Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2759/10.8TBGDM.P1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ALVES VELHO
Descritores: CHEQUE
CHEQUE SEM PROVISÃO
REVOGAÇÃO
RESPONSABILIDADE BANCÁRIA
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
Data do Acordão: 10/14/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES/RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL/RESPONSABILIDADE BANCÁRIA
Doutrina:
Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, I, 9.ª Edição, pp. 925;
Rui Alarcão, “Obrigações – Lições, 1983”, pp. 283.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º 1, 483.º, 562.º, 563.º
LUCH: ARTIGO 32.º
Jurisprudência Nacional:
- ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, DE 2-2-2010 (PROC. N.º 1614/05.8TJNF.S2);
- ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, DE 21-3-2013 (PROC. N.º 685/10.0TVPRT.P1.S1);
- ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, DE 14-1-2014 (PROC. N.º 64/10.9TVPRT.P1.S1);
- ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, DE 18-12-2012 (PROC. N.º 5445/09.8TBLRA.C1.S1);
- ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 4/2008, DE 28-02-2008, EM WWW.DGSI.PT
Sumário :
O portador dum cheque não pago pelo banco que aceita um pedido injustificado de revogação, no decurso do prazo legal de pagamento, e reclama indemnização pelo valor desse cheque, fundada em responsabilidade civil, tem de demonstrar o efectivo prejuízo patrimonial (dano) e o nexo de causalidade entre o acto ilícito da revogação, o que pressupõe a alegação e prova de que não fora a revogação e a devolução ilegítima do cheque apresentado a pagamento dentro do prazo legal, o cheque seria ou poderia vir a ser descontado pelo banco sacado.

Se o sacador do cheque não tinha provisão na sua conta bancária e, por isso, o banco estava desobrigado de descontar os cheques não é detectável qualquer prejuízo económico a determinar pela diferença entre a situação em que ficou o portador em consequência do facto ilícito (inviabilização do direito cartular) e aquela em que o mesmo portador se encontraria se o mesmo facto ilícito não tivesse ocorrido.

Apenas quando na conta sacada existam fundos que permitam ao banco descontar o título a ilegítima execução de uma ordem de revogação é susceptível de constituir causa do dano para efeito de preenchimento do pressuposto da obrigação de indemnizar, apresentando-se, fora dessa situação, a conduta ilícita como indiferente, pois que não poderá concluir-se que provavelmente o cheque seria descontado se o banco não tivesse praticado o ilícito.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

 1. - “AA, Lda.”., intentou acção declarativa contra “Banco BB, S.A.”, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 33.520,14€, acrescida da quantia de 48.000,00€ na eventualidade da letra identificada infra não ser paga na data de vencimento pelo seu aceitante ao seu titular, a que acrescem juros de mora à taxa legal desde a data da instauração da acção e sobre a quantia de 24.059,60€, bem como os juros contados desde a data de vencimento da letra supra referida, tudo até efectivo e integral pagamento.

Para tanto, alegou:

- a sociedade comercial “CC, Lda.” assinou e entregou à A. quatro cheques datados de 15, 17, 18 e 21 de Abril de 2008 e sacados sobre conta do banco Réu titulada em nome da referida sociedade, para pagamento de fornecimentos a esta efectuados pela A.;

- apresentados tempestivamente à cobrança, vieram os mesmos devolvidos à A. como não pagos em 17,18, 21 e 22 de Abril de 2008, com a indicação “Chq. Revog. Por justa causa: falta/vício” aposta no verso dos cheques;

- o não pagamento dos cheques ocorreu sem qualquer causa justificativa, sem fundamento para a ordem de revogação que a sacadora deu ao banco R. durante o prazo de apresentação a pagamento dos cheques, a implicar que o banco R. responda pelas perdas e danos sofridos pela Requerente;

- a “CC” efectuou pagamentos parciais em Maio de 2008 (€ 17.375,64) e Agosto de 2009 (€ 61.000,00) por conta do valor em dívida. E em Maio de 2010 endossou à A. uma letra de câmbio no valor de € 48.000,00 aceite de outra sociedade;

apresentada tal letra a desconto, a A. assumiu despesas bancárias no valor de € 4.383,30 tendo recebido o valor de € 43.616,70;

- nada mais tendo sido pago por conta dos cheques em questão, é a A. credora do valor de € 24.059,60, acrescido do valor de € 29,04 referente a despesas de devolução de cheques e do valor de € 9.431,50 a título de juros moratórios;

- caso a letra supra referida não venha a ser paga pelo aceitante na data do seu vencimento, a A. terá de pagar o seu valor, enquanto descontária, ao Banco “DD”, acrescendo então ao crédito da A. o seu valor - € 48.000,00, elevando o crédito da A. para € 81.520,14.

A Ré contestou para concluir pela sua absolvição do pedido:

Articulou, em síntese, ao que ainda releva, que agiu no cumprimento de uma ordem de revogação do cheque por justa causa e com fundamento em falta ou vício na formação da vontade dos cheques em causa nos autos (entre outros) a si comunicada pelo sacador, ordem esta que o vinculava, por virtude das obrigações contratuais assumidas perante o sacador, decorrentes nomeadamente da convenção de cheque, sendo que, de resto, a conta sacada não dispunha de fundos disponíveis na data de apresentação a pagamento dos cheques, pelo que e se não tivessem sido revogados, não teriam sido pagos.

Foi proferida a sentença em que que, julgando-se parcialmente procedente a acção, se decidiu:

I- Condena-se o banco R. a indemnizar a A. no valor de € 28.486,46, acrescido de juros de mora à taxa legal desde a citação e até integral e efectivo pagamento.

II- Ao valor referido em I acrescerá o valor de € 43.616,70 referido em 7) dos factos provados, no caso de tal valor vir a ser exigido à A. pelo actual portador da letra, face ao não pagamento do aceitante do título descontado. A este valor acrescendo então juros de mora à taxa legal, desde a data em que a A. interpelar o R. ao pagamento desta quantia e até integral pagamento da mesma.

III- Quanto ao mais, absolve-se o R. do pedido”.

 

A Ré “BBB, SA”, apelou desta decisão, com total êxito, pois que o Tribunal da Relação deliberou revogar a sentença e absolver a Ré do pedido.

         Agora é a Autora que pede revista.

         Para reclamar a revogação do acórdão e a reposição do decidido na 1ª Instância, argumenta nas conclusões da respectiva alegação:

“1 - De acordo com o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 4/2008, de 28/02, de 4/4/2008 "Uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no artigo 29.° da LUCH, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na primeira parte do artigo 32.° do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque, nos termos previstos nos artigos 14º, segunda parte, do Decreto n.º 13.004 e 483.°, n.º 1 do Código Civil".

2 – A jurisprudência supra é aplicável à situação dos autos, pois desde logo o fundamento do pedido indemnizatório está em consonância com aquele aresto.

3 - De acordo com o item n.º 3 dos factos provados foram entregues à Recorrente quatro cheques apresentados a pagamento dentro do prazo estabelecido no artigo 29.° da LUCH que vieram devolvidos com a menção  “Chq. Rev. Por Justa causa. falta/vício”, o que se deveu à aceitação pelo Recorrido BBB de comunicação da sacadora "CC" com os seguintes dizeres: "Revogo por justa causa com fundamento em falta ou vício na formação de vontade os cheque abaixo designados, sacados sobre a conta n.º … do Banco BB.'".

4 – Assim, é inequívoco que o BBB acatou a "ordem" do cliente sem cuidar de reparar que a "CC" não concretizou (minimamente) qual o vício ou quais as circunstâncias conducentes à falta ou vício na formação da vontade.

5 - Tal conduta do BBB é ilegítima, pois quando o sacador se limita a invocar puros conceitos de direito, não existe justificação concreta, séria e plausível para a revogação do cheque.

6 – Assim, deve o BBB responder pelas perdas e danos causados à Recorrente, pois mostram-se preenchidos todos os pressupostos referidos no artigo 483.° do CC.

7 - O facto corresponde à recusa de pagamento dos cheques apresentados a pagamento no prazo de oito dias a contar da data neles inscrita.

8 - A ilicitude corresponde à violação da norma legal (artigo 32.° da LUCH) que protege o interesse da Recorrente.

9 - A imputação do facto ao lesante corresponde à reprovação da actuação do BBB por lhe ser exigível que não tivesse aceite a ordem genérica de revogação comunicada pelo sacador.

10 - 11 - Relativamente aos pressupostos do dano e do nexo da causalidade, existem diversos entendimentos referidos no Ac. do STJ de 18/12/2012 (…), sendo de concluir pelo que segue a tese «A revogação ilícita do cheque constitui o banco na obrigação de pagar ao portador, a título de indemnização, o montante do cheque, ainda que, no momento da apresentação, a conta sacada não disponha de fundos para o pagamento do cheque» (…).

12 - O acórdão recorrido põe inclusivamente em crise o citado Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 4/2008, quando o mesmo refere que: "Podia dizer-se em contrário do supra exposto que não se verificaria o nexo causal entre o dano e o facto culposo se a conta sacada não se encontrasse provisionada quando os cheques foram apresentados a pagamento. Porém, a ser assim, o réu teria de recusar o seu pagamento com tal fundamento, uma vez que do contrato de cheque resulta apenas para o banco a obrigação de pagar cheques regularmente emitidos e desde que a conta se encontre provisionada. Mas (numa situação idêntica à dos autos), o banco ao aceitar ilicitamente a revogação dos cheques impediria que se verificasse o facto que implicava a obrigação de notificação do sacador para regularizar a situação dentro dos trinta dias referidos no artigo 1° do DL n.º 316/97 e comunicação ao Banco de Portugal, o que, na prática, impediria o portador de usar um meio de pressão sobre o devedor que a lei lhe confere... Aliás, a falta de provisão na data da apresentação a pagamento de cada um dos cheques não é equivalente à falta absoluta de provisão. Se o cheque apresentado a pagamento fosse recusado por falta de provisão, nada nos diz que o cheque não pudesse ser novamente apresentado a pagamento e obtivesse provisão.".

13 - Esta tese foi igualmente acolhida pelo STJ, entre outros, em acórdãos de 10/05/2012 (proc. n.º 272/08.2TVPRT.P3. S1), de 30/O5/2013 (proc. n.º 472/10.5TVPRT.P1.S1) e de 26/09/2013 (proc. n.º 1937/08.4TBOAZ.P3.S1).

14 - Acresce que “o facto de o cheque não ter provisão, mas ser recusado por revogação indevidamente, não exonera a responsabilidade do banco, por irrelevância negativa da causa virtual" (AC. STJ. de 2/02/2010) e demonstrada a conexão causal entre o evento danoso e a condição determinante do seu surgimento que é a devolução dos cheques com fundamento em falta ou vício da vontade, está também demonstrado o dano e o nexo casual entre este e a actuação ilícita do banco (Ac. STJ de 8/05/2013).

15 - A irrelevância negativa da causa virtual é afirmada maioritariamente pela doutrina e jurisprudência (…).

16 - Mas mesmo que se entenda pela admissibilidade da relevância negativa da causa virtual, dir-se-á que o Recorrido não fez qualquer prova dessa causa, pois não logrou demonstrar que a falta de provisão da conta sacada seria causa de recusa de pagamento dos cheques.

17 - De facto, apenas vem provado que a conta sacada não tinha provisão ao tempo das apresentações a pagamento dos cheques.

18 - Na verdade, a operacionalidade da causa virtual obriga à prova de que em face da inexistência de fundo o banco sacado não pagaria os cheques ao seu portador, o que manifestamente não foi demonstrado nos presentes autos.

19 - Termos em que o acórdão recorrido violou os artigos 32.° da LUCH, 8.°, n.ºs 1 e 3 do DL n.º 454/91, de 28/12. e 483.°, n.º 1, do CC.”.

         A Recorrida “Banco BB, SA” contra-alegou em apoio do julgado.

        

         2. - Como emerge do conteúdo das conclusões da alegação da Recorrente, a questão única cuja resolução vem proposta consiste em saber

         - se, por ter aceitado o pedido injustificado de revogação dos cheques efectuado pelo respectivo sacador, no decurso do prazo legal de pagamento, o Banco está obrigado a indemnizar a Recorrente, portadora desses cheques, ao abrigo do instituto da responsabilidade civil, apesar de a conta sobre a qual foram emitidos tais cheques não dispor de fundos que, ao tempo da respectiva apresentação, permitissem o seu pagamento.

         3. - Encontra-se definitivamente fixado o quadro factual que segue (transcreve-se).

1) A A. é uma sociedade comercial regularmente constituída, tendo por objeto social a receção e comércio de óleos minerais (cfr. doc. 1).

2) Foram sacados sob a conta com o n.º … do balcão de … do Porto da aqui Ré, de que é titular a sociedade comercial denominada CC – …, Lda., os seguintes cheques:

a) …, datado de 15/04/2008, no valor de € 34.751,28;

b) …, datado de 17/04/2008, no valor de € 35.606,55;

c) …, datado de 18/04/2008, no valor de € 40.051,25;

d) …, datado de 21/04/2008, no valor de € 35.642,86 (docs. 6 a 9 insertos nos autos a fls. 18 a 21).

3) Apresentados à cobrança no balcão de Gondomar do BEE, vieram os cheques referidos em 2) a ser devolvidos como não pagos à A. em 17/04/2008, 18/04/2008, 21/04/2008 e 22/04/2008, respetivamente, com a indicação “Motivo: Chq. Revog. Por justa causa. Falta/vício”, aposta no verso dos cheques.

4) A CC efetuou em 30/05/2008 um pagamento de € 17.375,64 à aqui A..

5) Em 10/08/2009 a CC efetuou um outro pagamento no valor de € 61.000,00 à aqui A..

6) Em Maio de 2010 a CC endossou à A. uma letra de câmbio, no valor de € 48.000,00, aceite de outra sociedade comercial.

7) Apresentada tal letra a desconto bancário, a A. assumiu despesas bancárias no valor de € 4.383,30, ao passo que lhe foi paga a quantia de € 43.616,70.

8) Aquando da abertura da conta referida em 2) a CC celebrou com o Banco R. a convenção de cheque, nos termos da qual este lhe foi entregando os impressos de cheque que por aquela foram solicitados como meio para a movimentação a débito da referida conta, entre os quais os referidos em 2).

9) No dia 14 de Abril de 2008 o Banco R. recebeu da CC o documento junto a fls. 123 dos autos, datado de 14/04/2008 nos termos do qual aquela comunicou a este “Revogo por justa causa com fundamento em falta ou vício na Formação de Vontade os cheques abaixo designados, sacados sobre a conta n.º … do Banco BB”, entre os quais os referidos em 2).

10) Foi no cumprimento da comunicação referida em 9) que o Banco Réu deu ordem de devolução dos cheques referidos em 2), nos mesmos apondo a informação referida em 3).

11) No exercício da atividade referida em 1) e a solicitação da sociedade comercial denominada “CC” a A. forneceu-lhe gasóleo rodoviário, gasolina s/ chumbo 95 e gasolina s/ chumbo 98, nas quantidades e ao preço constantes das faturas que se passam a identificar:

FACTURA DATA DE DATA DE VALOR DOC. EMISSÃO VENCIMENTO

723  11/03/2008  10/04/2008  € 34.751,28  2

724  11/03/2008  10/04/2008  € 35.606,55  3

725  12/03/2008  11/04/2008  € 40.051,25  4

727  18/03/2008  17/04/2008  € 35.642,86  5.

12) Para pagamento dos fornecimentos referidos em 11) a CC preencheu, assinou e entregou à A. os 4 cheques referidos em 2).

13) A CC sempre reconheceu dever à A. o valor referido em 12).

14) O pagamento referido em 4) foi efetuado por conta da fatura n.º ….

15) A A. suportou a quantia de € 43,56 em despesas de devolução de cheques.

16) A letra referida em 6) não está paga pelo seu aceitante.

17) Quando cada um dos ditos cheques foi apresentado a pagamento a conta sacada não dispunha de fundos disponíveis em montante necessário ao seu pagamento.

18) A Ré foi interpelada pela A. em 05/06/2009 ao pagamento da quantia de € 134.319,06, nos quais se incluíam € 29,04 de despesas de devolução de cheques.

         4. - Mérito do recurso.

         4. 1. - A questão enunciada, de eventual responsabilidade civil extracontratual do Banco Recorrido decorrente da aceitação de revogação dos cheques identificados na fundamentação de facto, no decurso do respectivo prazo legal de pagamento, não dispondo o sacador de provisão na conta sacada, não tem obtido, na jurisprudência, resposta unânime, como se dá conta no processo e abundantemente reflectem as alegações das Partes.

         No caso, não se suscita qualquer divergência nas decisões das Instâncias quanto à aplicabilidade das regras da responsabilidade civil, regulada nos arts. 483º e ss. do C. Civil, tal como se não questiona, de entre os respectivos pressupostos, concorrer uma conduta ilícita e culposa da Recorrida ao aceitar e dar seguimento, como deu, ao pedido de revogação dos cheques como fundamento da recusa de pagamento aposta nos títulos.

         Quanto a esses requisitos da responsabilidade e da obrigação de indemnizar foi indiscutivelmente acolhida a jurisprudência uniformizada pelo Acórdão n.º 4/2008, de 28/02/2008.

         Assim sendo, como efectivamente se mostra ser, resultaria desinteressante proceder à (re)apreciação da matéria constante das conclusões 1 a 9 , por isso que incide apenas sobre a verificação dos requisitos ilicitude e culpa da Ré-recorrida, já assentes.

        

         Também o constante da conclusão 12, quando se afirma que acórdão recorrido põe inclusivamente em crise o citado Acórdão de Fixação de Jurisprudência, transcrevendo um trecho do qual parece decorrer que se verificaria o nexo causal entre o dano e o facto culposo ainda que a conta sacada não se encontrasse provisionada quando os cheques foram apresentados a pagamento, carece de relevo para os fins pretendidos, desde logo, porque logo a seguir também se escreve no mesmo aresto que “não vem questionado e, por isso, há que acatar o que foi decidido na 1ª instância [estava-se perante um recurso per saltum] quanto à existência dos demais pressupostos de responsabilidade civil, valendo aqui, designadamente, os artigos 483, n.º1, 562º e 563º do Código Civil …Não vindo também questionado que o montante dos danos equivale ao valor dos cheques (…)”, isto é, não deixando dúvidas que o objecto do recurso e da uniformização se circunscrevia à questão da ilicitude da revogação (a esvaziar, assim, de conteúdo útil as declarações de voto na parte incidente sobre a questão do dano).     

           

         Deste modo, que a questão ora sob apreciação não colide nem contende com o que foi objecto do acórdão uniformizador é entendimento já acolhido, entre outros, nos acórdãos deste Supremo de 02/02/2010, 21/3/2013, de 14/01/2014 e de 18/12/2012 (procs. 1614/05.8TJNF.S2, 685/10.0 TVPRT.P1.S1, 64/10.9TVPRT.P1.S1 e 5445/09.8TBLRA.C1.S1), este último, de resto, da pena do Exmo. Relator do A.U. que nele escreveu: «Importa sublinhar que, no caso em apreço no acórdão uniformizador, ao contrário do que aqui acontece, apenas se controvertia a ilicitude, não se discutindo os demais pressupostos da responsabilidade civil.

Aqui estão, particularmente, em questão o nexo causal e o dano.

Não pode manifestamente partir-se do pressuposto da ilicitude para dar como provado os demais pressupostos da responsabilidade extracontratual».

         4. 2. - Assente, portanto, que a questão escapa à jurisprudência uniformizada pelo acórdão citado e que, movendo-nos no campo da responsabilidade civil por factos ilícitos e da obrigação de indemnizar que a tem como fonte, concorrem os requisitos ilicitude e culpa, resta saber se, como pretende a Recorrente, também se verifica o dano na necessária relação ou nexo de causalidade com o adquirido facto ilícito.

         No acórdão recorrido a indemnização surge negada à Recorrente com fundamento em que não ficou provado que esta tenha sofrido danos cuja causa adequada tenha sido a recusa de pagamento, sendo que, para que houvesse danos indemnizáveis era necessário que a A. tivesse alegado e provado que, apesar da ordem revogatória, o Banco sempre deveria pagar os cheques, o que não fez.

         Adoptou-se, ao assim decidir, a posição jurisprudencial segundo a qual, o portador do cheque tem de demonstrar o efectivo prejuízo patrimonial (dano) e o nexo de causalidade entre o acto ilícito da revogação, o que pressupõe a “alegação e prova de que não fora a revogação e a devolução ilegítima do cheque apresentado a pagamento dentro do prazo legal, o cheque seria ou poderia vir a ser descontado pelo banco sacado, uma vez que o dano não se presume” (ac. de 14/01/2014, cit., em que o ora relator interveio como 1ª adjunto).

         Outra corrente jurisprudencial – que terá vindo progressivamente a perder adeptos -, defende, como a Recorrente, no essencial e que aqui poderá relevar, que, tendo o banco, durante o prazo legal de pagamento do cheque, aceite ilegitimamente a ordem de revogação do sacador e com esse fundamento o tenha devolvido sem pagamento, fica sempre constituído na obrigação de indemnizar o beneficiário do título, mesmo que a conta sacada não disponha de fundos para satisfazer o pagamento.     

         Como resulta da menção que se atrás se deixou, o aqui relator subscreveu, bem recentemente, a primeira das teses genericamente convocadas, não encontrando razões atendíveis para dela se afastar.

         Subscreveu também, na mesma linha, o citado acórdão de 02/02/2010.

         De referir, nesta sede, que no também citado acórdão de Dezembro de 2012 intervieram, como Relator e 1º Adjunto, respectivamente, os neste Exmos. Conselheiros Adjuntos.

          Resta, portanto, convocar alguns elementos, que se têm por pertinentes, conducentes à formulação de um juízo sobre a presença dos aludidos requisitos dano e nexo de causalidade.

         Ficou demonstrado que a Autora, tomadora dos cheques, não recebeu do Banco-réu os montantes por eles titulados, do mesmo passo que também ficou provado que esses cheques não seriam pagos por falta de fundos disponíveis na conta sacada.

         Ora, se é certo, como está definitivamente adquirido, que o Banco comete o acto ilícito, previsto no art. 32º da LUCH, ao dar execução a uma infundada ordem de revogação do cheque durante o prazo legal de apresentação a pagamento, certo é, também, que o mesmo Banco só está obrigado a pagar o cheque, durante esse mesmo prazo, se a conta sacada dispuser da necessária provisão.

         Ou seja, quando o banco pratica o acto ilícito tipificado no art. 32º destrói o direito cambiário do portador do cheque enquanto tal.

         Porém, desse ilícito comportamento não decorre, ao menos como consequência automática, directa e necessária, um prejuízo para o beneficiário do título da importância equivalente à nele inscrita.

         À luz dos princípios que regem o direito das obrigações e, em particular, a obrigação de indemnizar, o débito que resultar da obrigação subjacente mantém-se, pelo que se, em abstracto, a abstracta obrigação cambiária se extingue indevidamente, a relação subjacente, que tem por objecto o crédito cuja não solvência, em concreto, gera o prejuízo patrimonial, subsiste.

         Ora, se bem se pensa, o dano deve reportar-se ao prejuízo, apreciado em concreto, fora do mero mecanismo de funcionamento da abstracção da relação cartular.

         A causalidade adequada, como configurada no art. 563º C. Civil, não se refere, como é entendimento uniforme, ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas a todo o processo causal que, em concreto, produz o dano, no âmbito da aptidão geral ou abstracta desse facto para produzir o dano, de modo que o resultado não será imputável ao âmbito de responsabilidade do agente se “segundo a sua natureza geral, era de todo indiferente para o surgir de um tal dano, e só se tornou uma condição dele em resultado de outras circunstâncias extraordinárias (…), indiferença (inadequação) que existirá quando o evento, segundo o normal decurso das coisas e experiência da vida, não eleva ou favorece, nem modifica o círculo de riscos da verificação do dano” (vd. A. VARELA, “Das Obrigações em Geral”, I, 9ª ed., 925; R. ALARCÃO, “Obrigações – Lições, 1983”, 283.

Hão-de ser, portanto, as circunstâncias a definir a adequação da causa, mas sem perder de vista que para a produção do dano pode ter havido a colaboração de outros factos, contemporâneos ou não, importando sobretudo averiguar se o evento danoso é atribuível a determinada actuação, designadamente não lhe sendo indiferente.

Relevará aqui, a necessidade de, num juízo de prognose posterior objectiva, formulado a partir das circunstâncias conhecidas e cognoscíveis pelo lesante, que seria razoável emitir quanto à verificação do dano.

Assim sendo, como também se deixou dito no mencionado acórdão de Janeiro de 2014, “no caso concreto, apesar da conduta ilícita do Banco/Réu, sabe-se que a conta sacada não se encontrava provisionada para permitir o pagamento dos cheques aqui em causa, de modo que, perante esta circunstância, contemporânea da devolução dos cheques por extravio, esta devolução não tem aptidão geral ou abstracta para produzir o dano ou, dito de outro modo, à data da devolução dos cheques, face às circunstâncias concretas conhecidas, não era razoável prever, face ao curso normal das coisas, que os cheques seriam pagos à A., se não fosse a devolução fundada na sua revogação (isto é, que o dano invocado pela A. não se verificaria se não fosse a conduta do R.)

Pelo contrário, o que era razoável prever é que o não pagamento dos cheques sempre ocorreria, em virtude da falta de provisão, independentemente da conduta do R., apesar de ilícita.

Portanto, o facto ilícito do R. não pode ter-se como causa adequada do dano alegado pela A.”.

Se, como já se disse, o sacador do cheque não tinha provisão na sua conta bancária e, por isso, o Banco estava desobrigado de descontar os cheques não é detectável qualquer prejuízo económico a determinar pela diferença entre a situação em que ficou o portador em consequência do facto ilícito (inviabilização do direito cartular) e aquela em que o mesmo portador se encontraria se o mesmo facto ilícito não tivesse ocorrido (art. 562º C. Civil).

Como corolário lógico, resultará, então, que apenas quando na conta sacada existam fundos que permitam ao banco descontar o título a ilegítima execução de uma ordem de revogação é susceptível de constituir causa do dano para efeito de preenchimento do pressuposto da obrigação de indemnizar, apresentando-se, fora dessa situação, a conduta ilícita como indiferente, pois que não poderá concluir-se que provavelmente o cheque seria descontado se o banco não tivesse praticado o ilícito.

Como também se conclui no acórdão de 21/3/2013 citado, “a aceitação por parte do banco sacado da revogação ilegítima de um cheque que tenha sido declarada pelo respectivo sacador por si só é insusceptível de conferir ao respectivo tomador um direito que em caso algum seria satisfeito se acaso a devolução se fundasse na efectiva falta de fundos bastantes para se efectivar o desconto”, não se perfilando, qualquer problema de relevância negativa da causa virtual, que “só se colocaria numa situação em que se configurasse um facto que provocou um dano, o qual seria causado por outro facto se aquele não tivesse lugar. Ora, a mera devolução do cheque com fundamento em revogação ilegítima, por si, não configura qualquer dano efectivo, dependendo este inteiramente do facto de a conta sacada se encontrar devidamente provisionada”.

Em suma, se a conta sacada se encontra desprovida dos fundos de que depende a obrigação de pagar o cheque, falta o próprio facto essencial determinante - por isso que revogação ilícita actua apenas ao nível extinção da obrigação cartular - que desencadeou o prejuízo patrimonial correspondente ao não pagamento do título.       

No caso, nada ficou demonstrado, ou foi, sequer, alegado, no sentido de que, se não tivesse ocorrido a revogação ilícita dos cheques, os mesmos seriam ou poderiam ser descontados pelo Banco, quer por existir provisão na conta do sacador, quer, eventualmente, por outra causa.

Bem diferentemente, ficou provado que ao tempo da devolução dos cheques a conta em causa não dispunha de fundos.

Ficou, consequentemente, por provar o dano [de resto parcialmente reparado (mediante pagamentos também parciais) das relações substantivas subjacentes] que, como se sabe, não se presume e constitui ónus do autor (art. 342º-1 C. Civil).

4. 3. – Respondendo, em síntese final, e negativamente, à questão colocada, poderá afirmar-se:

O portador dum cheque não pago pelo banco que aceita um pedido injustificado de revogação, no decurso do prazo legal de pagamento, e reclama indemnização pelo valor desse cheque, fundada em responsabilidade civil, tem de demonstrar o efectivo prejuízo patrimonial (dano) e o nexo de causalidade entre o acto ilícito da revogação, o que pressupõe a alegação e prova de que não fora a revogação e a devolução ilegítima do cheque apresentado a pagamento dentro do prazo legal, o cheque seria ou poderia vir a ser descontado pelo banco sacado.

Se o sacador do cheque não tinha provisão na sua conta bancária e, por isso, o banco estava desobrigado de descontar os cheques não é detectável qualquer prejuízo económico a determinar pela diferença entre a situação em que ficou o portador em consequência do facto ilícito (inviabilização do direito cartular) e aquela em que o mesmo portador se encontraria se o mesmo facto ilícito não tivesse ocorrido.

Apenas quando na conta sacada existam fundos que permitam ao banco descontar o título a ilegítima execução de uma ordem de revogação é susceptível de constituir causa do dano para efeito de preenchimento do pressuposto da obrigação de indemnizar, apresentando-se, fora dessa situação, a conduta ilícita como indiferente, pois que não poderá concluir-se que provavelmente o cheque seria descontado se o banco não tivesse praticado o ilícito.

Improcedem, nestes termos, as conclusões da revista.

5. - Decisão.

De harmonia com o exposto, acorda-se em:

         - negar a revista;

- confirmar a decisão impugnada; e,

- condenar a Recorrente nas custas.

                                     Lisboa, 14 Outubro 2014

                                      Alves Velho (relator)

                                      Paulo Sá

                                      Garcia Calejo