.7TVLSB.L1.S2): “Note-se que não oferece presentemente qualquer dúvida que a Relação, ao apreciar os invocados erros de julgamento sobre os pontos da matéria de facto questionados pelo recorrente, está efectivamente vinculada a realizar uma reapreciação substancial da matéria do recurso de apelação, sindicando adequadamente, através de audição do registo ou gravação da audiência que necessariamente acompanha o recurso, a convicção formada pelo tribunal de 1ª Instância e formando sobre tais pontos de facto impugnados a sua própria convicção, que pode ou não ser coincidente com a do juiz a quo” e demais jurisprudência nele citada” ou de 24 de Setembro de 2013, www.dgsi.pt, proc. nº 1965/04.9TBSTB.E1.S1: “Ao afirmar que a Relação aprecia as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios, o legislador pretende que a Relação faça novo julgamento da matéria de facto impugnada, vá à procura da sua própria convicção, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise (Ac. S.T.J. de 19-10-2004, Col. Ac. S.T.J., XII, 3º, 72; Ac. S.T.J. de 22-2-2011, Col. Ac. S.T.J., XIX, 1º, 76). A reapreciação da prova pela Relação, nos termos do art. 712, nº1, al. a) e 712, nº2, do C.P.C., tem a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância.”


7. É manifestamente diferente o âmbito da intervenção possível do Supremo Tribunal de Justiça, quanto à mesma questão do controlo da decisão de facto. Como se escreveu por diversas vezes, e fazendo agora apelo ao acórdão de 22 de Janeiro de 2015, www.dgsi.pt, proc. nº  24/09.2TBMDA.C2.S2, “a lei portuguesa apenas prevê um grau de recurso no julgamento da matéria de facto Como o Supremo Tribunal de Justiça tem repetida e uniformemente observado, quer em relação ao Código de Processo Civil anterior, quer no que toca ao Código de Processo Civil vigente, aplicável ao presente acórdão (cfr. artigo 7º da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho), o Supremo Tribunal de Justiça não pode alterar a decisão do tribunal recorrido relativamente à matéria de facto, salvo no “caso excepcional previsto no nº 3 do artigo 674º” – nº 2 do artigo 682º, correspondente ao nº 2 do artigo 722º do Código anterior. Significa isto (cfr., apenas a título de exemplo, o acórdão de 27 de Setembro de 2007, www.dgsi.pt, proc. nº 07B2028 e jurisprudência nele citada, ou ainda o acórdão de 16 de Janeiro de 2014, www.dgsi.pt, proc. nº 695/09.0TBBRG.G2.S1) que é preciso que o tribunal recorrido tenha ofendido “uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova” para que, na revista, o Supremo Tribunal possa corrigir qualquer “erro na apreciação das provas” ou na “fixação dos factos materiais da causa” (acórdão de 27 de Setembro de 2007 cit. e acórdão de 8 de Maio de 2013, www.dgsi.pt, proc. nº 3036/04.9TBVLG.P1.S1 e jurisprudência indicada); nessa eventualidade, está ainda em causa a correcção da aplicação de regras de direito, relativas à admissibilidade ou ao valor (abstractamente fixado) dos meios de prova, e não a apreciação dos factos. Não cabe pois no âmbito do recurso de revista analisar a apreciação que as instâncias fizeram relativamente à prova testemunhal, pericial, ou outra que esteja igualmente sujeita ao princípio da livre apreciação da prova; nem retirar presunções judiciais de factos provados, ou controlar presunções judiciais deduzidas da prova pelas instâncias, uma vez que ainda se situam no domínio dos factos (cfr. nomeadamente o acórdão de 24 de Outubro de 2013, www.dgsi.pt, proc. nº 1673/07.9TJVNF.P1.S1)”. Mas esta “impossibilidade de controlo da decisão de facto, coincidente com o âmbito de aplicação do princípio da livre apreciação, que continua a ser o princípio geral em matéria de valoração da prova (hoje enunciado no nº 5 do artigo 607º do Código de Processo Civil), não significa que o Supremo Tribunal de Justiça não possa controlar a aplicação das regras que definem os pressupostos e os limites da “modificabilidade da decisão de facto” no recurso de apelação, fixados hoje no artigo 662º do Código de Processo Civil (anterior artigo 712º); o que é naturalmente diferente de controlar as decisões que a Relação profira no exercício do seu poder de modificação da decisão de facto, estas sim insusceptíveis de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, como resulta do nº 4 do mesmo artigo 662º (cfr. também apenas como exemplo, o acórdão de 8 de Outubro de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 839/04.8TBGRD.C1.S1).”


8. O recorrente sustenta que a prova susceptível de apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça é suficiente para que se conclua pela celebração de um contrato de mandato [isto é, de um contrato de prestação de serviços] entre Recorrente e Recorrida, com vista ao exercício pelo primeiro da direcção técnica da obra em apreço sob ajuste e a pedido da Recorrida”.

Tendo em conta os limites acabados de traçar – ou seja, a limitação da apreciação do Supremo Tribunal de Justiça aos meios de prova com força probatória plena –, vejamos aqueles que são indicados nas alegações da revista:

– As actas de reunião de obra: prova de que o autor desempenhou a “função de direcção de obra”. Refere-se o recorrente expressamente às actas das reunião nº 7, de 2 de Março de 2010, fls. 156, e nº 9, fls. 165, que, segundo o recorrente, “fazem prova plena que o Autor exerceu sob ajuste da Ré tal mandato”. Ora, é certo que nelas se refere ao autor como coordenador de projecto e director de obra; mas das regras de direito probatório aplicáveis, aliás apontadas pelo recorrente – artigos 374º, quanto à prova da autoria do documento, e 376º, ambos do Código Civil, quanto ao respectivo conteúdo –, não resulta prova plena quanto à celebração de nenhum contrato entre o autor e a ré; e está fora do âmbito possível da revista a valoração de meios de prova sujeitos à regra da livre apreciação – como sucede com documentos que não têm valor de prova plena, ou fora do âmbito em que têm força probatória plena –, tal como a extracção de presunções de factos concludentes;

– A certidão da Câmara Municipal de ..., de fls. 90. Sendo um documento autêntico, o recorrente sustenta que prova plenamente que “a direcção técnica da obra foi de facto instruída com termo de responsabilidade do Autor”.

Do disposto no nº 1 do artigo 371º do Código Civil, resulta que está plenamente provado que o pedido de demolição nele identificado foi instruído com um termo de responsabilidade pela Direcção Técnica da Obra de instalação da Unidade de Cuidados Continuados do Hospital de CC, em nome do autor; mas está manifestamente fora do campo dessa força probatória plena a prova de que autor e ré celebraram o contrato invocado pelo autor;

– Os documentos de fls. 339 a 344: “extrai-se desses documentos declaração confessória da ré quanto ao exercício da direcção técnica da obra pelo Autor”, sustenta o recorrente; mas tal afirmação não qualquer correspondência com o conteúdo dos documentos indicados, o que torna desnecessário analisar da eventual verificação dos estritos requisitos legalmente exigidos para que existisse confissão vinculativa para a ré (desde logo, legitimidade da interveniente para vincular a ré, ou inequivocidade da declaração desfavorável à ré, por exemplo).

Nenhum dos documentos indicados pelo recorrente prova plenamente a celebração do contrato invocado pelo recorrente como causa de pedir; são elementos de prova, mas sujeitos à regra da livre apreciação, dos quais o recorrente sustenta que se deveria deduzir tal contrato; em qualquer caso, só as instâncias assim poderiam concluir, o que não fizeram.


9. Cumpre então averiguar se o recorrente tem razão, quando sustenta que a Relação fez mau uso dos poderes de alteração da decisão sobre a matéria de facto.

No que toca à prova testemunhal e a depoimentos de parte, este mau uso só seria relevante se o acórdão recorrido não estivesse certo, quando rejeitou a sua reapreciação, por não terem sido cumpridas as regras determinadas para a impugnação da decisão de facto, quanto a provas gravadas (actual artigo 640º, nº 2, a), do Código de Processo Civil).

Como este Supremo Tribunal tem repetidamente recordado (cfr. por exemplo o acórdão de 4 de Novembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 7006.05.1TBBRG.G1.S1 e jurisprudência nele citada, e ainda os acórdãos de 29 de Novembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. nº 39/2002.E1.S1 ou de 30 de Junho de 2011, www.dgsi.pt, proc. 6450/05.9TBSXL.L1.S1), a impugnação da decisão de facto, feita perante a Relação, não se destina a que este tribunal reaprecie global e genericamente a prova valorada em primeira instância, ainda que apenas se pretenda discutir parte da decisão.

Como se diz no preâmbulo do Decreto-Lei nº 39/95 (…), “a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.

Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.”

Nesse sentido, impôs-se ao recorrente um “especial ónus de alegação”, no que respeita “à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”, em decorrência “dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos das relações (resultante da nova redacção do artigo 712º [actual 662º]) – e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1ª instância – possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito e julgado de uma decisão inquestionavelmente correcta.

Daí que se estabeleça”, continua o mesmo preâmbulo, “no [então] artigo 690º-A, que o recorrente deve, sob pena de rejeição do recurso, além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, impunham diversa decisão sobre a matéria de facto. Tal ónus acrescido do recorrente justifica, por outro lado, o possível alargamento do prazo para elaboração e apresentação das alegações, consentido pelo nº 6 do [então] artigo 705”

O ónus especificamente criado foi, assim, justificado pela necessidade de impor ao recorrente uma “delimitação do objecto do recurso” e uma “fundamentação”, repete-se, tendo em conta o âmbito possível do recurso da decisão de facto, tal como foi concebido (cfr. acórdãos de 9 de Outubro de 2008, www.dgsi.pt, proc. nº 07B3011, ou de 18 de Junho de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 08B2998).

O artigo 690º-A do Código de Processo Civil foi posteriormente alterado pelo Decreto-Lei nº 183/2000, de 10 de Agosto. Continuou a incumbir ao recorrente que pretenda impugnar a decisão de facto proferida em primeira instância, para o que agora releva, “especificar (…) os concretos pontos de facto que [o recorrente] considera incorrectamente julgados” e “os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”. Mas, se “os meios probatórios invocados como fundamento de erro na apreciação das provas [tiverem] sido gravados”, passou a caber-lhe, “sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 522ºC”.

O artigo 690º-A veio a ser revogado pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, que em sua substituição acrescentou ao Código o artigo 685º-B, mantendo os ónus referidos (indicação dos concretos pontos de facto incorrectamente julgados e dos concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que implicassem decisão diversa da proferida), mas determinando que, sendo possível “a identificação precisa e separada dos depoimentos”, que cabe ao recorrente, “sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição”.

Como também se teve já a ocasião de observar (cfr. “Notas sobre o novo regime dos recursos no Código de Processo Civil”, in O Novo Processo Civil, Contributos da doutrina para a compreensão do novo Código de Processo Civil, caderno I, Centro de Estudos Judiciários, Dezembro de 2013, pág. 395 e segs)., a reforma do Código de Processo Civil de 2013 não pretendeu alterar o sistema dos recursos cíveis, aliás modificado significativamente pouco tempo antes, pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto; mas teve a preocupação de “conferir maior eficácia à segunda instância para o exame da matéria de facto”, como se pode ler na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 113/XII apresentada à Assembleia da República, de cuja aprovação veio a resultar o actual Código de Processo Civil, disponível em www.parlamento.pt .

Essa maior eficácia traduziu-se no reforço e ampliação dos poderes da Relação, no que toca ao julgamento do recurso da decisão de facto; mas não trouxe consigo a eliminação ou, sequer, a atenuação do ónus de delimitação e fundamentação do recurso, introduzidos em 1995. Com efeito, o nº 1 do artigo 640º vigente:

– manteve a indicação obrigatória “dos concretos pontos de facto” que o recorrente “considera incorrectamente julgados” (al. a),

– manteve o ónus da especificação dos “concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos de facto impugnados diversa da recorrida” (al.b),

exigiu ao recorrente que especificasse “a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” (al. c),

sob pena de rejeição do recurso de facto. E à mesma rejeição imediata conduz a falta de indicação exacta “das passagens da gravação em que se funda” o recurso, se for o caso, sem prejuízo de poder apresentar a “transcrição dos excertos” relevantes.

Cumpridos os requisitos assim definidos para a delimitação e fundamentação da impugnação da decisão de facto, então caberá à Relação julgar o recurso, nos termos amplos acima referidos.


10. Da leitura atenta das alegações apresentadas no recurso de apelação resulta claramente que o recorrente identificou os pontos de facto que considera mal julgados, por referência aos quesitos da base instrutória, e indicou os depoimentos das testemunhas que entende terem sido mal valorados. Forneceu a indicação da sessão na qual foram prestados e do início e termo dos depoimentos, dos quais apresentou transcrição. Disse ainda qual deveria ter sido o resultado probatório, relativamente a cada quesito e a cada meio de prova.

O mesmo se diga quanto ao depoimento de parte, também gravado.

Tanto basta para se concluir que procedem as observações dirigidas ao acórdão recorrido, no que respeita à rejeição do recurso relativo à matéria de facto e quanto à reapreciação dos “depoimentos gravados invocados pelo recorrente, designadamente depoimentos de parte e depoimentos testemunhais indicados” (acórdão recorrido, ponto 2., fl. 557, que devem ser apreciados pela Relação.


11. No que toca à prova documental, deve igualmente a mesma ser apreciada, conjuntamente com a demais, no âmbito do princípio da livre apreciação da prova. Nos termos já indicados, a circunstância de dela não resultar, nem “nenhuma prova vinculada”, nem nenhuma confissão com força probatória plena, não dispensa a Relação de os considerar (cfr. parte final do ponto 2. do acórdão recorrido, a fls. 559).


12. Aqui chegados, cumpre revogar o acórdão recorrido e determinar que proceda à apreciação da impugnação da matéria de facto, nos moldes atrás definidos. O que significa que fica prejudica a apreciação das demais questões de mérito colocadas neste recurso.


Assim, decide-se revogar o acórdão recorrido, determinado que a Relação proceda à apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, deduzida no recurso de apelação, pelos mesmos juízes, se for possível.


Custas pela parte vencida a final.


Lisboa, 09 de Julho de 2015


Maria dos Prazeres Beleza (Relatora)

Salazar Casanova

Lopes do Rego