Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2644/13.1TJVNF.G1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
FORMA DO CONTRATO
APÓLICE
FORMALIDADES AD SUBSTANTIAM
PROPOSTA DE SEGURO
ACEITAÇÃO DA PROPOSTA
ASSENTO
SEGURO DE VIDA
PRÉMIO DE SEGURO
FALTA DE PAGAMENTO
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
BOA FÉ
DEVER DE COMUNICAÇÃO
DEVER DE INFORMAÇÃO
DEVER DE DILIGÊNCIA
INDEMNIZAÇÃO
INTERESSE CONTRATUAL POSITIVO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 01/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE REVISTA DA 2ª RÉ. NÃO TOMA CONHECIMENTO DA REVISTA DA 1ª RÉ
Área Temática:

DIREITO DOS SEGUROS - SEGURADORAS – CONTRATOS DE SEGURO ( RAMO VIDA ).
DIREITO DO CONSUMO - DIREITOS DO CONSUMIDOR.
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES.
Doutrina:
- Abílio Neto, “Código Comercial”, Ediforum, 15.ª ed., 277.
- Baptista Machado, in R.L.J., 117.º- 233.
- Carlos A. A. Bettencourt de Faria, «O conceito e a natureza jurídica do contrato de seguro», em C.J., 1978, 3º-790.
- Cunha Gonçalves, Comentário ao “Código Comercial”, vol. II, 546.
- Guerra da Mota, O Contrato de Seguro Terrestre, I vol., 404 e ss..
- José Bento, Direito dos Seguros, 1994/95, 125 a 128.
- Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. 2.º, 145.
- Moitinho de Almeida, O Contrato de Seguro.
- P. Lima e A. Varela, “ Código Civil” Anotado, Vol. I, 216.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 227.º, 364.º, 436.º, 808.º.
CÓDIGO COMERCIAL (CCOM): - ARTIGO 426.º.
D.L. N.º 102/94, DE 20-04: - ARTIGOS 17.º, 171.º.
D.L. N.º 176/95, DE 26-07: - ARTIGOS 2.º E 10.º.
LEI N.º 24/96, DE 31-07 (LEI DE DEFESA DOS CONSUMIDORES): - ARTIGO 2.º, N.º1.
REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE SEGURO (D.L. N.º 72/2008, DE 16-04).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 28-09-1995 (PROC. N.º 086647) E DE 4-12-2014 (PROC. N.º 23/12.7TBESP.P1.S1).
-DE 29-01-2004 (PROC. N.º 03B4187).
-DE 09-10-2008 (PROC. N.º 08B2673).
-DE 28-04-2009 (PROC. N.º 09A0457).
-DE 27-01-2010 (PROC. N.º 5710/06.6TBVNG.P1.S1).
-DE 2-12-2013 (PROC. N.º 306/10.0TCGMR.G1.S1).
-DE 24-02-2015 (PROC. N.º 1336/12.3T2AVR.C1.S1).

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ASSENTO, DE 22-01-1929 (DG, II SÉRIE DE 05-02-1929).
Sumário :
I - Perante o preceituado no art. 426.° do CCom., diferentemente do que sucede com os contratos celebrados após a entrada em vigor (01-01-2009) do actual Regime Jurídico do Contrato de Seguro (DL 72/2008 de 16-04), constituía documento ad substantiam (cf. art. 364.° do CC) a apólice do contrato seguro, ou a minuta depois de aceite pela seguradora, tendo o entendimento expresso pelo Assento do STJ de 22-01-1929 (DG, II série de 05-02-1929) conformado o conteúdo da necessidade da forma escrita do contrato de seguro, para a validade do negócio, ao estabelecer que a minuta ou proposta de seguro «equivale para todos os efeitos a apólice».

II - Tratando-se de contrato de seguro do ramo «Vida», tal como a entrega da apólice constitui já o objecto da obrigação assumida pela seguradora, também o pagamento do prémio constitui o objecto da correspectiva obrigação do segurado, podendo os contraentes, já em execução do dito contrato, exigir reciprocamente o cumprimento de uma e outra obrigação, mas sem que qualquer delas constitua necessário pressuposto para a perfeição do mesmo, ainda que possam condicionar a eficácia e execução de um contrato, que se encontra já perfeito a partir da declaração receptícia de vontade da seguradora – expressa ou tácita – de aceitar a minuta ou proposta de seguro.

III - E, ainda que a obrigação de os tomadores do seguro pagarem o prémio tivesse nascido quando assinaram a minuta a solicitar a emissão da apólice e a seguradora aceitou essa proposta, a posterior falta de pagamento do prémio poderia vir a tomar o contrato insubsistente, mas tal só sucederia depois de a seguradora, com esse fundamento, obter a sua resolução (cf. art. 436.° do CC), para o que, previamente, teria de converter a mora em incumprimento definitivo, designadamente mediante notificação admonitória, nos termos do art. 808.° do CC.

IV - A tutela da confiança e da expectativa criada entre as partes no caminho negocial constitui a razão pela qual devem as partes adoptar comportamentos conformes às regras da boa-fé mesmo antes de ter surgido qualquer contrato e estende-se para lá da conclusão deste, pelo que, a eventual celebração do contrato ou, também, a sua ineficácia não afastam as consequências da infracção a tais regras.

V - Além disso, o exame sobre o grau de conformidade ou desconformidade com tais ditames da conduta da seguradora deve ser visto à luz das garantias da protecção do consumidor – entendido no sentido do n.° 1 do art. 2.° da Lei n.° 24/96 de 31-07 –, o que implica que a formação do contrato de seguro seja antecedida do cumprimento de uma série de deveres de comunicação e informação que recaem sobre a seguradora e que representam um papel fulcral em tal protecção, como sucedia com os previstos pelo art. 171.° do DL 102/94 de 20-04 e pelos arts. 2.° e 10.º do citado DL 176/95, de fornecer ao tomador, antes da celebração do contrato de seguro (do ramo «Vida»), informação, de forma clara, por escrito, sobre, além do mais, a quantificação dos encargos e condições, prazo e periodicidade do pagamento dos prémios.

VI - Compreendendo-se que as seguradoras, por vezes, subordinem a aceitação de determinados contratos de seguro, sobretudo os do ramo «Vida», à apreciação de certos elementos relacionados com o risco a garantir, p. ex., o resultado de exame médico a pessoa a segurar, ainda que, no caso, se demonstrasse tal necessidade, não já para a (consumada) aceitação da proposta, mas, por hipótese, para a fixação do montante do prémio do seguro, sobre a seguradora recaía o ónus de promover e/ou solicitar, expeditamente, tais elementos, de harmonia com os princípios decorrentes da boa fé, sob pena de, devido a sua negligência, dever ser-lhe assacada a responsabilidade pelos danos advindos da não obtenção da plena eficácia do contrato celebrado.

VII - A ré seguradora, depois de aceitar a proposta de seguro, não emitiu (nem entregou ao banco) a apólice a que estava vinculada, assim como nada mais diligenciou para que, para a fixação do montante do prémio do seguro, fosse conferida eficácia ao contrato, conduta que contrariou os deveres desencadeados pelo contrato que a mesma acabara de celebrar e os elementares deveres decorrentes da boa-fé, por se alhear dos básicos padrões comportamentais que no seu ramo de actividade se impõem e em que, em termos de normalidade, devem estar presentes, sendo, por isso, ético-juridicamente censurável.

VIII - Assim sendo, por se tratar da protecção da confiança na execução do negócio já celebrado, não apenas da confiança na sua celebração, não subsistem dúvidas de que o montante da indemnização adequado à respectiva violação deve corresponder ao interesse contratual positivo, por se afigurar ser o mais consentâneo com a realização da justiça material deste caso.

IX - As exigências decorrentes dos deveres que, especialmente, oneravam a seguradora teriam como contrapartida, também por imposição do princípio da boa fé, o dever de diligência média por banda dos credores ou destinatários da prestação daqueles deveres, podendo admitir-se, num juízo de prognose póstuma, que a adopção de um comportamento contratual medianamente diligente por parte dos mesmos poderia ter impelido aquela ao cumprimento de tais deveres, visando a concretização da vantagem por eles também prosseguida com o seguro de vida (a restituição da importância emprestada pelo banco), devendo fixar-se em 20% a medida da contribuição da omissão desse dever de diligência para o incumprimento da seguradora.
Decisão Texto Integral:

Revista 2644/13.1TJVNF.G1.S1

           

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de seu marido, BB, intentou a presente acção contra BANCO CC e SEGURO DD, pedindo a condenação desta a pagar à 1ª R o montante em dívida à data da morte de BB, num total de € 35.000, bem como a condenação da 1ª R a devolver-lhe todas as prestações pagas desde a data desse óbito até a decisão final. Para tanto, invocou que a A e seu falecido marido celebraram um contrato de seguro ramo vida com a R seguradora, para garantir o mútuo contratado com a R banco, mas, se assim se não entender, devem ambas as RR ser condenadas solidariamente a pagar-lhe a aludida quantia, correspondente ao dano que lhe causaram por a haverem convencido da existência de tal seguro válido.

Foi proferida sentença, julgando a acção improcedente e absolvendo as RR do pedido.

A Relação de ..., depois de fixar os factos, julgou parcialmente procedente a apelação interposta pela A e condenou a 2ª R, SEGURO DD, a pagar à 1ª R, BANCO CC, o montante em dívida à data da morte de BB, num total de € 35.000, bem como condenou esta 1ª R a devolver à A todas as prestações pagas desde a data do referido óbito.

A 2ª R, SEGURO DD, interpôs recurso de revista desse acórdão, delimitando o seu objecto com as seguintes conclusões:

1. Da matéria de facto dada como provada resulta o seguinte: “24. (…); 25. (…); 26. (…); 29. (…); 34. (…)”

2. A Recorrente sabia que a aceitação do risco seria relevante para o Banco Réu - como era comum nos contratos de seguro de vida associados a crédito à habitação -, mas nunca poderia - de forma alguma - pensar que a aceitação comunicada ao Banco levaria a que a Autora e o Sr. BB ficassem convictos de que o contrato de seguro já estava celebrado e em vigor, em particular quando a obrigação principal daqueles no contrato de seguro não estava definida!

3. Em momento algum a Recorrente comunicou ao Banco Réu que tinha celebrado um contrato de seguro com a Autora e o Sr. BB. É o que resulta dos autos.

4. Uma coisa é a aceitação da cobertura do risco de uma proposta de seguro e outra bem diferente é a celebração de um contrato de seguro.

5. A Recorrente desconhecia por completo os termos do contrato de mútuo negociado entre o Banco Réu e os mutuários - Autora e Sr. BB -, bem como as demais exigências determinadas pelo Banco Réu, nomeadamente no que diz respeito aos termos do contrato de seguro.

6. Da leitura do contrato de mútuo em causa rapidamente se conclui que a celebração do seguro de vida seria algo a que os mutuários apenas ficariam obrigados após a celebração do mútuo: DÉCIMA PRIMEIRA (...) Os mutuários obrigam-se a contratar um SEGURO DE VIDA cujas condições. constantes da respectiva apólice/ serão as indicadas pelo banco (…) DÉCIMA SEGUNDA: 1. OS MUTUÁRIOS obrigam-se a trazer pontualmente pagos os seguros referidos na cláusula anterior. (…)

7. Resulta evidente para a Ré que o contrato de seguro de Vida apenas faria sentido se o contrato de mútuo fosse efectivamente celebrado! o que poderia não acontecer caso alguma das partes desistisse entretanto!

8. De nada serviria à Autora e marido ter um contrato de seguro de Vida no qual o beneficiário seria o BANCO CC se o contrato de mútuo nunca fosse celebrado.

9. Nem a Autora, nem o Sr. BB, nem o Banco Réu, comunicaram à Seguradora e aqui Recorrente que o contrato de mútuo já tinha sido celebrado!

10. Esse facto não pode deixar de ser tido em consideração na avaliação da “essencialidade” da comunicação do risco por parte da Recorrente ao Banco Réu, tendo em conta que nem este nem a Autora, ou o Sr. BB, alguma vez se preocuparam em informar a Seguradora da celebração do contrato de mútuo.

11. O facto de o Banco Réu ter celebrado o contrato de mútuo bastando-se com a confirmação da aceitação do risco por parte da Seguradora é algo que apenas pode ser valorado nos termos da relação entre o Banco Réu e a Autora e o Sr. BB.

12. Apenas o Banco Réu pode explicar os motivos da sua decisão ainda que, salvo melhor opinião, nos pareça claro que é algo que resulta do próprio contrato de mútuo (conforme já exposto anteriormente)!

13. Da matéria de facto dada como provada, não resulta que: i) O Banco Réu tenha recebido informação de que os mutuários celebraram contrato de seguro de vida com a Recorrente; ii) O Banco Réu tenha ficado convicto de que os mutuários já tinham celebrado um contrato de seguro de vida com a Recorrente; iii) Foi por estar convicto de que os mutuários já tinham celebrado um contrato de seguro de vida com a Recorrente e que o mesmo estava em vigor, que o Banco Réu decidiu celebrar o contrato de mútuo.

14. A comunicação remetida pela Recorrente para o Banco Réu (que consta dos autos) é muito clara: “(…) no dia 18 de Março do corrente ano deu entrada na SEGURO DD, uma proposta de SEGURO DD, encontrando-se o respectivo risco aceite desde 19 de Março de 2002. As Pessoas Seguras da proposta são (...)” - (sublinhado nosso).

15. A Recorrente não poderia de forma alguma esperar que a Autora e o Sr. BB nunca mais contactassem a Recorrente com vista à formalização do contrato de seguro que, como em seguida veremos, ainda não estavam inteira e definitivamente acordado!

16. Do douto Acórdão recorrido resulta que os Senhores Venerandos Juízes Desembargadores concordam (sem sombra de dúvida) que o “prémio” que é devido pelo Tomador do Seguro à Seguradora é um “elemento essencial e constitutivo do direito”.

17. Não se compreende, então, como podem os Senhores Venerandos Juízes Desembargadores concluir que, no caso em análise, o contrato de seguro se encontrava “pré-estabelecido” e “definitivamente acordado com os futuros mutuários” quando resulta claro dos factos provados que nunca foi acordado entre a Seguradora e os tomadores do seguro - a Autora e o Sr. BB - qual seria o valor do prémio a pagar por estes!

18. Não pode de forma alguma ser expectável que num contrato de seguro não seja acordado e fixado o valor do prémio a pagar pelos tomadores do seguro! Diríamos mesmo que sem prémio não há contrato de seguro!

19. Não está em causa a questão relativa ao pagamento dos prémios mas sim a não fixação de um valor a título de prémio, porquanto se trata de um elemento do contrato de seguro que corresponde à obrigação principal dos tomadores do seguro no contrato!

20. Da prova produzida em audiência, resultou claro que esse valor nunca foi acordado e não resultou provado que o valor do prémio do contrato de seguro estivesse incluído na prestação mensal a pagar ao Réu Banco.

21. Em nosso entender os Senhores Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de ... não poderiam concluir que o contrato de seguro estava definitivamente acordado quando falta um elemento essencial: o valor da obrigação principal dos tomadores do seguro, ou seja, do prémio!

22. Não pode considerar-se expectável - ou mesmo admissível - que os tomadores do seguro não soubessem e não se preocupassem em saber qual o valor do prémio do seguro a cujo pagamento se encontravam obrigados.

23. Da matéria de facto dada como provada, já com as alterações determinadas pelo douto Tribunal da Relação de ..., não resulta provado que a Autora e o Sr. BB ficaram convictos de que tinham efectivamente celebrado um contrato de seguro denominado “SEGURO DD”.

24. A Autora e o Sr. BB nunca comunicaram à Recorrente que o contrato de mútuo já tinha sido celebrado.

25. Não resulta provado que a Autora e o Sr. BB não tivessem a capacidade de compreender que a definição do montante do prémio é um elemento essencial do contrato de seguro e que o seu pagamento seria a sua obrigação.

26. A mera aceitação por parte do Réu BANCO CC em celebrar o contrato de mútuo com a Autora e o Sr. BB sem a confirmação de que o contrato de seguro foi celebrado e estava em vigor, não pode servir como fundamento para justificar a alegada convicção da Autora e marido.

27. A Recorrente agiu sempre de acordo com as regras da boa-fé, nomeadamente: i) Na recepção da proposta de contrato de seguro remetida pela Autora e Sr. BB; ii) No envio de comunicação para o Banco Réu a comunicar a aceitação do risco Vida dos proponentes, também mutuários, Sr. BB e a Autora.

28. A total ausência de contacto por parte da Autora e do Sr. BB evidencia, em nosso entender, um desrespeito pelas regras da boa fé na negociação com a Ré SEGURO DD.

29. Os Senhores Juízes Desembargadores não poderiam de forma alguma deixar de relevar o comportamento de total indiferença por parte da Autora e do Sr. BB na relação contratual que “julgavam ter” com a Recorrente.

30. Concluindo-se como fazem os Senhores Juízes Desembargadores, deveria resultar para a Seguradora o direito de reclamar junto da Autora e marido o valor total do somatório dos prémios devidos entre a data da celebração do contrato de seguro e a ocorrência do sinistro.

31. Porém, que valor poderia ou deveria a Recorrente exigir da Autora e do Sr. BB?

32. Não está em causa se os tomadores do seguro pagaram algum valor a título de prémio mas sim o facto de o prémio nunca ter sido acordado e fixado entre as partes!

A 1ª R, BANCO CC, também interpôs recurso de revista desse acórdão, delimitando o seu objecto com as seguintes conclusões:

 1ª A questão de direito que o presente recurso convoca a decidir pode enunciar-se nos seguintes termos: Tendo a seguradora recusado assumir o sinistro da morte da pessoa segura ocorrida quando existia e estava em vigor um seguro de grupo do ramo vida contraído para garantia da entidade bancária que concedera empréstimo para habitação e tendo, em consequência desta recusa, a viúva do mutuário falecido continuado a honrar, do mútuo, as prestações que se foram vencendo, quid iuris, se, em acção ulterior, a seguradora vier a ser condenada a assumir o sinistro como enquadrado nas condições da apólice:

Tem a seguradora de pagar ao Banco o montante correspondente à totalidade das prestações que estavam em dívida à data do óbito, ficando o Banco obrigado a restituir o que entretanto foi recebendo da mutuária sobreviva no cumprimento das obrigações do mútuo?

ou, ao contrário,

o Banco nada tem de restituir do que recebeu no cumprimento das obrigações do mútuo, sendo a seguradora que, pagando ao Banco o capital em dívida à data do óbito deduzido das prestações que recebeu depois da ocorrência deste, tem de reembolsar à mutuária sobreviva o valor das prestações que esta foi pagando ao Banco por todo o tempo por que, ela seguradora, recusou o sinistro?

2ª Colocar a questão é resolvê-la – e resolvê-la no sentido de que não recai sobre o Banco mutuante a obrigação de restituir o que legitimamente e com causa recebeu a título das prestações que se foram vencendo no contrato de mútuo que estava em vigor à data do óbito do seu mutuário;

3ª Porque este não foi o entendimento que vingou no Acórdão recorrido, constitui objecto deste recurso, restrito como está ao conhecimento de uma pura questão de direito, obter a sua revogação por forma a que o Banco seja absolvido da condenação que, em violação do direito constituído, lhe foi fulminada;

4ª Embora os contratos de mútuo e de seguro de grupo vida possam qualificar-se como contratos associados ou coligados, “não deixam de estar sujeitos, cada um deles, às suas regras próprias e específicas e não ficam precludidas as obrigações próprias e específicas de cada tipo de contrato” (cfr. Ac. citado em texto);

5ª Daqui decorre, apesar da natureza triangular do seguro de grupo vida que, a um só tempo, envolve a seguradora, a pessoa segura e o tomador beneficiário, as obrigações decorrentes do contrato de mútuo que lhe está historicamente na origem mantêm plena autonomia de tal forma que, em caso de sinistro, a recusa da seguradora em assumi -lo não exonera o mutuário ou os seus herdeiros de continuarem a cumprir as obrigações dele decorrentes e, designadamente, a obrigação de pagamento das prestações do mútuo que se vencerem enquanto a seguradora não for convencida de que o sinistro está, afinal, coberto pelas condições da apólice e o assumir;

6ª Por isto ser assim, é que o Ac. da Rel. do Porto de 5 de Março de 2015, citado em texto, fixou no Ponto IV do seu sumário o seguinte: IV- O banco mutuante não tem de devolver aos herdeiros do mutuário o montante das prestações que dele foi recebendo enquanto a seguradora que com o falecido mutuário tinha celebrado um contrato de seguro de vida, de que era beneficiário o banco, não assumiu o sinistro;

7ª Porque não é indiferente o Banco ter de restituir aos herdeiros do segurado o que destes legitimamente recebeu e receber da seguradora o que assim lhes restitua, eis porque se impõe a interposição da presente revista, levada até este Alto Tribunal para correcta aplicação da lei;

8ª Decidindo como decidiu, o Acórdão recorrido violou a lei do contrato celebrado entre as partes e, por inerência, o disposto no artº 405º do Cód. Civil.

Nas suas contra-alegações, a A, para além de pugnar pela manutenção do decidido, suscitou, previamente, a questão da inadmissibilidade do recurso interposto pela 1ª R, BANCO CC, arguindo que não se vislumbra nem esta invoca ou, muito menos, quantifica o prejuízo que lhe poderá advir da decisão recorrida, nos termos da qual a recorrente receberá da R seguradora o montante com que terá de devolver as prestações entretanto pagas pela recorrida desde a data do óbito do seu marido.

*

A Relação julgou provada a seguinte factualidade:

1. A Autora é herdeira e exerce as funções de cabeça de casal da herança aberta por óbito de BB, falecido a 00-00-2013, no estado de casado com a Autora.

2. Não deixou testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido a Autora, que exerce as funções de cabeça de casal, juntamente com os seus 4 filhos.

3. Da herança aberta por óbito daquele mencionado BB, faz parte a fracção autónoma designada pelas letras “AL”, do prédio urbano constituído no regi-me da propriedade horizontal, sito na freguesia e concelho de ..., descrita na CRP sob o nº327-AL e inscrita na matriz no artigo 1.462º-AL.

4. Tendo sido adquirida pelo falecido BB e mulher, por contrato de compra e venda, titulado por escritura pública outorgada em 06-05-2002 no 1º cartório Notarial de ....

5. Tendo sido a sua propriedade registada a favor dos compradores.

6. A propriedade dessa fracção, no que respeita à parte do falecido, transmitiu-se à herança, após a morte do mencionado BB.

7. Aquando da celebração do mencionado contrato de compra e venda, o autor da herança e mulher, celebraram simultaneamente, um contrato de mútuo com hipoteca com o Banco aqui 1º Réu.

8. O BANCO CC emprestou à Autora e a seu falecido marido a quantia de 64.843,63 €, destinada a financiar-lhes a aquisição da fracção identificada no artº 4º da petição inicial, ao abrigo do regime do crédito bonificado normal, aprovado pelo DL 349/98, contrato esse subordinado às cláusulas constantes do documento complementar àquela escritura, outorgado nos termos do nº2 do artigo 64º do Código do Notariado.

9. Aquando da negociação da concessão do empréstimo, para efeito do aludido mútuo, o Banco, além da hipoteca e da constituição de fiadores, exigiu que os mutuários (a Autora e seu marido) celebrassem um contrato de seguro de vida que, em caso de morte de qualquer dos mutuários obrigasse a Seguradora a pagar ao Banco o montante que, do empréstimo que, à data do óbito, estivesse em dívida.

10. Face às condições impostas pelo banco Réu para conceder o empréstimo pretendido, os mutuários falaram com os quartos outorgantes referidos naquela escritura, que aceitaram e se prontificaram a afiançar todas as obrigações assumidas pelos mutuários perante o Banco mutuante.

11. Como efectivamente o vieram a fazer e ficou a constar daquele.

12. Concomitantemente, contactaram a 2ª Ré seguradora, no sentido de verificarem da possibilidade de com os mutuários, celebrar um contrato de seguro de vida, como o exigia o 1º Réu.

13. E assim os futuros mutuários, de acordo com as exigências do Banco, subscreveram uma proposta de seguro de vida denominada “SEGURO DD”.

14. Na qual os proponentes e segurados eram aqueles, o montante a garantir era 64.843,73 €, correspondente ao capital a mutuar pelo 1º Réu.

15. O prazo fixado foi de 240 meses, prazo coincidente com o do empréstimo a efectuar, sendo primeiro beneficiário, o Banco mutuante até ao valor em dívida, em caso de morte, invalidez absoluta e definitiva ou invalidez total e permanente dos segurados.

16. A proposta de seguro, depois de devidamente subscrita, foi aceite pela “SEGURO DD”, com efeitos a partir do dia 19 de Março de 2002.

17. Após tal, a “SEGURO DD” comunicou a aceitação da proposta ao Banco mutuante, a fim de este poder efectuar e formalizar o mútuo com hipoteca com o falecido BB e mulher.

18. Face à aceitação por parte da 2ª Ré da proposta e respectivo risco o mútuo foi concretizado naquele mencionado dia 06.05.2002.

19. A Autora e o Sr. BB subscreveram a proposta de contrato de seguro na modalidade SEGURO DD, na qual constava como proponente a tomador do Seguro e pessoa segura o Sr. BB.

20. Sendo ainda proponente a pessoa segura a ora Autora.

21. A Proposta teria em vista uma Apólice com prazo de 240 meses.

22. A Ré SEGURO DD recebeu por fax a referida proposta e declarou que aceitou a cobertura do risco associado à mesma.

24. Por não existir qualquer ponto que pudesse levar a uma recusa da cobertura do risco na proposta apresentada pela Autora e pelo Sr. BB, a 2ª Ré comunicou à 1ª Ré a aceitação do risco, conforme melhor consta do Documento junto a fls. 41 verso.

25. De acordo com o procedimento seguido na altura dos factos pela SEGURO DD, a fixação do montante a pagar pelo tomador do seguro a título de prémio mensal, apenas poderia ser realizada após a análise da proposta e de todos os elementos que contribuem para a avaliação do risco.

26. Tratando-se de um seguro que tem como cobertura o risco morte ou incapacidade total e permanente da(s) pessoa(s) segura(s), a 2ª Ré teria sempre de fazer a avaliação do risco antes de aceitar a proposta.

28. Foi remetida para a SEGURO DD pelo mediador uma cópia da proposta de contrato de seguro para avaliação do risco associado à mesma.

29. Verificada a conformidade da proposta e a existência de condições para aceitação do risco, a Ré SEGURO DD comunicou à 1ª Ré a aceitação do risco.

32. A A contactou a SEGURO DD, solicitando uma 2ª Via da Apólice do contrato de seguro que a Autora julgava existir (conforme melhor consta da cópia da missiva recebida pela 2ª Ré junta a fls. 43).

33. Omitindo a ocorrência do falecimento do Sr. BB.

33- A. Foi informada pela “SEGURO DD” que não existia qualquer contrato de seguro em que fossem tomadores e segurados o falecido BB e a Autora.

34. No documento complementar à escritura de 5 de Maio de 2002 ficou consignado na Cláusula Décima Terceira, Ponto 2: “Os mutuários obrigam-se a contratar um SEGURO DE VIDA cujas condições, constantes da respectiva apólice, serão as indicadas pelo Banco, em sociedade de seguros de reconhecido crédito e da confiança do Banco, a pagar atempadamente os respectivos prémios, a fazer inserir na respectiva apólice que o banco é credor hipotecário e que, em consequência, as indemnizações que sejam devidas em caso de sinistro reverterão para o Banco.”.

35. E no Ponto nº 3. Daquela mesma cláusula, ficou ainda a constar: “ As apólices e actas adicionais dos seguros acima referidos ficarão em poder do banco mutuante como interessado nos mesmos, na qualidade de credor hipotecário. Só por intermédio do banco e com o seu acordo por escrito os seguros poderão ser alterados ou anulados.”.

36. Na Cláusula Décima Segunda daquele Documento Complementar, ficou ainda a constar: “1.Os mutuários obrigam-se a trazer pontualmente pagos os seguros referidos na cláusula anterior. 2.Os mutuários autorizam desde já, com expressa sub-rogação, que, em caso de incumprimento de tais obrigações, o Banco as cumpra, efectuando por conta dos mutuários todos os pagamentos necessários, caso em que os correspondentes recibos e conhecimentos ficam igualmente a fazer parte desta escritura, para efeitos do artigo quinquagésimo do Código de Processo Civil e os débitos abrangidos pela garantia.” 3. Se o banco efectuar, na falta e por conta dos mutuários, o pagamento dos prémios e das comissões em dívida, nos termos do disposto no número anterior, os Mutuários autorizam desde já o banco a debitar os seus montantes em qualquer cota aberta em nome dos mutuários junto do BANCO CC.”.

37. Por ocasião das negociações que conduziram à concessão do empréstimo pedido pela Autora e por seu marido, o Banco exigiu-lhes que tratassem da celebração do seguro pois, sem ele, não emprestaria a quantia solicitada.

38. Deu-lhes até a indicação que, se o desejassem, poderiam fazer o seguro em Seguradora do Grupo BANCO CC, o que recusaram.

39. Informaram então o Banco que iriam tratar da celebração do contrato de seguro junto da aqui 2ª Ré, a SEGURO DD.

40. E assim fizeram.

41. O Banco ficou a aguardar que lhe fizessem prova da celebração do seguro para, só depois, outorgar a escritura do mútuo e emprestar o dinheiro pedido.

42. Foi então que recebeu nos seus serviços, datadas de 21 de Março de 2002, duas cartas da 2ª Ré, uma vinda de …, outra do …, ambas com conteúdo idêntico, as quais davam notícia ao Banco de que a SEGURO DD havia aceite desde 19 de Março de 2002 uma proposta de seguro de vida, denominado “SEGURO DD”, apresentada pela aqui Autora e pelo seu marido, seguro este pelo prazo de vinte anos e pelo capital de 64.843,73 € e no qual figurava o BANCO CC como beneficiário até ao montante do capital em dívida que o banco lhes ia emprestar, sendo beneficiários do remanescente, se o houvesse, os herdeiros legais (cfr. doc.s juntos a fls. 63 e 63 verso).

43. A Autora e o seu marido declararam no final da escritura de 2 de Maio de 2002 o seguinte: “Que já leram o referido documento complementar, que o conhecem perfeitamente, pelo que dispensam a sua leitura neste acto”.

*

Importa apreciar as questões enunciadas nas conclusões e decidir.

Recurso da 2ª R.

A Relação entendeu que, não obstante não se ter demonstrado a realização e existência do contrato de seguro de vida entre, por um lado, a A e seu falecido marido e, por outro, a 2ª R (seguradora), esta é responsável pela «cobertura do interesse positivo, ou de cumprimento» – portanto, pelo pagamento do montante em dívida ao BANCO CC à data da morte do marido da A (€ 35.000), tudo se passando como se o contrato de seguro tivesse sido efectivamente realizado –, por a mesma ter violado, culposamente, os deveres de boa fé, «ao não concluir o contrato de seguro pré estabelecido (emitindo a respectiva apólice) e definitivamente acordado com os futuros mutuários», «de tal definitiva intenção de aceitação do risco tendo dado conhecimento ao Banco mutuário com vista á realização do contrato de compra e venda com mútuo bancário, e que assim se concretizou, bem sabendo a Ré seguradora a essencialidade e consequências da sua declaração de aceitação do risco», «para a realização do contrato entre mutuante e mutuários».

Por sua vez, a recorrente sustenta que o contrato de seguro nunca chegou a ser celebrado e apenas comunicou ao banco a aceitação da cobertura do risco, não a celebração do contrato, pelo que é alheia ao facto de o banco, para ter celebrado o contrato de mútuo, se ter bastado com a confirmação da sua aceitação do risco, não tendo a recorrente admitido que essa confirmação levaria a que a A e seu marido ficassem convictos de que o contrato de seguro já estava celebrado e em vigor, em particular quando o prémio mensal a pagar, a sua principal e essencial obrigação no contrato de seguro, não estava definido, só sendo fixado após a análise da proposta e de todos os elementos que contribuem para a avaliação do risco, mas também porque jamais foi contactada pela A e pelo seu marido, com vista à formalização do contrato de seguro ou para saberem qual o valor do prémio do seguro a cujo pagamento se encontravam obrigados, e nunca lhe foi comunicado que o contrato de mútuo já tinha sido celebrado. A recorrente conclui, assim, manifestando o entendimento de que a total indiferença e ausência de contacto por parte da A e seu marido evidencia um desrespeito pelas regras da boa fé na negociação com ela entabulada.

Realmente, decorre dos factos provados que, apesar de a 2ª R (seguradora) não ter emitido e subscrito a apólice respeitante ao contrato de seguro de vida negociado com a A e seu falecido marido, a mesma aceitou, com efeitos desde 19-03-2002, a proposta de seguro de vida por estes apresentada (pelo prazo de vinte anos e pelo capital de € 64.843,73 e no qual figurava a 1ª R como beneficiária), por não existir qualquer ponto que pudesse levar a uma recusa da cobertura do risco que lhe estava inerente, e, em 21-03-2002 (fls. 41vº), comunicou essa aceitação ao banco, a fim de este poder celebrar o mútuo por eles pretendido.

Também se constata que:

Aquando das negociações que conduziram à concessão do empréstimo pedido pela A e por seu marido, o banco exigiu-lhes que celebrassem um seguro, sem o qual não emprestaria a quantia solicitada, tendo ficado a aguardar que lhe fizessem prova da celebração do seguro para, só depois, outorgar a escritura.

De acordo com o procedimento seguido na altura dos factos pela R seguradora, a mesma, antes de aceitar a proposta apresentada pela A e por seu marido, teria sempre de fazer a avaliação do risco, sendo que a fixação do montante do prémio mensal a pagar pelo tomador do seguro apenas poderia ser realizada após a análise da proposta e de todos os elementos que contribuíssem para a avaliação do risco, que, no caso, era o de morte ou incapacidade total e permanente das pessoas seguras.

Face à aceitação por parte da 2ª R da proposta por aqueles apresentada, o mútuo (com hipoteca e fiança) veio a ser concretizado por escritura outorgada no dia 6-05-2002, mediante a qual os mutuários declararam obrigar-se a contratar um seguro de vida, com as condições indicadas pelo banco, a pagar os respectivos prémios, a fazer inserir na apólice que as indemnizações que fossem devidas em caso de sinistro reverteriam para o banco e foi, ainda, clausulado que as apólices e actas adicionais de tal seguro ficariam em poder do banco, como interessado nos mesmos, que só por intermédio deste e com o seu acordo por escrito os seguros poderiam ser alterados ou anulados, bem como que os mutuários se obrigavam a trazer pontualmente pagos os seguros e que, em caso de incumprimento de tais obrigações, autorizavam o banco a efectuar, por conta deles, todos os pagamentos necessários, sendo os respectivos montantes debitados na sua conta.

Em 23-12-2002, a 2ª Ré comunicou à 1ª Ré que considerava nula e sem efeito a sua «declaração de risco aceite emitida em 19-03-2002», ficando assim «sem efeito a cláusula beneficiária a favor» da 1ª R (fls. 42).

Em 7-03-2013, faleceu o marido da A e esta, em 11-03-2013, solicitou à R seguradora uma 2ª via da apólice do contrato de seguro, que a mesma julgava existir (fls. 43), tendo aquela informado que não existia tal contrato.

Vejamos.

Mediante o contrato de seguro uma pessoa (singular ou colectiva), o tomador de seguro, transfere para uma empresa seguradora, especialmente habilitada e legalmente autorizada para o efeito, determinado risco económico próprio ou alheio, obrigando-se aquela ao pagamento de determinada contrapartida (prémio) e esta a efectuar determinada prestação pecuniária, em caso de ocorrência do evento aleatório convencionado (sinistro). Por isso, tal como defende a recorrente, o objecto do contrato de seguro encerra as seguintes prestações essenciais: a da seguradora (consistente na assunção do risco), que é de facto jurídico (de conteúdo complexo), positiva, duradoura (protela-se no tempo) e que a adstringe à obrigação de pagar um determinado capital, subordinada à verificação de um acontecimento aleatório (sinistro); e a do segurado (consistente na obrigação de pagamento do prémio), que é de facto material, positiva, duradoura (na modalidade de periódica e de trato sucessivo).

Contudo, essa essencialidade não impõe o acolhimento do demais arrazoado do recurso. Com efeito, o cerne da questão neste suscitada poderá, resumidamente, solver-se com a seguinte afirmação: no contrato de seguro, tal como a entrega da apólice constitui já o objecto da obrigação assumida pela seguradora, também o pagamento do prémio constitui o objecto da correspectiva obrigação do segurado, podendo os contraentes, já em execução do dito contrato, exigir reciprocamente o cumprimento de uma e outra obrigação, mas sem que qualquer delas constitua necessário pressuposto para a perfeição do mesmo.

Concretizando.

O seguro é um contrato formal. E, diferentemente do que sucede com os contratos celebrados após a entrada em vigor (1/1/2009) do actual Regime Jurídico do Contrato de Seguro (DL 72/2008 de 16/4) ([1]), perante o preceituado no art. 426º do C. Com. ([2]), vigente na data das negociações a que os autos se reportam, a respectiva apólice, ou a minuta depois de aceite pela seguradora, constituía documento ad substantiam (cf. art. 364º do CC), portanto, insubstituível por qualquer outro meio de prova ([3]).

O conteúdo da necessidade da forma escrita do contrato de seguro, para a validade do negócio, enquanto formalidade ad substantiam, face ao disposto naquele art. 426º, ficou conformado com o entendimento expresso pelo Assento do STJ de 22-1-1929 (DG, II série de 5-2-1929) que, pondo termo à controvérsia sobre o valor jurídico-contratual da minuta ou proposta de seguro, estabeleceu que esta «equivale para todos os efeitos à apólice».

Com efeito, «O contrato de seguro é um contrato consensual (por oposição a contrato real) formal (só se prova por escrito) receptício por adesão, que se aperfeiçoa com o encontro de duas vontades na forma legal, que se aperfeiçoa com a aceitação da proposta, não relevando a entrega da apólice ou o pagamento do prémio que não adquirem o significado de elementos constitutivos para a perfeição do contrato, ainda que possam condicionar a eficácia e execução de um contrato já perfeito com a aceitação receptícia por parte do proponente, da proposta a todos dirigida por parte do segurador» ([4]).

Nessa senda, sem perder de vista que o contrato de seguro, como negócio jurídico bilateral e formal, não está constituído sem a formação do consenso, i. é, sem o acordo da seguradora à proposta do interessado, assentou-se entre nós na ideia de que a declaração de ciência e de vontade manifestada na minuta ou proposta de contrato de seguro por este preenchida ([5]) – destinada a documentar a sua vontade de concluir o contrato e a determinar a completa e exacta representação do risco, com a indicação de todas as circunstâncias que o possam influenciar –, uma vez verificada a subsequente declaração receptícia de vontade da seguradora – expressa ou tácita – de a aceitar, teria o valor documental legalmente exigido para a validade do contrato de seguro. Ou seja, embora a apólice adquirisse, perante o citado normativo, a característica de sinal de legitimação, significando, por isso, a sua emissão e entrega ao segurado, em geral, a aceitação da proposta deste e a perfeição do contrato, também se considerava que tal minuta, depois de a seguradora a aceitar, funcionaria, desde logo, como verdadeiro documento do contrato, prevalecendo, até, a minuta do contrato sobre a respectiva apólice, no caso de discrepância entre aquela e esta, por a primeira representar aquilo a que o segurado se quis vincular, não podendo a seguradora, quando da aceitação, alterar as condições por ele pretendidas ([6]).

Posto isto, teremos de concluir que, apesar de a 2ª R (seguradora) não ter emitido a apólice respeitante ao contrato de seguro de vida negociado com a A e seu falecido marido, a aceitação pela mesma – que, no caso, até foi expressa –, com efeitos desde 19-03-2002, da proposta apresentada pelo segundos consumou a perfeição da celebração de tal contrato, que em nada dependeu da emissão da apólice ou do pagamento do prémio, que, como dissemos, são meras «condições de eficácia do contrato, ou melhor, da fase executiva preliminar do mesmo» ([7]).

O contrato de seguro configura-se, por norma, como um contrato de adesão, por as suas cláusulas serem prévia e unilateralmente elaboradas e subscritas sem prévia negociação individual.

Assim, a par do que se disse quanto à emissão (e entrega ao banco) da apólice, acto da única responsabilidade da R seguradora, também especificamente em relação ao pagamento do prémio, estamos perante requisito não necessário para que o contrato de seguro se considerasse válido e perfeito, ainda que a obrigação de os tomadores do seguro pagarem o prémio tivesse nascido quando assinaram a minuta a solicitar a emissão da apólice e a seguradora aceitou essa proposta ([8]): embora, posteriormente, a falta de pagamento pudesse vir a tornar o contrato insubsistente, tal só sucederia, tratando-se de seguro do ramo «Vida», depois de a seguradora, com esse fundamento, obter a sua resolução (cf. art. 436º do CC), após, previamente, converter a mora em incumprimento definitivo, designadamente mediante notificação admonitória, nos termos do art. 808º do CC ([9]). Tudo isso, na suposição de que a recorrente tivesse diligenciado – como lhe incumbiria, mas que, no recurso, aliás, admite nunca ter feito – a fixação do montante do prémio respeitante ao contrato que celebrara – para, assim, lhe conferir plena eficácia –, devendo esse montante ser adequado e proporcionado aos riscos que aceitara cobrir «e calculados no respeito dos princípios da técnica seguradora» (na expressão do art. 8º do DL 222/2009 de 11/9, actualmente vigente). Na verdade, decorre da aludida natureza do contrato e da normalidade das coisas que, na generalidade das situações, a liberdade contratual do tomador de seguro se queda pela possibilidade de concordar (ou não) com o montante do prémio fixado pela seguradora e de, na sequência, aderir (ou não) ao seguro ([10]).

É sabido que, em geral, quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato, nos termos do art. 227º do CC, deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa-fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte. Essas regras encerram deveres de protecção – que obrigam a procurar evitar causar danos ao parceiro negocial –, de informação – que vinculam as partes à prestação de todos os esclarecimentos necessários à conclusão honesta do contrato – e de lealdade – que adstringem os contraentes a não assumir comportamentos que se desviem de uma negociação correcta e honesta.

A razão de ser deste preceito está na tutela da confiança e da expectativa criada entre as partes no caminho negocial, mesmo antes de ter surgido qualquer contrato, ou seja, tanto na fase tendente à celebração do contrato, como na da sua conclusão, percurso durante o qual devem as partes adoptar comportamentos conformes às regras da boa-fé. «Toda a conduta, todo o agir ou interagir comunicativo, além de carrear uma pretensão de verdade ou de autenticidade (de fidelidade à própria identidade pessoal) desperta nos outros expectativas quanto à futura conduta do agente» e «todo o agir comunicativo implica uma auto-vinculação (uma exigência de fidelidade à pretensão que lhe é inerente), na medida em que desperta nos outros determinadas expectativas quanto a uma conduta futura. Mas esta auto-vinculação não tem que ter em todos os casos a mesma força» ([11]).

Por isso, a eventual celebração do contrato ou, também, a sua ineficácia não afastam as consequências da infração a tais regras e, por isso, da estatuição contida no citado normativo, «a qual é aplicável tanto no caso de se interromperem as negociações como no de o contrato chegar mesmo a consumar-se» ([12]).

Além disso, o exame sobre o grau de conformidade ou desconformidade com tais ditames da apurada conduta da R seguradora, no âmbito do negócio ora em causa, não pode menosprezar a intenção há muito concretizada pelo legislador, em várias áreas do nosso ordenamento jurídico, de garantir a protecção do consumidor – entendido no sentido do nº 1 do artigo 2º da lei nº 24/96 de 31/7 (Lei de defesa dos consumidores) ([13]) – que, em geral, assume uma posição mais desfavorecida, em relação a quem desenvolve, no âmbito profissional, uma actividade económica. É o que sucede, designadamente, com o reconhecimento da «importância da informação do consumidor no novo quadro da actividade seguradora», como esclareceu o preâmbulo do DL 176/95 de 26/7, aplicável ao negócio sub judicio, que estabeleceu «regras de transparência para a actividade seguradora e disposições relativas ao regime jurídico do contrato de seguro».

A essa luz, a formação do contrato de seguro é antecedida por uma série de deveres de informação que recaem sobre a seguradora e que representam um papel fulcral na protecção do segurado. No quadro da formação do contrato, estes deveres de comunicação e informação radicam, evidentemente, no princípio da autonomia privada, cujo exercício efectivo pressupõe que se encontre bem formada a vontade do aderente ao contrato e, para tanto, que este tenha um prévio e cabal conhecimento das cláusulas a que se vai vincular, sob pena de não ser autêntica a sua aceitação ([14]) ([15]).

Como é fácil de entender, são, assim, convocados deveres pré-contratuais de comunicação das cláusulas (a inserir no negócio) e de informação (prestação de esclarecimentos), como meios ordenados à apropriada formação da vontade do aderente. A obtenção desse objectivo requer, desde logo, que a comunicação do clausulado contratual seja feita com antecedência necessária ao conhecimento completo e efectivo do aderente, tendo em conta as circunstâncias (objectivas e subjectivas) presentes na negociação e na conclusão do contrato, para que o mesmo, usando da diligência própria do cidadão médio ou comum, as possa analisar e, assim, aceder ao seu conhecimento completo e efectivo, para além de poder pedir algum esclarecimento ou sugerir qualquer alteração.

Ora, mediante o art. 171º do DL 102/94 de 20/4, o legislador já impusera às empresas que se propusessem celebrar contratos de seguro do ramo «Vida» o dever de fornecer ao tomador, antes da celebração do contrato de seguro, informação, de forma clara, por escrito, sobre (além do mais): definição de cada garantia e opção; duração do contrato; modalidades de resolução do contrato; modalidades e período de pagamento dos prémios; prémios relativos a cada garantia; indicações gerais relativas ao regime fiscal aplicável ao tipo de contrato. E com os arts. 2º e 10º do citado DL 176/95, a tais deveres de informação pré-contratuais, acresceram (entre outros), a prestar da mesma forma, as relativas à quantificação dos encargos e condições, prazo e periodicidade do pagamento dos prémios.

Por outro lado, também não pode olvidar-se o comando do art. 17° deste último diploma que, sobre a formação do contrato, estipulava:

«1 - No caso de seguros individuais em que o tomador seja uma pessoa física e sem prejuízo de poder ser convencionado outro prazo, considera-se que, decorridos 15 dias após a recepção da proposta de seguro sem que a seguradora tenha notificado o proponente da aceitação, da recusa ou da necessidade de recolher esclarecimentos essenciais à avaliação do risco, nomeadamente exame médico ou apreciação local do risco ou da coisa segura, o contrato se considera celebrado nos termos propostos.

2 - Para os efeitos deste artigo considera-se como proposta de seguro o formulário normalmente fornecido pela seguradora para contratação do seguro.».

No caso, até nem está em causa o valor do silêncio da R seguradora após a recepção da proposta de seguro ([16]), porque, tendo-a ela aceite expressamente, o contrato, de todo o modo e por maioria de razão, considera-se celebrado nos termos propostos.

Compreende-se que as seguradoras, por vezes, subordinem a aceitação de determinados contratos de seguro, sobretudo os do ramo «Vida», à apreciação de certos elementos relacionados com o risco a garantir, p. ex., o resultado de exame médico à pessoa a segurar. Porém, no caso, nem se demonstra que a recorrente carecesse de determinadas informações complementares, atendendo a que aceitou a proposta e o risco à mesma inerente, sem que revelasse quaisquer reservas, sendo certo que, até à aceitação, poderia recusar o contrato. E, ainda que se demonstrasse tal necessidade, não já para a aceitação da proposta, mas, por hipótese, para a fixação do montante do prémio do seguro, sobre a mesma recaía o ónus de promover e/ou solicitar, expeditamente, tais elementos, de harmonia com os princípios decorrentes da boa-fé, sob pena de, devido à sua negligência, dever ser-lhe assacada a responsabilidade pelos danos advindos da não obtenção da plena eficácia do contrato celebrado.

A 2ª R, depois de aceitar a proposta de seguro, nada fez, antes se remeteu ao mais completo silêncio: não emitiu (nem entregou ao banco) a apólice a que estava vinculada, assim como nada mais diligenciou para que, com a fixação do montante do prémio do seguro, fosse conferida eficácia ao contrato. Nem sequer se retira dos factos assentes que a R seguradora também tenha enviado à A e seu marido uma comunicação do género da que remeteu ao banco em 23/12/2002 e daí que, compreensivelmente, tenha sido tido por provado que a A, em 11-03-2013, ainda julgava existir a apólice do contrato de seguro (cf. item 32).

Por conseguinte, como flui do expendido enquadramento jurídico dos factos examinados, essa conduta da R contraria os deveres desencadeados pelo contrato que a mesma acabara de celebrar e os elementares deveres decorrentes da boa-fé, pelo que, com o que, suplementarmente, ponderámos, acompanhamos o raciocínio com que na decisão recorrida se concluiu pela responsabilidade da R pela reparação dos danos sofridos pela A, em consequência da violação culposa pela mesma dos deveres de boa fé e, segundo nos parece, também, dos decorrentes do contrato celebrado.

A aceitação pela R da proposta contratual, atendendo aos seus efeitos jurídicos supra explanados, não poderia deixar de, idoneamente, contribuir para que os seus interlocutores contratuais, a A e seu marido, perante a normal confiança depositada na boa-fé daquela, tivessem a convicção de que o contrato tinha sido celebrado – como realmente tinha –, bem como a real e fundada expectativa, quer na efectiva emissão e entrega ao banco da apólice, quer na futura eficácia do contrato. Tem, pois, razão a recorrida quando lembra que a recorrente, após a comunicação de aceitação da proposta, nada mais solicitou ou pediu aos “segurados”, nem nunca lhes comunicou que teria alterado a sua posição e, afinal, já não iria aceitar a proposta e assumir o risco, sendo-lhes totalmente alheios os actos, da única responsabilidade da recorrente, que conduziriam à consumação da eficácia das condições contratuais.

Por isso, a confiança da A (e seu marido) merece protecção face à, realmente, muito estranha conduta da R cronologicamente ulterior à sua aceitação da proposta, por se alhear, latamente, dos básicos padrões comportamentais que no seu ramo de actividade se impõem e em que, em termos de normalidade, devem estar presentes, sendo, por isso, ético-juridicamente censurável ([17]).

Como dissemos, a Relação, por ter entendido que a 2ª R violara o dever de conclusão do negócio, considerou-a responsável pela «cobertura do interesse positivo, ou de cumprimento» – portanto, pelo pagamento do montante em dívida ao BANCO CC à data da morte do marido da A (€ 35.000) ([18]).

É conhecida a controvérsia sobre o alcance indemnizatório da responsabilidade pré-contratual, ou seja, sobre saber se a indemnização será pelo interesse contratual negativo ou pelo interesse contratual positivo, pelo menos, em certas situações ([19]).

Contudo, resulta do que acima explanámos que a responsabilidade da 2ª R advém, não apenas da violação de deveres de comunicação e informação, no quadro da formação do contrato, mas também de deveres – a emissão da apólice e as diligências inerentes à fixação do montante do prémio – a que se encontrava adstrita já em execução do próprio contrato consumado. Assim sendo, não se trata, apenas da proteção da confiança na celebração do negócio – por as negociações terem atingido um desenvolvimento tal que a justifique –, mas sim da proteção da confiança na execução do próprio negócio celebrado.

Por conseguinte, não subsistem quaisquer dúvidas de que o montante da indemnização deve corresponder ao interesse contratual positivo, pelo que, pelas acrescidas razões expostas, também perfilhamos o entendimento da Relação, por se afigurar ser o mais consentâneo com a realização da justiça material deste caso.

Por fim, resta analisar a matéria alegada pela recorrente quanto ao comportamento da A e do seu falecido marido, que reputou de desrespeitoso das regras da boa fé na negociação. Trata-se do que a recorrente apelidou de total indiferença e ausência de contacto por parte dos mesmos, na sequência da sua comunicação de aceitação da proposta de seguro, causadoras, no seu alvitre, da falta de fixação, entre as partes, do montante dos prémios do seguro e da sua impossibilidade de reclamar o valor do respectivo somatório.

Apreciando.

É verdade, ou pelo menos assim já o reconhecemos, que era a recorrente quem estava vinculada, como decorrência da boa-fé e, sobremaneira, das obrigações assumidas no âmbito do contrato consumado, a proceder à emissão (e entrega ao banco) da apólice e às diligências inerentes à fixação do montante do prémio, que deveria ter feito preceder do cumprimento dos enunciados deveres de comunicação e informação.

Contudo, pensamos que a recorrente tem razão, ainda que em circunscrita medida, atendendo a todos os argumentos já exibidos. Realmente, mesmo considerando que se extrai dos factos provados que a A, cerca de 11 anos depois das negociações, ainda julgava existir a apólice do contrato de seguro, não nos parece que a sua conduta e a do seu falecido marido sejam muito escorreitas, justificando, até, alguma perplexidade, à luz dos comuns padrões comportamentais e tendo em conta o pouco que consta da matéria assente: apenas com a verificação do risco previsto no seguro – o óbito do marido da A – se manifestou a preocupação de fazer a “prova de vida” do contrato? e quanto ao prémio do seguro que à A e seu marido caberia ter liquidado durante esses cerca de 11 anos foi feita alguma diligência junto da seguradora ou do banco para esclarecer esse grande “detalhe”? se não foi feita, como tudo indica, onde residirá a explicação para essa falta?

Estamos perante um negócio jurídico em que a A e seu marido contrataram, em nome próprio mas no interesse do banco enquanto beneficiário do seguro, embora também com a por eles prosseguida vantagem de assegurarem a restituição da importância emprestada, perante a verificação do infortúnio garantido que prejudicasse o normal cumprimento das suas obrigações: a morte ou a invalidez absoluta e definitiva de um deles, que lhes não permitisse ou dificultasse o pagamento das prestações do crédito contraído ([20]).

 Neste conspecto, mesmo cabendo à 2ª R o cumprimento dos indicados deveres tendentes a obter a plena eficácia do contrato celebrado, não pode omitir-se que a adopção de um comportamento contratual medianamente diligente por parte da A e do seu falecido marido poderia, num juízo de prognose póstuma, ter impelido aquela R ao cumprimento de tais deveres, visando a concretização da vantagem por eles também prosseguida com o seguro.

Ora, como bem sabemos, as exigências decorrentes dos deveres que, especialmente, oneravam a R seguradora teriam como contrapartida, também por imposição do princípio da boa-fé, o aludido dever de diligência média por banda da A e do seu marido, enquanto credores ou destinatários da prestação daqueles deveres: dos mesmos se esperaria também um comportamento leal, correcto e diligente, nomeadamente pedindo esclarecimentos. Constatação que, em caso algum, poderá levar a admitir que a R possa ficar eximida das consequências do incumprimento dos deveres que a oneravam, ou a conceber como legítimas a ausência de comunicação das condições referentes à fixação do prémio do seguro, com a antecedência necessária ao conhecimento completo e efectivo pelos destinatários, e, sobretudo, a sua completa passividade na promoção dessa fixação e da emissão da apólice. Pode discutir-se a intensidade e o grau do dever de diligência que recaía sobre a A e o seu marido, mas já não é sustentável que, perante esse dever de diligência, a R ficasse dispensada dos seus próprios deveres, que, como parece evidente, assumem uma saliente primazia hierárquica no cotejo com o dever de diligência daqueles.

Posto isto, entendemos que deve ser fixada apenas em 20% a medida da contribuição da omissão do dever de diligência por parte da A e do seu marido, enquanto credores da prestação a que a R se encontrava adstrita, para o incumprimento em que esta incorreu e, assim sendo, a responsabilidade da R, tal como encarada na decisão recorrida, queda-se pelo montante de € 28.000, ainda que este, sendo fundado na responsabilidade da 2ª R pelos danos causados à A e não no contrato de seguro celebrado em benefício da R BANCO CC, seja devido, não a esta R, mas sim, em conformidade com o pedido subsidiariamente formulado na petição, à A, por si e na qualidade de cabeça de casal da herança deixada pelo seu falecido marido.

Procede, pois, em parte e nos referidos termos, o recurso da 2ª R.

Recurso da 1ª R.

Como consequência do decidido quanto ao recurso da 2ª R, mostra-se ultrapassada a necessidade do conhecimento da questão suscitada no recurso de revista da 1ª R, assim a questão da sua admissibilidade, aventada pela recorrida. Na verdade, não recebendo esta 1ª R da 2ª R a quantia que fora arbitrada pela Relação correspondente ao montante em dívida à data da morte do marido da A (€ 35.000), não se coloca o problema do destino a dar a todas as prestações pagas pela A desde a data do referido óbito, o qual apenas releva ou se repercute no âmbito da relação contratual mantida entre a A e a 1ª R. De todo o modo, contra o decidido em 2ª instância, deve ficar esclarecido que a 1ª R não tem de restituir o que, entretanto, foi recebendo da mutuária sobreviva no cumprimento das obrigações do mútuo.

*

Síntese conclusiva:

1. Perante o preceituado no art. 426º do C. Com., diferentemente do que sucede com os contratos celebrados após a entrada em vigor (1/1/2009) do actual Regime Jurídico do Contrato de Seguro (DL 72/2008 de 16/4), constituía documento ad substantiam (cf. art. 364º do CC) a apólice do contrato seguro, ou a minuta depois de aceite pela seguradora, tendo o entendimento expresso pelo Assento do STJ de 22-1-1929 (DG, II série de 5-2-1929) conformado o conteúdo da necessidade da forma escrita do contrato de seguro, para a validade do negócio, ao estabelecer que a minuta ou proposta de seguro «equivale para todos os efeitos à apólice».

2. Tratando-se de contrato de seguro do ramo «Vida», tal como a entrega da apólice constitui já o objecto da obrigação assumida pela seguradora, também o pagamento do prémio constitui o objecto da correspectiva obrigação do segurado, podendo os contraentes, já em execução do dito contrato, exigir reciprocamente o cumprimento de uma e outra obrigação, mas sem que qualquer delas constitua necessário pressuposto para a perfeição do mesmo, ainda que possam condicionar a eficácia e execução de um contrato, que se encontra já perfeito a partir da declaração receptícia de vontade da seguradora – expressa ou tácita – de aceitar a minuta ou proposta de seguro.

3. E, ainda que a obrigação de os tomadores do seguro pagarem o prémio tivesse nascido quando assinaram a minuta a solicitar a emissão da apólice e a seguradora aceitou essa proposta, a posterior falta de pagamento do prémio poderia vir a tornar o contrato insubsistente, mas tal só sucederia depois de a seguradora, com esse fundamento, obter a sua resolução (cf. art. 436º do CC), para o que, previamente, teria de converter a mora em incumprimento definitivo, designadamente mediante notificação admonitória, nos termos do art. 808º do CC.

4. A tutela da confiança e da expectativa criada entre as partes no caminho negocial constitui a razão pela qual devem as partes adoptar comportamentos conformes às regras da boa-fé mesmo antes de ter surgido qualquer contrato e estende-se para lá da conclusão deste, pelo que, a eventual celebração do contrato ou, também, a sua ineficácia não afastam as consequências da infração a tais regras.

5. Além disso, o exame sobre o grau de conformidade ou desconformidade com tais ditames da conduta da seguradora deve ser visto à luz das garantias da protecção do consumidor – entendido no sentido do nº 1 do artigo 2º da lei nº 24/96 de 31/7 –, o que implica que a formação do contrato de seguro seja antecedida do cumprimento de uma série de deveres de comunicação e informação que recaem sobre a seguradora e que representam um papel fulcral em tal protecção, como sucedia com os previstos pelo art. 171º do DL 102/94 de 20/4 e pelos arts. 2º e 10º do citado DL 176/95, de fornecer ao tomador, antes da celebração do contrato de seguro (do ramo «Vida»), informação, de forma clara, por escrito, sobre, além do mais, a quantificação dos encargos e condições, prazo e periodicidade do pagamento dos prémios.

6. Compreendendo-se que as seguradoras, por vezes, subordinem a aceitação de determinados contratos de seguro, sobretudo os do ramo «Vida», à apreciação de certos elementos relacionados com o risco a garantir, p. ex., o resultado de exame médico à pessoa a segurar, ainda que, no caso, se demonstrasse tal necessidade, não já para a (consumada) aceitação da proposta, mas, por hipótese, para a fixação do montante do prémio do seguro, sobre a seguradora recaía o ónus de promover e/ou solicitar, expeditamente, tais elementos, de harmonia com os princípios decorrentes da boa-fé, sob pena de, devido à sua negligência, dever ser-lhe assacada a responsabilidade pelos danos advindos da não obtenção da plena eficácia do contrato celebrado.

7. A R seguradora, depois de aceitar a proposta de seguro, não emitiu (nem entregou ao banco) a apólice a que estava vinculada, assim como nada mais diligenciou para que, com a fixação do montante do prémio do seguro, fosse conferida eficácia ao contrato, conduta que contrariou os deveres desencadeados pelo contrato que a mesma acabara de celebrar e os elementares deveres decorrentes da boa-fé, por se alhear dos básicos padrões comportamentais que no seu ramo de actividade se impõem e em que, em termos de normalidade, devem estar presentes, sendo, por isso, ético-juridicamente censurável.

8. Assim sendo, por se tratar da proteção da confiança na execução do negócio já celebrado, não apenas da confiança na sua celebração, não subsistem dúvidas de que o montante da indemnização adequado à respectiva violação deve corresponder ao interesse contratual positivo, por se afigurar ser o mais consentâneo com a realização da justiça material deste caso.

9. As exigências decorrentes dos deveres que, especialmente, oneravam a seguradora teriam como contrapartida, também por imposição do princípio da boa-fé, o dever de diligência média por banda dos credores ou destinatários da prestação daqueles deveres, podendo admitir-se, num juízo de prognose póstuma, que a adopção de um comportamento contratual medianamente diligente por parte dos mesmos poderia ter impelido aquela ao cumprimento de tais deveres, visando a concretização da vantagem por eles também prosseguida com o seguro de vida (a restituição da importância emprestada pelo banco), devendo fixar-se em 20% a medida da contribuição da omissão desse dever de diligência para o incumprimento da seguradora.

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Decisão:

Pelo exposto, acorda-se em alterar a decisão recorrida, concedendo parcialmente a revista interposta pela 2ª R (seguradora) e julgando prejudicado o conhecimento da revista interposta pela 1ª R e, por consequência, em:

a) condenar a 2ª R (seguradora) a pagar à A apenas a quantia de € 28.000 (vinte e oito mil euros), absolvendo-a da restante parte peticionada;

b) absolver a 1ª R (banco) do pedido de devolução à A de todas as prestações pagas desde a data do óbito de BB.

Custas, na revista e nas instâncias, pela recorrente seguradora e pela recorrida, na proporção de 4/5 e 1/5, respectivamente.        

Lisboa, 11/1/2017

Alexandre Reis - Relator

Lima Gonçalves

Sebastião Póvoas

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[1] De cujo art. 32º resulta que a «validade do contrato de seguro não depende da observância de forma especial», embora o segurador seja «obrigado a formalizar o contrato num instrumento escrito, que se designa por apólice de seguro, e a entregá-lo ao tomador do seguro».

[2] Essa norma, dispondo sobre os requisitos essenciais e a forma do contrato de seguro e as menções da apólice, impunha que o contrato de seguro deveria ser reduzido a escrito num instrumento, que constituiria a apólice de seguro, a qual deveria ser datada, assinada pelo segurador, e enunciar, além do mais, o objecto do seguro e a sua natureza e valor, os riscos contra que se fazia o seguro, o tempo em que começam e acabam os riscos, a quantia segurada, o prémio do seguro e, em geral, todas as circunstâncias cujo conhecimento pudesse interessar ao segurador, bem como todas as condições estipuladas pelas partes.

Também o subsequente artigo (427º) estipulava que o «contrato de seguro regular-se-á pelas estipulações da respectiva apólice não proibidas pela lei, e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições deste Código».

[3] Cf. p. ex., Moitinho de Almeida, in O Contrato de Seguro”, e, entre outros, os Acs. deste STJ de 28-09-1995 (086647 - Joaquim de Matos: «A apólice, ou a minuta depois de aceite pela seguradora, constitui formalidade "ad substantiam"») e de 4-12-2014 (23/12.7TBESP.P1.S1 - Prazeres Beleza). As formalidades ad substantiam, ou substanciais, são as exigidas sob pena de nulidade do negócio, sendo irremediável a sua falta, ou seja, são absolutamente insubstituíveis (cfr. Prof. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. 2º, p. 145).

[4] Guerra da Mota, “O Contrato de Seguro Terrestre”, I vol., pp. 404 e ss., citado por Abílio Neto, “Código Comercial …”, Ediforum, 15ª ed., p. 277. No mesmo sentidos os Acs. do STJ de 28-09-1995 (já citado), e de  09-10-2008 (08B2673 - Alberto Sobrinho).

[5] «O “impresso” da apólice cujos espaços em branco são preenchidos» (Carlos A.A. Bettencourt de Faria, “O conceito e a natureza jurídica do contrato de seguro”, em CJ, 1978, 3º-790).

[6] Como observava Cunha Gonçalves (Comentário ao Código Comercial, vol. II. p. 546).

Também José Bento (em “Direito dos Seguros”, 1994/95. pp. 125 a 128) escreveu: «A aprovação ou aceitação da minuta ou proposta de contrato de seguro, preenchida pelo segurado, pode manifestar-se antes da emissão da apólice, quer expressa, quer tacitamente. Se um interessado preenche um questionário, declarando quais as coberturas que pretende e conformando-se com as condições em que o contrato vigorará, que desde logo declara ter lido e aceitado, que é a minuta do contrato, sendo esta aceite pela seguradora, não se poderia admitir que, a partir daí se continuasse a exigir a emissão da apólice como pressuposto da validade do contrato. O segurado não poderia ficar sujeito à celeridade ou à demora da seguradora. É uniforme a jurisprudência no sentido de que o contrato de seguro se torna válido e eficaz a partir da aceitação da proposta ou da minuta.».

[7] Guerra da Mota, na ob. e loc. citados.


[8] Atendendo a que, enquanto o risco não se encontra transferido para a seguradora, não há lugar a prémio, no caso, tal obrigação teria nascido, mais precisamente, em 19/3/2002, data a que a R reportou os efeitos da aceitação da proposta.

[9] Neste sentido, o Ac. deste STJ de 24-02-2015 (1336/12.3T2AVR.C1.S1 - Martins de Sousa). Com efeito, os contratos de seguro do ramo «Vida», entre outros, estavam excluídos do regime da resolução automática dos contratos de seguro em geral, por falta de pagamento do respectivo prémio (ou fracção inicial do mesmo), no sistema emergente do DL 142/2000 de 15/7 (tal como, anteriormente, do DL 105/94 de 23/4 e, posteriormente, do DL 122/2005 de 29/7).

[10] E assim continua a ser, não obstante a norma (programática) contida no art. 52º do citado Regime Jurídico do Contrato de Seguro estatuir, presentemente, que «Salvo disposição legal em sentido contrário, o montante do prémio e as regras sobre o seu cálculo e determinação são estipulados no contrato de seguro, ao abrigo da liberdade contratual» e «Na falta ou insuficiência de determinação do prémio pelas partes, atende -se a que o prémio deve ser adequado e proporcionado aos riscos a cobrir pelo segurador e calculado no respeito dos princípios da técnica seguradora, sem prejuízo de eventuais especificidades de certas categorias de seguros e de circunstâncias concretas dos riscos assumidos».

[11] Baptista Machado in, RLJ 117º-233.

[12] Ac. deste STJ de STJ de 29-01-2004 (03B4187 - Ferreira de Almeida), em cujo sumário ficou, ainda, a constar: «Impendem pois sobre as partes, entre outros, os deveres de comunicação, informação e esclarecimento que abrangem não só a viabilidade da celebração do contrato e os obstáculos a ela previsíveis, como os elementos negociais e a própria viabilidade jurídica do contrato projectado. Em decorrência desse dever de boa-fé, de lealdade e de lisura contratual impõe-se que a parte, que conheça ou saiba - ou deva saber com a normal diligência - que algum risco ameaça o sucesso do processo negocial, o comunique à contraparte, advertindo-a, em particular, da necessidade de adequada prudência na realização de gastos. É, contudo, necessário para que ocorra responsabilidade civil do faltoso que tal conduta ilícita e culposa haja provocado danos à contraparte, entendidos estes como todos os prejuízos sofridos por esta última.».

[13] «Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios».

[14] Tais deveres resultam, genericamente, do art. 227º nº 1 do CC. Com efeito, a comunicação, na íntegra, dos projectos negociais é, no fundo, uma elementar imposição do princípio da boa-fé contratual.

[15] Foi o que ponderou, mais detalhadamente, o anterior Ac. desta Secção de 2-12-2013 (p. 306/10.0TCGMR.G1.S1-Clara Sottomayor): «Dada a disparidade de poder entre as partes do contrato de adesão, assume um papel decisivo a garantia do “modelo de informação” ou “imperativo de transparência”, cuja finalidade é potenciar a formação consciente e ponderada da vontade negocial, parificando posições de disparidade cognitiva, quer quanto ao objecto, quer quanto às condições do contrato [Cf. Joaquim de Sousa Ribeiro, Direito dos Contratos, Estudos, Coimbra editora, Coimbra, 2007, p. 49.].Reconhece-se que a liberdade de contratar assenta em pressupostos cognitivos e que a necessidade de transparência e de informação, reportada à fase da formação da vontade, permite combater «a estrutural assimetria informativa entre as partes», e exige ao profissional «deveres positivos de informação, de acordo com parâmetros quantitativos e qualitativos capazes de afiançarem a integralidade, a exactidão e a eficácia de comunicação»[\idem, p. 61.]. O princípio da transparência adequa-se, ainda, ao discurso argumentativo próprio do pensamento civilista, pois a sua função é instrumental à autonomia privada, permitindo criar condições para o seu exercício. O objectivo deste modelo é, assim, o de melhorar a qualidade do consentimento do consumidor, e também, corrigir o desequilíbrio das prestações, bem como promover a defesa da justiça interna do contrato [Cf. Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Coimbra, 1995, p. 423.].».

[16] Cf. Ac. do STJ de 27-01-2010 (5710/06.6TBVNG.P1.S1 - Alves Velho).

[17] Embora não releve, directamente, para o conhecimento das questões suscitadas nestes recursos, observa-se, um breve parêntesis, que os factos apurados também não oferecem qualquer explicação para o comportamento da R BCP: fica sem se saber por que razão essa R terá desconsiderado a essencialidade que inicialmente atribuíra à celebração pelos mutuários de um seguro (queria a apólice em seu poder e efectuaria, por conta dos mutuários, o pagamento dos prémios do seguro, em caso de incumprimento por estes), pois acabou por conceder o empréstimo, sem ter solicitado à seguradora o envio da apólice, e não consta dos factos qualquer sua reação à comunicação da seguradora de 23-12-2002 a declarar sem efeito «a cláusula beneficiária» a seu favor.

[18] Fê-lo com o apoio doutrinal de P. Lima e A. Varela, in Código Civil, anotado, Vol I, p. 216, que admitem que a responsabilidade pré-contratual, excepcionalmente, tenda a cobrir o interesse contratual positivo ou de cumprimento, em caso de violação culposa do dever de conclusão do contrato.

[19] Em que emergem, essencialmente, três posições, das quais o Ac. deste Tribunal de 28-04-2009 (09A0457 - Azevedo Ramos) nos dá detalhada nota, tanto quanto aos seus conteúdos como aos respectivos protagonistas.

[20] Neste sentido, o citado Ac. deste STJ de 24-02-2015.