Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3794/21.6T8VNG.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: LUIS ESPÍRITO SANTO
Descritores: DONATIVO CONFORME AOS USOS SOCIAIS
DOAÇÃO ENTRE CÔNJUGES
VALIDADE
ANIMUS DONANDI
INTERPRETAÇÃO DA VONTADE
REGIME APLICÁVEL
INTERPRETAÇÃO DA LEI
Data do Acordão: 06/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA PROCEDENTE.
Sumário :
I – Para que determinada oferta possa ser qualificada como donativo conforme aos usos sociais, nos termos e para os efeitos do artigo 940º, nº 2, do Código Civil, não constituindo assim doação, é necessário que o ofertante tenha tido a consciência de ter actuado por causa e em cumprimento de regras do trato e convivência social, de forma obsequiosa, constituindo assim um gesto de cortesia ou decoro, caracterizado decisivamente pelo animus solvendi de que se encontrava imbuído.
II - Não é a avultada fortuna de quem oferece, ainda que de contornos praticamente inimagináveis para o comum dos cidadãos, que define por si só a natureza do acto; ao invés, o elemento que se apresenta como decisivo para essa qualificação é o espírito que motiva o sujeito que age na convicção de estar a cumprir uma obrigação de carácter social, levado pela expectativa de outros quanto à adopção dessa sua conduta, impregnada da simpatia, reconhecimento e gentileza que os padrões da educação e vida em sociedade  recomendam, a qual está por isso mesmo em conformidade com os usos, sendo esta a circunstância essencial que distingue a figura do donativo previsto no artigo 940º, nº 2, do Código Civil, apartando-o do regime comum das doações que seria em princípio aplicável a este tipo de atribuições patrimoniais sem contrapartida.
III – Ao ter decidido agraciar o seu esposo, ofertando-lhe um luxuoso veículo (topo de gama), munido de todos os extras que o Réu livre e autorizadamente escolheu, adquirido pelo preço de € 161.164,79 (cento e sessenta e um mil, cento e sessenta e quatro euros e setenta e nove cêntimos), a A. quis concretizar uma verdadeira liberalidade, a propósito ou pretexto de uma ocasião festiva (a data do aniversário do beneficiário), visando provocar-lhe emoção e agrado mas simultaneamente – e também por isso mesmo -, aumentar muito significativamente o património do contemplado, sem receber deste contrapartida alguma.
IV – A própria dilação (de seis meses) entre o momento da tomada e comunicação da decisão de oferecer a dita prenda de anos e o da efectiva aquisição daquele valioso bem, para cujas exactas caraterísticas contribuiu o gosto e exigências pessoais do Réu, afastam a ideia de que a A. só fez a oferta por se encontrar convencida de que tal comportamento correspondia ao cumprimento de uma obrigação de natureza estritamente social e, portanto, sem animus donandi.
V – Revestindo os donativos previstos no artigo 940º, nº 2, do Código Civil natureza absolutamente genérica e indeterminada, aplicando-se a uma imensidade de situações, importará atentar em que a oferta se integrou no âmbito de relacionamento entre cônjuges, no domínio patrimonial, para o qual a lei avisadamente estabeleceu um regime jurídico próprio e exclusivo, pelo só em situações absolutamente claras e indubitáveis quando à sua natureza de donativo conforme aos usos sociais, mormente atendendo às circunstâncias e contexto que a envolveram e ao valor não extravagante do bem oferecido, será então de afastar aquele regime jurídico.
VI –  A dita indubitabilidade quanto à natureza do donativo (conforme aos usos sociais) terá de resultar ainda da concepção social dominante que leve justificadamente a afastar este tipo de atribuições patrimoniais do plano jurídico, entregando-o às regras de regulação puramente social e retirando-lhes, por isso mesmo, a sua juridicidade, sendo que, existindo um regime próprio que regula as doações entre cônjuges e sendo o valor económico do bem transmitido elevadíssimo, afigura-se-nos que a situação sub judice deverá ser coberta pelo ordenamento, através da avocação dos regimes próprios previstos na lei.
VII – Logo, in casu, estamos perante uma doação entre cônjuges a qual revogável nos termos do artigo 1765º, nº 1, do mesmo diploma legal.
Decisão Texto Integral:


Processo nº 3794/21.6T8VNG.P1.S1

 Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção).

I - RELATÓRIO.
AA instaurou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra BB.
Essencialmente alegou:
A A. e o R. casaram em 9 de Junho de 2012, segundo o regime de separação de bens.
A A. deu ao R., em Dezembro de 2013, o veículo automóvel que identifica, o que este aceitou, utilizando o veículo desde então até Fevereiro de 2021.
Nesta última data o R. o vendeu, tendo nessa data o veículo, que fora adquirido pelo preço de € 161.164,79, o valor de € 78.500,00, sendo que o casal se encontra desavindo e em processo de divórcio, pretendendo a A. revogar tal doação
Concluiu pedindo que seja declarada a revogação da doação efectuada pela A. ao R. do veículo automóvel de marca “Audi”, modelo “RS 6”, com a matrícula portuguesa ..-SG-.. e o R. condenado a restituir o veículo à A. ou, caso tal não seja possível, subsidiariamente, a pagar-lhe a quantia de € 78.500,00, acrescida de juros de mora desde a data da citação até integral pagamento, à taxa de 4% ao ano.
Regularmente citado, o R. contestou.
Alegou essencialmente:
O veículo lhe foi dado como prenda de anos, sendo uma doação conforme aos usos sociais, atentas as condições económicas da A., o que, ademais, esta fez crer ao R. e aos seus amigos, e invocando a existência de abuso de direito por parte da A..
A A. respondeu, defendendo não existir abuso de direito da sua parte e reiterando não se estar perante um donativo conforme aos usos sociais, tendo ainda, neste articulado, aceitado factos alegados na contestação respeitantes à sua condição económica.
Foi proferido sentença que julgou a acção parcialmente procedente nos seguintes termos:
“considerar revogada a doação do veículo automóvel identificado no ponto 6 da matéria de facto, efectuada pela A. ao R.; condenar o R. a entregar à A. a quantia 50.000,00 (cinquenta mil euros), acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento, à taxa de 4% ou outra que legalmente venha a estar em vigor; absolver o R. do restante pedido”.
Apresentou o Réu recurso de apelação que veio a ser julgado, por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 28 de Fevereiro de 2023, procedente, absolvendo-se o Réu do pedido.
Veio a A, interpor recurso de revista, apresentando as seguintes conclusões:
1.ª - Vem o presente recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28.02.2023, que julgou procedente o recurso de apelação, revogando a sentença recorrida e absolvendo o Réu dos pedidos contra ele formulados pela Autora.
2.ªAdoutasentença,proferidaa19.09.2022
- declarou revogada a doação no veículo automóvel de marca Audi, modelo RS 6, com de matrícula ..-SG-.., efectuada pela Autora ao Réu BB e condenou o Réu a entregar à Autora a quantia de Eur, 50.000,00 acrescidadejuros de mora, desde a citação até integral pagamento, à taxa de 4% ou outra que legalmente venha a estar em vigor.
3.ª A primeira instância entendeu, como a Autora, que a oferta daquele veículoautomóvelpelaAutoraaoRéu,comoprendadeaniversário,nãodeveserqualificadacomoumdonativo conforme aos usos sociais; a Relação do Porto entendeu o contrário, sufragando a tese defendida pelo Réu.
4.ª Assim, a questão central a decidir neste recurso é de direito: saber se a prenda de aniversário feita pelo Autor ao Réu, em 2013, de um veículo marca Audi no valor de Eur 161.164,79, deve ser qualificada como um donativo conforme aos usos sociais.
5.ª As doações entrecasados, como éo caso, são livrementerevogáveis, atodoo tempo,nos termosdoartigo1765.º,n.º1,doCódigoCivil,masumdonativoconformeaosusossociais não é considerado por lei uma doação – cfr. artigo 940.º, n.º 2, do mesmo código – pelo que, se assim for qualificada a dávida, a mesma não é revogável.
6.ª Da matéria de facto dada como provada resulta que em 2013 a Autora ofereceu como prenda de aniversário ao Réu, com quem era casada há um ano e pouco, no regime de separação de bens da lei belga – análogo ao da lei portuguesa – o veículo de marca Audi, que lhe custou Eur 161.164,79, e ainda que a Autora adquiriu, nos anos seguintes, diversos imóveis, e que constituiu diversas sociedades.
7.ª Sem dúvida que esses factos revelam que a Autora tem uma capacidade económica acima da média, mas de tais aquisições de bens não resulta, e menos ainda da constituição das sociedades resulta, que a Autora tem um nível financeiro tão elevado que o preço do veículo tenha sido, para si, coisa de somenos, sem significado económico.
8.ª Basta pensar que vários dos imóveis adquiridos pela Autora tiveram um preço de compra inferior ao preço do veículo, para perceber a real dimensão da oferta que a Autora fez ao marido – tratou-se de uma prenda com um valor excepcionalmente elevado, no contexto dos gastos da Recorrente.
9.ª O acórdão recorrido considera que o valor do presente de aniversário, enquanto donativo conforme aos usos sociais, pode variar em função da situação económico-social dos cônjuges, afirmação que é de aceitar em termos gerais mas, no caso concreto, como o valor do veículo oferecido é tão ou mais elevando do que o valor de bens imóveis adquiridos pela Recorrente, logo se entende que se trata de uma prenda de valor exorbitante, mesmo para este casal.
10.ª Importa perceber que dádivas pretende o legislador excluir do regime das doações, e porquê, quando diz, no artigo 940.º, n.º 2, do Código Civil, que não há doação «nos donativos conformes aos usos sociais».
11.ª A este propósito, citaram-se acima os ensinamentos deP. Lima/A.Varela eMenezes Cordeiro, com base nos quais deve concluir-se que dar uma prenda de aniversário ao maridoé,seguramente,dousosocial,queasregrasdeconvíviosocial efamiliarmandam que deve ser cumprido  ,maséindefensável,salvoodevidorespeito,quequalquerprenda, só por ter sido dada no aniversário, seja um donativo imposto pelos usos sociais.
12.ªAceita-sequeovalordeumaprendadeaniversário conforme aos usossociaispossa variar de acordo com as possibilidades de quem a dá, tal como defende o acórdão recorrido; assim, seria ridículo e até, porventura, acintoso, que a Autora tivesse dado ao Réu, de prenda de aniversário, p. ex. um par de meias ou uma garrafa de vinho corrente; já seria conforme aos usos sociais, de acordo com o nível socio-económico da Autora, a oferta ao marido de um relógio, de uma joia, de uma viagem de fim-de-semana, etc.
13.ª Mas uma oferta de um veículo de luxo, no ano de 2013, no valor de Eur 161.367,00, excede completamente aquilo que é normal, expectável e exigível pelos usos sociais, não configurando nada que se pareça com a mera obsequiosidade de que fala Menezes Cordeiro.
14.ª Oferecer um veículo automóvel deste valor elevadíssimo não é exigível de acordo com as regras de convivência social, mesmo entre pessoas com grandes possibilidades económicas, nem constituirá nuncaum mero obséquio e, sendo assim, não se trata de uma oferta de acordo com os usos sociais - é uma verdadeira doação.
15.ª Salvo o devido respeito, o acórdão recorrido confunde a capacidade da Autora para dar uma prenda deste valor, com a obrigação de o fazer em cumprimento dos usos sociais, sendo certo que essa obrigação não existe, por os usos sociais não imporem, e antes por afastarem, semelhante excesso – como justamente foi afirmado na douta sentença de primeira instância.
16.ª O aresto do Tribunal da Relação de Évora, acima parcialmente transcrito, pronunciou-se no mesmo sentido, perante uma doação de valor muito inferior.
17.ª Pelo que deve concluir-se, ao contrário do acórdão recorrido, que a oferta do veículo, pela Autora ao Réu, não constitui um donativo conforme aos usos sociais, mas sim uma doação.
18.ª A doação entre casados é livremente revogável, nos termos do artigo 1765.º, n.º 1, do Código Civil.
19.ª Pese embora as instâncias não tenham questionado a aplicação, ao caso, da lei portuguesa, porque se trata de matéria de direito, de conhecimento oficioso, a Recorrente não deixará de tecer breves considerações sobre o assunto.
20.ª Estando Autora e Ré casados entre si segundo o regime de separação de bens da lei belga, importa determinar, antes de mais, qual o regime jurídico aplicável às relações patrimoniais dos cônjuges.
21.ª Tendo a Autora dupla nacionalidade, chilena e belga, tendo o Réu nacionalidade portuguesa e tendo ambos residência comum em Portugal, perfilam-se como possivelmente aplicáveis, atendendo a estes factores de conexão, quer a lei belga, quer a lei portuguesa.
22.ª Em face do direito internacional privado português (DIP), e de acordo com a melhor interpretação das normas de conflitos portuguesas - artigos 52.º e 53.º do Código Civil -, é a lei portuguesa a aplicável às doações entre estes cônjuges.
23.ª O casamento foi celebrado na Bélgica entre pessoas que não têm a mesma lei nacional, sendo certo que os cônjuges escolheram para o seu casamento o regime de separação de bens da lei belga.
24.ª Podia pretender-se que a escolha desse regime determina que, nas relações patrimoniais entre os cônjuges, é sempre aplicável a lei belga, o que nos remeteria necessariamente para o direito belga, no que respeita a doações entre cônjuges, mas o melhor entendimento, em face das normas de DIP português, não é esse – cfr. o ensinamento de Baptista Machado e de Lima Pinheiro, supra referidos.
25.ª O artigo 52.º do Código Civil estatui que as relações entre os cônjuges são reguladas pela lei nacional comum (n.º 1) ou, na falta desta (como é o caso), pela lei da sua residência habitual comum e, na falta desta, pela lei do país com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa (n.º 2).
26.ª Tendo o casal residido sempre, depois do casamento, e até ao divórcio, em Portugal, a lei portuguesa considera-se a si própria aplicável, no que respeita às doações entre cônjuges.
27.ª Porém, a lei portuguesa também aceita que outras legislações que apresentem conexão com a situação (como é o caso da lei belga) se considerem elas próprias aplicáveis e que se apliquem.
28.ª Rege sobre a matéria o artigo 48.º, §1.º, 1.º e § 2.º, 4.º, do Código de Direito Internacional Privado belga (Code de Droit International Privé que, para efeitos do disposto no artigo 348.º, n.º 1, do Código Civil, regista-se que está acessível em https://www.ejustice.just.fgov.be/cgi_loi/change_lg_2.pl?language=fr&nm=200400951 1&la=F).
29.ª De acordo com esse artigo 48.º, é a lei do Estado onde os cônjuges têm a sua residência habitual que regula a admissibilidade dos contratos e das liberalidades entre cônjuges e a revogação destas.
30.ª Portanto, de acordo com o DIP português e belga, a lei aplicável às doações entre a Autora e o Réu é a lei portuguesa, por ser a lei do Estado em que têm a sua residência habitual comum.
31.ª Mesmo que fosse aplicável a lei belga, o resultado seria o mesmo, uma vez que, de acordo com o artigo 1096.º do Código Civil belga, as doações entre casados são revogáveis livremente («Toute donations faites entre époux pendant le mariage (…) seront toujours révocables»).
32.ª A revogação, na lei belga (como na portuguesa), é ad nutum (não tem que ser motivada ou fundamentada), posto que a regra da revogabilidade é de ordem pública.
33.ª No direito português, o regime das doações entre casados é análogo ao belga.
34.ª As doações entre casados têm um regime especial, relativamente às demais doações, previsto nos artigos 1761.º e ss. do Código Civil.
35.ª As doações entre casados são nulas se vigorar imperativamente entre os cônjuges o regime da separação de bens – artigo 1762.º do Código Civil, mas não é esse o caso - ao contrário do que consta do assento de casamento português.
36.ª Por seu turno, o artigo 1765.º, n.º 1, do mesmo código, estabelece que as doações entre casados podem a todo o tempo ser revogadas pelo doador, e tal revogabilidade não necessita de ser fundamentada ou motivada, é livre.
37.ª Às doações entre casados, na ausência de norma específica, aplicam-se as regras dos artigos 940.º a 979.º do Código Civil, ex vi do artigo 1761.º do mesmo diploma.
38.ª A revogação tem efeitos retroactivos mas, se o bem tiver sido alienado ou não puder ser restituído em espécie, o donatário entregará o valor que o bem tinha ao tempo em que foi alienado, acrescido dos juros legais – tudo conforme dispõe o n.º 3 do artigo 978.º do Código Civil.
39.ª Uma vez que o veículo foi alienado pelo Réu em 2021, considerou a sentença revogada pelo acórdão recorrido, e bem, que não pode ser restituído em espécie, pelo que condenou o Réu na entrega do valor pelo qual se apurou ter sido vendido.
40.ª Ainda que assim não fosse, a doação teria caducado, nos termos do artigo 1766.º, n.º 1, al. c), do Código Civil, com os mesmos efeitos – como também se diz na sentença recorrida.
41.ª A acórdão recorrido deve, porisso, serrevogado, mantendo-se a sentençade primeira instância.
Não houve resposta.
 
II – FACTOS PROVADOS.  
Encontrava-se provado que:
1) A A., de nacionalidade belga e chilena, e o R., de nacionalidade portuguesa, casaram entre si no dia .../.../2012, na Bélgica, estando tal casamento transcrito em Portugal;
2) O casamento foi precedido da celebração de convenção antenupcial, outorgada em 24 de Maio de 2012 e aditada em 25 de Maio de 2012, na qual foi adoptado o regime de separação de bens, ao abrigo da lei belga, atendendo à desproporção dos patrimónios de cada um dos cônjuges;
3) Após o casamento A. e R. fixaram a sua residência em Portugal, onde, desde aí, sempre residiram;
4) Em .../.../ de 2013 nasceu o filho de ambos, CC;
5) O R. era militar da Guarda Nacional Republicana quando casou com a A., mas, após o nascimento do filho de ambos, deixou voluntariamente de trabalhar, pondo termo ao seu vínculo com o Estado;
6) Em 2013, a A. deu ao R., como prenda de anos, que o aceitou, o veículo automóvel de marca “Audi”, modelo “RS 6”, que veio a obter a matrícula portuguesa ..-SG-..;
7) Tal veículo foi adquirido pela A. na Bélgica, pelo preço de € 161.164,79, à empresa “B... S.A.”, com sede na Avenue ... ..., Bélgica, que emitiu a respectiva factura com data de 12 de Dezembro de 2013;
8) O veículo obteve um certificado de matrícula belga, 1GAJ..3, datado de 5 de Dezembro de 2013, em nome de BB, e obteve a matrícula nacional ..-SG-.. em 22/12/2016, após declaração aduaneira datada de 21 de Dezembro de 2016;
9) O R. utilizou o veículo desde a data em que lhe foi dado pela A.;
10) Em Fevereiro de 2021 o R. procedeu à venda do veículo, cuja propriedade se encontra actualmente registada em nome de “A... – Comércio de Automóveis Unipessoal, Lda., sedeada em ..., ..., por intermédio da apresentação nº ...5 de 11/02/2021;
11) O R. vendeu o veículo pelo preço de € 50.000,00;
12) Em razão da ruptura do casamento, a A. instaurou, em .../.../2020, acção de divórcio contra o R., que correu termos no Juízo de Família e Menores ...;
13) Nesse processo, por sentença de 1 de Junho de 2021, transitada em julgado nessa mesma data, foi decretado o divórcio entre A. e R.;
14) Em 1 de Setembro de 2015 a A. comprou uma fracção autónoma para comércio de um prédio sito na união de freguesias ... e ..., concelho ..., por € 107.000,00, onde funcionava uma clínica médica fisiátrica
15) E comprou seis fracções autónomas, duas destinadas a garagem, uma destinada a comércio e/ou serviços e três destinadas a escritório e/ou serviços, de um prédio sito na união de freguesias ... e ..., concelho ..., onde funcionava uma clínica dentária, ascendendo a soma dos respectivos preços a € 228.000,00;
16) Em 1 de Agosto de 2016, a A. comprou um edifício (...) sito na Avenida ..., união de freguesias ... e ..., concelho ..., pelo preço de € 1.200.000,00;
17) Em 15 de Dezembro de 2017, a A. comprou um prédio urbano composto por terreno destinado a construção, sito na Rua ..., ..., ..., e um prédio rústico composto por terreno de cultura, denominado Ribeira ..., sito no Lugar ..., ..., ..., pelo preço de € 200.000,00 (€ 150.000,00 + € 50.000,00);
18) E adquiriu ainda as “benfeitorias” existentes nos imóveis referidos no ponto anterior - moradia unifamiliar inacabada no primeiro e picadeiro em areia de sílica, paddock para recreio de equídeos, estábulo composto por sete cavalariças, sala de arreios e zona de duche para cavalos e duas pontes em madeira no segundo - pelos preços de € 880.000,00 e € 70.000,00, respectivamente;
19) A A. está a reclamar da sociedade “N...”, a título de suprimentos € 3.308.542,20 e a título de empréstimo € 354.352,39, e da sociedade “T..., Lda.” a título de suprimentos a quantia de € 826.046,98;
20) Em 6 de Maio de 2015 foi registada a constituição da sociedade com a denominação “D..., Unipessoal, Lda.”, de que a A. é sócia e gerente, que se encontra a funcionar, com seis ou sete funcionários, dedicando-se a confecção, desenho e comércio de vestuário, calçado e acessórios de moda;
21) Em 18 de Janeiro de 2017 foi registada a constituição da sociedade “T..., Lda.”, de que a A. é gerente e uma das sócias, que tem dois funcionários efectivos e se dedica à criação de cavalos e à competição em concursos hípicos nacionais e internacionais, com gastos em imóveis, cavalos e carros para os transportar;
22) Em 3 de Julho de 2017 foi registada a constituição da sociedade “D..., Lda.”, que se dedica ao transporte ocasional de passageiros em veículos ligeiros, prestando serviço para a “U...”, com uma frota de mais de dez carros, de que a A. é actualmente a gerente;
23) Em 20 de Fevereiro de 2020 foi registada a constituição da sociedade “C..., Lda.”, de que a A. é sócia e gerente;
24) A A. fez várias viagens de turismo com o R., os filhos e amigos de ambos, nos anos de 2012, 2013 e 2014, além de muitas viagens Bélgica/Portugal/Bélgica:
- em 2012 foi a ... e viajou no barco de cruzeiro “...”, foi ao ... e a ... e foi às ...;
- em 2013 foi a uma estância de esqui na ..., foi a ... e foi a ...;
- em 2014 foi à ..., foi a uma estância de esqui na ... e foi ver o Mundial de Futebol no ...;
25) A A. e o R. tinham uma viagem marcada para ... e, como perderam o voo respectivo, por chegarem atrasados ao aeroporto, a A. telefonou para a agência de viagens da família na Bélgica e, nesse dia à tarde, um avião particular veio buscar A. e R. ao aeroporto e levou-os para ... para reatarem a viagem com o resto do grupo;
26) Em Agosto de 2013, a A. arrendou uma moradia com piscina no ..., por 10 dias;
27) O R. nasceu a .../.../1987;
28) Uma semana antes do seu 26º aniversário, a A. disse-lhe que fosse a um “stand” na Bélgica para escolher um carro que gostasse, sem impor limite de preço;
29) O R. contactou com o seu amigo e da A. DD e os três foram escolher o carro, no início da segunda semana de Julho de 2013;
30) Como o carro escolhido pelo R. não estava disponível para entrega, voltaram noutra data;
31) Como o R. quis mais extras do que os que vinham com o veículo, este ficou no “stand” e foi levantado mais tarde;
32) Quer a A., quer o R. diziam aos seus amigos que o veículo foi dado a este por aquela como prenda de anos, os quais não se admiraram de o R. ter recebido uma tal prenda da A;
33) O R. e todo os seus amigos consideraram normal que, no âmbito do casamento de ambos, a A. desse o veículo referido no ponto 6 como prenda de aniversário ao R..
 
III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.
Qualificação da atribuição do automóvel referenciado, pela A. ao R., seu cônjuge, como doação ou donativo conforme aos usos sociais.
Passemos à sua análise:
Discute-se na presente revista se a atribuição patrimonial feita pela A. em favor do R., seu então cônjuge, que se traduziu na oferta de um veículo automóvel de luxo, marca “Audi”, modelo “RS 6”, com o preço de aquisição € 161.164,79 (cento e sessenta e um mil, cento e sessenta e quatro euros e setenta e nove cêntimos) e que constituiu uma prenda de anos, se deve integrar no conceito de donativo conforme aos usos usuais, previsto no artigo 940º, nº 2, do Código Civil, ou se se tratará, ao invés, de uma doação entre cônjuges, a qual livremente revogável nos termos do artigo 1765º, nº 1, do mesmo diploma legal.
A sentença de 1ª instância salientou, a este propósito, o custo (€ 161.164,799) do veículo, com um preço bastante acima do preço de veículos já considerados de gama alta, e que se traduziu num aumento relevante do património do R., considerando que a oferta em si e as circunstâncias em que a mesma ocorreu não permitem qualificá-la como um donativo conforme aos usos sociais.
Segundo o seu entendimento, a A. não obsequiou o R. com uma lembrança, ainda que de valor que não fosse simbólico, oferecendo-lhe uma prenda no próprio dia de anos, de surpresa, escolhida por ela sem que ele soubesse do que se tratava; ao invés, ofereceu ao R. um veículo que este escolheu, com os extras que ele entendeu e que demorou cerca de seis meses a ser entregue, com o preço já referido, assumindo valor no património deste, o que permite concluir que aquela efectivamente agiu com espírito de liberalidade, pretendendo contemplar o marido com uma atribuição patrimonial, aumentando o património daquele à custa do seu próprio património.
Por sua vez, o acórdão recorrido proferido pelo Tribunal da Relação do Porto perfilhou o entendimento oposto.
Aludiu à necessidade de conferir relevância à situação social e económica do então casal, para concluir que, apesar do valor elevado do presente de aniversário oferecido, o mesmo não contém em si o referido elemento subjectivo da doação (“animus donandi”).
Na sua óptica, tal valoração deve ser efectuada em função do dever inerente ao dia de aniversário em causa, sendo que é este dever que define e limita quer o objecto, quer o quantum da atribuição que, nas aludidas circunstâncias, se poderia impor à Autora, tendo em conta as condições económicas do então casal.
Nessa conformidade, sabendo-se que o cumprimento do dever ao dia de aniversário em causa pode ser definido e limitado, seja quanto ao objecto, seja no quantum da atribuição nos termos expostos, julgou-se que, nas circunstâncias do caso concreto, apesar do valor elevado do veículo automóvel oferecido, a Autora, atento o comprovado estatuto  social e económico do então casal, ofereceu uma prenda de aniversário que se situa dentro dos aludidos limites, por corresponder àquela que os “usos sociais” imporiam para quem assumia aquele estatuto.
Apreciando:
O conhecimento da presente revista obriga desde logo à definição do conceito de donativo conforme aos usos sociais para, com base nele, abordar a subsunção da factualidade que foi dada como provada a essa mesma figura tal como esta se encontra prevista na lei.
Escreve, a este propósito, António Menezes Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil. XI. Contratos em Especial”, Almedina 2019, a página 388:
“Os donativos conformes os usos sociais têm a ver com prendas, gratificações ou vantagens que, de acordo com as práticas habituais, são concretizadas na base da mera obsequiosidade. Não vemos que falte, neles, falte o espírito de liberalidade. Passa-se, simplesmente, que por determinação da lei e de acordo com o sentido geral, elas não se subordinam ao regime próprio das doações; são, em regra, de montante menos significativo e não carecem de qualquer aceitação. Além disso, não cabem, nelas, cláusulas acessórias, nem são revogáveis”.
Sobre a mesma figura, escreve Mário Júlio de Almeida Costa, in “Noções de Direito Civil”, Almedina, 1991, a página 341:
“Assim como a respeito dos donativos que derivam dos usos ou praxes sociais (prendas de aniversário ou casamento, pequenas gratificações correntes, etc.) se entendeu que, em virtude de tal imposição de cortesia, dos hábitos ou da conveniência, não existe o pleno espírito de liberalidade ou espontaneidade típico das doações”.
Ainda sobre o tema, refere Luís Menezes Leitão, in “Direito das Obrigações”, Volume III, 14ª edição, Almedina 2022, a página 179:
“Finalmente também não são doações os donativos considerados conformes aos usos sociais. Efectivamente, estão nesta hipótese em causa donativos que as partes têm por uso fazer de acordo com as regras do trato social, como pagamento de gorjetas nos restaurantes ou a motoristas e os presentes dados em festas de aniversário ou de casamento. Neste caso, como a intenção do seu autor não é fazer uma liberalidade, mas antes cumprir uma obrigação resultante das regras do trato social, a lei considera que a sua realização corresponde a um animus solvendi e não a um animus donandi, daí resultando que não sejam qualificados como doação”.
Esclarecem sobre esta matéria Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado”, Volume II, Coimbra Editora, 1986, a página 261:
“A exclusão dos donativos conformes aos usos sociais não necessitaria, em rigor, de ser prevista na lei, pois que, sendo esses donativos feitos em conformidade com os usos, falta neles o espírito de liberalidade, que é um dos requisitos das doações. Mas pareceu conveniente dizê-lo, tal como faz o Código italiano (artigo 770, 2ª parte), para evitar dúvidas de interpretação.
Donativos conforme os usos sociais (das regras da convivência, de cortesia, de decoro, das relações mundanas, etc.) são aqueles que se fazem por ocasião de aniversários, de casamentos, de festas de família, etc. E têm a mesma natureza as gorjetas, quando sejam de uso corrente e sejam dadas no momento em que se recebem os serviços”.
Neste mesmo sentido, referem Ana Prata e outros in “Código Civil Anotado”, Volume I, Almedina, Junho de 2017, a página 1196, onde pode ler-se:
“(…) os donativos conforme aos usos sociais são praticados com animus solvendi, consubstanciando actos inspirados pela vontade do seu autor cumprir um dever imposto por uma outra ordem normativa que não a jurídica (a da cortesia, p. ex.). A causa do acto, os respectivos beneficiários, o objecto e o quantum da atribuição são, aliás, definidos à luz desse dever. Como exemplos de actos da espécie referida, podem apresentar-se as gorjetas e os presentes oferecidos por ocasião do aniversário ou de outras festividades como os de casamentos ou baptizados”.
Cumpre referir, finalmente, que salientava a este respeito Luiz Cunha Gonçalves in “Tratado de Direito Civil em Comentário ao Código Civil Português”, Volume VIII, tomo 1, Anotado por José Geraldo Rodrigues Alckmin, 2ª edição, a páginas 81 a 82 e 87:
“(…) alguns códigos estrangeiros dispõem, expressamente, que não há doação quando uma pessoa, em benefício de outra,(…) cumpre simples dever moral.
(…) O animus donandi, porém, é só causa imediata e exteriorizada da doação, e não há que averiguar qual o motivo íntimo que a determinou: caridade, benevolência, amizade, parentesco, gratidão, vaidade, generosidade, falta de herdeiros, reclamo, ódio a parentes, etc. E, conquanto alguns romanistas afirmem que a ocultação do animus donandi importará uma condictio sine causa, é nosso parecer que o animus donandi se deve presumir, sempre, em todas as transmissões gratuitas e quando outra intenção não se revele nas circunstâncias do contrato”.
Debruçando-nos agora sobre o caso concreto:
A análise da factualidade assente por provada revela, a nosso ver, que foi celebrado entre as partes um contrato de doação entre cônjuges, não constituindo a dita oferta do veículo automóvel de luxo um donativo conforme aos usos sociais, tal como esta figura se encontra genericamente prevista no artigo 940º, nº 2, do Código Civil.
Sustenta este nosso entendimento a seguinte ordem de razões:
1º - Os factos provados podem sintetizar-se da seguinte forma:
Por ocasião do 26º aniversário do Réu, completado a 17 Junho de 2013, e a título de prenda de anos, a A. disse-lhe que fosse a um stand na Bélgica e escolhesse para si o carro que mais lhe agradasse, adquirindo-o por oferta dela, sem qualquer limite de preço.
Cerca de um mês depois a A., o Réu e um amigo comum deslocaram-se à Bélgica, onde não se consumou nessa altura a aquisição do veículo pelo facto de o carro pretendido pelo Réu não se encontrar disponível para entrega.
O veículo veio então a ser comprado, com o dinheiro da A., em Dezembro de 2013, valorizado com todos os extras que o Réu entendeu serem do seu agrado e corresponderem à sua própria exigência pessoal.
2º - Destes factos essenciais não se infere, com a segurança mínima, que a A., ao ter decidido agraciar o seu esposo ofertando-lhe um luxuoso veículo automóvel (topo de gama), munido com todos os extras que o Réu livre e autorizadamente escolheu, houvesse tido a consciência de estar a fazê-lo por causa e em cumprimento de regras respeitantes ao trato e convivência social, de forma puramente obsequiosa, através de um comum acto de cortesia ou decoro, isto é, caracterizado decisivamente pelo animus solvendi de que se encontraria imbuída.
O que a mesma pretendeu, bem pelo contrário, foi afinal concretizar uma verdadeira e pura liberalidade, a propósito e a pretexto, é certo, de uma determinada ocasião festiva que importava comemorar (a data do aniversário do beneficiário), através da qual lhe quis provocar, naturalmente, emoção e agrado mas simultaneamente – e também por isso mesmo -, aumentar muito significativamente o património do contemplado, sem receber deste contrapartida alguma.
De resto, a própria dilação (de seis meses) que mediou entre o momento da tomada da decisão e comunicação do intuito de oferecer a referida prenda de anos e a concretização da aquisição daquele valioso bem, para cujas exactas caraterísticas contribuiu o gosto e a exigência pessoal do Réu, seu beneficiário, afastam a ideia de que a A. só realizou essa oferta por se encontrar intimamente convencida de que a mesma correspondia ao cumprimento da sua parte de uma obrigação de natureza social, própria do contexto especial ligado à oportunidade dos eventos festivos em que habitualmente têm lugar donativos com este concreto significado (e cuja actualidade, neste caso, já tinha naturalmente desaparecido).
Neste sentido, não existe prova da integração desse acto de generosidade num contexto específico e actual que levasse a enquadrá-lo como mero obséquio, gesto de simples cortesia ou de refinado decoro realizado pela A. em conformidade com regras de convívio social (tal como sucede normalmente quando alguém é pessoalmente convidado para um encontro comemorativo de um qualquer evento no âmbito do qual se tornou habitual e até socialmente expectável proceder-se a esse tipo de oferendas, que são invariavelmente movidas por tal peculiar espírito, sabendo mesmo o convidado/ofertante que será encarado e qualificado negativamente, sendo visto - dentro desse círculo - com algum relativo desagrado e despeito, se o não fizer).
3º - O elevadíssimo estatuto sócio económico da A., detentora de uma fortuna fora dos padrões comuns para a nossa comunidade, não transforma por si só as ofertas que decida realizar em donativos conformes aos usos sociais, ainda que a pretexto da comemoração de um evento festivo, se não for possível afirmar, com a segurança necessária, que as mesmas foram feitas com espírito de obrigatoriedade social e no contexto específico de cumprimento de um dever de cortesia ou decoro e, portanto, sem animus donandi.
Não é a avultada fortuna do ofertante, ainda que de contornos praticamente inimagináveis para o comum dos cidadãos, que define por si só a natureza do acto; ao invés, o elemento que se apresenta como decisivo para essa qualificação é o espírito que motiva o sujeito que age na convicção de estar a cumprir uma obrigação de carácter social, levado pela  expectativa de outros quanto à adopção dessa sua conduta, impregnada da simpatia, reconhecimento e gentileza, que os padrões da educação e vida em sociedade  recomendam, a qual está por isso mesmo em conformidade com os usos, sendo esta a circunstância essencial que distingue a figura do donativo previsto no artigo 940º, nº 2, do Código Civil, apartando-o do regime comum das doações que seria em princípio aplicável a este tipo de atribuições patrimoniais sem contrapartida.
Note-se que a situação típica, paralela e exemplar daquela que figura no preceito legal indicado e constitui, sem qualquer sombra de dúvida, um donativo conforme aos usos sociais, é precisamente a das denominadas gorjetas prestadas aquando da realização de um determinado serviço (em restaurantes, hotéis, transportes, pequenos serviços avulsos, etc.), o que faz realçar o lado essencialmente simbólico que consiste em alguém através desse acto de atribuição patrimonial dirigir ao outro um gesto de simpatia, gentileza e reconhecimento social, neste caso justificada pela forma correcta, respeitosa e empenhada como foi servida pelo profissional em causa.  
Ora, uma oferta da natureza daquela que está em causa nos presente autos, e especialmente entre cônjuges, não deixa de constituir uma verdadeira e própria doação, na medida em que não seja possível atribuir-lhe a natureza excepcional de acontecimento conforme à obrigação do cumprimento do dever de cortesia ou obséquio, normalmente conotado com oferendas de cariz meramente simbólico e nunca de valor economicamente extravagante (independentemente do estatuto económico de quem faz a oferenda).
Não se descortina dos factos dados como provados que a A. alguma vez se tivesse sentido obrigada a cumprir qualquer dever de trato social, fazendo por isso a oferta ao seu marido, por ocasião do aniversário, de um veículo automóvel, à escolha deste e seu limite de preço, e que se concretizou na aquisição do dito Audi, pela contrapartida de € 161.164,79, ainda que o correspondente esforço económico, em termos relativos, fosse para si, no caso concreto, praticamente insignificante ou absolutamente irrelevante.
Ou seja, o que se verificou foi que a A. actuou para beneficiar patrimonialmente o Réu, com quem, sendo casada ainda de fresco, manteria na altura forte ligação de dependência emocional e afectiva, e não porque essa sua conduta correspondesse de algum modo a um dever social de cortesia ou refinado decoro, obrigando-a socialmente a agir da forma que fez.
4º - Revestindo os donativos incluídos no artigo 940º, nº 2, do Código Civil uma natureza absolutamente genérica e indeterminada, aplicando-se a uma imensidade de situações, importará atentar na circunstância de nos encontrarmos perante um relacionamento entre cônjuges, no domínio patrimonial, para o qual a lei avisadamente estabeleceu um regime jurídico especial, próprio e exclusivo.
(Conforme refere Luís Menezes Leitão, in obra citada supra, a página 227:
“A especialidade principal da doação entre casados, referido no artigo 1765º é a sua livre revogabilidade.
(…) A justificação para essa solução reside no facto de através da doação entre casados se visar tradicionalmente reforçar a situação patrimonial do cônjuge, para além do que resulta do regime normal da sucessão por morte. Por esse motivo se considera que a doação entre casados desempenha uma função testamentária, sendo dessa forma sujeita igualmente à livre revogabilidade que caracteriza os testamentos (artigos 2187º e 2311º e seguintes do Código Civil”.
 Sobre esta mesma temática, escrevem Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in “Curso de Direito da Família”, Volume I, Coimbra Editora, 2008, a página 457:
“As doações entre cônjuges não são admitidas sem reservas em todos os sistemas jurídicos, e compreende-se porquê. As razões que se lhe opõem são as mesmas que justificam, ou podem justificar, que não seja permitido aos cônjuges alterar livremente o seu regime de bens. (…) haverá o receio de que a doação resulte do ascendente ou influência de um dos cônjuges sobre o outro; a comunhão de vida, de um modo geral, e o sentimento de que os bens doados “ficam na família” podem levar um deles a beneficiar o outro irreflectidamente, tudo com prejuízo da liberdade e espontaneidade do acto”.).
Logo, só mesmo perante situações absolutamente indubitáveis quando à qualificação na figura dos donativos conformes aos usos sociais, dada a sua especial natureza, será juridicamente possível afastar aquele regime jurídico especialmente previsto para as doações entre cônjuges que o legislador quis especificamente consagrar.
E essa mesma indubitabilidade quanto à natureza do donativo (conforme aos usos sociais) terá de resultar ainda da concepção social dominante que leve justificadamente a afastar este tipo de atribuições patrimoniais do plano jurídico, entregando-o à regulação puramente social e retirando-lhes, por isso mesmo, a sua juridicidade.
Conforme refere Carlos Ferreira de Almeida in “Contratos III. Contratos de Liberalidade, de Cooperação e de Risco”, Almedina, 2020, 3ª edição, a páginas 18 a 19:
“(…) o preceito (artigo 940º, nº 2, 2ª parte, do Código Civil), inspirado pelo artigo 770º, nº 2, do Código Civil italiano, incorpora uma norma de estatuição negativa, porquanto dispõe literalmente “não há doação” nos referidos donativos. Mas, como se refere a “donativos conformes aos usos sociais”, esclarece, de modo implícito, que, em relação a eles, a lei abstém-se de interferir porque reconhece a outras normas (“os usos sociais”) competência para a regulação.
(…) Neles não pode faltar nenhum elemento típico da doação. O que “falta” é a aplicação do regime jurídico das doações, em consequência do embaraço que o direito denota sempre que tem de lidar com a dádiva.
(…) O critério de separação entre liberalidades com e sem eficácia jurídica (…) é a concepção social dominante, aplicada em termos objectivos às circunstâncias do caso”.
Neste domínio particular da regulação social repugna, segundo a concepção dominante, o pedido de devolução da gorjeta livre e espontaneamente oferecida ao profissional que a recebeu ou de restituição da prenda espontânea e solenemente entregue ao agraciado pela presença em evento festivo para o qual o ofertante foi pessoalmente convidado, por gentileza ou elo de simpatia ou amizade.
 Ora, existindo um regime próprio que regula as doações entre cônjuges e sendo no caso o valor económico do bem transmitido elevadíssimo, afigura-se-nos de todo inadequado e contrário ao espírito do ordenamento a qualificação desse acto como um donativo conforme aos usos sociais.
Assim, uma oferta de um veículo automóvel no valor de € 161.164,79 (cento e sessenta e um mil, cento e sessenta e quatro euros e setenta e nove cêntimos), adquirido seis meses após o aniversário do beneficiário cônjuge do ofertante, ainda que a pretexto do aniversário daquele (como prenda de anos), e em que não existe prova do espírito de cumprimento de um mero dever moral ou de simples cortesia ou decoro, reclama a oportuna regulação por parte do ordenamento jurídico, através da avocação dos regimes próprios previstos na lei, não podendo ser deixada (desinteressadamente) ao sabor das regras da mera regulação social.
Pelo que a acção deverá ser julgado procedente, nos termos definidos pela sentença de 1ª instância, que a ora recorrente considerou correcta e adequada.
 Não há ainda fundamento para o conhecimento da matéria relacionada com o invocado abuso do direito por parte da A. (assente no facto de vir tantos anos depois da oferta a pretender a sua revogação), na medida em que o próprio Réu se conformou com a decisão proferida pelas instâncias nesse sentido, não se socorrendo da figura da ampliação do objecto do recurso prevista no artigo 636º do Código de Processo Civil, dado que nem sequer apresentou contra-alegações no presente recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Concede-se assim a revista.


IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) conceder a revista, revogando o acórdão recorrido e condenando o Réu nos termos definidos na sentença de 1ª instância que assim se repristina.
Custas pelo recorrido.

Lisboa, 28 de Junho de 2023.

Luís Espírito Santo (Relator)

Graça Amaral

Maria Olinda Garcia

 


V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.