Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2134/17.3T8EVR.E1.S2
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: RESOLUÇÃO A FAVOR DA MASSA
ACÇÃO DE DECLARAÇÃO DE NULIDADE DO CONTRATO DE COMPRA E VENDA
CADUCIDADE
Data do Acordão: 04/02/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE / PRINCÍPIOS GERAIS / RESOLUÇÃO INCONDICIONAL / FORMA DE RESOLUÇÃO E PRESCRIÇÃO DO DIREITO.
Doutrina:
- Júlio Gomes, Nótula Sobre A Resolução Em Benefício Da Massa Insolvente, IV Congresso de Direito da Insolvência, p. 107 a 129;
- Maria de Fátima Ribeiro, Um confronto entre a resolução em benefício da massa insolvente e a impugnação pauliana, IV Congresso de Direito da Insolvência, p. 131 a 178;
- Maria do Rosário Epifânio, Manual De Direito Da Insolvência, 7.ª edição, p. 248 a 263.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 120.º, N.ºS 1 E 2, 121.º E 123.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 29-04-2014, RELATOR PINTO DE ALMEIDA;
- DE 18-10-2016, RELATOR JÚLIO GOMES;
- DE 27-10-2016, RELATOR PINTO DE ALMEIDA, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I Em tema de resolução a favor da massa, por forçado disposto no artigo 120º, nº1 do CIRE, só podem ser resolvidos os actos que sejam prejudiciais à massa, entendendo-se estes, como predispõe o seu nº2, aqueles que «diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência.».

II Todos os actos aludidos no artigo 121º do CIRE, se presumem prejudiciais, abarcando este instituto muitos dos contornos específicos dos vícios do negócio jurídico e que, por isso, os absorvem, constituindo o instituto da resolução o meio de fazer reverter para a massa insolvente todo e qualquer património que dela haja sido retirado, com o intuito de a diminuir.

III O AI querendo fazer operar a resolução do contrato de compra e venda, visando a reintegração do seu objecto na massa insolvente, deveria tê-lo feito atempadamente, no prazo de seis meses, de harmonia com o disposto no artigo 123º, nº1 do CIRE, sob pena de caducidade.

(APB)

Decisão Texto Integral:

ACORDAM, NO SUPREMO TRIBUNAL D JUSTIÇA

I MASSA INSOLVENTE DE LABORATÓRIO X, LDA intentou contra Banco COMERCIAL PORTUGUÊS, SA, I, SA e M, SA, acção declarativa pedindo que: a) se declare nulo e de nenhum efeito, o acto de compra e venda celebrado em 3 de fevereiro de 2012, cujo objecto o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de …, imóvel, esse transmitido pela firma G., Ldª, a favor da I, SA e respectiva hipoteca constituída a favor do BCP, SA. em 25 de Janeiro de 2007; b) se declare, nulo, o acto de constituição de hipoteca a favor do BCP, SA, outorgado pela escritura de 25 de janeiro de 2007; c) se ordene a apreensão do prédio em apreço a favor da massa insolvente.

As Rés I, SA e M, SA na sua contestação invocaram a excepcção de caducidade do direito invocado pela Autora.

A final foi produzida sentença a julgar a excepção de caducidade procedente, com a absolvição das Rés do pedido.

Inconformada a Autora recorreu de Apelação, recurso esse que veio a ser julgado improcedente com a manutenção da sentença impugnada.

De novo irresignada, recorreu a Autora de Revista excepcional, por oposição de julgados, entre o Aresto em tela e o Acórdão da Relação de Coimbra de 16 de Junho de 2015, cuja cópia certificada fez juntar, recurso esse admitido pela Formação através do seu Acórdão de fls 461 a 464, apresentando as seguintes conclusões:

- A decisão recorrida fez deficiente interpretação e aplicação das disposições legais aplicáveis aos factos controvertidos, incorrendo em manifesto erro de julgamento.

- O Douto Acórdão recorrido considerou estar verificada a excepção peremptória de caducidade, prevista no art.° 123° do CIRE, pois, segundo o mesmo a acção deveria ter sido proposta no prazo de seis meses a contar da data de 16.12.2015 o que manifestamente não sucedeu, pois, recorde-se, este processo apenas foi intentado em 26.07.2017.

- Porém, a A. estruturou o pedido da seguinte forma:

(...)

A) Declarar-se nulo e de nenhum efeito, o acto de compra e venda celebrado em 03 de fevereiro de 2012 e melhor descrito no documento n.º3 junto a este articulado, cancelando-se os registos que, posteriormente, foram efectuados em proveniência deste acto; e

B) Declarar-se, nulo, o acto de constituição de hipoteca a favor do bcp, s. a., outorgado por escritura de 25 de janeiro de 2007, melhor descrito no documento n.° 4 junto a este articulado;

C) Ordenando-se a apreensão do prédio em apreço a favor da massa insolvente a., com as demais consequências legais. (...)

- Assim, não caberia à decisão a quo pronunciar-se oficiosamente acerca do que não havia sido pedido, ou seja, uma alegada resolução dos negócios que não foi peticionada, e deixar de apreciar as questões que lhe haviam sido submetidas, as causas de nulidade dos actos negociais.

- Na verdade, e não obstante o respeito que é devido, o princípio iura novit cura não será de convocar no apuramento de “qual a causa de pedir”, como defende o Aresto recorrido, mas unicamente no direito que será de aplicar a essa causa de pedir, aos factos alegados 7. Tal comportamento era imposto pelo princípio do pedido, com consagração inequívoca e expressa no art.º3.º, nº1, do CPC: segundo o qual, o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes (...).

- É que, tal como abundantemente citado em Jurisprudência pertinente do STJ, «ensinava Manuel de Andrade que “o processo só se inicia sob o impulso da parte, mediante o respectivo pedido”; “as partes é que circunscrevem o thema decidendum. O juiz não tem de saber se, porventura, à situação das partes conviria melhor outra providência que não a solicitada, ou se esta poderia fundar-se noutra causa petendi”.

- Porém, na nossa humilde opinião, o Acórdão recorrido incorreu na violação das referidas regras - o juiz julgou objecto e pedido diverso do peticionado - o que determinará a nulidade da sentença, nos termos do art.º 615º, n.º1, e), do CPC, por ofensa, também, aos dispositivos do n.º1 e 3 do art.º 5º e do CPC.

- Com efeito, em momento algum a autora peticionou a anulação dos negócios sub iudice ou a «resolução» dos mesmos, esta, sim, que poderia ser afectada pelo decurso do prazo de caducidade de dois anos.

- Simplesmente, o que a A. pediu ao Tribunal foi a declaração de nulidade dos negócios em causa, consequência jurídica que, como se sabe, está submetida no seu regime ao disposto no art.° 286° e 289° do CC, e não à norma prevista nos artigos 120.° e seguintes do CIRE, nomeadamente o n.º1 do art.º 123º deste diploma.

- Até porque um dos fundamentos para o pedido de declaração de nulidade residia no facto de, como se alegou no artigo 38. da petição inicial “nem a insolvente recebeu da l.ª ré (I, S. A.) qualquer quantia por conta da citada venda, nem esta ré pagou o que quer que fosse à primeira como contrapartida do prédio adquirido”.

- Ou seja, alegou-se o incumprimento por parte da compradora do imóvel à insolvente.

- Ora, neste precisos termos, mesmo que se entendesse estarmos perante um pedido de resolução em benefício da massa "encapotado" sempre seria de aplicar o disposto no n.° 2 do art.º 123°, que determina que “enquanto o negócio não estiver cumprido, pode a resolução ser declarada, sem dependência de prazo, pela via de excepção”, norma que aqui se poderia aplicar em virtude da alegação de incumprimento pela A. e do facto de, não obstante, estar já registado o bem a favor da adquirente, com a presunção que tal implica.

- Como, decerto, se saberá, a nulidade, além de poder ser declarada oficiosamente pelo tribunal, pode ser invocada a todo o tempo por qualquer interessado. É isso que se dispõe no art.º 286° do CC e interessado para esse efeito será - como referem Pires de Lima e Antunes Varela – “...o titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica como prática, seja afectada pelo negócio”.

- No caso dos autos, à semelhança de muitos outros, a massa insolvente, representada pelo administrador de insolvência, no âmbito das funções que lhe estão atribuídas, teve interesse na declaração de nulidade de negócios jurídicos celebrados pela insolvente, providenciando, dessa forma, pela invocação dos vícios que constituiriam tal nulidade e pedindo a restituição à massa insolvente do bem que nela se deveria encontrar por ser nulo o acto em que assentou a oneração e transferência da respectiva propriedade, como a simples e inevitável consequência jurídica da procedência dos pedidos formulados. Nada mais.

- Nulidades que, nos termos do previsto no art.° 294° do CC, a A. associou à violação das disposições legais contidas no n.° 3 do art.° 6.° do CSC no que à constituição de hipoteca respeita, e nos n.os 2, 3 e 4 do art.° 397°, do CSC e nos n.os 1 e 2 do art.° 240°, 242° e 286°, estes do CC, no que à compra e venda concerne.

- Em suma, a invocação da nulidade, o vício de que foram arguidos os actos negociais celebrados, por força do disposto no art.° 286° do do CC, pode ser efectuada a todo o tempo, e por qualquer interessado, pelo que, in casu, não está sujeita ao prazo de caducidade de dois anos previsto no n.°1 do art.°123°doCIRE.

- Aliás, cremos que o CIRE consagrou um regime mais expedito de invalidação dos negócios prejudiciais aos credores por via do instituto da resolução em benefício da massa insolvente em virtude da sua proximidade temporal com a declaração de insolvência, jamais pretendendo com isso impedir a actuação dum órgão que dispõe de deveres acrescidos (cfr. art.° 55° e 58° do CIRE) na protecção dos interesses dos credores de lançar mão de outros institutos com vista à execução do seu múnus.

- Tal impedimento poderia levar, certamente, ao caucionamento pelo órgão de soberania Tribunais de negócios clara e frontalmente ofensivos da lei e dos bons costumes, o que redundaria, em última instância, na possível subversão da ordem constitucional, e, em primeira linha, na desprotecção do socialmente relevante interesse dos credores, nos quais se incluem, como é o caso, alguns trabalhadores e vastos créditos do Estado e Segurança Social. foram violados no acórdão recorrido, entre outras, as disposições dos n.ºs 4 e 5 do art.0 607° do CPC, por referência ao n.° 3 do art.º 6.° e n.ºs 2, 3 e 4 do art.º 397°, ambos do CSC, bem como as regras dos n.ºs 1 e 2 do art.º 240°, 242° e 286°, todos do CC, razão pela qual deverá ser substituído por outro que, suprindo os apontados vícios, ordene o prosseguimento dos autos em 1.ª Instância para apreciação do mérito das questões submetidas a Juízo.

Nas contra alegações os Recorridos pugnaram para inadmissibilidade do conhecimento do objecto do recurso por se não encontrarem verificados os pressupostos da Revista excepcional e no mais pugnaram pela sua improcedência.

II A questão suscitada no âmbito do presente recurso é a de saber se o Tribunal poderia ou não decretar a resolução a favor da massa.

 

As instâncias declararam como assentes os seguintes factos:

a) Com a presente acção, a autora pede que se declare nulo e de nenhum efeito o acto de compra e venda, celebrado em 7 de Fevereiro de 2012, tendo como objecto o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … G., Ldª, a favor da I, S.A. e respectiva hipoteca constituída a favor do BCP, SA. em 25 de Janeiro de 2007.

b) O processo de insolvência nº … do Juízo Local Cível de… [J1] iniciou-se em 13.10.2014.

c) A Insolvência foi declarada por sentença de 02.03.2015, transitada em julgado em 20.03.2015.

d) O Sr. Administrador da insolvência, Dr. A, foi nomeado em 02.03.2015 e aceitou a nomeação em 05.03.2015.

e) O Sr. Administrador elaborou no referido processo de insolvência um Relatório no qual escreveu, em 04.06.2015, o seguinte:

"Através da pesquisa efectuada junto da Conservatória do Registo Predial foi possível localizar o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ….Contudo, o identificado imóvel, em 09.02.2012, foi transmitido, a favor da I, S.A., uma vez que o imóvel foi transmitido há mais de dois anos antes à data do início do processo de insolvência, nos termos do artigo 120º do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, não é possível proceder á resolução do negócio em beneficio da massa insolvente, além de que as reclamações de créditos ou de qualquer outra informação a que se tinha acesso, não se depreende que a alienação tenha posto em perigo ou retardado a satisfação dos credores da insolvência, para além de não haver indícios de má fé, tudo apontando, em principio, para a não existência de qualquer relação especial entre a insolvente e a compradora do referido imóvel".

f) Em requerimento de 5.06.2015, o Administrador Judicial escreveu na alínea d):

“Por outro lado o aqui signatário obteve acesso a diversos extractos bancários que alegadamente comprovam o pagamento do preço do imóvel à aqui insolvente”.

g) Na alínea h) do mesmo requerimento escreveu:

“No entanto, uma vez que o imóvel foi transmitido há mais de dois anos antes do início do processo de insolvência, pois a compra foi registada em 09.02.2012 e o processo teve início em 9.10.2014, não será possível ao Adm. Judicial proceder à resolução dos negócios nos termos do artº 120º do CIRE.”

h) Com o requerimento juntou aos autos cópias das escrituras de compra e venda do imóvel e escritura de hipoteca a favor do banco Millenium BCP e várias certidões das sociedades intervenientes.

i) Nem a insolvente nem nenhuma das R.R. receberam qualquer comunicação com vista à resolução do negócio objecto deste litígio.

j) A acção de anulação deu entrada em tribunal em 2017.07.26.

K)As R.R. foram citadas em 2017.08.01.

L) Em 16.12.2015, o Sr. Administrador da insolvência emitiu parecer sobre a qualificação da mesma, cujo teor se dá como integralmente reproduzido, concluindo que a mesma deve ser qualificada como culposa.

No Acórdão da Formação a que alude o artigo 672º, nº3 do CPCivil, ordenou-se a remessa dos autos à distribuição nos seguintes termos:

«[p]ese embora a Relação tenha confirmado, sem voto de vencido, o segmento decisório que julgou procedente a exceção de caducidade do direito de resolução em benefício da massa, a fundamentação empregue no acórdão recorrido é substancialmente diversa daquela que foi adotada pela 1ª instância.

Por um lado, no acórdão recorrido, partiu-se do pressuposto de que a matéria de facto alegada não é substancialmente caracterizadora da simulação mas da resolução em benefício da massa, coisa diversa do que, de modo muito mais sintético, foi referido na sentença da 1ª instância na qual se assumiu que, independentemente do modo como foram alegados os factos, a figura da resolução abarcava também o vício de nulidade proveniente da simulação.

Por outro lado, enquanto na sentença se aludiu simplesmente à figura da simulação, no acórdão recorrido abarcou-se no juízo formulado também o ato de constituição de hipoteca cujo vício, na tese da A., tem um fundamento diverso da simulação.

Não se verifica, pois, o pressuposto básico para a interposição de revista excecional, sendo uma situação que se enquadra na regra geral que emerge do art. 671°, n° 1, sujeita ao regime geral da distribuição.

De todo o modo, ainda que porventura a fundamentação fosse substancialmente idêntica, a revista seria de admitir, atenta a contradição patente entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento.

E verdade que no acórdão fundamento, em termos formais, se aborda a questão da legitimidade do administrador da insolvência para a instauração de uma ação de declaração de nulidade por simulação, mas, em termos substanciais, nele se assume a possibilidade — que o acórdão recorrido rejeitou — de ser instaurada (ou de ser qualificada como tal) uma ação com tal fundamento fora do quadro da ação de resolução em benefício da massa insolvente a que, aliás, está sujeita a um prazo de caducidade.».

Quer dizer, ali se expressou o entendimento que haveria lugar a Revista normal, uma vez que não existe dupla conformidade decisória, porquanto a fundamentação empregue no Acórdão recorrido é substancialmente diversa da utilizada pelo primeiro grau; mas, de qualquer modo, ainda que se entenda que a fundamentação seja idêntica, o Acórdão recorrido encontra-se em oposição com o Acórdão junto como fundamento.

Vejamos então.

Lê-se no Acórdão impugnado:

«[n]o caso sub judice, emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pela massa insolvente que o objecto do recurso está circunscrito à questão de saber se o Tribunal a quo conheceu  indevidamente da resolução dos negócios em beneficio da massa insolvente que não foi peticionada e, omitiu a apreciação das questões que lhe tinham sido peticionadas, a saber, a declaração de nulidade dos actos negociais.

Posto isto, importa então analisar a pretensão da autora do ponto de vista da sua caracterização jurídica. E diga-se, desde logo, que nessa caracterização não releva a qualificação jurídica conferida pela parte: trata-se de apurar qual a causa de pedir invocada, independentemente do nomen juris utilizado pela autora; é ao Tribunal que cabe proceder ao enquadramento jurídico-normativo que considera correcto, ainda que divergente do sustentado pelas partes, o que corresponde à simples aplicação do princípio iura novit curia, acolhido no artº 5, nº3 do CPC («O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito»).

Posto isto, verifica-se que a matéria de facto alegada pela autora não é substancialmente caracterizadora da simulação fundamento da putativa nulidade. Efectivamente da leitura da petição inicial resulta que apenas formalmente se apela à simulação, já que resulta claro, da matéria de facto alegada, que a autora pugna pela resolução em beneficio da massa insolvente do contrato de compra e venda celebrado entre empresas do mesmo grupo bem assim como o de constituição de hipoteca, nos termos e para os efeitos do disposto no artº 120º do CIRE, como bem o entendeu o Tribunal a quo.

Desse ponto de vista, verifica-se que a autora invoca a existência de simulação, para sustentar a prejudicialidade dos actos em relação à massa e formula a pretensão de obter a reintegração no património da insolvente dos bens que responderiam pelas dividas desta e assim, acautelar os interesses da generalidade dos credores. Parece pois evidente que se está a invocar matéria caracterizadora duma resolução em beneficio da massa insolvente e nela está a causa em que assenta a pretensão da A. – e se é essa relação que consubstancia a causa de pedir e funda o pedido, então é óbvio que estamos perante uma acção de resolução em beneficio da massa insolvente, que o tribunal assertivamente apreciou.

É certo que a autora veio peticionar a declaração de nulidade de dois negócios jurídicos -als a) e b) do pedido-, mas para concluir  – al.c) – para que se “ordene a apreensão do prédio em apreço a favor da Massa insolvente”

Na verdade, a factualidade alegada na petição inicial e os pedidos nela formulados não podem dissociar-se do regime específico consagrado na lei para a conservação da garantia patrimonial da massa insolvente, ou seja, o instituto da resolução de negócios em benefício da massa insolvente.

E nesse sentido, a pretensão da autora está, in casu, necessariamente sujeita àquele enquadramento legal e ao seu regime específico. Ex adverso, estaria descoberto o procedimento adequado nomeadamente para obstaculizar os efeitos do decurso do prazo de caducidade.

O nosso legislador, no Capítulo V do Título IV do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) - artigos 120° a 126° - optou claramente por consagrar um regime específico de conservação da garantia patrimonial da massa insolvente: o instituto da resolução de negócios em benefício da massa insolvente.

Este instituto da resolução de negócios em benefício da massa insolvente permite, assim, tal como peticiona a autora, obter a reintegração para a massa insolvente dos ativos patrimoniais que hajam sido subtraídos pela prática de atos em determinado período de tempo.

Ora, ao pedir nesta ação, conforme foi pedido, a declaração de nulidade do contrato de compra e venda celebrado em 03/02/2012 e da escritura de constituição de hipoteca, outorgada em 25/01/2007, a massa insolvente pretende, apenas e só, que o imóvel em causa seja reintegrado na massa insolvente.

Sendo certo que, conforme se referiu, face à matéria alegada, tal como bem entendeu o Tribunal a quo, a forma específica que a lei prevê para a obtenção deste efeito é através da resolução em benefício da massa insolvente.

Nesse sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 5 de Maio de 2016, que concluiu:

“…a resolução em benefício da massa insolvente é a forma especial prevista no artigo 120.º do CIRE para a obtenção da reintegração na massa insolvente dos bens que da mesma não constem por terem sido antecipadamente retirados da esfera patrimonial do devedor mercê da prática pelo mesmo de actos prejudiciais à massa, considerando-se como tais os que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência, presumindo-se como tal, sem admissibilidade de prova em contrário, os elencados no artigo 121.º do CIRE, presumindo-se ainda a má fé do terceiro quanto a actos cuja prática tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que haja participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente. Prevê-se, portanto, a resolução condicional no artigo 120.º e a resolução incondicional no artigo 121.º.”

Donde, face ao exarado na petição inicial, era, por conseguinte, à luz do regime especial previsto na lei para a resolução em benefício da massa insolvente que a presente ação e, nomeadamente, a exceção da caducidade invocada tinham que ser apreciadas.

E, assim sendo, o Tribunal a quo não conheceu indevidamente da resolução dos negócios em beneficio da massa insolvente, pelo que a sentença recorrida não merece qualquer censura, nem omitiu a apreciação de qualquer questão que lhe tenha sido peticionada.

E perante isto, entendemos assistir plena razão ao tribunal recorrido, que entendeu, aliás neste segmento sem impugnação, e que por tal se reproduz:

“A resolução em causa, como dispõe o artº 123, nº 1 do CIRE pode ser efectuada pelo administrador da insolvência por carta registada com aviso de recepção nos seis meses seguintes ao conhecimento do acto, mas nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência.

Foi dado como assente que este negócio em análise não foi objecto de resolução por carta registada com aviso de recepção. Contudo, nada obstava a que o pedido de resolução em causa fosse concretizado por meios judiciais (cfr. Ac. do TRP de 12-04-2011, agrafado a meu pedido na contracapa deste processo).

Também se retira desse mesmo acórdão, que os prazos de seis meses e dois anos a que se refere o artº 123, nº 1 do CIRE, embora a epígrafe do preceito seja “prescrição do direito”, são de caducidade do direito potestativo à resolução.

Interessa agora, avaliar os referidos prazos de caducidade foram, ou não extrapolados. Recordando a matéria de facto assente, é patente que, os actos jurídicos que se pretendem anular foram praticados em 7 de Fevereiro de 2012 e 25 de Janeiro de 2007, e o processo de insolvência teve o seu início em 13.10.2014, o prazo de dois anos a que alude o artº 123º, nº 1 do CIRE, mostra-se manifestamente excedido.

Por outro lado, como alegam a segunda e terceira rés, os negócios jurídicos em análise já eram do conhecimento do Sr. Administrador de Insolvência pelo menos à data da elaboração do Relatório a que alude o artº 155º do CIRE, datado de 04.06.2015 (vide al. e) dos factos assentes), portanto, há mais de seis meses.

Alega porém, a autora, de que só posteriormente é que teve conhecimento de que havia uma relação de grupo e subordinação entre a insolvente e as ora RR. e que foi precisamente o conhecimento superveniente dos factos alegados na p. i. que motivou a presente demanda.

Mas face à matéria dada como assente, é patente que tal conhecimento já existia, em 16.12.2015, quando o Sr. Administrador emitiu parecer sobre a qualificação da insolvência. Lendo atentamente esse parecer, percebe-se que o mesmo já faz referência aos negócios em análise nestes autos.

Ou seja, mesmo seguindo a tese da autora, a presente acção deveria ter sido proposta no prazo de seis meses a contar daquela data de 16.12.2015, o que manifestamente não sucedeu, pois, recorde-se, este processo apenas foi intentado em 26.07.2017.

Face ao supra explanado resta concluir pela procedência da invocada excepção de caducidade, que por ser peremptória, importa a absolvição do pedido.”

Deve, assim, tal como decidido ser reconhecida a procedência da excepção peremptória de caducidade, com a consequente absolvição dos RR. do pedido – pelo que se adere à solução e fundamentos da decisão recorrida.

Em suma: concorda-se com o juízo decisório formulado pelo Tribunal a quo, pelo que não merece censura a decisão sob recurso.».

Independentemente da forma como a Autora configurou a sua causa de pedir, ambas as instâncias concluíram que não se mostrava essencial a formulação concreta do pedido – declaração de nulidade – face ao poder de configuração jurídico-normativa que é conferido ao Tribunal por força do disposto no artigo 5º, nº3 do CPCivil, segundo o qual «O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito» e, assim sendo, com factualidade susceptível de integrar o vício que imputou ao acto em causa, e/ou sem a materialidade consubstanciadora do mesmo, mas de todo o modo, sendo o acto susceptível apenas de ser posto em causa através da resolução, a qual implicava a sua reintegração na massa insolvente, e que teria lugar nos termos do normativo inserto no artigo 120º do CIRE, que não teve lugar na espécie.

Efectivamente, ambas as instâncias concordaram que o regime aplicável seria o da resolução, por se estar em sede especial insolvencial, daí a relativa pouca importância conferida à alegação da factualidade conducente à nulidade (também consubstanciadora dos fundamentos de resolução), porquanto o que manifestamente relevava, como releva, é que o AI não procedeu, como se lhe imporia, à resolução atempada do negócio, de onde a operância da caducidade de harmonia com o disposto no artigo 123º, nº1 do CIRE, por estarem excedidos os prazos legais, como se concluiu, cfr Ac STJ de 18 de Outubro de 2016 (Relator Júlio Gomes) e de 27 de Outubro de 2016 (Relator Pinto de Almeida, aqui 1º Adjunto), in www.dgsi.pt.

É que, em tema de resolução a favor da massa, por forçado disposto no artigo 120º, nº1 do CIRE, só podem ser resolvidos os actos que sejam prejudiciais à massa, entendendo-se estes, como predispõe o seu nº2, aqueles que «diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência.», sendo que todos os actos aludidos no artigo 121º do CIRE, se presumem prejudiciais, abarcando este instituto muitos dos contornos específicos dos vícios do negócio jurídico e que, por isso, os absorvem, cfr Júlio Gomes, Nótula Sobre A Resolução Em Benefício Da Massa Insolvente, in IV Congressso de Direito da Insolvência, 107/129; Maria de Fátima Ribeiro, Um confronto entre a resolução em benefício da massa insolvente e a impugnação pauliana, ibidem, 131/178; Maria do Rosário Epifânio, Manual De Direito Da Insolvência, 7ª edição, 248/263.

A resolução constitui assim o meio de fazer reverter para a massa insolvente todo e qualquer património que dela haja sido retirado, com o intuito de a diminuir, «A resolução em benefício da massa insolvente visa a reconstituição do património do devedor, permitindo a destruição de actos prejudiciais a este património», apud Ac STJ de 29 de Abril de 2014 (Relator Pinto de Almeida, aqui primeiro Adjunto), in www.dgsi.pt.

 

Sempre se acrescenta, ex abundanti, que não colhe qualquer eventual argumentário, no sentido de se verificar uma oposição jurisprudencial, por um lado, por a mesma não estar identificada e por outro lado, porque ambas as decisões em confronto assentaram na legitimidade da demandante, quer em sede de declaração de nulidade, quer em tema de resolução, sendo que, no caso específico destes autos, tal pressuposto processual foi conhecido pelo primeiro grau e não foi posto em equação em sede de recurso, tendo-se sempre em atenção que só o poderia ter sido pela parte a quem aproveitaria, isto é a Ré, e não já a Autora, aqui Recorrente, tratando-se pois de res judicata.

Soçobram, pois, todas as conclusões.

III Destarte, nega-se a Revista, mantendo-se a decisão plasmada no Acórdão impugnado.

Custas pela Massa, artigo 303º do CIRE.

Lisboa, 2 de Abril de 2019

Ana Paula Boularot (Relator)

Fernando Pinto de Almeida

José Rainho