Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
41/176.9GBTVD.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: NUNO GONÇALVES
Descritores: RECURSO PER SALTUM
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
MEDIDA DA PENA
PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA DUPLA VALORAÇÃO
PENA SUSPENSA
Data do Acordão: 02/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I -   Para ajuizar da necessidade e utilidade da perícia prevista no art. 351.º, n.º 1, do CPP, mesmo quando o requerimento se suporta em documentação clínica, o tribunal deve ver e ouvir o arguido para, com imediação e em oralidade, percecionar a sua postura pessoal, perante os factos e o processo, avaliar da racionalidade lógica do respetivo diálogo, apurar da sua localização espaciotemporal e aquilatar da capacidade para entender e valorar os acontecimentos da vivência comum.
II -  Concluindo o tribunal, como foi o caso, que o arguido apresenta uma postura digna e relata os factos de uma forma serena, lógica e coerente, não havia qualquer fundamento minimamente real e sério para, oficiosamente, determinara perícia sobre o seu estado psíquico.

III - A incriminação do tráfico de estupefacientes visa proteger a saúde pública, “a segurança e a qualidade de vida dos cidadãos” e, mediatamente, também proteger “a economia legal, a estabilidade e a segurança do Estado”.

IV - Qualquer atividade, não autorizada pelas entidades competentes, que incida sobre produtos estupefacientes constantes das referidas tabelas, preenche este tipo de crime.

V -  Excetua-se o consumo e “a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV anexas do DL n.º 15/93”, que não excedam “a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias” – Lei n.º 30/200 de 29/11.

VI - O traço marcante do privilegiamento do tráfico advém da consideravelmente diminuída da ilicitude da conduta típica.

VII - O legislador fornece, exemplificativamente, alguns indicadores - os meios utilizados; a modalidade da ação; as circunstâncias da ação; a qualidade das plantas, substancias ou preparações; e a quantidade dos estupefacientes -, conferindo à jurisprudência a tarefa de acrescentar outros que possam servir para emprestar ao tráfico uma considerável diminuição da ilicitude.

VIII -  Nessa tarefa de clarificação, a jurisprudência tem incluído: atuação individual ou em pequena entreajuda; sem que sejam utilizados meios sofisticados; que não seja exercido como modo de vida; ausência de lucros ou vantagens; os proventos obtidos servirem para financiar consumos do próprio e de familiares ou equiparados; pequena “carteira” de compradores ou consumidores; curto período de tempo; ocasionalidade do tráfico; não implicação de familiares; não se servir de colaboradores; pequena e circunscrita territorialidade da atividade; inexistência de contactos internacionais , que não concorram circunstâncias que podem agravar o crime.

IX - Uma destas circunstâncias, por si só, regra geral, não é suficiente para diminuir consideravelmente a ilicitude do tráfico. Decisiva é a imagem global do tráfico desenvolvido pelo agente.

X -  As drogas psicotrópicas ou psicoactivas, criam adição e, por isso, são especialmente daninhas para a saúde dos consumidores e, reflexamente, para a saúde pública.

XI - Uma destas substancias psicotrópicas é a heroína. O seu consumo por injeção provocou a “emergência devastadora entre os heroinómanos”, da SIDA/HIV.

XII -    O parâmetro primordial do «modelo» de determinação da pena judicial é primariamente fornecido pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos violados, estabelecendo, in concreto, o limiar mínimo abaixo do qual se perde aquela função tutelar.

XIII -  Parâmetro co-determinante é também a culpa na execução do facto, estabelecendo o “teto” ou limiar máximo acima do qual a pena aplicada é excessiva, subalternizando à «paz» comunitária, a dignidade humana do agente.

XIV -  Entre aquele limiar mínimo e este limiar máximo, o modelo completa-se com a finalidade de reintegração do agente na sociedade, ou finalidade de prevenção especial de socialização.

XV -    A finalidade politico-criminal da suspensão da execução da pena de prisão é, essencialmente, a prevenção da reincidência.

Decisão Texto Integral:

O Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção, acorda:


I. RELATÓRIO:

a) a condenação:

No Juízo Central Criminal de … – Juiz .., pronunciado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art.º 21º n.º 1 do DL n.º 15/93, foi o arguido:

- AA, de 46 anos e os demais sinais dos autos,

julgado e, por acórdão de 9 de setembro de 2019, condenado pela prática, como autor material, de um crime de tráfico e outras atividades ilícitas, p. e p. pelo art.º 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, por referência à Tabela I-A anexa ao mesmo diploma legal, na pena de 6 (seis) anos de prisão.

b) o recurso:

Inconformado com a condenação, recorreu diretamente para o Supremo Tribunal de Justiça, rematando a alegação com as conclusões seguintes:

- CONCLUSÕES:

1 - constitui jurisprudência assente e pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – deteção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, previstos no art. 410- 2 do CPP (cfr. Acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ, de 19-10-1995, proc n.º 46580, Acórdão 7/95, publicado no DR, I Série – A, n.º 298, de 28-12-1995, e BMJ 450, 72, que no âmbito do sistema de revista alargada fixou jurisprudência, no sentido de que “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art. 410.º, n.º 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”, bem como o AUJ 10/2005, de 20-10-2005, DR, Série I-A, de 07-12-2005, em cuja fundamentação se refere que a indagação dos vícios faz-se “no uso de um poder-dever, vinculadamente, de fundar uma decisão de direito numa escorreita matéria de facto”) e verificação de nulidades, que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos arts. 379-2 e 410-3, do CPP - é pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (art. 412- 1, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior.

2  - o arguido recorre a este Alto Tribunal, última via para a justiça em Portugal!! é o problema   da matéria de facto não ser devidamente julgada nos Tribunais da Relação:

As Relações estão a ter muita dificuldade para apreciar a matéria de facto. Há uma rebeldia...” -dixit Senhor Doutor Juiz Conselheiro Simas Santos, in Jornal Público 28-5- 2006

3 - vai para 14 meses que o arguido jaz numa cela fria e húmida de 5m2; cela sombria, minúscula, sem ventilação, fechado muitas horas, sem tratamento médico condigno aos problemas de que sofre como a toxicodependência, hepatite e acompanhamento psiquiátrico que comunicou ao processo sem resultados até hoje.

4 - a alimentação no EP …… é péssima face ao orçamento miserabilista de 1,29 € por dia por recluso para 4 refeições!! a manutenção do arguido numa prisão sem condições mínimas de dignidade humana, sem ventilação, sem espaço útil mínimo de 4m2, sem alimentação condigna, sem privacidade sem telefone, sem internet, sem motivação para retomar a vida em sociedade traduz insensibilidade do Tribunal a quo e da Direção Geral dos Serviços Prisionais; este statu quo é dramático porquanto,

 5 - representa tratamento degradante à luz do artº 3º da Convenção Europeia conforme os Senhores Juizes da Cour Europeenne vêm decidindo há muito; o Relatório do C.P.T. censura Portugal pela sobrelotação prisional e péssimas condições prisionais; deve ser declarada a incompatibilidade da situação prisional do arguido com o artº. 3º da CEDH; se não for neste Alto Tribunal será em Estrasburgo.

6 - o arguido está preso há 14 meses e 25 dias numa cela fria e húmida de 5 m2; pediu a restituição à liberdade sem sucesso; recorreu e viu o TRL rejeitar a aplicação de medida menos gravosa que a prisão; entre …-7-2018 e a data de hoje o arguido nunca foi ouvido pelo Sr Juiz de Instrução de 3 em 3 meses como impoe o art. 213 do C.P.P.; a prisão é mantida desde 3-7-2018 até hoje sob argumentos estereotipados, isto é, os mesmos de sempre ... é assim a traditio lusitana.

7 - o Tribunal nunca curou de ouvir o arguido nem de procurar oficiosamente medida menos gravosa que a prisão preventiva como a vigilância eletrónica, apresentações no OPC etc. mas é “ normal” que assim seja: “..quando o assunto se refere a encarceramento de um ser humano por outro, no contexto jurídico em vigor, o poder conferido àquele que decide sobre a liberdade do outro é sedutor e destruidor, principalmente quando os ideais de quem julga estão intimamente ligados a uma política repressiva e de estratégias de controle mais do que à própria criminalidade em si...-Thiago M. Minagé- Em Busca das Garantias Perdidas, pag 251- Ed. Empório do Direito

8 - a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem impõe que, à luz do artigo 5º-3 da Convenção Europeia, os Estados nacionais procurem oficiosamente medidas alternativas à prisão preventiva: neste sentido o Affaire LELIEVRE contra Bélgica de 8-11-2007 in www.echr.coe.; o artº. 5º-3 da Convenção, imposto pelo artº 8º da Constituição da Republica deve ser compatível com as decisões dos Senhores Juizes nacionais; as decisões dos Tribunais Portugueses devem ser compatíveis com a Convenção sob pena de desrespeito por um Tratado Internacional: Acórdão QING contra Portugal, proc. 69861/11 de 5-2-2016 in www.gddc.pt, sitio na internet de apoio à Procuradoria Geral da Republica, de conhecimento oficioso; estão vedados “argumentos estereotipados; o perigo de obstruir o bom desenrolar do processo não pode ser invocado em abstrato pelas Autoridades, deve ser baseado em provas factuais concretas; affaire IDALOV contra Russia, proc. 2366/07, §86, de 29-5-2012 case ERDEM contra Alemanha, proc. 38321/97 de 5-10-2001; e GORAL contra Polonia, proc. 38654/97 de 30-10-2003 in www.echr.coe;

9 - o arguido assumiu que era consumidor frequente de estupefacientes há mais de vinte (20) anos; em 9-5-2019 a ARS de …… pela mão da Srª Drª BB, Assistente Social, emitiu declaração a informar “... está em programa de metadona e encontra-se estabilizado. o arguido padece de doença pulmonar e hepatite B, facto já transmitido nos autos e do conhecimento dos Serviços Clínicos do EP ….; o EP … não tem prestado tratamento médico condigno e adequado ao arguido; o arguido envelheceu, não dorme, tem febre noturna, náuseas e padece de depressão;

 10 - no recurso perante o TRL concluiu que:

1 - ocorreu nulidade na investigação em sede de inquérito o arguido é consumidor frequente de estupefacientes há mais de vinte (20) anos; nos anos 1988 e seguintes, foi tratado na Clinica …,. sita no …; nos anos 2004 e ss tem sido tratado no CAT e no Centro Hospitalar do … conforme documentos juntos aos autos em sede de instrução.

2 - em 7-11-2018 padeceu e padece de doença pulmonar grave - doc junto aos autos; em 16-10- 2018 tinha consulta marcada com a Srª Drª CC no Hospital de …,. - serviço de infecto-contagiosas qua tale foi dado a conhecer nos autos e mereceu o assentimento do Mº Pº em 13-9-2018;

3 - o arguido consumiu heroína com todos os cidadãos identificados nos autos sob os artºs. 41º a 54º da acusação; consumia heroína todos os dias; vivia de e para a heroína; comprava pequenas quantidades; revendia parte do que adquiria e com o escasso “lucro” tinha pequenas doses para auto-consumo e deleite pessoal; a investigação omitiu todos estes dados pelo que é nula;

4 - é anómalo que das 13 ou 14 testemunhas que dizem ter adquirido droga ao arguido não tenha ocorrido ao OPC colocar a seguinte questão: “consumiu com o arguido AA? se sim, quantas vezes??” (foi esquecida a lição do Sr Procurador Geral Alberto Esteves Remédios “procurar toda a verdade mesmo a favorável ao arguido...” publicada numa Revista do Min. Publico)

5 - mais surreal é o facto de não ter sido submetido no ato da detenção ou, após a “remessa” para a cela do EP …, a um exame hospitalar para deteção de drogas; a prisão é um mal que urge reparar; efetivamente, o arguido deve(ria) estar internado numa Comunidade Terapêutica sob vigilância médica e com vista à libertação in totum das drogas.

11 - o Tribunal a quo secundou a Sra. JIC e ignorou o grave estado de saúde do arguido. Não só não ordenou exames adequados a confirmar a situação médica em curto prazo de tempo, como designou para 9-7-2019 a leitura do Acórdão levando o arguido a desistir do exame para não prolongar em férias a prisão preventiva! passo errado pois o Tribunal acabou por adiar a leitura para Setembro.

12 - era ao Tribunal a quo, maxime ao MºPº. que cabia o ónus de carrear tudo quanto fosse necessário à descoberta da verdade, exames inclusive; era ao Juiz Julgador que incumbia - artº 340 do CPP ordenar tudo quanto fosse necessário á boa decisão da causa. o Tribunal violou o art 340º do CPP, ocorre a nulidade do artº 119-b) e d) do CPP por ausência de elementos favoráveis ou desfavoráveis ao arguido.

13 - constata-se contradição insanável do Acórdão: vicio do artº 410-2-b) do CPP; consta como provado: facto 124- no entanto devido à problemática aditiva do arguido...”; na Contestação o arguido CONFESSOU que consumiu heroína com todos os cidadãos identificados nos autos que o reconheceram; consumia heroína todos os dias; vivia de e para a heroína; comprava pequenas quantidades; revendia parte do que adquiria e com o escasso “lucro” tinha pequenas doses para auto-consumo e deleite pessoal; a investigação omitiu todos estes dados pelo que é nula; a  conduta  cai na previsão do artº 25º do DL. 15/93.

14 - o Tribunal a quo ostracizou a contestação; ignorou os factos trazidos em sede de CONFISSÂO pelo arguido; condenou por tráfico quando o arguido era um consumidor frequente há 20 anos e que vendia para satisfazer o vicio: art. 25 do DL 15/93. O arguido nunca respondeu por casos de droga. Confessou que consumia e que vendia. Completa 46 anos no próximo dia 0-00, dia de São …. O Tribunal a quo incorreu em contradição insanável pois:

- dá como provado em facto 124 que o arguido padece de problemática aditiva e, por outro,

- que se iniciou no consumo com cerca de 20 anos, que em 1999 quando estava em .... submeteu-se a tratamento para a desabituação de produtos estupefacientes- facto 127 e 128

- atribui a causas externas alguns dos comportamentos socialmente reprováveis… consumos aditivos - facto 144 mas em facto 79 dá como provado que o arguido agiu de forma livre e consciente.

15 - reza a CID10 -Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde sob o item F11 que provoca transtorno mental e comportamental o uso de opiáceos face ao síndrome de dependência o que, aliás, é de conhecimento oficioso; in casu constata-se um quadro clínico de toxicodependência- dependência de heroína- entidade nosológica prevista e definida nos principais sistemas de classificação psiquiátrica como seja Manual de Diagnostico e Estatistica das Doenças Mentais... a heroína é uma droga gravemente viciante, que misturada com outros produtos, aumenta a sua toxicidade; o vicio impede a recaptura de transmissores como a dopamina, prolongando os seus efeitos; deficiências cognitivas, anomalias em regiões específicas do córtex, insuficiências na função motora, e diminuição do tempo de reação são o resultado do consumo instalado na mente do doente; com o tempo e uso abusivo ocorre a morte; face à problemática da toxicodependência o arguido não estava consciente nem livre; estava doente, dependente de opiáceos pelo que o Acórdão é nulo e qua tale deve ser declarado- art. 410-2-b) do   CPP

16 - o processo não é equitativo: artº 6º- 1 da CEDH: é anómalo que das 13 ou 14 testemunhas que dizem ter adquirido droga ao arguido não tenha ocorrido ao OPC colocar a seguinte questão: “consumiu com o arguido AA? se sim, quantas vezes??” (foi esquecida a lição do Sr Procurador Geral Alberto Esteves Remédios “procurar toda a verdade mesmo a favorável ao arguido” publicada numa Revista do Min. Publico)

17 - o arguido deveria ter sido submetido no ato da detenção a exame para deteção de drogas e internado em Comunidade Terapêutica; ao não apurar as circunstancias de consumo e ao não ordenar exame médico e psiquiátrico, o Mº Pº, a Srª. JIC secundados pelo Tribunal a quo ostracizaram o arguido, a ausência das plenas faculdades mentais e incorreram em violação do artº 6º-1 da Europeia dos Direitos do Homem sob o conceito de “processo equitativo”, o que deve ser declarado.

 18 - deveria ter sido ser ordenado oficiosamente pelo MP/JIC a realização de exame médico com vista a apurar resposta às seguintes questões de facto: 1) - o arguido é consumidor de estupefacientes? se sim, quais e desde quando? 2) - o arguido padece ou padecia de imputabilidade diminuída à data dos factos? explicite.

19 - todavia, decorridos longos meses de prisão preventiva numa jaula fria e húmida de 5 m2, a JIC rejeitou a aplicação de medida alternativa à mesma... e manteve a prisão preventiva sob argumentos estereotipados que constituem péssima traditio, contraria ao artº 5º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; sem apontar factos concretos respeitante aos pericula libertatis:

- perigo de fuga

- perigo de perturbação do inquerito e da prova

- perigo de continuação da atividade criminosa e sem vislumbrar alternativa como a MVE ou internamento em Comunidade Terapêutica, a JIC e o Tribunal a quo seguiram a taxa de 95% de aplicação da prisão em jaula fria e húmida...

20 - é “normal” manter a prisão e rejeitar ab initio tratamento mais favorável ao arguido; é até “salutar” que assim seja, como manda a “cartilha justiceira”; segundo publica a revista Sábado e o Diario de Noticias em 25-7-2017, “Juízes preferem prisão preventiva a pulseiras electronicas”, a prisão preventiva foi aplicada em 95% dos casos em 185 Inqueritos de Lisboa- “cultura judiciária de prender".. ; a tradição em Portugal é o que é: prende-se por prender, prende-se para investigar e no fim logo se vê.... se até o nosso Rei Dom Afonso Henriques bateu na Mãe e a colocou “a ferros” porque haveriam os descendentes de afastar a tradição?

21 - todavia, neste Século XXI, a Lei ordinária e a Convenção Europeia impõem regras estritas e clarificadas, devendo privilegiar-se a liberdade!!! deve ser declarada a nulidade do inquérito por ausência de exame medico. Repare-se que:

- o Mº Pº em sede de inquérito não apurou nem quis apurar se o arguido consumia e que faculdades mentais apresentava em concreto à data dos factos;

- o JIC em sede de instrução rejeitou o exame, o que é irrecorrível.

- o arguido contestou a pronuncia e renovou o pedido de exame.

- em Junho a MMª. Juiza Presidente a quo alertou para o prolongamento da prisão preventiva, face ao atraso e demora na realização do exame medico; o arguido desistiu do exame face à morosidade da perícia;

- convicto de que teria conhecimento da Decisão em Julho.... o Tribunal adiou para Setembro a leitura;

- enquanto isto ocorre nos autos...o Tribunal vai mantendo a prisão preventiva do arguido, sem tratamento medico e sem o ouvir de 3 em 3 meses!!!!!

Deve ser declarada a nulidade do inquérito por ausencia de exame medico. Deve ser declarada a inexistência jurídica por ausencia de factos concretos dos despachos judiciais que reviram a prisão preventiva;

 22 - com 46 anos de idade, consumidor há 20 anos de heroína e doente do fígado, a pena de 6 anos de prisão é um desconchavo e uma flagrante injustiça; perante a confissão, arrependimento, ausencia de antecedentes de trafico, só uma pena de 4 anos e suspensa na sua execução, condicionada a vigilância médica, satisfaz o desideratum de sociedade; neste sentido Giorgio del Vecchio: “ as penas como se praticam hoje, coagem os condenados a tratar menos do dever de assistir à família, e ao mesmo tempo ocasionam cruéis sofrimentos… in Direito e Paz 1968, Scientia Juridica, pag 41; Beccaria:- não é a crueldade das penas que põe um travão ao crime mas antes a inefabilidade daquelas e, consequentemente a vigilância dos magistrados…. Dos Delitos e das Penas -   1764

23 - a pena não pode nem deve exceder a medida da culpa face aos arts 40 e 41 do Cod Penal pelo que não se compreende a Douta Decisão recorrida; uma pena de 4 (quatro) anos e suspensa na sua execução é o ius est ars et bonio et aequi (o direito é a arte do bom e do   justo)

O arguido está ciente de que este Alto Tribunal irá contrariar a lição de Padre António Vieira “…as injustiças da terra são as que abrem a porta à Justiça do Céu…” - Sermões I - Sá de Castro, 90, fazendo a mais lídima justiça e ordenando a abertura da porta da jaula fria e húmida de 5m2 do EP. Leiria rumo à liberdade!!! (se assim não acontecer foi por culpa da defesa que tentou peticionar o melhor que pôde)

O mal dos erros de uma juventude desviada pelos consumos da heroína, o tempo de prisão já sofrido, as condições degradantes do EP …. sob tratamento desumano há quase 15 meses e o futuro aconselham a aplicação do bem e uma pena de 4 anos, suspensa na sua execução sob vigilância médica.

O tribunal a quo violou os arts. 21 e 25 do DL 15/93; interpretou os factos como subsumidos    ao crime de trafico; o arguido entende que os factos e a problemática do consumo traduzem a qualificação do art   25 do DL 15/93;

o Tribunal violou os arts 5º-3 e 6º-1 da CEDH pois ostracizou a defesa do arguido, a doença e a ausencia de exame medico ab initio; o arguido entende que o MP e o JIC não curaram de apurar todas as circunstancias favoráveis e desfavoráveis ao arguido

Termina peticionando a redução da pena para “4 (quatro) anos de prisão e suspensa na sua execução”.

c) resposta do Ministério Público:

O Procurador da República junto do tribunal recorrido contramotivou, pugnando pela improcedência do recurso. Defendendo a confirmação da condenação, resumindo a argumentação nas seguintes

- CONCLUSÕES:

1. Inexiste qualquer nulidade processual relacionada com a falta de realização de exame médico-pericial ao arguido da qual cumpra conhecer, tanto mais que, tratando-se de exame requerido pelo recorrente, foi apresentada desistência da sua realização pelo próprio em momento temporalmente anterior ao encerramento da produção de prova na fase de julgamento.

2. Não se mostra provado nenhum facto de natureza médica que permita afastar o conhecimento que o recorrente teria da ilicitude penal das suas condutas, não existindo, por essa via, qualquer contradição entre a factualidade dada como provado no douto acórdão recorrido sob os n.ºs 79 e 129.

3. A factualidade dada como provada relativamente ao recorrente não é suscetível de ser integrada no tipo privilegiado de tráfico previsto no art.º 25.º do D.L. n.º 15/93, de 22.01.

4. Não colhe a argumentação do recorrente no que respeita a uma eventual desproporção e desadequação da medida concreta da pena de prisão em que foi condenado, tendo em conta a própria fundamentação apresentada pelo Tribunal “a quo” para esse efeito.

5. Deve, assim, a condenação do arguido manter-se nos seus precisos termos.

d) parecer do Ministério Público:

A Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, pronunciando-se pela remessa dos autos ao Tribunal da Relação de …, que tem por competente para conhecer do recurso, argumentando que recorrente “visa, para além do mais, a reapreciação da matéria de facto através da invocação dos vícios da decisão”, mas “o recurso que incida sobre tais vícios, porque visa a decisão de facto, terá de ser interposto para o Tribunal da Relação, que conhece de facto e de direito”.

No demais, aderindo à resposta, pronuncia-se pela improcedência do recurso, argumentando que “não se verifica qualquer vício previsto no nº 2, do art. 410, do CPP, designadamente o invocado – contradição insanável da decisão”. E que não há qualquer fundamento para que a pena de prisão aplicada ao recorrente seja reduzida.

III – OBJETO DO RECURSO:

a) aperfeiçoamento das conclusões:

O recorrente até abre o segmento da sua peça recursória que intitula de “conclusões”, advertindo ser “jurisprudência assente e pacífica” que “é pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (art. 412- 1, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior” – vd. cls 1. 

É realmente jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal que as conclusões da motivação delimitam o objeto do recurso, sendo, por isso, extraordinariamente importantes, para determinar o âmbito do conhecimento do tribunal “ad quem”.

Assim mesmo se sustenta, entre outros, também no Ac. de 17-10-2018 deste Supremo Tribunal: “sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (…) é pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior”.

As conclusões devem resumir, sumariamente, as razões do pedido, permitindo que o tribunal apreenda rapidamente as linhas de força da argumentação do recorrente. Isto é, ademais de articuladas, “devem ser concisas, precisas e claras[1]” ou, dito de outra maneira, expor em poucas palavras as razões da pretensão recursória. O lugar processualmente próprio para expor os motivos da discordância e para explanar (e, querendo, divagar sobre) os fundamentos do reexame e da alteração da decisão recorrida é a alegação.

Contudo, o recorrente, no segmento que intitula de “conclusões”, não resumiu as razões do respetivo pedido. Ao invés, as conclusões explanam-se por tantas paginas, praticamente, quantas as que ocupa a alegação. E repetem, quase ipsis verbis, a motivação do recurso.

Consequentemente haveria lugar à aplicação do disposto no art.º 417º n.º 3 do CPP, com o consequente convite ao recorrente para, no prazo ali previsto, aperfeiçoar as conclusões, de modo a que cumpram com a exigência legal de resumir as razões do pedido, advertindo-o de que se não o fizer, o recurso seria rejeitado.

Todavia, o recorrente, logo no início da alegação, sintetiza os fundamentos do recurso, expendendo:

“Daí o presente recurso para este Alto Tribunal, pois só Vossas Excelencias poderão apreciar com sapiência os vícios do caso:

- violação do art° 3º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem

- violação do art° 5º da CEDH

- contradição insanável

- errónea qualificação jurídica

- medida da pena.”

E, a final, alega que a decisão recorrida:

- “violou os arts. 21 e 25 do DL 15/93; interpretou os factos como subsumidos    ao crime de trafico; o arguido entende que os factos e a problemática do consumo traduzem a qualificação do art   25 do DL 15/93;

-  violou os arts 5º-3 e 6º-1 da CEDH

Acresce que convite para que aperfeiçoasse as conclusões iria protelar, por mais algum tempo, a decisão do recurso, por razões somente imputáveis à defesa.

De qualquer modo, em face daquelas diretrizes e da normas jurídicas que se indicam como violadas, num laborioso esforço de compreensão e de síntese é possível encontrar nas conclusões as razões daqueles pedidos (incompreensivelmente misturados com consignas atinentes às condições da prisão preventiva do arguido), decide-se, sem mais delongas, passar de imediato à apreciação do recurso.

b) questões suscitadas:

i. não admitidas no vertente recurso:

O recorrente, irresignado com a improcedência – vd. cls 10 - do recurso que apresentou na Relação de … visando a revogação da medida de coativa que lhe foi imposta nos autos, dedica mais de metade das conclusões – cls 3 a 9 e 19 a 21 - da sua alegação em consignas contra a prisão preventiva e de denúncia das condições em que se executa. Que considera degradantes e, nessa medida, ofensivas do disposto no art.º 3º - cls. 5 -, e ainda do artigo 5º n.º 3 – cls 8 -, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. 

Não deveria ignorar que o acórdão da Relação que confirmou a prisão preventiva não admite recurso ordinário em duplo grau, ainda que “disfarçado” no pedido de reponderação da decisão condenatória. Nem pode desconhecer que perante este Tribunal Supremo só se admitem recursos que encontrem abrigo no disposto no art.º 432º do CPP. O que não sucede com a impugnação do despacho que decreta medidas coativas, incluindo a prisão preventiva (a não ser quando a Relação funciona como 1ª instância). E que também não cabe nos poderes de cognição do STJ sindicar, em primeira linha, as condições em que se executa a prisão preventiva.

Quanto à invocação do art.º 5º n.º 3 da CEDH não devia o recorrente saltar sobre a norma que imediatamente antecede aquela, ou seja o n.º 2 al.ª c) que consente a privação da liberdade  de arguido em processo penal “quando houver suspeita razoável de ter cometido uma infração, ou quando houver motivos razoáveis para crer que é necessário impedi-lo de cometer uma infração ou de se pôr em fuga depois de a ter cometido[2].

Assim, por legalmente inadmissível perante esta instância e no presente recurso, não se conhece da manutenção da prisão preventiva e das condições em que se executa.

Outro tanto vale para a invocada “nulidade na investigação em sede de inquérito” –cls. 10 e 21 -, estribada na alegação de não ter “ocorrido ao OPC colocar a seguinte questão àqueles a quem o arguido vendeu heroína: “consumiu com o arguido AA? se sim, quantas vezes??”  e por “não ter sido submetido no ato da detenção ou, após a «remessa» para a cela do EP …, a um exame hospitalar para deteção de drogas” cls 10.

Neste caso pela simples, mas facilmente compreendida razão de que as nulidades de que pudesse ter enfermado o inquérito deveriam ter sido suscitadas em instrução e, não tendo sido arguidas na sede própria, não sendo irremediáveis, resultaram sanadas.

ii. a apreciar:

 Restam então as seguintes questões para julgar:

- nulidade por omissão de diligências essenciais - cls. 11, 12 e 15 a 18;

- qualificação jurídica dos factos – cls 13 e 14;

- escolha e medida da pena –cls 22 e 23.

O Ministério Público suscitou, como questão prévia, a competência do STJ para conhecer do recurso, argumentando que o recorrente impugna também a decisão em matéria de facto.


*


Foi observado o disposto no art.º 417º n.º 2 do CPP.

O processo foi aos vistos e à conferência.

Cumpre decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO:

1. os factos:

O tribunal coletivo julgou provados, relativamente ao recorrente, os seguintes:

Factos Provados:

1. – Da Acusação:

21 - Os arguidos AA e DD são amigos há vários anos e vêm-se dedicando à venda de substâncias estupefacientes na zona de …., sendo que o primeiro dedica-se sobretudo à venda de heroína desde 2008 e o segundo dedica-se sobretudo à venda de haxixe desde 2014.

22 - No entanto, nalgumas ocasiões, o arguido AA e o arguido DD trocavam entre si produto estupefaciente, sendo que o primeiro entregava ao segundo heroína, e o arguido DD entregava ao arguido AA haxixe.

23 - O arguido AA deslocava-se no seu veículo de matrícula 00-JU-00 à zona da …, pelo menos uma vez por semana, para aí adquirir a heroína que subsequentemente iria vender na zona de ….

24 - As vendas das referidas substâncias estupefacientes aos consumidores eram efetuadas diretamente pelos arguidos AA e DD, sendo que o primeiro vendia cada pacote de heroína pelo preço de € 10,00 (dez euros) e o segundo vendia cada “ripa” de haxixe pelo preço de € 10,00 (dez euros).

25 - Para tal, o arguido AA era contactado previamente pelos consumidores que pretendiam adquirir as substâncias estupefacientes, os quais ligavam para os seus telemóveis com os IMEI n.ºs 30…40, 80…20 e 10…70 e nos quais funcionavam os cartões telefónicos com os n.ºs 91…00, 96…08 e 91…03 combinando dessa forma os sítios e as horas onde se encontrariam para efetuarem atos de venda das substâncias estupefacientes.

27 - Por norma, embora fosse o arguido a deslocar-se quase sempre para ir ao encontro dos consumidores, utilizando para tal o veículo automóvel de matrícula 00-JU-00, as vendas das substâncias estupefacientes por parte do arguido AA ocorriam quase sempre nos mesmos locais, designadamente, junto à “…”, todos na …. – ……., na …., junto à oficina “….” na E.N..., junto ao miradouro do …, junto à ponte de …, sendo que nalgumas ocasiões chegou a fazê-lo junto à sua residência sita na Travessa …., n.º 0, em ….

36 - O arguido AA vivia sozinho e a arguida EE (sua mãe) vivia com o filho menor do arguido, FF, nascido a 00.00.2005, estando este último a par da sua atividade de tráfico de estupefacientes, designadamente heroína, sendo que por vezes, durante o ano de 2018, o arguido chegou mesmo a fazer-se acompanhar do menor quando vendia tais substâncias aos consumidores.

37 - Além disso, o menor era utilizado pelo arguido AA como intermediário nos contactos com a sua ex-companheira GG e sempre que esta precisava de comprar-lhe heroína, sendo que para esse efeito aquela telefonava para o telemóvel do seu filho e dizia-lhe para pedir ao pai que fosse ter com ela e lhe levasse mais heroína, transmitindo o menor tal pedido ao arguido e dando logo de seguida a resposta à sua mãe.

38- A arguida EE cedia ao seu filho AA o veículo automóvel de matrícula 00-JU-00.

39 – Desde o ano de 2015, durante um período de três meses, HH comprou todos os dias ao arguido AA pacotes de heroína pelo preço de € 10,00 (dez euros) cada.

40 – Desde o início do ano de 2018 até 03 de Julho de 2018, II comprou ao arguido AA pacotes de heroína pelo preço de € 10,00 (dez euros) cada, fazendo-o pelo menos duas vezes por mês.

41 – Desde o ano de 2016 até … de Julho de 2018, JJ comprou ao arguido AA pacotes de heroína pelo preço de € 10,00 (dez euros) cada, fazendo-o uma vez por dia.

42 - Numa ocasião, em data não concretamente apurada mas situada em Dezembro de 2017 ou Janeiro de 2018, KK comprou ao arguido AA um pacote de heroína pelo preço de € 10,00 (dez euros).

43 - Desde o início do ano de 2018 até … de Julho de 2018, LL, comprou ao arguido AA um pacote de heroína pelo preço de € 10,00 (dez euros), fazendo-o dia sim, dia não.

44 - Desde 2017 até … de Julho de 2018, MM, de alcunha “NN”, comprou ao arguido AA um pacote de heroína pelo preço de € 10,00 (dez euros), fazendo-o por três vezes.

45 - Desde data não concretamente apurada mas pelo menos desde Junho de 2017 até … de Julho de 2018, OO comprou ao arguido AA pacotes de heroína pelo preço de € 10,00 (dez euros) cada, fazendo-o pelo menos três vezes por semana.

46 – Desde o ano de 2016 até … de Julho de 2018, com a frequência de quatro vezes por semana, PP comprou ao arguido AA pacotes de heroína pelo preço de € 10,00 (dez euros) cada.

47 - Entre Janeiro de 2018 e … de Julho de 2018, QQ comprou ao arguido AA pacotes de heroína pelo preço de € 10,00 (dez euros) cada, fazendo-o pelo menos uma vez por semana.

48 – Desde Março de 2016 até … de Julho de 2018, RR comprou ao arguido AA pacotes de heroína pelo preço de € 10,00 (dez euros) cada, pelo menos sete a oito vezes.

49 - Entre Junho de 2017 e … de Julho de 2018, SS comprou ao arguido AA pacotes de heroína pelo preço de € 10,00 (dez euros) cada, cerca de quatro ou cinco vezes.

50 - Entre Dezembro de 2017 e Abril de 2018, TT comprou ao arguido AA pacotes de heroína pelo preço de € 10,00 (dez euros) cada, fazendo-o pelo menos por seis ou sete vezes.

51 - Entre Dezembro de 2017 e Março de 2018, UU comprou ao arguido AA pacotes de heroína pelo preço de € 10,00 (dez euros) cada, fazendo-o pelo menos por seis ou sete vezes.

52 - Desde o ano de 2008 até … de Julho de 2018, a sua ex-companheira GG comprou ao arguido AA pacotes de heroína pelo preço de € 10,00 (dez euros) cada, em número de vezes não concretizado.

53 - No dia 03 de Julho de 2018, pelas 01h10m, no interior da sua residência sita na Travessa …, n.º 0 em …, o arguido AA possuía:

Ø Um pedaço de haxixe, “cannabis (resina)”, com um grau de pureza de 18,3% (THC) e peso líquido de 0,265 (zero virgula duzentos e sessenta e cinco) gramas, correspondente a menos de uma dose diária.

Ø € 950,00 (novecentos e cinquenta euros) em numerário, composto por 38 (trinta e oito) notas de € 10,00 (dez euros), 26 (vinte e seis) notas de € 20,00 (vinte euros) e 1 (uma) nota de € 50,00 (cinquenta euros) que se encontravam dentro de umas botas de motocross;

Ø 1 (um) telemóvel de marca “Vodafone” com o IMEI n.º 30…06;

Ø 1 (um) computador portátil de marca “Acer”, modelo “Aspire 5742Z”;

Ø 1 (um) telemóvel de marca “Iphone”;

Ø € 30,00 (trinta euros) em numerário, compostos por 1 (uma) nota de € 10,00 (dez euros) e 1 (uma) nota de € 20,00 (vinte euros) que se encontravam num bolso de umas calças;

Ø 13 (treze) pacotes de heroína com um grau de pureza de 21,8% e peso líquido de 2,261 (dois virgula duzentos e sessenta e um) gramas, os quais se encontravam debaixo de uma almofada do sofá;

Ø 1 (um) telemóvel de marca “Alcatel” com o IMEI n.º 30…09;

Ø € 45,00 (quarenta e cinco euros) em numerário, compostos por 9 (nove) notas de € 5,00 (cinco euros) que se encontravam numa carteira dentro do micro-ondas;

Ø 1 (um) telemóvel de marca “Samsung” com os IMEI n.º 30…06 e 30…04;

Ø 1 (um) telemóvel de marca “Samsung” com o IMEI n.º 30…08;

Ø 1 (um) telemóvel de marca “Samsung” com o IMEI n.º 30…28;

Ø 1 (um) telemóvel de marca “Nokia” com o IMEI n.º 30…06;

Ø Vários sacos de plástico recortados.

Ø 1 (um) telemóvel de marca “Huawey” com os IMEI n.º 80….06 e 80…02.

74 - As substâncias estupefacientes apreendidas destinavam-se a ser vendidas pelos arguidos AA, (…) a terceiros.

76 - O arguido AA vendeu heroína a terceiros, tendo perfeito conhecimento das características e efeitos provocados pelas referidas substâncias e bem sabendo que se tratavam de produtos estupefacientes.

79 – Os arguidos AA, (…) agiram de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e puníveis por Lei.

- Provou-se ainda que:

Dos antecedentes criminais dos arguidos:

83 - O arguido AA tem antecedentes criminais, tendo sido já condenado:

a) Por sentença de 05.12.1995, proferida no processo n.º 753/95…, do Tribunal de Pequena Instância Criminal de …, ..º Juízo, ..ª Secção, pela prática, em …-12-1995, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de 400$00.

b) Por acórdão de 16.12.2004, transitado em 13.01.2005, proferido no processo n.º 1426/94…, das Varas de Competência Mista de …, ..ª Vara Mista, pela prática, em …-04-1994, de um crime de burla qualificada, na pena de 2 anos de prisão suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, na condição de pagar ao ofendido, no prazo de 6 meses, uma compensação no valor de dois mil euros.

c) Por acórdão de 17.05.2005, transitado em 01.06.2005, proferido no processo n.º 58/99…., do Tribunal Judicial de …., pela prática, em …-09-1996, de um crime de furto qualificado e de um crime de falsificação de documento, na pena única de 2 anos e 3 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, na condição de pagar ao ofendido, no prazo de 6 meses, uma compensação no valor de dois mil euros.

d) Por sentença de 23.11.2009, transitada em 18.01.2010, proferida no processo n.º 334/06…., do Tribunal Judicial de …., ..º Juízo, pela prática, em …-07-2006, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 3,00.


(…)

- Das condições socioeconómicas e pessoais do arguido AA:

108 - O arguido AA é natural de … e filho único do casal progenitor.

109 - Tem um irmão consanguíneo, mais velho, com o qual não mantém relacionamento.

110 - Viveu com os pais até aos 4 anos de idade, num contexto familiar de média condição socioeconómica, avaliado pelo próprio como pouco gratificante, em consequência da violência doméstica protagonizada pelo pai.

111 - O arguido refere ainda que o pai apresentava um modo de vida pouco convencional, estando associado a práticas ilícitas, pelo que cumpriu alguns períodos de prisão efetiva.

112 - Quando tinha 4 anos de idade os seus pais separaram-se e devido às dificuldades que a mãe atravessava, ambos integraram o agregado familiar dos avós maternos do arguido, passando a viver em ….

113 - Uns tempos após a separação, a mãe emigrou para …, onde se manteve durante cerca de 25 anos, regressando a Portugal durante curtos períodos de tempo.

114 - O arguido ficou aos cuidados dos avós. Contudo, sempre que podia a mãe enviada quantias monetárias para assegurar o sustento do filho.

115 - O arguido AA refere que o seu percurso de vida foi pautado por fraco acompanhamento educativo, ausência de normas e regras, pelo que geria o seu quotidiano de forma autónoma.

116 - Com 11 anos de idade integrou o agregado familiar do pai, com o intuito de manter um acompanhamento educativo mais rigoroso. No entanto, devido a dificuldades de entendimento aquele e com a madrasta, viria a ser encaminhado para o Colégio …., em …. em regime de internato. Aqui revelou dificuldades de adaptação, pelo que, passados três meses fugiu da Instituição.

117 - Posteriormente, em concordância com o pai, voltou a frequentar o colégio em regime diurno e pernoitava em casa deste.

118 - O arguido AA registou um percurso escolar instável. Apresentou algumas retenções no 5º e no 6º ano de escolaridade, encontra-se habilitado com o 8º de escolaridade. Apesar de ter frequentado o 9º não o terá concluído.

119 - Após o término dos estudos, com 18 anos de idade, AA emigrou para … onde contava com o apoio da mãe.

120 - Manteve-se naquele país até 2004, intercalando no entanto alguns períodos de permanência em Portugal.

121 - No regresso a Portugal conheceu uma jovem (GG) da sua idade com quem viria a encetar um relacionamento amoroso, passando a viver maritalmente em ….

122 - Deste relacionamento que durou 8 anos, o arguido tem um filho, atualmente com 14 anos de idade.

123 - Segundo o arguido, após a separação manteve a guarda do filho assumindo as responsabilidades parentais.

124 - No entanto, devido à problemática aditiva do arguido e da ex-companheira, há cerca de 2 anos, o filho foi entregue aos cuidados da avó paterna por decisão judicial.

125 - Após a separação, mudou-se para uma casa que é propriedade da sua mãe na mesma área de residência.

126 - Do ponto de vista profissional, menciona que está habilitado com um curso de Tripulante de Ambulância de Transportes de Doentes e desempenhou funções como ………... e na construção civil. No entanto, nem sempre conseguia manter atividade profissional de forma continuada e estruturada, pelo que, por vezes, recorria ao Rendimento Social de Inserção para assegurar a sua subsistência.

127 - O arguido AA refere que iniciou consumos de estupefacientes com cerca de 20 anos, inicialmente apenas de haxixe, passando depois a consumir heroína.

128 - O arguido referiu ainda que em 1999, quando estava em …, submeteu-se a tratamento para a desabituação de produtos estupefacientes que teve a duração de 3 meses.

129 - Face à incapacidade de se manter abstinente, em 2005 inscreveu-se no CAT de …. onde teve acompanhamento e foi inserido num programa de metadona.

130 - O arguido AA encontra-se preso preventivamente desde …/07/2018 à ordem dos presentes autos.

131 - Antes de ser preso preventivamente o arguido vivia de forma autónoma numa casa de dois pisos, que foi adquirida pela mãe do arguido. Segundo este, apesar de se tratar do mesmo imóvel, o arguido ocupava o piso de cima e a mãe e o filho do arguido ocupavam o piso térreo.

132 - A nível da sua subsistência, o arguido AA menciona que devido à sua habilidade na área da mecânica, desde há cerca de 3 anos que colaborava no … de …. (desporto federado), assistindo duas corridas por mês, das quais auferia cerca 150€ por corrida. A este valor acrescia o pagamento da estadia e as despesas com alimentação.

133 - Fazia ainda pequenas reparações em … na oficina que tinha em casa, mas refere que desta atividade os ganhos eram variáveis.

134 - A mãe do arguido AA assumia as despesas referentes à manutenção da habitação e à alimentação.

135 - No âmbito social, os seus tempos livres eram passados sem rotinas/atividades estruturadas.

136 - Mantinha consumos de produtos estupefacientes e convívio com grupo de pares, com características delinquentes.

137 - Refere que mantinha como hobbie fazer caminhadas na …., nas quais se fazia acompanhar pelos seus cães.

138 - Em meio prisional tem apresentado um comportamento consentâneo com as normas e regras instituídas.

139 - Frequentou dois cursos financiados, um de construção civil, outro de técnicas de vendas, cursos que tem associado uma vertente psicossocial.

140 - Por apresentar uma postura de alguma instabilidade emocional foi encaminhado para acompanhamento psicológico e psiquiátrico e faz medicação a nível de ansiolíticos.

141 - Relativamente à problemática aditiva, afirma que se encontra abstinente desde que foi preso estando a ser acompanhado pelo CRI de ….

142 - Está em regime comum e tem visitas regulares da mãe, que se mostra disponível para o apoiar em tudo o que for necessário.

143 - O pai e o filho também já o visitaram.

144 - O arguido apesar de ter consciência da atual situação jurídico-penal, tende a adotar atitudes de minimização perante práticas similares às que lhe são imputadas. Tem tendência para atribuir a causas externas alguns dos comportamentos socialmente reprováveis, designadamente os consumos aditivos e o convívio com grupo de pares com as mesmas características.

145 - O arguido manifesta uma postura de intimidação relativamente à sua situação jurídico-penal, evidenciando uma atitude pouco favorável em relação ao desfecho do presente processo.

146 - O arguido AA, segundo informação da assistente social da CRI de …, “encontra-se em acompanhamento pelo CRI de …. da ARS …, desde a sua detenção no EP de ….. Está em programa de agonista opiáceo (metadona) e encontra-se estabilizado. Na data de 2 de Maio do corrente ano realizou análise à urina para despiste de substâncias (heroína, cocaína e THC) cujos resultados foram negativos”.

- Factos Não Provados:

2. – Da Acusação Pública:

254 - O arguido AA dedica-se à venda de heroína desde 2006.

255 - Nalgumas ocasiões, o arguido AA também vendeu haxixe que lhe era entregue pelo arguido DD, e este último vendeu heroína que lhe era entregue pelo primeiro, sendo que cada um deles também encaminhava consumidores para o outro, consoante o tipo de estupefacientes que aqueles pretendiam adquirir.

256 - Nas circunstâncias mencionadas em 23. o arguido AA deslocava-se no seu veículo de matrícula 00-JU-00 à zona de …, para aí adquirir haxixe que subsequentemente o DD iria vender na zona de …, sendo que nalgumas dessas deslocações fazia-se acompanhar do arguido DD.

257 - O arguido AA efetuava a venda da heroína junto aos cafés “P…..” e “L….”.

259 - A arguida VV auxiliava o arguido AA na sua atividade de tráfico de estupefacientes, ora sendo contactada por consumidores que pretendiam adquirir estupefacientes àquele, ora realizando entregas de estupefaciente e recebendo dinheiro dos consumidores na sua própria residência e por conta do arguido AA e servindo ainda de intermediária entre aqueles o arguido DD e o arguido AA, transmitindo os pedidos de AA para o DD lhe levar/entregar mais estupefaciente.

260 - A arguida VV era contactada por AA, que lhe transmitia os pedidos, mas também pelos próprios consumidores que pretendiam adquirir heroína.

263 - A arguida EE cedia o seu veículo automóvel ao arguido AA para que este o utilizasse na sua atividade de tráfico, designadamente para ir comprar a heroína na zona de … e, depois, para ir ao encontro dos consumidores a quem vendia a mesma substância.

264 - Os factos mencionados em 39. ocorreram também no ano de 2014.

265 - Os factos mencionados em 40. ocorreram desde Junho de 2015, sendo que II comprava heroína ao arguido AA pelo menos duas vezes por semana.

266 - Os factos mencionados em 41. ocorreram desde Junho de 2015.

267 - Os factos mencionados em 43. ocorreram desde 2016, sendo que LL comprava heroína ao arguido AA entre uma a duas vezes por dia.

268 - MM comprava heroína ao arguido AA com a frequência de uma vez por semana.

269 - Os factos mencionados em 46. ocorreram entre Junho de 2015, praticamente todos os dias e por vezes mais de uma vez ao dia, sendo que PP comprou ao arguido AA línguas/chapas de haxixe.

270 - Os factos mencionados em 48. ocorreram entre Junho de 2015, com uma frequência praticamente diária.

271 - Os factos mencionados em 49. ocorreram com uma frequência praticamente diária.

272 - Os factos mencionados em 52. ocorreram com uma frequência de pelo menos seis vezes por semana.

273 - Nalgumas ocasiões, a pedido do arguido AA, a arguida VV efetuou, por conta daquele, entregas de heroína a consumidores e recebeu o dinheiro dos mesmos.

274 - O arguido AA não tem qualquer atividade remunerada e os seus únicos rendimentos provêm da venda de estupefacientes a que se dedica pelo menos desde 2006.

288 - Os arguidos AA e EE agiram de modo concertado e em conjugação de esforços com o propósito de venderem heroína e haxixe a terceiros.

2. o direito:

a)  questão prévia suscitada pelo M.º P.º:

A Digna PGA neste Tribunal, argumentando que o recurso “visa, para além do mais, a reapreciação da matéria de facto através da invocação dos vícios da decisão”, entende que não deve ser julgado pelo STJ. Promove, por isso, que os autos sejam “remetidos ao Tribunal da Relação de ….”.

É exato que o arguido invoca o vício da “contradição insanável do Acórdão: vicio do artº 410-2-b) do CPP”. Contudo, argumenta que a “contradição insanável” consiste em ter sido condenado “por tráfico quando o arguido era um consumidor frequente há 20 anos e que vendia para satisfazer o vicio: art. 25 do DL 15/93”.

E, para não deixar margem para dúvidas, no pedido final – esse sim sintético -, não só não faz qualquer referência ao reenvio para novo julgamento – como necessariamente teria que suceder se neste Supremo Tribunal fossem detetados e declarados vícios lógicos da decisão recorrida -, como a final assevera: “o tribunal a quo violou os arts. 21 e 25 do DL 15/93; interpretou os factos como subsumidos ao crime de trafico; o arguido entende que os factos e a problemática do consumo traduzem a qualificação do art   25 do DL 15/93”.

A “contradição” alegada pelo recorrente, manifestamente, não integra o vício da “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, consagrado no art.º 410º n.º 2 al.ª b) do CPP. Abundante seria aclarar que a subsunção da matéria de facto provada num ou no outro daqueles tipos de crimes é, inquestionavelmente, uma questão de direito, atinente à qualificação jurídica dos factos provados, como o recorrente, logo de seguida, efetivamente questiona.

Ainda que irrelevante nesta sede, nota-se que o recorrente até justificou não ter impugnado a decisão em matéria de facto e se ter dirigido ao Supremo Tribunal de Justiça, expendendo:

“O arguido recorre para este Alto Tribunal porque é a última via para a Justiça em Portugal!!!! É o problema da matéria de facto não ser devidamente julgada nos Tribunais da Relação:

“As Relações estão a ter muita dificuldade para apreciar a matéria de facto. Há uma rebeldia ...” -dixit Senhor Doutor Juiz Conselheiro Simas Santos, in Jornal Público 28-5- 2006.

Daí o presente recurso para este Alto Tribunal pois só Vossas Excelencias poderão apreciar com sapiência os vícios do caso”.

A insignificância da opção do recorrente decorre do regime legal da repartição da competência para conhecimento dos recursos em processo penal, interpretado no Acórdão Uniformizador n.º 8/2007 deste Supremo Tribunal que firmou a seguinte jurisprudência:

«Do disposto nos artigos 427.º e 432.º, alínea d), do Código de Processo Penal, este último na redação da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, decorre que os recursos dos acórdãos finais do tribunal coletivo visando exclusivamente o reexame da matéria de direito devem ser interpostos diretamente para o Supremo Tribunal de Justiça.»

Sustenta-se no referido AUJ: “o recurso do acórdão final do tribunal coletivo que verse tão-só matéria de direito deve ser interposto diretamente para o Supremo Tribunal de Justiça, inexistindo, pois, qualquer faculdade de escolha do tribunal de recurso e, por isso, um verdadeiro e próprio recurso per saltum em processo penal: em tal situação o reexame da matéria de direito é da exclusiva competência do Supremo Tribunal.

Então, este tribunal não é chamado a intervir em virtude do exercício de uma faculdade da parte que lhe confere a possibilidade de escolher o Supremo Tribunal como tribunal de recurso e assim permitir que o recurso «salte» o Tribunal da Relação, que seria o normalmente competente, e é, do ponto de vista hierárquico, imediatamente superior ao tribunal coletivo e inferior ao Supremo Tribunal de Justiça.”

Pelo que a referência à justificação apresentada pelo recorrente serve somente para deixar nota de que se conclui que com o vertente recurso não pretende o arguido que se altere a decisão em matéria de facto, visando, isso sim, ainda que incorretamente adjetivado de vicio lógico da decisão, somente tentar convencer que os factos provados deveriam subsumir-se ao tráfico de menor gravidade, para o qual pretende ver convolada a condenação, e não ao crime de tráfico previsto no art.º 21º n.º 1 do DL n.º 15/93 de janeiro, por que vem condenado.

Reforça o que vem de sublinhar-se a circunstância de o arguido, na audiência de julgamento, ter confessado os factos provados, como concordantemente realça na respetiva alegação de recurso. É, pois, evidente que não quer discutir os factos provados nem pretende que se modifique a decisão em matéria de facto. 

Improcede, consequentemente, a questão prévia suscitada pelo Ministério Público.

b) nulidade por omissão de pronúncia:

Descontando o “sem sentido” e, por isso, incompreensível, apelo à “nulidade do artº 119-b) e d) do CPP por ausência de elementos favoráveis ou desfavoráveis ao arguido”, e a deslocada definição do teórico «papel» do Ministério Publico no processo penal – aqui não sindicável -, o que o recorrente realmente invoca, ainda que sem a qualificação em epigrafe, é a nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia, com o argumento de que “o tribunal a quo” “não ordenou exames adequados a confirmar a situação médica [do arguido] em curto prazo de tempo”, como, em seu entender, lhe “incumbia – artº 340 do CPP”.

Descontado também o inapropriado apelo à norma legal que convoca – o art. 340º -, na medida em que o CPP contém norma específica – o art.º 351º -, para o tipo de exame psiquiátrico a que o recorrente se terá querido, pelo menos aparentemente, referir – cls 15 a 18 -, certo é que da leitura da acusação, da pronúncia e do texto do acórdão condenatório, conclui-se, rápida e facilmente, que o tribunal “a quo” não omitiu o conhecimento e decisão de cada uma e todas as questões que constituíam o objeto do processo e que, como decorre do princípio da vinculação temática, delimitavam os respetivos poderes de cognição.

Quanto ao exame psiquiátrico na fase de julgamento[3], estatui o artº 351.º (Perícia sobre o estado psíquico do arguido), no seu n.º 1:

“1 - Quando na audiência se suscitar fundadamente a questão da inimputabilidade do arguido, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, ordena a comparência de um perito para se pronunciar sobre o estado psíquico daquele.”

Sustenta-se no Código de Processo Penal, Comentários e Notas Práticas[4]  que para o tribunal determinar aquela perícia “não basta a simples suspeita ou a mera probabilidade assente na sua aparência. Tem de tratar-se de factos concretos que apontem para a forte probabilidade de que o arguido, quando cometeu os factos, sofria de anomalia psíquica (permanente ou sendo acidental que não lhe seja censurável) que o incapacitou de avaliar a ilicitude da sua conduta e de se autodeterminar para poder agir de acordo com o direito.

Sustenta-se também que a questão da imputabilidade diminuída “tem igualmente de ser fundamentada em factos concretos, não bastando meras aparências, suposições ou simples suspeitas. Trata-se de uma questão séria que tem de ter fundamento plausível, radicado na alegação de um quadro factual concreto – anomalia psíquica -, que seja de molde a diminuir sensivelmente a capacidade de avaliação e autodeterminação do agente”.

Dito isto, vejamos o que sucedeu no processo:

O arguido, na contestação, alegando ser “consumidor frequente de estupefacientes há mais de vinte (20) anos”; que se encontrava “dependente de heroína”; que tem vindo a ser tratado; que padece de doença pulmonar grave”; e de “transtorno mental e comportamental por uso de opiácios”, requereu ser submetido a exame médico-psiquiátrico.

Pretensão que o tribunal deferiu - vd. fls. 2605 -, solicitado ao INML a realização de exame médico-pericial ao arguido, apresentando aos peritos os seguintes quesitos:

- à data dos factos constantes da acusação, o arguido padecia de anomalia psíquica;

- em caso afirmativo, qual a natureza da anomalia psíquica e a sua gravidade;

- se tal anomalia determinou a incapacidade do arguido, no momento da prática dos factos, de avaliar a respetiva ilicitude ou de se determinar de acordo com essa avaliação;

- se o arguido padece, atualmente, de anomalia psíquica e, em caso afirmativo, se, em função da mesma, existe receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie daqueles pelos quais se encontra acusado nos autos.

Exame ao seu estado psíquico de que o arguido veio a desistir – vd. requerimento a fls. 2912.

Consta do acórdão recorrido que o Ilustre Defensor, nas alegações finais disse “que o Ministério Público não tinha feito exame médico psiquiátrico ao arguido”. O tribunal, pronunciando-se sobre tal questão, fundamenta: “(…) se o Ministério Público entendeu que não se justificava a realização de tal exame no decurso do inquérito, não era, de modo algum obrigado a fazê-lo. Contudo, é um direito que assiste ao arguido requerer todo e qualquer meio de prova que considere pertinente para a sua defesa. E foi isso que o arguido fez em sede de contestação.

(…) o Tribunal deferiu o exame médico psiquiátrico (…) requerido. Contudo, (…) apenas não foi efetuado porque o arguido desistiu da realização de tal exame. Repita-se, (…). Foi o próprio arguido que desistiu da sua realização. Como tal, não pode vir agora alegar que tal exame não foi feito! Pois se não foi realizado apenas a si próprio pode ser imputado e nunca a este Tribunal, que tudo fez para salvaguardar os direitos de defesa do arguido.

Também em alegações veio a defesa do arguido AA invocar a sua capacidade sensivelmente diminuída com base numa classificação apurada no site da internet www.wikipedia.pt, referindo que como o arguido é consumidor de heroína há mais de 20 anos sofre de uma “doença mental classificada pela Organização Mundial de Saúde como “(F10-F19) Transtorno mental e comportamental devidos ao uso de substâncias…(F1x.1) Uso nocivo para a saúde..(F1x.2) Síndrome de dependência……F11) Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de opiáceos…(F14) Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso da cocaína – publicado em www.wikipedia.pt” (sic do requerimento do arguido apresentado em 29.06.2019 e que reiterou em alegações).

Ora, como é por demais evidente o Tribunal apenas podia afirmar que o arguido padecia de uma doença mental e que por tal facto tinha a sua capacidade sensivelmente diminuída, caso tivesse sido realizada uma perícia médica que comprovasse tal facto. Nunca poderia este Tribunal considerar que o arguido padece de uma doença mental com base num site da internet, sem a realização de qualquer exame médico que o comprovasse.

Nesse sentido, não considera o Tribunal que o arguido padeça de qualquer doença mental. Note-se que o arguido prestou declarações em sede de audiência de discussão e julgamento, apresentando sempre uma postura digna, relatando os factos de uma forma serena, lógica e coerente, porquanto em momento algum fez crer ao Tribunal que padecesse de uma qualquer doença mental.”

É, pois, indesmentível que o tribunal, no acórdão recorrido, não omitiu a apreciação e não deixou por decidir a questão suscitada nos autos, da necessidade de realização da perícia sobre o estado psíquico do arguido.

E justifica a desnecessidade da produção dessa prova pericial porque não resulta da sua postura na audiência e perante os factos, que sofra de qualquer anomalia psíquica que o incapacite de entender e valorar factualidade por que vinha pronunciado e de agir de acordo com essa valoração.

Sustenta-se no Comentário e Notas cit. que para ajuizar dos fundamentos da necessidade e utilidade da perícia em apreço, mesmo quando o requerimento se suporta em documentação clínica, deve o tribunal ver e ouvir o arguido na sala de audiências para, com imediação e em oralidade, poder percecionar a sua postura pessoal, perante os factos e o processo, avaliar da racionalidade lógica do respetivo diálogo, apurar da sua localização espaciotemporal e aquilatar da capacidade para entender e valorar os acontecimentos da vivência comum.

Concluindo o tribunal, como foi o caso, que o arguido apresenta uma postura digna e relata os factos de uma forma serena, lógica e coerente, não havia qualquer fundamento minimamente real e sério para que, oficiosamente, de determinasse a realização da perícia sobre o estado psíquico do arguido.

Trata-se de uma questão séria e, como tal deve ser tratada. Bem andou, pois, o tribunal ao decidir, fundamentadamente, não determinar, oficiosamente, o “exame médico psiquiátrico”, que o recorrente alega ter sido omitido.

Consequentemente não padece da alegada nulidade por omissão de pronúncia ou, na perspetiva do arguido, por violação do disposto no art.º 340º do CPP.

Improcede, assim, esta pretensão do recorrente.

c) qualificação jurídica dos factos:

O recorrente insurge-se contra a qualificação jurídica dos factos provados no acórdão recorrido. Alega: “entende que os factos e a problemática do consumo traduzem a qualificação do art.25 do DL 15/93”, isto é, preenchem ao crime de tráfico de menor gravidade, pelo qual pretende ser condenado.

O Tribunal recorrido subsumiu os factos cometidos pelo arguido ao crime de tráfico “funtamental”. Motivando a condenação do recorrente pelo crime de tráfico p. e p. pelo art.º 21º do DL n.º 15/93, exarou-se no acórdão recorrido:

“Trata-se de apurar se, atenta a matéria de facto dada como provada, se pode considerar que existem circunstâncias que diminuam consideravelmente a ilicitude do facto por forma subsumir a conduta dos arguidos (…), AA, (…) ao disposto no artigo 25º do D.L. 15/93 (tráfico de menor gravidade).

(…) o arguido AA vendia, diretamente aos consumidores, (…) Esta atividade do arguido vem sendo exercida desde o ano de 2008 (ano em que já vendia e cedia heroína à sua ex-companheira - como o próprio confessou -, pelo que vem exercendo esta atividade há pelo menos 10 anos (…), tendo por objeto um dos mais nocivos estupefacientes – a heroína.

É certo que as quantidades vendidas a cada consumidor não são elevadas, e quando aferidas individualmente poderão representar quantidades diminutas, porém, a reiteração das vendas ao longo do tempo traduz a indiferença do arguido perante as graves consequências para a saúde do consumidor, sua liberdade individual e para a instabilidade familiar e social, sendo que resultou provado que o arguido se fez acompanhar, muitas vezes do seu filho menor, bem conhecedor da atividade desenvolvida pelo pai (ora arguido).

(...) o menor era utilizado pelo arguido AA como intermediário nos contactos com a sua ex-companheira GG e sempre que esta precisava de comprar heroína ao arguido (…) telefonava para o telemóvel do seu filho e dizia-lhe para pedir ao pai que fosse ter com ela e lhe levasse mais heroína, transmitindo o menor tal pedido ao arguido e dando logo de seguida a resposta à sua mãe.

(…) o desvalor da ação deste arguido é muito considerável, na medida em que usou um menor de idade (seu filho) para o exercício de uma atividade ilícita de venda de estupefacientes.

Por fim, saliente-se que o período de tempo em que o arguido exerceu esta atividade ilícita é bastante logo (cerca de 10 anos), sendo que existiam consumidores que compravam heroína ao arguido AA diariamente (…).

Neste segmento, impõe-se concluir que o grau de ofensividade à lei e o de desvalor da sua ação, estão longe de configurar ilicitude consideravelmente diminuta, havendo que considerar que a conduta do arguido se insere na previsão do art.º 21º do DL 1/93, (…).

A incriminação do tráfico (de estupefacientes e precursores) e outras atividades ilícitas visa proteger a saúde pública, “a segurança e a qualidade de vida dos cidadãos”. Ainda que não seja objeto imediato da proteção penal, visa também proteger “a economia legal, a estabilidade e a segurança do Estado”. Proclama-se no preambulo da Convenção Única de 1961 sobre Estupefacientes que “a toxicomania é um flagelo para o indivíduo e constitui um perigo económico e social para a humanidade” que “incumbe de prevenir e de combater”. Tanto assim que tem sido empreendido um esforço no sentido da criação de um direito penal universal sobre o tráfico ilícito de estupefacientes ou pelo menos de uma forte harmonização dos regimes sancionatórios, neste âmbito.

Portugal, em linha com o direito internacional convencional nesta matéria e também na senda do direito penal europeu com idêntica incidência material, tipifica o ilícito criminal fundamental na repressão do tráfico de estupefacientes e outras atividades ilícitas no artigo 21.º n.º 1, do DL n.º 15/93 de 22 de janeiro, estipulando:

1 - Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.

Com abrangência tão vasta, não é excessivo concluir que qualquer atividade, não autorizada pelas entidades competentes, que incida sobre produtos estupefacientes constantes das referidas tabelas, preenche este tipo de crime.

Excetua-se o consumo. E também “a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV anexas do DL n.º 15/93”, que não excedam “a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias” – Lei n.º 30/200 de 29/11.

Apesar da amplitude da moldura penal, o legislador, em linha com o estabelecido na Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas de 20 de Dezembro de 1988 [5] entendeu que “a graduação das penas aplicáveis ao tráfico tendo em conta a real perigosidade das respetivas drogas afigura-se ser a posição mais compatível com a ideia de proporcionalidade. O que não implica necessária adesão à distinção entre drogas duras e leves (…).

Simplesmente, a decisão de uma gradação mais ajustada tem de assentar na aferição científica rigorosa da perigosidade das drogas nos seus diversos aspetos, onde se incluem motivações que ultrapassam o domínio científico, para relevarem de considerandos de natureza sócio-cultural não minimizáveis.”

De certo modo, na lógica deste ideário e também em conformidade com o estipulado na Convenção referida –art. 3º n.º 4 al.ª a) -, criou tipos, privilegiados e agravados – adequados à dimensão da ilicitude das diversas modalidades da ação ou, na expressão de J. Figueiredo Dias, que “contendem com a maior ou menor gravidade do crime como um todo[6].

Entre os primeiros – tipos privilegiados -, sobressai (para a economia deste recurso) o crime de tráfico de menor gravidade previsto no art.º 25º do DL n.º 15/93, estatuindo:

“Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:

a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;

b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.”

O traço marcante do privilegiamento advém da consideravelmente diminuída da ilicitude da conduta típica.

Esta norma que desgradua a punição do tráfico de menor gravidade sucedeu à que anteriormente – o art.º 24º do DL n.º 430/83 de 13/12 -, punia o tráfico de quantidades diminutas. Com, além do mais, uma importante diferença: aquela fornecia o conceito legal de quantidades diminutas que podia determinar-se com suficiente precisão, como sucede atualmente por via do disposto na Portaria n.º 94/96 de 26 de março – art.9º e respetivo mapa anexo.

Na vigente incriminação do tráfico de menor gravidade, o legislador limitou-se a fornecer, exemplificativamente, alguns indicadores de que pode resultar essa modalidade consideravelmente diminuída da ilicitude do tráfico de estupefacientes - os meios utilizados; a modalidade da ação; as circunstâncias da ação; a qualidade das plantas, substancias ou preparações; e a quantidade dos estupefacientes -, conferindo à jurisprudência a tarefa de acrescentar outros indicadores que possam servir para emprestar ao tráfico uma considerável diminuição da ilicitude. Exige-se, todavia, que do labor jurisprudencial resulte no estabelecendo de parâmetros gerais e uniformes, de modo a salvaguardar que situações comparáveis não sejam tratadas de forma diferente e que situações diferentes não sejam tratadas de modo igual, a menos que tal tratamento seja objetivamente justificado por uma particular e especial circunstância, irrepetível, que só pode ocorre num determinado caso.

Nessa tarefa de clarificação dos indicadores que podem desgraduar a responsabilidade penal dos traficantes de quantidade menores, a jurisprudência tem apontado outras circunstâncias que podem também diminuir consideravelmente a ilicitude do tráfico, designadamente: atuação individual ou em pequena entreajuda; sem que sejam utilizados meios sofisticados; que não seja exercido como modo de vida; ausência de lucros ou vantagens; os proventos obtidos servirem para financiar consumos do próprio e de familiares ou equiparados; pequena “carteira” de compradores ou consumidores; curto período de tempo; ocasionalidade do tráfico; não implicação de familiares; não se servir de colaboradores; pequena e circunscrita territorialidade da atividade; inexistência de contactos internacionais[7], que não concorram circunstâncias que podem agravar o crime.

A jurisprudência sustenta que uma destas circunstâncias, por si só, regra geral, não é suficiente para diminuir consideravelmente a ilicitude do tráfico. O que releva, decisivamente, é a imagem global da concreta atividade de tráfico desenvolvido pelo agente.

Sustenta-se no citado Ac. de 2/10/2019, deste Supremo Tribunal: “Estas circunstâncias devem ser avaliadas globalmente. Dificilmente uma delas, com peso negativo, poderá obstar, por si só, à subsunção dos factos a esta incriminação, ou, inversamente, uma só circunstância favorável imporá essa subsunção. Exige-se sempre uma ponderação que avalie o valor, positivo ou negativo, e respetivo grau, de todas as circunstâncias apuradas e é desse cômputo total que resultará o juízo adequado à caracterização da situação como integrante, ou não, de tráfico de menor gravidade”.

“É a imagem global do facto, ponderadas conjuntamente todas as circunstâncias relevantes que nele concorrem, que permitirá a identificação de uma situação de ilicitude consideravelmente diminuída, ou seja, uma situação em que o desvalor da ação é claramente inferior ao padrão ínsito no tipo fundamental de crime – o tráfico de estupefacientes previsto no art. 21º”[8].

Alguma jurisprudência deste Supremo Tribunal sustenta também que não pode ter-se a ilicitude por consideravelmente diminuída quando no caso ocorrer alguma das circunstancias que, nos termos do art.º 24º, agravam o crime de tráfico. Assim, no Ac. de 28/10/2015 sustentou-se[9]: “ainda que se verifiquem as circunstâncias mencionadas anteriormente, não podem ocorrer qualquer das outras mencionadas no art. 24.º, do DL 15/93.

O legislador do direito penal da União Europeia (EU) nesta matéria – Decisão-Quadro 2004/757/JAI - considerou que “para determinar o nível das sanções, deverão ser tomados em conta elementos de facto, tais como as quantidades e o tipo de drogas traficadas e a circunstância de a infração ter ou não sido cometida no âmbito de uma organização criminosa”.

E quanto ao tipo de drogas traficadas estabeleceu a necessidade de uma moldura penal agravada quando “a infração envolva drogas que causam maiores danos à saúde”. Nestas situações a conduta deve ser sancionável “com pena máxima de prisão com uma duração de, no mínimo, entre cinco e dez anos” – art. 4º n.º 2 al.ª b) da cit. Decisão-Quadro.

As drogas psicotrópicas ou psicoactivas, criam adição e, por isso, são especialmente daninhas para a saúde dos consumidores e, reflexamente, para a saúde pública.

Uma destas substancias psicotrópicas é a heroína. O seu consumo por injeção provocou a “emergência devastadora entre os heroinómanos”, da SIDA/HIV – pagina da iasaúde.pt/ucad: também pagina do sicad.

Vejamos então o caso dos autos.

Está assente nos factos provados que o recorrente comprava heroína pelo menos uma vez por semana, na Amadora, para onde se deslocava de automóvel.

Vendeu diariamente heroína em …, desde 2008 – ponto 52. Tráfico que manteve durante o longo período temporal de 10 anos, ainda que com mais intensidade desde 2015 até à data em que foi detido.

Vendeu heroína a 15 compradores identificados –pontos 38 a 51. A alguns todos os dias (desde 2015 e desde 2016) – pontos 39 e 41 –, outro dia sim dia não (desde o inicio de 2018) – ponto 43 –, outros várias vezes por semana (desde 2016, 2017 e em 2018) – pontos 45 a 47 – e aos restantes algumas vezes (em 2016, em 2017 e e 2018).

Cobrava por cada pacote de heroína €10,00.

As encomendas e os locais de transação eram acordados, regra geral, através de comunicação via telemóvel.

O recorrente, “por vezes, durante o ano de 2018, (…) chegou mesmo a fazer-se acompanhar do menor [seu filho, nascido em .. de …. de 2005] quando vendia tais substâncias aos consumidores” – ponto 36.

Além disso, o menor era utilizado pelo arguido AA como intermediário nos contactos com a sua ex-companheira GG e sempre que esta precisava de comprar-lhe heroína, sendo que para esse efeito aquela telefonava para o telemóvel do seu filho e dizia-lhe para pedir ao pai que fosse ter com ela e lhe levasse mais heroína, transmitindo o menor tal pedido ao arguido e dando logo de seguida a resposta à sua mãe” –ponto 37.

Aquando da detenção, em 3 de julho de 2018, foram-lhe apreendidos 2,261 gramas de heroína já repartida e acondicionada em 13 pacotes, destinados à venda. E ainda uma pequena porção de haxixe com o peso de 0,265 gramas.

Também lhe foram encontrados e apreendidos vários recortes de plásticos, utilizados no embalamento dos pacotes de heroína

Tinha consigo €1.025,00 (mil e vinte e cinco) constituídos por 39 notas de €10, 27 notas de €20, 9 notas de €5 e uma de €50.

Foram-lhe encontrados 7 telemóveis e um iphone.

O recorrente confessou as vendas, mas não identificou o seu fornecedor.

A factualidade assente, plasma a situação de um “mediano” traficante (de rua) de heroína, que comprava semanalmente o produto estupefaciente, que repartia em pacotes e vendia, diária e diretamente aos consumidores.

Todavia, o circunstancialismo fáctico provado não permite concluir pela considerável diminuição da ilicitude desta sua atividade de tráfico.

E não admite por três razões essenciais:

A primeira e muito importante radica no facto de o arguido utilizar o seu filho menor, então com 14/15 anos, como intermediário nas vendas de heroína à compradora – aparentemente adita -, GG, ex-companheira do arguido e mãe do adolescente FF, ademais de em algumas entregas aos compradores se fazer acompanhar também do seu filho.

Ademais de gravemente censurável introduzir o próprio filho numa fase nuclear da respetiva vida – a entrada na adolescência -, nessa atividade, a colaboração do menor, por qualquer forma, no tráfico é uma circunstância agravante especialmente prevista no art. 24º al.ª i) do DL n.º 15/93 de 22/01.

A segunda razão, e também de peso, resulta do próprio estupefaciente traficado, a heroína.

A qualidade do estupefaciente é uma das circunstâncias que o legislador manda ponderar para ajuizar do grau da ilicitude consideravelmente diminuída do trafico. Se o legislador manda atender a esse facto, não pode o interprete desconsiderar essa indicação e conferir igual tratamento a todo e qualquer estupefaciente. O aplicador do direito não pode adotar interpretação que desconsidera a letra da lei.

Acresce, como se referiu, que o direito penal internacional e o europeu consideram circunstância agravante da punibilidade, a qualidade do estupefaciente traficado.

A terceira razão advém do prolongado período temporal pelo qual o arguido exerceu e manteve a atividade de tráfico de heroína – sensivelmente 10 anos.

Tempo suficiente, por um lado, para ter comprado (todas as semanas) e vendido (diariamente) quantidades que somadas poderiam ser importantes. Não resultando provada a quantidade que adquiria cada semana, ainda que na ordem das gramas - necessariamente várias em razão das vendas efetuadas e do que lhe foi apreendido -, multiplicadas por 52 semanas anuais e seguidamente por dez anos, obtém-se um peso final na ordem dos quilogramas de heroína.

Por outro lado, resulta dos factos provados que o arguido se tornou, praticamente, um profissional do tráfico. Salvo a referência a uns biscates esporádicos, não se apura que, nessa década da sua existência tenha tido emprego certo ou exercido qualquer atividade profissional, com caráter permanente e remunerado.

É certo que os meios utilizados para traficar não são sofisticados, nem resultou provado que de uma só vez tenha comprado ou vendido quantidades elevadas de heroína. Contudo estas circunstâncias, por si só, não são suficientes para que possa julgar-se que a ilicitude se apresenta degrada a um patamar tão inferior ao normal que possa qualificar-se de consideravelmente diminuída. Não basta que o desvalor da conduta se situe ao nível inferior do barómetro da ilicitude do crime de tráfico (fundamental). Para que o tráfico possa integrar o tipo privilegiado previsto no art.º 25º do DL n.º 15/93 de 22/01, exige-se uma “degradação” bem mais acentuada, é indispensável que a ilicitude se apresente com uma diminuição de tal ordem que possa, na expressão da lei, ter-se por consideravelmente diminuída. Se assim não se apresentar, o grau mais baixo da ilicitude do tráfico influirá na determinação da medida da pena, naturalmente dentro da moldura penal do crime de tráfico do art.º 21º, mas não permite subsumi-lo ao tráfico de menor gravidade.

Assim se apresenta a realidade histórica do caso, demonstrada pelos factos provados, em que as razões especificadamente assinaladas obstam à diminuição considerável da ilicitude.

É exatamente o que sucede no caso, tal como resulta historiado pelos factos provados.

Efetivamente, pelas razões expostas, o tráfico exercido pelo recorrente não contém circunstancias que permitam subsumi-lo à previsão do art.º 25º al.ª a). Os factos provados, cometidos pelo arguido, preenchem o crime de tráfico previsto no art.º 21º do DL 1/93, pelo qual vem punido.

Neste quadro fáctico provado, bem andou o tribunal ao “concluir que o grau de ofensividade à lei e o de desvalor da sua ação, estão longe de configurar ilicitude consideravelmente diminuta”.

Improcede, por isso esta pretensão do recorrente.

d) mMedida da pena:

i. pretensão do recorrente:

O recorrente insurge-se contra a pena de 6 anos de prisão que lhe foi aplicada no acórdão recorrido. Reclama a sua redução alegando que “só uma pena de 4 anos e suspensa na sua execução, condicionada a vigilância médica, satisfaz o desideratum de sociedade” – cls. 22 e 23.

ii. no acórdão recorrido:

No acórdão recorrido, convocada a moldura penal do crime de tráfico p. e p. pelo art.º 21º n.º 1 do DL 15/93 de 22 de janeiro, motiva-se a dosimetria da pena, expendendo:

“(…) as exigências de prevenção geral nos ilícitos de tráfico de estupefacientes são bastante fortes, não se podendo ignorar o número crescente de pessoas que se dedicam a atividade desta natureza, bem como as suas consequências nefastas em termos de saúde pública. (…).

Relativamente às exigências de prevenção especial:

- Em sede de culpa, a conduta do arguido justifica uma censura ético-jurídica elevada já que podia e devia ter agido de outro modo, tendo agido com dolo na sua forma mais intensa – dolo direto;

- O grau de ilicitude dos factos, que se afigura muito elevado, atento o período de tempo em que o arguido procedeu à venda de heroína (10 anos), o número de consumidores que lhe compravam produto estupefaciente, a frequência com que vendia produto estupefaciente a alguns consumidores (pelo menos um dos consumidores adquiria-lhe heroína diariamente), bem como a qualidade do produto estupefaciente vendido pelo arguido (o facto de estar em causa um dos tipos de droga considerada como das mais nefastas para a saúde dos consumidores – heroína – e, por isso, considerada como uma droga “dura”) e a quantidade de produto estupefaciente apreendido;

Ainda há que ter em conta o facto de o arguido AA utilizar o seu filho menor (com 14 anos de idade) como intermediário nos contactos com a sua ex-companheira GG e sempre que esta precisava de comprar heroína ao arguido AA, telefonava para o telemóvel do seu filho e dizia-lhe para pedir ao pai (arguido AA) que fosse ter com ela e lhe levasse mais heroína, transmitindo o menor tal pedido ao arguido e dando logo de seguida a resposta à sua mãe.

Por outro lado, resulta do teor das escutas telefónicas que algumas entregas eram feitas com o menor presente.

Ou seja, o desvalor da ação do arguido é muito considerável, na medida em que usou um menor de idade (seu filho) para o exercício de uma atividade ilícita de venda de estupefacientes. Ou seja, o arguido expôs uma menor de 14 anos de idade (seu filho) a perigos, colocando-o dessa forma em risco, não o tendo resguardado da atividade a que se dedicava, antes o expondo a inúmeros perigos sem qualquer justificação;

(…) ainda que pela prática de crime diverso (…) o arguido tem já averbado no seu CRC quatro condenações;

- A postura do arguido assumida em Tribunal, em que admitiu a venda de heroína a terceiras pessoas (não confessando o período temporal em que se dedicou a tal atividade, nem a frequência com que vendia a cada um dos consumidores), tendo desta forma contribuído para o esclarecimento do concreto contexto em que agiu (embora a sua confissão tenha assumido pouco relevo probatório em face de todos os elementos de prova existentes nos autos – depoimento das testemunhas, vigilâncias e escutas telefónicas);

- A dependência tóxica de que o arguido padecia e que, ao que tudo indica, esta problemática aditiva cessou, pois o arguido encontra-se abstinente desde que foi preso estando a ser acompanhado pelo CRI de ….;

- As condições pessoais do arguido e a sua situação económica - resultaram assentes com base no relatório social supra referido, o que se dá aqui por integralmente reproduzido - de onde ressalta que o arguido apesar de ter consciência da atual situação jurídico-penal, tende a adotar atitudes de minimização perante práticas similares às que lhe são imputadas. Tem tendência para atribuir a causas externas alguns dos comportamentos socialmente reprováveis, designadamente os consumos aditivos e o convívio com grupo de pares com as mesmas características.

Pelo exposto, entende-se que, relativamente ao arguido AA as exigências de prevenção geral são elevadas e as exigências de prevenção especial são muito elevadas.

iii. finalidades da pena:

Estabelecida a moldura penal, o primeiro e decisivo fator a considerar no procedimento de determinação da medida concreta da pena é o que decorre das finalidades da punição, firmadas pelo legislador no art. 40.º do Código Penal, e que são: a proteção do bem jurídico violado e a ressocialização do agente (n.º 1); e tem como limite inultrapassável “a medida da culpa” –n.º 2.

No Código Penal de 1982 não existia uma norma que direta e autonomamente estatui-se sobre as “finalidades das penas”. Via-se então, resumidamente, “a culpa como fundamento da pena”. Na introdução ao referido Código Penal, ao mesmo tempo que se refutava a doutrina que conferia “uma maior tónica à prevenção geral” porque, afinal, acabava aceitando “inequivocamente a culpa como limite de pena”, afirmava-se que “um dos princípios basilares do diploma reside na compreensão de que toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta.”

Paradigma que o legislador do Código Penal de 1995 inverteu. Agora, “a encimar o acervo de finalidades das penas que enuncia, coloca o artigo 40.º a proteção de bens jurídicos”. Norma que o Presidente[10] da Comissão Revisora qualificou como paradigmática e que, segundo o então deputado Costa Andrade, é marcante, “só ele a valer como um programa de política criminal”.

Ao princípio da vinculação à defesa de bens jurídicos aqui consagrado, subjaz “a ideia de limitar o poder punitivo do Estado, na linha, também, do n.°2 do artigo 12.º da Constituição, segundo o qual as restrições a direitos, liberdades e garantias se limitarão «ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».

A Assembleia da República autorizou – Lei de autorização legislativa n.º 35/94 de 15 de setembro -,o Governo a alterar o Código Penal de 1982 de modo a, além do mais, “introduzir como finalidades da aplicação das penas e medidas de segurança a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, bem como estabelecer, quanto à medida de segurança, a proporcionalidade à gravidade do facto e subordinar a sua aplicação à perigosidade do agente; e, quanto à pena, consagrar o critério de que, em caso algum, pode ultrapassar a medida da culpa”.

Cumprindo esta incumbência, o legislador, na exposição de motivos do DL n.º 48/95 de 15 de março, plasmou, clara e  inequivocamente aquela solução, nos seguintes termos: «Necessidade, proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável à violação de um bem jurídico fundamental.
De destacar, a este propósito, a inovação constante do artigo 40.º ao consagrar que a finalidade a prosseguir com as penas e medidas de segurança é "a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade".

Sem pretender invadir um domínio que à doutrina pertence - a questão dogmática do fim das penas -, não prescinde o legislador de oferecer aos tribunais critérios seguros e objetivos de individualização da pena, quer na escolha, quer na dosimetria, sempre no pressuposto irrenunciável, de matriz constitucional, de que em caso algum a pena pode ultrapassar a culpa».

Como bem sintetiza a jurisprudência deste Supremo Tribunal: “Está subjacente ao artigo 40.º uma conceção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa[11].

Não há, pois, razões plausíveis para discordar que no vigente regime penal, a função primordial do direito penal é a de tutelar os bens jurídicos tipificados, de modo a assegurar a paz jurídica dos cidadãos.

Em consonância, “as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução do problema da medida da pena[12].

Deste modo, o parâmetro primordial do «modelo» de determinação da pena judicial é primariamente fornecido pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos violados estabelecendo, in concreto, o limiar mínimo abaixo do qual se perde aquela função tutelar ou, noutra expressão, não satisfaz a necessidade de reafirmação estabilizadora das normas, isto é, a pena aplicada não alcança a necessária, suficiente e adequada “prevenção geral positiva ou prevenção de integração[13]”.

Sendo que “à proteção jurídico-penal há-de reportar-se àquilo que se entenda relevante para a subsistência da comunidade ou, dito por outras palavras, há-de reconhecer a natureza social do bem jurídico. Ele tem indefetível conexão com a ideia de que nada é tão desvalioso como praticar «lesões insuportáveis das condições comunitárias essenciais de livre realização e desenvolvimento da personalidade de cada homem»[14].

Parâmetro co-determinante do modelo de determinação da medida da pena judicial é também a culpa na execução do facto[15], estabelecendo o “teto” ou limiar máximo acima do qual a pena aplicada é excessiva, subalternizando à «paz» comunitária a dignidade humana do agente. À culpa comete-se agora uma “função politico-criminal de garantia dos cidadãos e não mais do que isso. Entende-se que a pena não pode exorbitar a culpa, do mesmo passo que não pode privar-se dela, como seu pressuposto”. Ou, nas sapientes palavras de Costa Andrade: “por último, o terceiro axioma diz-nos que a culpa deve persistir como pressuposto irrenunciável e como limite intransponível da pena. A culpa não deve dar a medida da pena. A pena pode ficar aquém da culpa, o que não pode é ultrapassá-la, até porque esta, (…) constitui um «axioma antropológico» da ordem jurídico-constitucional portuguesa. Tem de valer como limite, como barreira à instrumentalização do homem, em nome de fins próprios da sociedade. Como garantia de que a racionalidade instrumental, de que falava Max Weber, não vai dominar, absorver e sacrificar inteiramente a racionalidade de valores de uma sociedade democrática.

Por respeito à exigência da culpa, o Código e o legislador penal português faz eco daquela sábia advertência de Schiller, que já dizia ao príncipe: «Desconfiai, nobre senhor, nem tudo aquilo que é útil ao Estado é necessariamente justo». É o limite da culpa que garante que a prossecução de tarefas e de metas legítimas, através do instrumento de conformação social que é o Direito Penal, se faça com respeito pelas exigências inultrapassáveis da justiça”. 

Entre aquele limiar mínimo e este limiar máximo, o modelo de determinação da medida da pena completa-se com a finalidade de reintegração do agente na sociedade, ou finalidade de prevenção especial de socialização.

iv. outros fatores

O modelo é já muito, mas é também apenas isso mesmo, um modelo que define as linhas mestras ou parâmetros nos quais devem atuar as “circunstâncias do complexo integral do facto que relevam para a culpa e a prevenção”.

Por isso, o Código Penal, no art. 71.º estabelece[16]: “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” (nº 1), atendendo o tribunal “a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando” as circunstâncias que enuncia, exemplificativamente, nas alíneas do n.º 2, e que se reportam resumidamente ao facto ou ao agente (à culpa ou à prevenção), às quais a doutrina adiciona outros fatores, designadamente relativos à vitima.

Desde logo proíbe, nesta sede, a valoração de quaisquer circunstâncias que façam parte do tipo de crime cometido pelo agente (proibição da dupla valoração). O que “não obsta a que a medida da pena seja elevada ou baixada em função da intensidade ou dos efeitos do preenchimento de um elemento do tipo”[17].

Fatores enunciados no art. 71.º n.º 2 que, grosso modo, podem respeitar ao facto ou ao agente, designadamente:

-à execução do concreto facto cometido pelo agente, agrupando circunstâncias que caracterizam a gravidade da violação jurídico-penal cometida, que servem para caracterizar a medida da censurabilidade, e (quando for o caso) o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

-à personalidade do agente revelada no facto, agrupando as condições pessoais, sociais e económicas, a sensibilidade à pena e à influência que esta pode exercer, as qualidades da personalidade comparadas com as do «homem fiel ao direito».

-à conduta anterior e posterior ao facto, agrupando a história vivencial e criminal do agente e o comportamento posterior empreendido no sentido de assumir as consequências do crime cometido e, estando ao seu alcance, contribuir para que os comparticipantes não restem impunes e a “governar-se” com o proventos ilícitos assim obtidos.

A jurisprudência deste Supremo Tribunal sustenta que “para o efeito de determinação da medida concreta ou fixação do quantum da pena que vai constar da decisão o juiz serve-se do critério global contido no referido artigo 71.º do Código Penal (…), estando vinculado aos módulos-critérios de escolha da pena constantes do preceito.

Sustenta também que tais critérios e circunstâncias “devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente”[18].

Por outro lado, “a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da adequação e proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido, de forma uniforme e reiterada, que «no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos fatores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de fatores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efetuada»”.

No mesmo sentido conclui Souto de Moura[19]: “sempre que o procedimento adotado se tenha mostrado correto, se tenham eleito os fatores que se deviam ter em conta para quantificar a pena, a ponderação do grau de culpa que o arguido pode suportar tenha sido feita, e a apreciação das necessidades de prevenção reclamadas pelo caso não mereçam reparos, sempre que nada disto seja objeto de crítica, então o “quantum” concreto de pena já escolhido deve manter-se intocado”.

O que bem se compreende, porque a fixação do quantum da pena concreta aplicada em cada caso não é uma operação aritmética em que os fatores a ponderar possam assumir um coeficiente numérico ou uma valoração tabelada.

Finalmente e como se faz notar na exposição de motivos do DL n.º 15/93 de 22/01, “a gradação das penas aplicáveis ao tráfico tendo em conta a real perigosidade das respetivas drogas afigura-se ser a posição mais compatível com a ideia de proporcionalidade”. Não sendo minimizáveis nesse âmbito também “considerandos de natureza sócio-cultural”.

v. no caso:

O crime de tráfico de estupefacientes, cometido pelo recorrente “é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos”.

No acórdão recorrido está condenado na pena de 6 anos de prisão.

O crime de tráfico é um tipo de ilícito em que se fazem sentir prementes necessidades de proteção dos bens jurídicos tutelados (genericamente a saúde pública e o bem-estar dos cidadãos e reflexamente a economia legal).

O sentimento jurídico expressado pela comunidade nacional – na lei -, comunitária – Decisão-Quadro 2004/757 -, e universal – Convenções -, apela ao combate incessante e sem tréguas do tráfico de estupefacientes, pela sua elevada frequência, por corromper, por vezes irreparavelmente, a saúde mental e física dos consumidores, degradar a dignidade humana destes, destruir a vivência socialmente útil dos dependentes, arruinar o sossego e harmonia das respetivas famílias, e muitas vezes, também o património, e por fomentar fortemente a criminalidade associada (furto, roubo, recetação, burla, lenocínio, etc.) e também uma economia “subterrânea”, que escapa ao sistema normativo e que tende a introduzir-se neste pela porta das traseiras, isto é, através do “branqueamento” das vantagens ilicitamente obtidas.

Extrai-se das estatísticas divulgadas sobre as fenomenologias que em cada momento produz o maior número de reclusos nos estabelecimentos prisionais que o tráfico de estupefacientes é dos domínios em que a previsão abstrata da punição tem menor efeito dissuasor. Em idêntico sentido parecem apontar as estatísticas sobre reincidência.

Referiu-se já que é um desígnio europeu universal impedir e nacional reprimir a atividade dos traficantes de droga, punindo-os com penas que, ao mesmo tempo, “deverão ser efetivas, proporcionadas e dissuasivas”.

Enunciou-se já que, encontrada a moldura legal –quase sempre de grande amplitude -, a dosimetria da pena judicial, primária e necessariamente balizada pelas finalidades que o legislador lhe atribui, é parametrizada pela atuação conjugada de fatores atinentes ao facto, ou seja, ao centeúdo da ilicitude (grau de ilicitude, modo de execução, gravidade do resultado, grau de violação dos deveres) e ao agente, ou seja, ao conteúdo da culpa (modalidade da censura, antecedentes, condições pessoais, finalidade, sentimentos, postura perante o acontecimento e personalidade sócio-comunitária que neste se revela).

No acórdão recorrido, o tribunal ponderou outra vez parte substancial dos mesmos fatores que motivaram, justamente, a exclusão da ilicitude consideravelmente diminuída do tráfico cometido pelo arguido e que sumariamente consistem: na traficância de heroína, o longo período temporal por que manteve a atividade delituosa; e ter utilizado o seu filho menor como intermediário e dele se fazer acompanhar em algumas entregas.

Deste modo e nesta parte valorou duplamente as mesmas circunstâncias, o que não é legalmente permitido.

Ensina J. Figueiredo Dias que na “sua mais simples formulação, o princípio tem urna justificação quase evidente: não devem ser utilizadas pelo juiz para determinação da medida da pena circunstâncias que o legislador já tomou em consideração ao estabelecer a moldura penal do facto; e portanto não apenas os elementos do tipo-de-ilícito em sentido estrito, mas todos os elementos que tenham sido relevantes para a determinação legal da pena. Desta perspetiva se toma claro que o princípio da proibição de dupla valoração surge só, na sua forma de aparecimento imediata, como urna consequência necessária do sistema”.

Exemplificando, adverte que não será licito elevar a medida da pena com o argumento de que, em geral, “nada terá havido no caso que sirva para (…) diminuir o grau da ilicitude ou da culpa[20].

Sumariamente, o aludido princípio da proibição da dupla valoração proíbe que o juiz, na determinação da medida da pena concreta, considere circunstâncias de que o legislador se serviu para estabelecer a moldura penal do crime cometido pelo agente, seja ele simples, qualificado, agravado ou privilegiado[21].

Consequentemente o grau de ilicitude do tráfico cometido pelo arguido tem de ajustar-se por outros fatores atinentes aos factos de entre os quais aqui se considera com relevo o acordo de repartição “do mercado” que celebrou com o arguido DD de modo a não concorrerem entre si: está assente que o recorrente ficou com o “negócio” da heroína e o arguido DD a “clientela” do haxixe.

Concomitantemente, o recorrente tinha já uma “carteira” com 15 compradores de heroína (um deles através de troca de estupefacientes), que numa localidade da dimensão de …, tem já alguma expressão. A alguns dos quais vendia diariamente e a outros várias vezes por semana.

O valor monetário apreendido - €1.025,00 (mil e vinte e cinco) –embora não elevado, é compatível com vendas de alguma dimensão. O que é corroborado pelas notas que o compõem – com enfase nas 39 notas de €10 e as 27 notas de €20 -, (correspondendo à venda de cerca de 70 panfletos), conjugadas com o preço por que vendia cada panfleto -€10.

O tráfico é fortemente censurado pela comunidade, sobretudo pelas razões já acima apontadas, mas também por propiciar fáceis lucros ilícitos, permitindo um modo de vida à margem do sistema produtivo, como sucedia com o arguido.

Ao nível do conteúdo da culpa, resulta dos factos provados que tinha consciência plena da ilicitude e da forte censurabilidade desta sua conduta, tendo agido com dolo direto e intenso.

A sua atividade delituosa foi comandada pela intenção de obter lucros ilícitos suficientes para viver sem trabalhar, indiferente às consequências que adviessem para a saúde dos consumidores.

Ao nível da prevenção especial de ressocialização, do CRC do recorrente constam quatro condenações, duas por crimes de direito rodoviário em penas de multa e as outras duas por crimes de burla e de falsificação de documento estas em pena de prisão com execução suspensa condicionada à reparação dos lesados.

Do relatório social extrai-se ter adotado atitudes de minimização perante práticas similares às que lhe são imputadas”. Manifestando “tendência para atribuir a causas externas alguns dos comportamentos socialmente reprováveis, designadamente os consumos aditivos e o convívio com grupo de pares com as mesmas características”.

Extrai-se também que consumia estupefacientes desde há cerca de 20 anos e até que foi preso preventivamente. Submeteu-se a tratamentos sem que tenha logrado êxito.

Em seu favor considera-se a confissão da quase totalidade dos factos.  Ser a primeira vez que está no meio prisional. Com o tráfico exercido visar, ademais de subsistir sem qualquer atividade laboral ou profissional estruturada, prover às despesas inerentes aos seus consumos.

E com peso significativo pondera-se a pequena quantidade de estupefacientes que lhe foi encontrada e apreendida, ainda que já acondicionada em panfletos, prontos para entrega imediata aos compradores. O numerário apreendido, produto da venda de heroína comprova ter vendido em data imediatamente anterior à detenção muitos mais panfletos, na ordem das dezenas ou até próximo da centena. Mas ainda assim, a quantidade de heroína comprada de uma só vez, e vendida durante uma semana não ultrapassaria a ordem das centenas de gramas de heroína.

Assim, atentas as finalidades da pena e o funcionamento dos fatores atinentes à ilicitude e à culpa que se enunciaram, conclui-se que, naturalmente dentro da moldura do crime de tráfico de estupefacientes cometido pelo arguido – 4 a 12 anos de prisão -, a pena minimamente persuasiva e proporcionada deve situar ligeiramente acima do respetivo mínimo. Que não pode fixar-se, de modo nenhum, em medida igual à reclamada pelo recorrente – 4 anos de prisão -, resulta evidenciado pela sintomática circunstância de o pedido respetivo se escorar no privilegiamento da sua atividade com a subsunção ao crime de tráfico de menor gravidade, que tem uma moldura penal muito inferior - de 1 a 5 anos de prisão. Se ante a visada alteração da qualificação jurídica para o tráfico de menor gravidade a pena judicial, segundo o próprio recorrente, deveria ser aquela, lógica e racionalmente, não pode fixar-se em igual medida, quando em causa está, como sucede aqui, o crime de tráfico p. e p. pelo art.º 21º do DL n.º 15/93.

Neste circunstancialismo concreto, a pena minimamente suficiente à reafirmação da validade e da necessidade proteção dos bens jurídicos violados, proporcional à grau e medida da censurabilidade da persistente e intensa conduta criminosa do arguido, e também adequada a satisfazer as prementes necessidades de ressocialização que no caso se fazem sentir, deve fixar-se em 5 anos de prisão.

Consequentemente, decide-se corrigir ligeiramente a pena imposta ao recorrente no acórdão recorrido, reduzindo-a e fixando-se em 5 anos de prisão efetiva.

Consequentemente, procede, em parte, a pretensão do recorrente de ver reduzida a medida da pena de prisão aplicada.

e) da pena suspensa:

O recorrente, pugna também por que a pena de prisão aplicada seja “suspensa na sua execução sob vigilância médica”.

Fixada a pena em 5 anos de prisão, resulta preenchido o pressuposto formal estabelecido no art. 50º n.º 1 do Código Penal para que o Tribunal deva equacionar a substituição pela pena suspensa.

Impõe-se, por isso, averiguar se está preenchido o pressuposto material, isto é, averiguar se o tribunal pode prognosticar que a pena de substituição é adequada e suficiente para prevenir a reincidência.

A norma citada dispõe: “1- O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

A finalidade politico-criminal da suspensão da execução da pena de prisão é, essencialmente, a prevenção da reincidência.

Pressuposto material é então que o tribunal, apoiado nos factos, nas circunstâncias do seu cometimento, na personalidade do agente, neles revelada, nas suas condições de vida, na sua história criminal, na postura perante os crimes cometidos e o resultado destes e ainda no comportamento adotado posteriormente, possa prever, fundamentadamente, que a condenação e a ameaça de execução da pena de prisão, são suficientes para que o arguido adeque a sua conduta de modo a respeitar o direito.

Entende J. Figueiredo Dias que “na formulação do aludido prognóstico, o tribunal reporta-se ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto”. “Como positivamente a podem influenciar circunstâncias posteriores ao facto, ainda mesmo quando elas tenham sido já tomadas em consideração em sede de medida da pena”.

Adverte que “apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável –à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização -, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime». Já determinamos que estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita – mas também por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise”.

Este insigne Prof. rejeita que a suspensão deva decretar-se em caso de dúvida sobre o carácter favorável da prognose, ou logo que não haja razões para crer que as hipóteses de socialização serão maiores se a privação da liberdade for executada[22].

Resulta dos factos provados que o recorrente tem um percurso de vida pouco estável, pautado por dificuldades de adaptação à aquisição de competências educativas, abandonando o ensino sem concluir o 9 ano e fraco investimento na formação profissional. Sem conseguir “manter atividade profissional de forma continuada e estruturada, (…), por vezes, recorria ao Rendimento Social de Inserção para assegurar a sua subsistência”.

Pautado ainda por uma prolongada – “com cerca de 20 anos, inicialmente apenas de haxixe, passando depois a consumir heroína” -, e persistente adição aos estupefacientes, com recidivas subsequentes aos tratamentos a que, por duas vezes, se submeteu De tal modo que “devido à problemática aditiva do arguido e da ex-companheira, há cerca de 2 anos, o filho foi entregue aos cuidados da avó paterna por decisão judicial”. Em período anterior à detenção esteve inserido num programa de metadona, no CAT de … .

Sem emprego ou ocupação profissional permanente, vivia em espaço habitacional cedido pela mão e esporadicamente fazia algum biscate.

Sem rotinas ou atividades estruturadas convivia “com grupo de pares, com características delinquentes”.

Já no estabelecimento prisional “frequentou dois cursos financiados, um de construção civil, outro de técnicas de vendas, cursos que tem associado uma vertente psicossocial”.

Apresentando alguma instabilidade emocional, tem acompanhamento psicológico e psiquiátrico e faz medicação com ansiolíticos.

Assinalou-se já que “tende a adotar atitudes de minimização perante práticas similares às que lhe são imputadas”. Atribuindo “a causas externas alguns dos comportamentos socialmente reprováveis, designadamente os consumos aditivos e o convívio com grupo de pares com as mesmas características”.

Dos factos provados extrai-se que o recorrente não apresenta agentes de proteção sólidos que permitam fazer face aos fatores de risco de replicação da mesma atividade criminosa, uma vez restituído ao mesmo meio social e geográfico, onde a oferta e a procura subsistem e, também porque o arguido se apresenta resignado a viver num contexto sem qualquer perspetiva laboral ou profissionalmente estruturada e permanente, não procurando alternativas que lhe possibilitem minimizar a exposição ao apelo exercido por atividades parasitárias que confiram proventos fáceis e imediatos.

A privação da liberdade do recorrente não interrompeu qualquer relação profissional, porque nenhuma tinha, nem quebrou por completo as suas relações familiares porquanto é regularmente visitado pelos membros da sua família.

Também as anteriores condenações e, particularmente as duas em pena suspensa, com a imposição e o cumprimento de medida judicial de cariz probatório, não se revelaram suficientes para o afastar do cometimento do crime em causa e, consequentemente, para prevenir a reiteração criminosa o que reforça a ausência de responsabilidade e do impacto dissuasor daquela espécie de pena.

A manifesta incapacidade de manter-se abstinente, mesmo após e até ao mesmo tempo que efetuava tratamentos, sem qualquer ocupação laboral, mantendo um estilo de vida ocioso facilitador do convívio com pares que adotam uma forma de estar congénere, reforça o risco de manter os mesmos hábitos desviantes no seu quotidiano, nomeadamente a aquisição, venda e o consumo de substâncias aditivas.

Identificam-se assim na situação do arguido fatores sérios de risco na reiteração da mesma atividade ou na reincidência no mesmo tipo de crime.

Não reúne, pois, condições para cumprir a pena de prisão aplicada em liberdade, mesmo que condicionada a regras de conduta ou deveres.

Por outro lado, as necessidades de prevenção geral inerentes ao flagelo que representa o tráfico de estupefacientes, se não se opõem de todo, desaconselham vivamente que no crime de tráfico fundamental se aplique pena de substituição e, designadamente, a pena suspensa. O direito penal universal nesta matéria, igualmente o direito penal europeu e, para o que aqui releva, também o direito penal interno qualifica o tráfico de estupefacientes como criminalidade altamente organizada, ao mesmo nível do terrorismo, do tráfico de pessoas, do tráfico de armas, da associação criminosa, do branqueamento de capitais e da corrupção.

Ou seja, trata-se de fenomenologia criminal grave a que o legislador quer – e deixou testemunho firmado – dar um tratamento diferenciado da pequena e média criminalidade. Enquanto nesta devem privilegiar-se soluções de dissuasão, na criminalidade mais grave devem, inversamente, viabilizar-se soluções que passem pelo reconhecimento e clarificação do conflito. Na exposição de motivos do Código Penal as penas de substituição são apresentadas como “regimes aptos a dar adequada resposta a problemas específicos de certas zonas da delinquência” e não também assim para todas as fenomenologias criminosas.

Em consonância com o exposto, não pode este Tribunal formular um juízo de prognose no sentido de que a condenação e a ameaça de execução da pena de prisão, são suficientes para prevenir a reincidência do arguido.

Assim, por infundada, improcede esta pretensão do recorrente.

IV. DECISÃO

Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça -3ª secção criminal-, decide:

a) Julgar parcialmente procedente o recurso do arguido AA, condenando-o na pena de 5 anos de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes e outras atividades ilícitas de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de janeiro;

b) Confirmar, em tudo o mais, o acórdão recorrido;


Sem custas – art.º 513º n.º 1 do CPP.


Supremo Tribunal de Justiça, 5 de fevereiro de 2020.


Nuno Gonçalves (relator)

Paulo Ferreira da Cunha (adjunto)

______

[1] G. Marques da Silva, Curso de Processo Penal III, Editorial Verbo, pag 351.
[2] O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem firmada a seguinte jurisprudência - vd. AFFAIRE MERABISHVILI c. GÉORGIE. (Requête no 72508/13), Grande Chambre, Arret du 28 novembre 2017):
183. Para ser compatível com essa disposição, uma prisão ou detenção deve atender a três condições. 
184. Primeiro, deve basear-se em uma "suspeita razoável" de que a pessoa em causa cometeu um crime, o que pressupõe a existência de factos ou informações que satisfariam um observador objetivo de que a pessoa em causa possa ter cometido um crime. O que é “razoável” dependerá das circunstâncias, mas os factos que fundamentam a suspeita não são do mesmo nível que os necessários para justificar uma condenação, ou mesmo a dedução de uma acusação (…).
185. Em segundo lugar, o objetivo da prisão ou detenção deve ser levar a pessoa em causa a uma "autoridade legal competente" - um ponto a ser considerado independentemente de se esse objetivo foi alcançado (…).
186 . Em terceiro lugar, uma prisão ou detenção de acordo com o subparágrafo (c) deve, como qualquer privação de liberdade prevista no artigo 5, § 1, da Convenção, ser "lícita" e "de acordo com um procedimento prescrito por lei. (,,,)”.
[3] Para as fases preliminares – inquérito e instrução -, rege o disposto no art.º 151º do CPP.
[4] Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, Coimbra Editora, pag. 881/882.
[5] Artigo 3º n.º 4 al.ª a)  “As Partes tornam a prática de qualquer das infrações estabelecidas de acordo com o n.º 1 deste artigo passível de sanções proporcionais à sua gravidade, tais como pena de prisão ou outras penas
privativas de liberdade, multa e perda de bens”
[6] Direito Penal, As consequências Juridicas do Crime, pag. 199/200.
[7] Ac. STJ de 2-10-2019, proc. 2/18.0GABJA.S1, www.dgsi.pt.
[8] Ibidem.
[9] Proc.  411/14.4PFVNG.P1.S1, in www.dgsi.pt
[10] J. Figueiredo Dias.
[11] Ac. STJ de 18/02/2016, proc. n.º 118/08.1GBAND.P1.S2, www.dgsi.pt/jstj.
[12] J. Figueiredo Dias, Direito, Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Noticias Editorial, pag. 227.
[13] “isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida” – J. Figueiredo Dias, ob. citada, pag. 72/73.
[14] Relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.
[15] A censura ético-pessoal por ter violado bens jurídicos tutelados.
[16] Que manteve os postulados da versão equivalente do Código Penal de 1982 de 1982
[17] J. Figueiredo Dias, ob. citada, pag. 235.
[18] Ac. STJ de 18/02/2016, proc. n.º 118/08.1GBAND.P1.S2, in www.dgsi.pt/jstj.
[19] A Jurisprudência do S.T.J. Sobre Fundamentação e Critério da Escolha e Medida da Pena, pag. 6.
[20] Consequências Jurídicas, cit. pag. 234/235.
[21] Ac. STJ de 27/11/2019, proc. 1257/18.6SFLSB.S1
[22] Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pag. 344.