Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
920/16.0T8OLH-G.E1.S2
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
RECURSO DE REVISTA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
ACORDÃO FUNDAMENTO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 05/23/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NÃO CONHECIMENTO DO OBJECTO DO RECURSO
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – DISPOSIÇÕES INTRODUTÓRIAS / RECURSOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGO 14.º, N.º 1.
Sumário :
I - A admissibilidade do recurso tem de ser aferida à luz do estatuído no CIRE, que, relativamente às impugnações judiciais em sede insolvencial, estabelece no n.º 1 do artigo 14.º um regime especial de recurso restritivo, excluindo, por regra, o recurso para o STJ.

II - O CIRE, desviando-se da regra geral estabelecida no CPC, condiciona a admissibilidade do recurso para o STJ a um pressuposto específico, quer se verifique ou não dupla conformidade decisória: ocorrer uma situação de oposição de acórdãos, a qual, numa interpretação ampla do preceito, não se cumpre com a invocação como “acórdão-fundamento” de uma decisão singular proferida.
Decisão Texto Integral:


Acordam em conferência na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,

I -
1. Nos autos de insolvência de AA, decretada por sentença de 24-07-2018, que nomeou Administrador da Insolvência (AI), conforme sorteio, BB, foi proferido acórdão que, além do mais e para o que neste âmbito assume relevância, confirmou a decisão de nomeação do AI, entendendo que, no caso, o administrador judicial provisório nomeado no processo especial de revitalização que antecedeu a insolvência (e que foi encerrado sem aprovação ou homologação do plano de recuperação) não gozava da preferência concedida pelo artigo 52.º n.º 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).

2. CC, administrador provisório nomeado no âmbito do processo de revitalização acima referenciado veio interpor recurso de revista excepcional do referido acórdão, ao abrigo do disposto no artigo 672.º, alínea c), do Código de Processo Civil (CPC), invocando que o mesmo se encontra em oposição com o acórdão da Relação do Porto de 19-12-2017, proferido no âmbito do Processo n.º 2101/16.4T8NG-C.P1, alegando que os referidos acórdãos constituem decisões opostas, no mesmo enquadramento factual, proferidas no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito (que reporta à violação do disposto no artigo 52.º, n.º2, do CIRE).
Juntou, como acórdão-fundamento cópia certificada de decisão singular do Tribunal da Relação do Porto de 19-12-2017, proferido no âmbito do Processo n.º 2101/16.4T8NG-C.P1.

3. O recurso foi distribuído como revista excepcional, declarando-se a Formação incompetente, determinando a remessa dos autos à distribuição como revista normal por à situação se aplicar o regime especial do artigo 14.º, n.º1, do CIRE – fls. 175/176.

4. Foi proferido despacho liminar nos seguintes termos:
         “(…) Em causa está recurso interposto do acórdão que confirmou a decisão de 1ª instância relativamente à nomeação do Administrador da Insolvência, conforme sorteio.
Trata-se pois de recurso de decisão proferida no âmbito de processo de insolvência, sendo-lhe aplicável o disposto no artigo 14.º, n.º 1, do CIRE.
Nessa medida, a admissibilidade do recurso de revista depende da demonstração, pelo recorrente, de que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil.
Como decorre explicitamente do citado preceito, constitui pressuposto específico de admissibilidade do recurso a contradição de acórdãos.
Nesse sentido, conforme refere o acórdão deste STJ “A razão de ser da exigência de Acórdão em oposição ao Acórdão recorrido, como requisito de recorribilidade, não se cumpre com a demonstração de uma decisão singular proferida pelo Relator no Tribunal da Relação.
Um Acórdão da Relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, sendo uma decisão colegial, colectiva de três Juízes, obviamente dispõe maior autoridade e força persuasiva. A oposição de Acórdãos é sempre exigida (em casos legais de restrição ao recurso), como requisito de recorribilidade tanto na revista excepcional, como no recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, não bastando uma decisão singular do Relator.
Sem nos apegarmos, com excessivo formalismo, à letra da lei – que não é o único critério interpretativo nos termos do art. 9º do Código Civil – é manifesto que a ratio legis do art. 14º, nº1, do CIRE se destina a confrontar duas decisões de igual força.” 
A decisão junta proferida pelo tribunal da Relação do Porto no identificado processo, sendo uma decisão singular do Relator não é, obviamente um Acórdão, razão por que não pode ser invocada para demonstrar a alegada oposição.
III - Consequentemente, considerando que o Recorrente invoca como Acórdão em oposição uma decisão singular do Relator, circunstância que pode obstar ao conhecimento do objecto do recurso, notifique as partes para, querendo e no prazo de dez dias, se pronunciarem (artigo 655º, nº 1, do CPC).”

5. Respondeu o Recorrente pugnando pelo conhecimento do objecto do recurso, invocando inexistir fundamento legal para não conferir igual vinculação e força jurídica às decisões em confronto uma vez que emanam de tribunais com a mesma categoria não ocorrendo qualquer diferença substancial e/ou jurídica entre elas. Concluiu, por isso, que se mostram violados os artigos 205.º, n.º2, 209.º, n.º1, alínea a), 210.º, n.º4, 211.º, n.º4, todos da Constituição da República Portuguesa (CRP), bem como os artigos 165.º, n.º1, alínea p) e 161.º, alínea c), da mesma Lei Fundamental.

II - Decidindo:
         Consideramos que o Recorrente carece de razão uma vez que a posição que defende descura, a nosso ver, duas realidades incontornáveis que caracterizam o nosso sistema de recurso enquanto garantia de justiça e meio de correcção de erros de decisão:
- a colegialidade da estrutura decisória (permitir que as partes possam recorrer à composição de um órgão – colectivo de juízes - que com as mesmas características de independência e imparcialidade acrescentem superioridade na correcção do erro da decisão impugnada);
- assentar a admissibilidade do recurso em termos precisos e perfeitamente determinados.

1. Mostra-se pacífico que, no caso, a admissibilidade do recurso tem de ser aferida à luz do estatuído no CIRE, que relativamente às impugnações judiciais em sede insolvencial estabelece no n.º1 do seu artigo 14.º, um regime especial de recurso e restritivo, excluindo, por regra, o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Dispõe o citado preceito que no processo de insolvência, e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme. 
Verifica-se pois que o CIRE, desviando-se da regra geral estabelecida no Código de Processo Civil, condiciona a admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a um pressuposto específico, quer se verifique ou não dupla conformidade decisória: ocorrer uma situação de oposição de acórdãos.
Assim, em caso de dupla conformidade decisória, que segundo o regime geral apenas poderia ser fundamento de impugnação para o STJ através da revista excepcional, nos termos consignados no n.º1 do artigo 672.º do CPC, o CIRE contempla somente a viabilidade do recurso normal de revista cingindo-a à oposição de acórdãos, manifestando, por isso, um claro propósito em limitar as impugnações judiciais nesta sede insolvencial[1].
Nesta perspectiva, encontrando-se afastada a via da revista excepcional, a limitação do recurso para o Supremo visada pelo legislador do CIRE não quis deixar de consagrar um dos objectivos que, pacificamente, se considera ser de incrementar com o acesso ao terceiro grau de jurisdição e que constitui uma das funções cometidas a este Supremo Tribunal: orientação e uniformização de jurisprudência por forma a incrementar uma maior certeza na aplicação do direito.
Assim sendo, tendo presente as limitações que a lei impõe à possibilidade de o recurso ser decidido individualmente pelo relator[2] (decisão que se revista de simplicidade[3]), dada a natureza da decisão singular[4] (constituindo um desvio à normal colegialidade da decisão, que caracteriza o nosso sistema de recursos e com base na qual se encontra-se estruturado), cremos que não pode deixar de se concluir que a razão de ser da exigência de oposição entre acórdãos como requisito de recorribilidade expressamente consagrado no artigo 14.º, n.º1, do CIRE, não se cumpre com uma interpretação ampla do preceito, permitindo invocar como “acórdão-fundamento” uma decisão singular proferida pelo Relator no Tribunal da Relação.

2. No que toca às invocadas inconstitucionalidades[5] do entendimento que temos por adequado apenas nos cabe salientar que a nossa Lei Fundamental pressupõe que a lei ordinária estabeleça um sistema de recursos de acordo com a própria organização da máquina judiciária, não garantindo um direito irrestrito ao recurso e, bem assim, ao acesso a um terceiro grau de jurisdição.
Por outro lado, de entre os poderes que cabem à lei ordinária, o legislador é livre de definir as circunstâncias ou termos em que os recursos são ou não são admissíveis. Nessa medida, no citado artigo 14.º, n.º 1, do CIRE, mostra-se legítima a forma como se encontra circunstanciada a restrição à excepção da regra da inadmissibilidade do recurso para o STJ em sede insolvencial (quando existir oposição de acórdãos quanto à mesma questão fundamental de direito).
Consequentemente, o artigo 14.º n.º 1, do CIRE, interpretado nos termos expostos não viola, a nosso ver, qualquer preceito da Constituição, designadamente os indicados pelo Requerente, antes representa obediência a uma opção legítima do legislador, pelo que não se vislumbra que ocorra a apontada inconstitucionalidade.
Custas pelo Requerente com taxa de justiça que se fixa em 2UC.



Lisboa, 23 de Maio de 2019

Graça Amaral (Relator)
Henrique Araújo
Maria Olinda Garcia




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[1] Opção que tem em vista a natureza célere que se procurou incutir ao procedimento de insolvência e a necessidade de estabilizar o mais depressa possível as relações litigiosas a ele subjacentes.
[2] Neste caso a lei apenas confere às partes o direito de obterem a sua substituição por outra com intervenção do colectivo, o que constitui um instrumento jurídico – reclamação (submeter à conferência a questão decidida pelo relator por forma a alcançarem decisão colectiva sobre a questão) - que embora obste o trânsito em julgado da decisão não tem a natureza de recurso.
[3] Note-se que a definição de decisão simples não se deixa ao critério arbitrário do relator, terá de se encontrar balizada nos seguintes pressupostos: tratar-se de questão que já se encontre apreciada jurisdicionalmente de modo uniforme e reiterado (sublinhado nosso); ocorra uma infundada pertinência recursal – artigo 656.º, do CPC.
[4] Consideramos que o Requerente confunde vinculação e efeitos da decisão jurisdicional com natureza da decisão atenta a estrutura (singular ou colectiva) da mesma.
[5] Por violação dos artigos 205.º, n.º2, 209, 210.º, 211.º, 165.º e 161.º, todos da CRP.