Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1117/13.7TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO PIÇARRA
Descritores: CONTRATO DE COMODATO
CARÁCTER SINALAGMÁTICO
CARÁTER SINALAGMÁTICO
CASA DE HABITAÇÃO
ANULABILIDADE
PRAZO DE ARGUIÇÃO
CUMPRIMENTO
BEM IMÓVEL
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 05/17/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / COMODATO.
Doutrina:
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, 4.ª ed., vol. II, 741.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 287.º, N.ºS 1 E 2, 874.º, 879.º, ALÍNEAS A), B) E C), 1129.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 30/03/2017, PROCESSO N.º 149/09.4TBGLG-E.E1-A.S1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 13/11/2007, PROCESSO N.º 07A3580, E DE 17/05/2011, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 3813/07.9TVLSB.L1.S1, ACESSÍVEIS EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - O comodato não é um contrato sinalagmático, já que à obrigação de disponibilização da coisa pelo comodante não corresponde qualquer contrapartida pelo comodatário.

II - Celebrado contrato de comodato que prevê a disponibilização de imóvel para habitação permanente da comodatária e, sendo o comodato vitalício, o contrato considera-se cumprido, para o fim assinalado no artigo 287º, n.º 2, do Código Civil, com a efectiva disponibilização de tal imóvel para habitação da comodatária.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Relatório


I AA instaurou, em 12 de Junho de 2013, acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra BB - Sociedade de Comércio Imobiliário, Lda. e CC, Sociedade Aberta, alegando, em síntese, que:

Habita desde 1984 o imóvel sito na Rua …, nº …, em L…, que constitui a casa de morada de família.

Em 05.03.1999, deu o consentimento para que fosse celebrada uma escritura de compra e venda do referido imóvel entre a empresa «BB, Lda.» e o seu marido, DD.

O consentimento foi prestado sob condição de poder continuar a residir no imóvel juntamente com o agregado familiar, vitaliciamente e a título gratuito.

O referido imóvel foi transaccionado através de uma dação de pagamento pela BB, Lda. ao banco réu, que é o seu atual proprietário.

O réu tomou conhecimento do conteúdo do consentimento prestado pela autora, pelo que não tem direito à proteção conferida a terceiros de boa fé.

O consentimento prestado teve por base a vontade viciada da autora, sobre o objeto do negócio e os motivos que o determinaram, tendo agido com erro, o que lhe dá o direito à anulação do negócio nos termos dos artigos 251º e 252º do Código Civil.

Com tais fundamentos, concluiu por pedir que:

a) Se declare a anulabilidade do negócio jurídico celebrado pela autora, especificamente, do consentimento para a venda e respetiva venda do imóvel para a BB, bem como do contrato de comodato, retroagindo os seus efeitos à data do consentimento para a venda, 5.3.1999, devendo ser restituído tudo o que houver sido prestado entretanto;

b) Se determine a entrega do imóvel ao proprietário anterior ao consentimento da autora, DD;

c) Se proceda ao cancelamento do registo a favor do Banco réu, Ap. 2… de 13.01.2004, convertida em definitiva pela Ap. … de 05.07.2004.

O Banco réu não contestou, tendo-o feito apenas a ré BB - Sociedade de Comércio Imobiliário, Lda, representada pelo Ministério Público, arguindo a excepção da caducidade do invocado direito de anulação.

A autora respondeu a pugnar pela improcedência da excepção.

Foi proferido saneador/sentença (em 08 de Junho de 2015) que, na procedência da invocada excepção de caducidade, absolveu os Réus do pedido.

Discordando dessa decisão, apelou a Autora, sem êxito, tendo a Relação de Lisboa, confirmado, por unanimidade e com idêntica fundamentação, o decidido pela 1ª instância.

Persistindo inconformada, interpôs a Autora recurso de revista excepcional, finalizando a sua alegação, com as seguintes conclusões[1]:

1. No caso sub judice coloca-se a questão de saber se um contrato de comodato celebrado com termo incerto, se encontra imediatamente concluído com a entrega do imóvel, ou se, antes pelo contrário, o mesmo tem uma execução continuada, por todo o tempo que durar até à data da ocorrência do termo.

2. E a análise da questão, em termos abstractos, concorre naturalmente para uma melhor aplicação do direito, já que, a posição que defende o terminus do contrato com a entrega do imóvel ao comodatário, olvida as múltiplas obrigações que sobre este impendem até à verificação do termo, e que decorrem do regime jurídico do comodato.

3. Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação ao art. 287°, n° 2 (anotação 3. do referido artigo no Código Civil Anotado, Vol. I, 4a Edição), "Cessa o limite do prazo, nos termos do n° 2, se o negócio ainda não foi cumprido, como se, por exemplo, não foi ainda entregue a coisa vendida...", ou seja considerando-se que o contrato se encontra em curso, pode arguir-se a anulabilidade do mesmo sem o limite do prazo.

4. Assim, e relativamente ao contrato de comodato, pese não existir um sinalagma concomitante - e por isso se diz que é um contrato bilateral imperfeito - não se pode determinar a inexistência de direitos e obrigações por todo o tempo que aquele durar e que obviam a que o mesmo possa considerar-se cessado.

Não foi oferecida contra-alegação.

Submetido ao «crivo» da Formação prevista no art.º 672º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil, o recurso de revista excepcional foi admitido e, colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação de facto

A factualidade dada como provada, nas instâncias, é a seguinte:

1) A casa onde a autora vive, sita na Rua …, nº …, em L…, foi vendida pelo seu cônjuge, DD, em 5 de Março de 1999, a uma empresa de que era gerente, a «BB - Sociedade de Comércio Imobiliário, Limitada», conforme escritura de compra e venda de fls. 18 e 19.

2) Em 05.03.1999, a autora deu o seu consentimento a essa venda, na condição de permanência na casa a título gratuito e vitalício para si e filhos que se encontrassem naquela comprovadamente a viver à data da sua morte, o que lhe foi assegurado por um contrato de comodato celebrado com a «BB, Lda.», em 05.03.1999, nos termos do documento de fls. 20 a 21.

3) Em 28.06.2004, a referida casa foi dada em cumprimento pela «BB, Lda.» ao banco réu através de escritura pública nos termos do documento nº 8 de fls. 32 a 36.

4) A autora deduziu embargos de terceiro por apenso à providência cautelar que o banco réu instaurou para obter a entrega do imóvel livre e devoluto de pessoas e bens e que foi deferida em 05.02.2009 pela 1 ª Vara Cível de Lisboa, conforme documento 3 dos autos de procedimento cautelar.

5) Os embargos foram recebidos por despacho proferido em 06.05.2009 e julgados improcedentes por sentença da qual a autora apresentou recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa que confirmou a sentença recorrida, embora por diferentes fundamentos, por acórdão datado de 01.02.2011, entretanto já transitado em julgado.

III – Fundamentação de direito

A apreciação e decisão do presente recurso de revista passam, atentas as conclusões da alegação da Recorrente (art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil[2]), pela análise e resolução da única questão jurídica por ela colocada a este tribunal e que consiste em saber se o pedido de anulação do consentimento prestado para a compra e venda e comodato do imóvel, com base em erro, é tempestivo.

As instâncias convergiram na intempestividade do pedido, mas a recorrente persiste em pugnar pela sua tempestividade, ancorando-se no art.º 287º, n.º 2, do Código Civil, e na natureza duradoura do comodato.

Vejamos, então, se lhe assiste razão.

A primeira nota a reter é que, segundo o art.º 287º, n.º 1, do Código Civil, a anulabilidade só pode ser arguida, em regra, «dentro do ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento», e, como se alcança do elenco factual provado, a recorrente deduziu embargos de terceiro, em 06/05/2009, à providência cautelar impulsionada pelo Banco réu, para obter a entrega do imóvel livre e devoluto de pessoas e bens.

Teve, pois, conhecimento, pelo menos nessa altura, do erro em que alegadamente incorreu quando prestou o seu consentimento para a venda e comodato do imóvel. Aliás, como se alcança do teor acórdão da Relação de Lisboa, proferido nos embargos (fls. 280 a 308), a validade do contrato de comodato foi ali já suscitada, ainda que com diferente fundamento, estranhando-se que a Recorrente não tenha logo invocado o erro. De qualquer modo, tendo a pressente acção sido instaurada a 12 de Junho de 2013, já há muito havia decorrido o aludido prazo de um ano.

No entanto o n.º 2 do art.º 287º do Código Civil, preceito a que a recorrente lançou âncora, exceptua desvios à referida regra, dispondo que «enquanto, porém, o negócio não estiver cumprido, pode a anulabilidade ser arguida, sem dependência de prazo, tanto por via de acção como por via de excepção, importando, por conseguinte, na tónica do caso sub iudicio, saber em que termos se deve considerar que o negócio não está cumprido, no sentido do normativo em causa, ou seja, da possibilidade de arguir ainda a anulabilidade da venda à ré BB e do comodato, com base no invocado erro.

No tocante ao primeiro desses contratos, a compra e venda, que «tem como efeitos essenciais», como estabelecem os artigos 874º e 879º, alíneas a), b) e c), do Código Civil, a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito, a obrigação de entregar a coisa e a obrigação de pagar o preço», há que atentar que se trata de um contrato consensual quoad constitutionem, isto é, que se aperfeiçoa mediante o mero acordo de vontades das partes expresso na forma legal, ficou, portanto, «completo» ou «concluído», hoc sensu, no momento da sua celebração (05.03.1999), não podendo ser já anulado, com alicerce no artigo 287º, n.º 2, do Código Civil.

Aliás, a recorrente aceita isso, na medida em que na sua retórica argumentativa omitiu qualquer referência a esse contrato, baseando-se e terçando armas unicamente quanto ao contrato nominado de comodato que o artigo 1129º do Código Civil define como «o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir” e, na base do qual, normalmente estão relações de cortesia, de gentileza, marcadas pela disponibilidade gratuita, concedida pelo dono da coisa.

Trata-se de um contrato intuitu personae, de natureza real, quod constitutionem, que se aperfeiçoa apenas com a entrega da coisa, com eficácia puramente obrigacional[3], não sinalagmático ou bilateral imperfeito, pois que não há correspectividade entre as obrigações dele emergentes para as partes contratualizantes, ou seja, o uso da coisa não beneficia de contraprestação[4].

Inexistindo sinalagma entre as obrigações dele decorrentes, o comodato fica cumprido, para os fins assinalados no artigo 287º, n.º 2, do Código Civil, logo que o bem é entregue ao comodatário para que este o use, como bem equacionou e decidiu o acórdão recorrido. Para além disso, a obrigação de restituição da coisa por parte do comodatário decorre da extinção do vínculo, isto é, surge com a própria cessação do contrato e, nessa medida, não faz sentido que se permitisse a arguição da anulabilidade até ao momento em que o negócio se extinguisse.

Carece por todo o exposto de fundamento jurídico plausível, salvo o devido respeito, a construção ensaiada na alegação pela Recorrente, segundo a qual o comodato deve ter-se por «cumprido», na acepção do n.º 2 do artigo 287.º do Código Civil, apenas com a restituição do imóvel.

Ao invés do que sustenta, a ratio de não haver dependência de prazo quando o contrato não se mostra cumprido não está presente no caso vertente, pois que, sendo o comodato um contrato bilateral imperfeito, ainda que existam algumas obrigações a cargo do comodatário, não há, como já se disse, qualquer correspectividade entre estas e a que fica a cargo do comodante (entrega da coisa) - que é, de resto, elemento de perfeição e de constituição do próprio contrato.

Acresce que a obrigação de restituir a coisa objecto do comodato não constitui qualquer contraprestação interligada com o dever de disponibilização da coisa pelo comodante, mas antes uma obrigação que põe termo ao contrato, que o extingue.

Pode, assim, concluir-se o seguinte:

1º O comodato não é um contrato sinalagmático, já que à obrigação de disponibilização da coisa pelo comodante não corresponde qualquer contrapartida pelo comodatário.

2 - Celebrado contrato de comodato que prevê a disponibilização de imóvel para habitação permanente da comodatária e, sendo o comodato vitalício, o contrato considera-se cumprido, para o fim assinalado no artigo 287º, n.º 2, do Código Civil, com a efectiva disponibilização de tal imóvel para habitação da comodatária.

Nesta conformidade, não assiste razão à recorrente para se insurgir contra o decidido pela Relação, que não merece os reparos que lhe aponta.

IV – Decisão

Nos termos expostos, decide-se negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.


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Anexa-se sumário do acórdão (art.ºs 663º, n.º 7, e 679º, ambos do CPC).

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Lisboa, 17 de Maio de 2017


António Piçarra (relator)

Fernanda Isabel Pereira

Olindo Geraldes

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[1] Excluídas já das seis primeiras que respeitam à admissibilidade do recurso de revista excepcional.
[2] Na versão aprovada pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, uma vez que o recurso tem por objecto decisão proferida já depois de 01 de Setembro de 2013 e o processo é posterior a 01 de Janeiro de 2008 (cfr. os seus art.ºs 5º, n.º 1, 7º, n.º 1, e 8º).
[3] Cfr, neste sentido, o acórdão do STJ de 30/03/2017, proferido no processo 149/09.4TBGLG-E.E1-A.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[4] Cfr., neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 4ª ed., vol. II, pág. 741, e, entre outros, os acórdãos do STJ de 13/11/2007, proferido no processo n.º 07A3580, e de 17/05/2011, proferido no processo n.º 3813/07.9TVLSB.L1.S1, acessíveis em www.dgsi.pt.