Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
125/15.8PHSNT. S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: ARMINDO MONTEIRO
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
SUBSIDIARIEDADE
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Data do Acordão: 06/23/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática:
DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA - CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A INTEGRIDADE FÍSICA.
Doutrina:
- André Lamas Leite, in revista Julgar, Ano 12 (Especial), 45.
- Beleza dos Santos, in R.L.J., Ano 67, 306 e ss..
- Eduardo Correia, Actas do C.P., 1979, 22.
- Fernando Capez, Heleno Cláudio Fragoso e Assis Toledo, Curso de Direito Penal, 1.º Vol.. S. Paulo, 2012, 92 a 94; Lições de Direito Penal, R.J., 2003, 452; Princípios de Direito Penal, S. Paulo, 1994, 51.
- Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 229; in Comentário Conimbricense do Código Penal, 26, comentário ao artigo 132.º.
- Lourenço Martins, Medida da Pena, 491 e 492.
- Margarida Silva Pereira, in Textos, Direito Penal II, Os Homicídios, A.A.F.D.U.L., 40, 62.
- Miguez Garcia e Castela Rio, “Código Penal”, Parte Geral e Especial, comentário ao art.º 152.º, 617, 621.
- Nuno Brandão, in revista Julgar, Ano 12, 2010, 17 a 22.
- Paula Ribeiro de Menezes, in Comentário do Código Penal, I, 226 §§9 e 10.
- Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 133/134, 202, 288/389, 400.
- Sara Neves Simões, «O Crime de violência doméstica, Aspectos materiais e processuais», Dissertação ante a U.C.L., 2012, 12.
- Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbrisense ao Código Penal, I, 512; in Liber Discipulorum, Coimbra Ed., 2003, 317, 329.
- Teresa Serra, Homicídio Qualificado, 1995, 45 (nota 117), 47 a 67.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 30.º, N.º 3, 40.º, 71.º, 144.º, N.º 1, AL. A), 145.º, N.ºS 1, AL. B) E 2, 132.º, N.º 2, ALS. C) E J), 152, N.ºS 1, AL. D), E 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

-DE 21/10 2009, P.º N.º 302/06.2 GRFZZ, C.J., I.

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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 6.1.2010, DE 17.1.2007, P.º N.º 3845/06, DE 11.7.2007, P.º N.º 1583 /07,E AINDA B.M.J. 358/260, 334/251, DE 30.10.2003, P.º N.º 3281/03 E DE 15/4/1998, P.º N.º 74798.
-DE 28.4.2010, P.º N.º 13/07.1GAC.TB, C.J., I, 22.9. 2001, P.º N.º 1 79/ 09.6TAVLD, C.J, I.
Sumário :

I - Em sede de concurso de normas pode ao intérprete e aplicador da lei deparar-se com situações em que as normas se posicionam numa relação de grau; um delito menos abrangente pode considerar-se incluído numa norma mais ampla; esta, a norma primária, absorve a subsidiária. A essa relação se chega por critérios de valoração jurídica; na norma primária se englobará então todas a ofensa jurídica que esgota o âmbito da punição previsto na norma subsidiária, esvaziando-a de conteúdo.

II - Diferencia-se a relação de subsidiariedade da especialidade, conformada com uma relação de género em que a norma especial afasta, por si, a lei geral. Essa dimensão em forma subsidiária do alcance das normas no seu confronto infere-se, umas vezes, por disposição expressa de lei, outras por via material ou implícita, quando o facto especificado numa norma é elemento componente, agravante ou constitutivo de circunstância mais grave.

III - É unânime, ao nível jurisprudencial e doutrinal que, por força da cláusula de subsidiariedade expressa prevista na al. d) do n.º 1 do art. 152.º do CP, que o crime de violência doméstica cede ante o de ofensa à integridade física qualificada, que aquele absorve, punindo a ofensa mais gravemente.

IV - O modo de execução, a partir dos meios utilizados, as consequências do crime e o demais circunstancialismo do caso, muito particularmente a convivência com o menor ofendido, a quem oficialmente tinha sido confiado, exprimem um elevado grau de ilicitude, de violação de lei, visto o grau de contrariedade ao direito e os resultados provocados. Os sentimentos revelados por parte da arguida são de desprezo absoluto para com o menor e insensibilidade. Pelo que tudo ponderado, é de confirmar a pena de 6 anos e 6 meses aplicada à arguida pela 1.ª instância, pela prática de 1 crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 144.º, n.º 1, al. a), 145.º, n.ºs 1, al b) e 2, com referência ao art. 132.º, n.º 2, als. c) e j), todos do CP.
Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

Rec.º n.º NUIPC 125/15.8PHSNT. S1

  Em processo comum com intervenção do tribunal colectivo no TRIBUNAL  DA ... SECÇÃO CRIMINAL DA INSTÂNCIA ...., COMARCA DE ..., foram submetidas a julgamento:

         AA, e

         BB, vindo, a final, a:

        

   A) ABSOLVER a arguida BB da prática do crime de maus tratos, p. e p. pelo disposto no artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a) do Código Penal, de que vinha acusada;

         B) ABSOLVER a arguida AA da prática do crime de maus tratos agravado, p. e p. pelo disposto no artigo 152.º-A, n.ºs 1, alínea a) e 2, alínea a), ambos do Código Penal, de que vinha acusada;

   C) CONDENAR a arguida AA pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 144.º, n.º 1, al. a), 145.º, n.ºs 1, al. b) e 2, com referência ao artigo 132.º, n.º 2, als. c) e j), todos do Código Penal, por relação de subsidiariedade com o crime de violência doméstica, nos termos do artigo 152.º, n.ºs 1, al. d) e 2 do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão;

  D) CONDENAR a arguida AA a pagar ao ofendido CC a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros), nos termos do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal;

        


*

A arguida AA, inconformada com o decidido interpôs recurso para o STJ, apresentando as seguintes conclusões:

          

 

         Aos factos provados seria de aplicar o tipo legal de crime previsto e punido no artigo 152° do Código Penal - Violência Doméstica. E afirmámo-lo na medida em que, é por via deste desta qualificação, e não de outra (independentemente da relação de subsidiariedade existente) que o quadro da ilicitude adquire verdadeiro sentido tipológico, no âmbito da "micro violência continuada" em que se estriba os diversos crimes parcelares que o mencionado ilícito absorve.

Donde, e retomando a nossa linha raciocínio argumentativa, o que esta em causa, no crime de violência doméstica, a protecção da pessoa individual, da sua dignidade humana.

Trata-se, claro está, de crime específico e que pressupõe uma determinada relação entre os sujeitos activo e passivo. Deste modo, e reportando-nos ao caso em preço, o tipo objectivo de ilícito preenche-se com a acção de infligir maus-tratos físicos e que, a bem da verdade se traduziram em ofensas á integridade físicas graves.

Todos os episódios e actos praticados dolosamente pela arguida contra o menor CC e que consistiram em lhe infligir maus-tratos físicos, e psicológicos, rebaixavam quem fosse vítima deles, ofendendo a dignidade de qualquer pessoa, como sucedeu neste caso, integrando e preenchendo o crime de violência doméstica, e por ele devia a arguida ser punida.

 Não estão verificados as circunstâncias, em que a pena aplicável ao crime de violência doméstica, deva ceder, por força da relação de subsidiariedade, relativamente ao crime de ofensa à integridade física qualificada.

Da Dosimetria da pena:

Sem prejuízo da prevenção especial positiva e, sempre com o limite imposto pelo princípio da culpa, a função primordial e porque não dize-lo essencial da pena, consiste na necessária tutela de bens jurídicos. A tutela de bens jurídicos tem subjacente a ideia de que a pena deve ser utilizada para dissuadir a prática de crimes pelos outros cidadãos, enraizando a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos, por parte dos cidadãos (Cfr. neste sentido e por todos Ac. do S.T.J. de 2000.11.30, proc. N.º 2451/200 5.° SATSTJ n.º45, pág. 89.).

Depois, a medida concreta da pena, segundo o disposto no art. 71º C. Penal, determina-se em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção. Para graduar concretamente a pena há que respeitar o critério fornecido pelo n° 2 deste artº, 71°, ou seja, atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime deponham a favor do agente ou contra ele.

E em função do que acima se expôs, e no que concerne ao crime pelo qual a arguida AA foi condenada, a saber, um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 144° nº l alínea a), 145° nº1 alínea b) e nº 2, com referência ao artigo 132° nº 2 alínea c) e j), todos do Código Penal, na pena de 6 anos e 6 meses, defendemos que a mesma é desproporcional, face por um lado as necessidades de prevenção geral e tutela de bens jurídicos e as necessidades prementes que em sede de prevenção especial, o caso reclama.

 Alem do mais, a mesma não considerou devidamente as demais circunstâncias susceptíveis de influir positivamente na pena que lhe foi aplicada.

 Designadamente, as condições pessoais e sociais da arguida, tal qual foram aferidas através de relatório social junto aos autos de fls. 515 a 520, mormente ao nível da avaliação da personalidade e conduta da arguida. Por tudo o que acima se expôs, entendemos que outra pena mais benévola será de aplicar à arguida AA, ora recorrente, e concomitantemente mais consentânea com a justiça que este caso reclama, atentas as necessidades de prevenção geral e os cuidados de prevenção especial.

O Exm.º Procurador da República em 1.º instância defende o acerto do decidido e, neste STJ, a Exm.º Procuradora Geral Adjunta, aderiu, de pleno, ao parecer daquele Magistrado.

Colhidos os legais vistos, cumpre decidir, considerando provados os seguintes factos:  

          1) CC, é filho de ...e de ..., nascido a ...2008.

         2) Em ... 2013,CC foi residir com o pai e com a sua companheira AA, ora arguida, ao abrigo de medida judicial de promoção e protecção de apoio aplicada por acordo no âmbito do processo n.º 5614/07.5TCLRS-A, que corre termos na Instância de Família e Menores deste Tribunal.

 3) Cerca de três meses depois, por causa de DD ter iniciado o cumprimento de pena de prisão, o menor ficou apenas aos cuidados da arguida AA, sendo que, em 17/07/2014, no âmbito do referido processo de promoção e protecção, foi obtido acordo para alteração da medida para medida de promoção e protecção de confiança à mesma, que o subscreveu.

         4) O menor residia com a arguida na ....

         5) Em 25 de Novembro de 2014, o menor CC foi transferido da escola do ....

  6) Desde que frequenta a escola .., o menor CC frequentemente aparece na escola com lesões físicas, concretamente um corte junto ao olho esquerdo, altos na cabeça, lesões no braço direito e feridas no corpo, e quando confrontado refere que as lesões são devidas a quedas.

 7) Durante o último ano de 2014 em que o CC se encontra aos cuidados da arguida AA, esta, um número indeterminado de vezes, no interior da residência indicada, em datas e circunstâncias não concretamente apuradas, desferiu no corpo do menor várias pancadas, designadamente com fios eléctricos, cintos e objectos de madeira, e, numa das situações, apôs-lhe um ferro de engomar quente na mediana das costas do lado direito, provocando-lhe diversas lesões.

8) A arguida AA, em data não concretamente apurada, mas compreendida entre o final do mês de Janeiro e 4 de Fevereiro de 2015, dirigiu-se ao CC e com um garfo que previamente aqueceu no fogão, queimou-lhe a região glútea, tendo-lhe provocado na zona dos quadrantes internos, duas queimaduras, uma na região glútea esquerda com 5x4cm e outra na região glútea direita com 4x3cm, ambas de maior eixo oblíquo inferomedialmente.

  9) A arguida AA, em data não concretamente apurada, mas situada nos primeiros dias do mês de Fevereiro, anterior ao dia 6 de Fevereiro de 2015, desferiu várias chicotadas ao CC, com um objecto de características não concretamente apuradas, atingindo-o designadamente na zona da cabeça e rosto.

         10) Em 6/02/2015, pelas 10h00, o CC foi assistido no Hospital ..., tendo sido acolhido institucionalmente, situação em que ainda se encontra.

 11) Com a actuação acima descrita a arguida AA causou ao menor Duarte as lesões descritas e examinadas a fls. 345 a 351, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, nomeadamente:

    - Na zona da cabeça: Cicatriz avermelhada situada na região infraorbitária esquerda, linear, hipertrófica, oblíqua inferomedialmente com 2 cm de comprimento por 0,3 cm;

    - Na zona do pescoço:
Cicatriz linear, ligeiramente hipopigmentada, oblíqua inferolateralmente, situada sobre a articulação esternoclavicular direita, com 1 cm de comprimento;
Cicatriz ténue situada na face posterior direita do pescoço, linear, branca, arciforme, côncava para a direita com 4 cm;

    - Na zona do tronco (regiões posteriores): Múltiplas cicatrizes, planas, algumas nacaradas, sendo a maioria hiperpigmentadas, acastanhadas, dispersas por toda a região dorsal, incluindo regiões supra-escapulares e escapulares, e região lombar, punctiformes, ovaladas ou lineares. As lineares apresentam direcções variadas, umas com 4 cm de comprimento, e as maiores delas:
uma linear, situada na região escapular direita, horizontal, com 6 cm de comprimento;
uma linear, situada na região dorsal direita, infraescapular, oblíqua inferolateralmente, com 8 cm de comprimento;
uma linear, situada na região dorso-lombar direita, vertical, com 5 cm de comprimento;
uma linear, situada na região lombar mediana, horizontal com 4 cm de comprimento;
uma linear, situada na região lombar esquerda, obliqua inferomedialmente com 6 cm de comprimento.

         Apresenta ainda algumas cicatrizes ovaladas de bordos irregulares, dispersas, a maior delas na face lateral esquerda do tronco, que mede 3 cm de comprimento vertical por 1 cm de maior largura;

         - No membro superior esquerdo:
Na face anterior do ombro esquerdo, quatro cicatrizes acastanhadas, lineares com 1 cm de comprimento cada uma delas, planas, hiperpigmentadas, a maioria delas oblíquas inferomedialmente;
Múltiplas cicatrizes hiperpigmentadas de bordos irregulares, acastanhadas, situadas na face lateral dos terços proximal e médio do braço esquerdo, dispersas numa área de cerca de 8x3cm de maior eixo vertical, a maioria delas ovaladas, a menor delas com 1x0,5cm e a menor com 0,5x0,3cm, e uma outra 2,5x0,5cm de maior eixo vertical;
No terço distal da face externa do braço esquerdo, duas cicatrizes arredondadas contínuas, nacaradas, com halo acastanhado com cerca de 0,5cm de diâmetro cada uma delas;
Na face posterior do braço esquerdo, duas cicatrizes, uma arredondada no terço superior com 0,5cm de diâmetro e outra linear no terço distal do braço, vertical com 1cm de comprimento.

         - Nos membros inferiores:
Nas regiões glúteas, quadrantes internos, duas cicatrizes nacaradas triangulares de base externa, uma na região glútea esquerda com 5x4cm e outra com 4x3cm ambas de maior eixo oblíquo inferomedialmente, com halo hiperpigmentado, acastanhado, e bordos irregulares;
No quadrante supero-interno da nádega esquerda, cicatriz linear nacarada arciforme de concavidade para a esquerda e para cima com 6cm de comprimento;
No quadrante supero-externo da nádega direita, cicatriz linear, oblíqua para baixo e medianamente com 3 cm de comprimento;
Na nádega direita, quadrante supero-interno, duas cicatrizes nacaradas grosseiramente horizontais, a mais superior com 1cm e a outra com cerca de 1,5cm de comprimento.

         - No membro inferior direito:
Múltiplas cicatrizes dispersas pela face posterior e externa da coxa direita, nos terços proximal, médio e distal, umas arredondadas com cerca de 0,5cm de diâmetro a maioria delas e as maiores com cerca de 1 cm de diâmetro, e quatro lineares, hiperpigmentadas, horizontais, com 4cm de comprimento;
Duas cicatrizes hiperpigmentadas acastanhadas situadas na coxa direita, face ântero-interna, terço médio, a mais medial linear, vertical, com cerca de 4 cm de comprimento e a mais lateral e distal grosseiramente triangular de base inferior com 4x1cm;
Oito cicatrizes hiperpigmentadas, situadas nos terços proximal e médio da coxa direita, seis arredondadas/ovaladas medindo entre 0,5cm e 1cm de diâmetro e duas oblíquas inferoposteriormente com 4cm de comprimento;
Cicatriz situada na face posterior, terço proximal da perna direita (região gemelar), maioritariamente com 5 cm de comprimento e com maior largura de 1cm na sua porção distal;
Duas cicatrizes lineares na face anterolateral e lateral da perna direita, lineares com 4 cm de comprimento, uma oblíqua inferoposteriormente e outra vertical.

         - Membro inferior esquerdo:
Múltiplas cicatrizes, na metade proximal da face posterior e lateral da coxa esquerda, seis delas lineares, umas com 3cm de comprimento e duas delas com 5cm de comprimento, oblíquas, com diferentes orientações;
Três cicatrizes situadas no terço médio da coxa esquerda, lineares, duas com 2 cm de comprimento, uma vertical e uma oblíqua inferoposteriormente.”

12) Em particular com a actuação descrita em 9) a arguida AA causou ao menor CC ferida incisa no lábio com discreto edema, ferida incisa superficial na pirâmide nasal com cerca de 1cm e ferida incisa na região malar direita.

  13) Tais lesões referidas em 12) foram causa directa e necessária de 10 dias de doença, sendo 10 dias com incapacidade para o trabalho geral e 10 dias com incapacidade para o trabalho profissional.

         14) As cicatrizes que resultaram para o menor CC dos actos acima descritos, praticados pela arguida AA, designadamente junto ao olho esquerdo, nas pernas, na região do tórax e dos glúteos, são deformações de carácter permanente.

15) No dia 6 de Fevereiro de 2015, de manhã, a arguida BB, “avó” do menor, mãe da madrasta, dirigiu-se à referida escola e quis entrar no recinto, tendo exibido perante a funcionária da escola, EE, roupas sujas de fezes, que retirou de um saco plástico que levava consigo.

         16) A arguida BB foi impedida pela funcionária EE de entrar na escola.

         17) A arguida AA não cuida da higiene e vestuário do CC.    

18) A arguida AA agiu livre, deliberada e conscientemente, com o intuito, concretizado, de causar dores e lesões corporais em CC que sabia ser filho do seu companheiro e estar ao seu cuidado e, face à sua idade, incapaz de se defender adequadamente das suas agressões, mais sabendo que, ao atingi-lo da forma acima descrita, tal meio era apto a provocar-lhe lesões e cicatrizes permanentes, o que aconteceu. Mais sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

         Mais se provou que:

         Relativamente à arguida AA:

         19) A arguida não tem antecedentes criminais registados.

 20) A arguida é natural de ..., AA tem mais dois irmãos uterinos. O pai não integrava o agregado; mantinha uma outra família paralela, com outros filhos. A condenada costumava visitá-lo e mantinha com ele um relacionamento positivo, verbalizando relacionar-se também com os outros irmãos consanguíneos.

         22) A arguida vivia com a mãe, irmãos uterinos e avós maternos, numa dinâmica familiar funcional, integradora e afectiva, pese embora as dificuldades financeiras vivenciadas.

         23) A arguida foi uma aluna assídua e responsável, desenvolvendo um percurso escolar estável e sem problemáticas associadas, tendo concluído o 10º ano aos 17 anos. Com 18 anos obteve uma bolsa para dar continuidade aos estudos em Portugal, tendo concluído o 12º ano com 20 anos de idade.

         24) Em Portugal a arguida integrou inicialmente o agregado de um irmão consanguíneo, até se autonomizar.

         25) No plano afectivo, iniciou namoro em 2009, com 19 anos de idade, com DD, com o qual passou a viver maritalmente cerca de um ano depois. O casal tem uma filha em comum, actualmente de 4 anos de idade. A relação foi oficializada em 23/10/2014.

 24) Entretanto, no decorrer de uma viagem a ..., de visita aos familiares, AA encontrou a progenitora doente, tendo decidido trazê-la para Portugal, a fim de se tratar. Todavia, 2 meses após ter regressado ao nosso país, com a mãe, o marido foi preso.

         25) À data dos factos o agregado familiar da arguida subsistia do vencimento da arguida, como empregada de limpezas de uma superfície comercial (...), durante o período nocturno, e num salão de cabeleireiro, no C. Comercial ..., auferindo um vencimento global de 800 euros, 300 euros dos quais se destinavam ao pagamento da renda da habitação onde viviam.

         26) Concomitantemente a arguida visitava regularmente o marido, preso no EP de ..., situação que a afectou e que lhe suscitou um acentuado desconforto emocional. Esta situação levou-a a recorrer ao seu médico de família, que lhe passou uma baixa médica de 15 dias por sintomatologia depressiva, período findo o qual a mesma voltou ao trabalho, dadas as acentuadas dificuldades económicas com que se deparava e que não lhe permitiam estar de baixa por um período prolongado de tempo.

         27) Concomitantemente, experimentava dificuldades em lidar com o comportamento do enteado, ora ofendido, o que a levou a consultar novamente o seu médico de família, tendo levado a criança consigo, para observação.

28) A arguida AA é descrita pela comadre e pelo médico de família, que a acompanha desde os 17/18 anos de idade, como uma mulher dócil e meiga, sem traços de agressividade.

29) Em resultado directo da prisão preventiva aplicada nestes autos, AA teve de entregar a casa arrendada onde o agregado habitava, tendo o apoio da comadre, madrinha de sua filha, que tem assegurado a guarda da criança e que acolheu a arguida após a saída do estabelecimento prisional, sujeita a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação.

30) Quando deu entrada no EP, AA evidenciava um estado de acentuada instabilidade emocional, de choro fácil, com sintomatologia depressiva, que a levou a ser encaminhada para acompanhamento psicológico nos serviços clínicos do EP, encontrando-se actualmente mais estabilizada, embora continue a manifestar um choro fácil.

31) No estabelecimento prisional a arguida não teve qualquer registo disciplinar, apresentando uma boa adaptação ao quadro normativo e uma postura tranquila e assertiva no trato com os técnicos, guardas prisionais e outros funcionários e trabalhava na oficina do seu pavilhão, com um desempenho positivo, recebendo visitas regulares da comadre, irmãos e mãe.

         Relativamente à arguida BB:

         32) A arguida não tem antecedentes criminais registados.

         33) Encontra-se a viver em casa de uma amiga, que assegura o seu sustento.

         34) Tem 3 filhos, 2 dos quais residem em ..., para onde pretende regressar após terminar os tratamentos à coluna que motivaram a sua deslocação para Portugal.


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O recurso, directo, endereçado a este STJ, envolve a reapreciação da  qualificação jurídica adoptada na decisão condenatória de 1.ª instância, da qual discorda a arguida e a medida concreta da pena de 6 anos e 6 meses de prisão que lhe foi cominada, perfilhando o entendimento de que  os episódios e actos praticados dolosamente pela arguida contra o menor CC e que consistiram em lhe infligir maus-tratos físicos, e psicológicos, ofendendo a dignidade de qualquer pessoa, como sucedeu neste caso, integrando e preenchendo o crime de violência doméstica, e por ele devia a arguida ser punida, pecando, também,  a pena por excesso, desproporcionada.

A qualificação jurídica acolhida em 1.ª instância, alterando a figurando na acusação, enquadrou os factos provados como preenchendo o tipo legal de ofensas à integridade física qualificada p. e p.  pelos artigos 144.º, n.º 1, al. a), 145.º, n.ºs 1, al. b) e 2, com referência ao artigo 132.º, n.º 2, als. c) e j), todos do Código Penal, em concurso com   crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º  152.º n.ºs  1 d),  do CP, por força da regra de subsidiariedade estabelecida no seu  n.º 2, ao dispor que este último cede  em presença de outro positivado na lei.

A relação de subsidiariedade  é afirmada no segmento normativo em causa ao dispor que o crime de violência   doméstica é punido com prisão de 1 a 5 anos, “se pena mais grave lhe  não couber por força de outra disposição legal“.   Na verdade em sede  de concurso de normas pode ao intérprete e  aplicador da lei deparar-se como situações em que as normas se posicionam numa relação de grau; um delito menos abrangente pode considerar-se incluído numa norma mais ampla; esta,  a norma primária, absorve  a subsidiária.

A essa relação se chega por critérios de valoração jurídica; na norma primária se englobará então toda a ofensa jurídica que esgota o âmbito da punição previsto na norma  subsidiária, esvaziando-a de conteúdo. A norma dominadora será primária e a dominada a subsidiária.  Há elementos a mais que a norma subsidiária  não prevê.  

Diferencia-se a relação de subsidiariedade da especialidade, conformada como uma relação de género em que a norma especial afasta, por si, a lei geral. Essa dimensão em forma subsidiária do alcance das normas no seu confronto  infere-se, umas vezes, por disposição expressa de lei, outras por outras por via material ou implícita, quando o facto especificado numa norma   é elemento componente, agravante  ou constitutivo  de circunstância mais grave. Assim  teorizam  Fernando Capez, Heleno Cláudio Fragoso e Assis Toledo, in Curso de Direito Penal, 1.º Vol.. S.Paulo, 2012, 92 a 94,  Lições de Direito Penal, RJ, 2003, 452 e Princípios de Direito Penal, S.Paulo, 1994, 51, respectivamente; idem, entre nós, Paulo Pinto de  Albuquerque, Comentário do Código Penal, pág. 134.

O crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, do CP, é, actualmente,  um tipo autónomo, resultante de variadas e sucessivas alterações  ao Dec.º-Lei n.º 48/95, de 15/3, sendo relevantes as aduzidas  pelas Leis n.ºs 65/98, de 29/9, 7/2000, de 27/5, 59/2007, de 4/9 e 19/2013, de 21/2 (aditando a relevância criminal da relação de namoro)   é  de perigo abstracto, e ocorre sob a forma – n.º 1 - de  inflicção de “modo reiterado ou não“, “de maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais“, contra, além do mais, “pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da sua idade, deficiência, doença ou dependência económica que, com ele coabite“ – al.d), do n.º 1, a que cabe a sobredita pena  de 1 a 5 anos de prisão.

Se, porém, o crime (então  de violência,  indirecta)  for praticado na presença de menor, no domicílio comum, ou no domicílio da vítima, a pena é de 2 a 5 anos de prisão –art.º 152.º n.º 2, do CP.

O crime terá como bem jurídico a proteger,  no  descritivo típico, segundo alguns, uma panóplia de bens jurídicos, emprestando-lhe natureza  complexa, como a saúde física e mental, a liberdade, na sua projecção individual,  sexual; para outros a dignidade da pessoa humana, o da dignidade em geral e, em particular, a sua saúde.

Em Taipa de Carvalho, CCCP, I, 512, vemos sufragado o entendimento da protecção da saúde, nas suas díspares  irradiações –física, psíquica e mental-; deste entendimento se não distanciará Nuno Brandão,  in Julgar, Ano  12, 2010, 17 a 22, para quem o delito goza de “uma  tutela  penal  especial reforçada“, mercê da carga acrescida de ilicitude e de dolo de que se mostram portadores os maus tratos, que tanto podem consistir em actos reiterados, habituais,  mas sempre expressivos de gravidade, embora se possam traduzir em um acto isolado, neste caso portador de uma chocante e indesculpável  carga de ilicitude e censura do agente, sem desprezar  não só o acto em si como a sua repercussão na possibilidade de vida em comum, particularmente se a compromete sem remédio, sem possibilidade de subsistência, sacrifício absolutamente intolerável, à luz das concepções  sociais reinantes, numa valoração da  imagem global do facto, onde se há-de  detectar  um quadro, no dizer de Nuno Brandão, R E V.  e loc. cit., degradado, de aviltamento, humilhante da dignidade,  ofensividade e enfranquecimento da relação,  integrando  os maus tratos  indiscutível  “risco qualificado“  para a  saúde  física e psíquica  do outro.

Os maus tratos hão-de traduzir “lesões graves, pesadas, da incolumidade corporal e psíquica do ofendido“, no campo da tensão  entre os tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos e a tutela da integridade física e moral “, nas palavras de André Lamas Leite, in  R E V. Julgar, Ano 12 (Especial), 45.

Os maus tratos revelam e definem-se, em síntese abrangente, como actos denotando  intenção de humilhação, indiferença, desprezo, desrespeito,  crueldade, o propósito de fazer sofrer; a violência é tanto a física, a corporal, como a psíquica, em acumulação com as privações de liberdade e as ofensas sexuais, atentatórias em alto grau da pessoa e ser humano, sobretudo da dignidade que, pelo facto de o ser, lhe é merecida e devida,  e por isso aquelas ofensas hão-de revelar-se  intoleráveis  no quadro da vivência em comum, à margem da harmonia que nela deve reinar, tornada um sacrifício insuportável.

A punição da violência doméstica  ( cfr. Código Penal, Parte Geral e Especial, de Miguez Garcia e Castela Rio, comentário ao art.º 152.º )   quando exercida sobre  pessoa menor está em que  a  existência de uma relação comunitária por força do casamento, união de facto, parental  ou realidade análoga, como é o caso do ofendido, vivendo com a arguida, então  companheira do pai, e, desde 2014,  respectiva  mulher, gera uma esperança de acompanhamento  respeitoso e interessado, sem perturbação,  de crescimento  frutífero, proveitoso  e equilibrado em vista do desenvolvimento harmónico desejável e que sai frustrado pela naturalidade incapacidade e especial  fragilidade  de a vítima se defender, o que legitima uma tutela penal reforçada e uma intervenção penal mais vigorosa e atenta       

 

 Por isso que o crime,   introduzido pela Lei n.º  59/2007, de 4/9, é um crime específico, assente numa relação proximal,  entre o agente e a vítima, cuja prática decorre  num ambiente de estreita comunidade geradora de deveres, e que “instituem normas de conduta“  cuja violação agrava a ilicitude do facto – cfr. A.  Silva Dias e Ricardo Bragança de Matos,  citados  naquela comentário, a fls. 617.

Com a alusão típica que se faz a práticas ofensivas, físicas ou psíquicas, incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais, reiteradas  ou não, significa – se que elas hão – de caracterizar uma certa habitualidade ou não o sendo, por comissão de um só acto,  tradutora de especial gravidade pelos sentimentos de crueldade, desprezo,  vingança, desejo de humilhar e prazer no sofrimento causado à vítima, a intuir da  valoração da imagem global do facto.

A menção que agora se faz a acto isolado vem por termo a uma polémica jurisprudencial do antecedente, solução inteiramente ainda consentânea e harmónica com a teleologia do descritivo típico, em vista dos  valores a  tutelar, vista  a alteração que a Lei n.º 59/2007, de 4/9,  introduziu.

In casu resulta provado que o menor CC, nascido a .../2008, é filho de DD e de ...,  e que  em .... de 2013, foi residir com o pai e com a sua companheira, a arguida AA,  ao abrigo de medida judicial de promoção e protecção de apoio aplicada por acordo no âmbito do processo n.º 5614/07.5TCLRS-A, que corre termos na Instância de Família e Menores deste Tribunal.

Cerca de três meses depois de  o pai do menor,  ter iniciado o cumprimento de pena de prisão, o menor ficou apenas aos cuidados da arguida AA, sendo que, em 17/07/2014, no âmbito do referido processo de promoção e protecção, foi obtido acordo para alteração da medida para medida de promoção e protecção de confiança à mesma, que o subscreveu.

 Durante o último ano de 2014, tendo o menor 5/6 anos, a arguida,  um número indeterminado de vezes, no interior da residência onde vivia com o menor,  em datas e circunstâncias não concretamente apuradas, desferiu no corpo do menor várias pancadas, designadamente com fios eléctricos, cintos e objectos de madeira, e, numa das situações, apôs-lhe um ferro de engomar quente na mediana das costas do lado direito, provocando-lhe diversas lesões.

 A arguida AA, em data não concretamente apurada, mas compreendida entre o final do mês de Janeiro e 4 de Fevereiro de 2015,  tendo menor já 6 anos,  com um garfo que previamente aqueceu no fogão, queimou-lhe a região glútea, tendo-lhe provocado na zona dos quadrantes internos, duas queimaduras, uma na região glútea esquerda com 5x4cm e outra na região glútea direita com 4x3cm, ambas de maior eixo oblíquo inferomedialmente.

 A arguida AA, em data não concretamente apurada, mas situada nos primeiros dias do mês de Fevereiro, anterior ao dia 6 de Fevereiro de 2015, desferiu várias chicotadas ao CC, com um objecto de características não concretamente apuradas, atingindo-o designadamente na zona da cabeça e rosto.

 Em 6/02/2015, pelas 10h00, o CC foi assistido no Hospital ..., tendo sido acolhido institucionalmente, situação em que ainda se encontra.

O menor apresenta um vasto  número de cicatrizes, dispersas pelo corpo, e assim:

    

   - Na zona da cabeça: Cicatriz avermelhada situada na região infraorbitária esquerda, linear, hipertrófica, oblíqua inferomedialmente com 2 cm de comprimento por 0,3 cm;

         - Na zona do pescoço:

• Cicatriz linear, ligeiramente hipopigmentada, oblíqua inferolateralmente, situada sobre a articulação esternoclavicular direita, com 1 cm de comprimento;

•        Cicatriz ténue situada na face posterior direita do pescoço, linear, branca, arciforme, côncava para a direita com 4 cm;

   - Na zona do tronco (regiões posteriores): Múltiplas cicatrizes, planas, algumas nacaradas, sendo a maioria hiperpigmentadas, acastanhadas, dispersas por toda a região dorsal, incluindo regiões supra-escapulares e escapulares, e região lombar, punctiformes, ovaladas ou lineares. As lineares apresentam direcções variadas, umas com 4 cm de comprimento, e as maiores delas:

•        uma linear, situada na região escapular direita, horizontal, com 6 cm de comprimento;

•        uma linear, situada na região dorsal direita, infraescapular, obliqua inferolateralmente, com 8 cm de comprimento;

•        uma linear, situada na região dorso-lombar direita, vertical, com 5 cm de comprimento;

•        uma linear, situada na região lombar mediana, horizontal com 4 cm de comprimento;

• uma linear, situada na região lombar esquerda, obliqua inferomedialmente com 6 cm de comprimento.

         Apresenta ainda algumas cicatrizes ovaladas de bordos irregulares, dispersas, a maior delas na face lateral esquerda do tronco, que mede 3 cm de comprimento vertical por 1 cm de maior largura;

         - No membro superior esquerdo:

•   Na face anterior do ombro esquerdo, quatro cicatrizes acastanhadas, lineares com 1 cm de comprimento cada uma delas, planas, hiperpigmentadas, a maioria delas oblíquas inferomedialmente;

• Múltiplas cicatrizes hiperpigmentadas de bordos irregulares, acastanhadas, situadas na face lateral dos terços proximal e médio do braço esquerdo, dispersas numa área de cerca de 8x3cm de maior eixo vertical, a maioria delas ovaladas, a menor delas com 1x0,5cm e a menor com 0,5x0,3cm, e uma outra 2,5x0,5cm de maior eixo vertical;

•        No terço distal da face externa do braço esquerdo, duas cicatrizes arredondadas contínuas, nacaradas, com halo acastanhado com cerca de 0,5cm de diâmetro cada uma delas;

• Na face posterior do braço esquerdo, duas cicatrizes, uma arredondada no terço superior com 0,5cm de diâmetro e outra linear no terço distal do braço, vertical com 1cm de comprimento.

         - Nos membros inferiores:

•        Nas regiões glúteas, quadrantes internos, duas cicatrizes nacaradas triangulares de base externa, uma na região glútea esquerda com 5x4cm e outra com 4x3cm ambas de maior eixo oblíquo inferomedialmente, com halo hiperpigmentado, acastanhado, e bordos irregulares;

•        No quadrante supero-interno da nádega esquerda, cicatriz linear nacarada arciforme de concavidade para a esquerda e para cima com 6cm de comprimento;

•        No quadrante supero-externo da nádega direita, cicatriz linear, oblíqua para baixo e medianamente com 3 cm de comprimento;

•  Na nádega direita, quadrante supero-interno, duas cicatrizes nacaradas grosseiramente horizontais, a mais superior com 1cm e a outra com cerca de 1,5cm de comprimento.

         - No membro inferior direito:

•        Múltiplas cicatrizes dispersas pela face posterior e externa da coxa direita, nos terços proximal, médio e distal, umas arredondadas com cerca de 0,5cm de diâmetro a maioria delas e as maiores com cerca de 1 cm de diâmetro, e quatro lineares, hiperpigmentadas, horizontais, com 4cm de comprimento;

•        Duas cicatrizes hiperpigmentadas acastanhadas situadas na coxa direita, face ântero-interna, terço médio, a mais medial linear, vertical, com cerca de 4 cm de comprimento e a mais lateral e distal grosseiramente triangular de base inferior com 4x1cm;

•        Oito cicatrizes hiperpigmentadas, situadas nos terços proximal e médio da coxa direita, seis arredondadas/ovaladas medindo entre 0,5cm e 1cm de diâmetro e duas oblíquas inferoposteriormente com 4cm de comprimento;

•        Cicatriz situada na face posterior, terço proximal da perna direita (região gemelar), maioritariamente com 5 cm de comprimento e com maior largura de 1cm na sua porção distal;

•        Duas cicatrizes lineares na face anterolateral e lateral da perna direita, lineares com 4 cm de comprimento, uma oblíqua inferoposteriormente e outra vertical.

         - Membro inferior esquerdo:

•        Múltiplas cicatrizes, na metade proximal da face posterior e lateral da coxa esquerda, seis delas lineares, umas com 3cm de comprimento e duas delas com 5cm de comprimento, oblíquas, com diferentes orientações;

•        Três cicatrizes situadas no terço médio da coxa esquerda, lineares, duas com 2 cm de comprimento, uma vertical e uma oblíqua inferoposteriormente.”

         12) Em particular com a actuação descrita em 9) a arguida AA causou ao menor CC ferida incisa no lábio com discreto edema, ferida incisa superficial na pirâmide nasal com cerca de 1cm e ferida incisa na região malar direita.

         13) Tais lesões referidas em 12) foram causa directa e necessária de 10 dias de doença, sendo 10 dias com incapacidade para o trabalho geral e 10 dias com incapacidade para o trabalho profissional.

         14) As cicatrizes que resultaram para o menor CC dos actos acima descritos, praticados pela arguida AA, designadamente junto ao olho esquerdo, nas pernas, na região do tórax e dos glúteos, são deformações de carácter permanente.

 A arguida AA não cuida da higiene e vestuário do CC.

A arguida AA agiu livre, deliberada e conscientemente, com o intuito, concretizado, de causar dores e lesões corporais em CC que sabia ser filho do seu companheiro e estar ao seu cuidado e, face à sua idade, incapaz de se defender adequadamente das suas agressões, mais sabendo que, ao atingi-lo da forma acima descrita, tal meio era apto a provocar-lhe lesões e cicatrizes permanentes, o que aconteceu. Mais sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

 O menor  conviveu com a  arguida e  o pai, sendo-lhe confiado  ao abrigo de medida judicial de promoção e protecção de apoio aplicada por acordo no âmbito do processo n.º 5614/07.5TCLRS-A, que corre termos na Instância de Família e Menores deste Tribunal,  continuando,  por fim, e na data dos factos, a viver  com a arguida estando o pai foi privado de liberdade.

A enumeração das lesões  corporais causadas  pela arguida com quem o   enteado, ofendido convivia, durante o último ano de 2014, tendo o menor 5/6 anos, desferindo-lhe  um número indeterminado de vezes, no interior da residência onde vivia com o menor,  em datas e circunstâncias não concretamente apuradas,  várias pancadas, designadamente com fios eléctricos, cintos e objectos de madeira, e, numa das situações, apôs-lhe um ferro de engomar quente na mediana das costas do lado direito, provocando-lhe diversas lesões, repetindo  a as agressões  entre o final do mês de Janeiro e 4 de Fevereiro de 2015,  tendo menor já 6 anos,  com um garfo que previamente aqueceu no fogão, queimou-lhe a região glútea, tendo-lhe provocado na zona dos quadrantes internos, duas queimaduras, uma na região glútea esquerda com 5x4cm e outra na região glútea direita com 4x3cm, ambas de maior eixo oblíquo inferomedialmente e, em data não concretamente apurada, mas situada nos primeiros dias do mês de Fevereiro, anterior ao dia 6 de Fevereiro de 2015, chicoteando  com um objecto de características não concretamente apuradas, atingindo-o designadamente na zona da cabeça e rosto, denotam à saciedade um chocante quadro  factual  agressivo, tradutor  de pesada, grave inflicção de mal  físico e até psíquico ao menor, através de reiteração, extrapolando a  simples tutela da  sua integridade física e psíquica, portadores de evidente desumanidade,  crueldade, desprezo pelo ser humano  indefeso, manifestação de uma personalidade violenta e má. 

Configurado, pois, se mostra o crime de violência doméstica, não posto em crise, de resto,  pela arguida.

 Desconhece-se o que seja o tipo legal de “micro violência doméstica“, como a arguida menciona, porém   a natureza dos bens jurídicos eminentemente pessoais lesados, compromete a figura da continuação criminosa, atento o que se preceitua no art.º 30.º n.º3, do CP, na redacção  da Lei n.º 40/10, de 3/9, repondo a tradição legal de pretérito e  a harmonia do sistema, posta em causa pelo legislador antecedente, retornando –se assim a uma visão, correcta, que repudia, abertamente, tal figura e pronuncia o indiscutível retorno ao concurso efectivo de crimes, em caso de plúrimas ofensas de que é vítima a mesma pessoa. 

A análise que faz da qualificação a atribuir ao quadro factual de violência doméstica, quedando-se por  aqui também  merece  discordância, alargando-se, antes, a uma dimensão jurídica mais alargada, designadamente  convocando a aplicação do crime de ofensa à integridade física grave, qualificada, p. e p. pelo  art.º 144.º, al. a), do CP, com referência aos art.ºs 145.º b) e 132.º n.º 2, c) e j), do CP, a que cabe pena de prisão  de 3   a 12 anos.  

Na  verdade no  ponto n.º 14 do elenco dos factos provados, concluiu o tribunal que  “As cicatrizes que resultaram para o menor CC dos actos acima descritos, praticados pela arguida AA, designadamente junto ao olho esquerdo, nas pernas, na região do tórax e dos glúteos, são deformações de carácter permanente“.

Ora no art.º 144.º n.º 1, do CP, prevê-se a ofensa no corpo ou  na saúde, contida no descritivo típico do crime de violência doméstica, mas vai mais além em sede de previsão, acrescenta algo mais, é mais abrangente, ao englobar como elemento constitutivo do tipo de ofensa grave a ofensa no corpo ou na saúde da qual resulte, além do mais – al.a) - deformação grave,  e mais, se enquadrar qualquer das circunstâncias que revelem especial perversidade ou censurabilidade, gerando nova agravação punitiva, em cascata.

As cicatrizes que resultaram para o menor CC dos actos acima descritos, praticados pela arguida AA, designadamente junto ao olho esquerdo, nas pernas, na região do tórax e dos glúteos, são deformações de carácter permanente, representam uma alteração da  aparência da  pessoa do ponto  de vista estético, no seu relacionamento com os outros.

E uma deformação é permanente quando perdura temporalmente, por modo definitivo ou largo espaço de tempo, mesmo que se possa cobrir com o vestuário, correspondente ao dano estético, modificando a aparência da vítima, relevando a quantidade da lesão, o local, a visibilidade, as relações naturais e sociais do lesado. A gravidade da lesão terá de ser aferida em função da intensidade da lesão – cfr. Paula Ribeiro de Menezes, in CCCP, I, pág. 226 §§9 e 10  e Paulo Pinto de Albuquerque, op. cit., págs. 388/389.

Temos que convir que o corpo do  menor se mostra ocupado por dezenas de cicatrizes,  causadas pelas agressões provocadas pela arguida  e que, além de outras,  sobremodo as as inscritas  no olho esquerdo, nas pernas, na região do tórax e dos glúteos, o desfeiam permanentemente, naturalmente que, à medida que o tempo avance, sejam fonte de mal estar no convívio com terceiros e, até mesmo, causa de prejuízo profissional.

A deformação deve considerar-se grave.

 E assim se entende, sem discrepância notada, ao nível jurisprudencial e doutrinal, que, por força da cláusula de subsidiariedade expressa  como já acima descrito-n.º 1 d), do art.º 152.º, do CP, o  crime de violência doméstica cede ante o de ofensas à integridade física  qualificadas, que aquele absorve, punindo-a ofensa mais gravemente.  Nestes termos cfr.  Paulo Pinto de Albuquerque,  op.cit., pág. 133,  Miguez Garcia e Castela Rio,, op.cit., pág. 621 e Sara Neves Simões, in  O Crime de violência doméstica, Aspectos materiais e processuais,  Dissertação ante a UCL, 2012,  pág.  12 e os Acs.de 28.4.2010, P.º n.º 13/07.1GAC.TB, CJ, I, 22.9. 2001, P.º n.º 1 79/ 09.6TAVL D, CI, I  e da RC, de 21/10 2009, Rec.º n.º 302/06.2 GRFZZ, CJ, I.

O Colectivo teve como agravativo da responsabilidade penal do arguido, o concurso das circunstâncias  agravantes  previstas no art.º  145.º n.º s 1 e  2, do CP,  nas suas als. c), compreendendo a prática do facto  contra pessoa particularmente indefesa, agindo a coberto de frieza de ânimo com reflexão dos meios empregues –al.j), são  de funcionamento não automático, não taxativo, são elementos agravativos da culpa, entendimento generalizado entre nós,  afirmado por Eduardo Correia, Figueiredo Dias ( Actas do CP, 1979, 22 ) e Roxin, situando-as Sousa e Brito e  Teresa Serra, esta  in Homicídio Qualificado, 1995, págs 47 a 67, como enunciadoras de  um tipo de  culpa e medida da pena, para em Margarida da Silva Pereira, Teresa Quintela de Brito e Fernanda Palma, citadas por Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, pág., 400, se centralizarem no tipo de ilícito.

O preenchimento de  qualquer uma das alíneas  do art.º 132.º n.º 2, do CP, não  “entra“ automaticamente no âmbito da norma, escreve Margarida Silva Pereira, in Textos, Direito Penal II, Os Homicídios, AAFDUL, pág. 40, ao contrário do que sucede no direito alemão onde a sua verificação  conduz, sem mais, ao chamado “Mord“, que é o assassínio por “motivos baixos“, em que o tipo de culpa nada influencia a configuração típica, ao invés da orientação reinante entre nós em que a afirmação da  especial censurabilidade e  perversidade só  apelando a um maior grau de culpa se configura.

Esse critério de culpa agravada, com reflexo  na  elevação medida  da pena, emana da especial censurabilidade; todo o homicídio é censurável mas a agravação há-de ser especial, as circunstâncias objectivas  em que a morte foi provocada hão-de ser de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente diferenciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores  reinantes comunitariamente, logo incompreensíveis, na esteira de Stratenwert e Figueiredo Dias, aludidos  por Teresa Serra, apud op.cit., pág. 63; a especial perversidade, ainda segundo esta autora, na esteira de  Binder,  dirige-se aos sentimentos, numa avaliação emocional da culpa, reconduzindo-se a uma “atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivismo  egoísmo do agente“, a uma culpa radicada  e exacerbada em função  da personalidade do agente –cfr., ainda, op. e loc. citado.               

O legislador seguiu em matéria de qualificação de homicídio, o recurso a um critério generalizador determinante de um especial tipo de culpa agravado, assente em conceitos indeterminados, a especial censurabilidade e perversidade, de verificação mediante a técnica da enumeração dos exemplos-padrão, uns referentes ao facto outros ao autor, orientadores do tipo de culpa, de cuja valoração resulta a imagem global do facto agravada –cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Prof. Figueiredo Dias,  pág.26. 

Os exemplos-padrão são ilustrações do que se entende por uma forma especialmente gravosa de certo crime, e no direito alemão, onde reina larga controvérsia sobre a bondade do seu uso, representam também  um esforço de “correcção dos casos especialmente graves“  e a “dose de imprecisão que lhes era inerente“ – cfr. Direito Penal II, Os Homicídios, pág.62, de Margarida Silva Dias.

São os exemplos–padrão, o tipo orientador (Leitbild)  do homicídio qualificado, o seu indício  de verificação, só devendo reputar-se revogado esse efeito  mediante o concurso de “circunstâncias extraordinárias que destaquem a sua ilicitude ou a sua culpa claramente do exemplo-padrão“, não valendo para o efeito as circunstâncias atenuantes gerais do bom comportamento anterior, mérito profissional ou cívico, a confissão espontânea, o arrependimento ou a disposição de ressarcir os danos  reparáveis, mostrando-se  incapazes de “por si só contraprovarem o efeito de indício dos exemplos-padrão“.  

Algumas dessas circunstâncias, reflectem  essa  culpa  agrava quanto equacionadas com o facto, outras  a mesma densidade reprovativa, mas agora por via da  má conformação da personalidade do agente na sua conexão  entre si e a acção que suporta.

A especial agravação é ditada, como já do antecedente exposto deriva, e concorre, do abuso da situação desamparo e fragilidade em que se  acha por via da menoridade, e da convivência sob o mesmo tecto,  da qual se “ aproveita o agente do crime, no que concerne à al. c), do n.º 2, do art.º 132.º, do CP, que deveria funcionar como contramotivo ético e social  do crime  e do seu não seu desencadear, atenta a condição de  inferioridade da vítima.

A frieza de ânimo e a reflexão de meios, enquanto agravativa qualificada do homicídio e por extensão, como a anterior,  às ofensas a integridade física,  está ligada, na sua definição conceptual, com unanimidade entre nós,   a uma ideia de actuação calculista,  reflexiva, em que o agente toma o propósito de e a deliberação firme e  resoluta, irrevogável  e inflexível,  de causar o crime, sendo-lhe indiferente o resultado ou querendo o pior para a sua vítima, afrouxando-lhe a defesa.  O agente do crime  maquinou a sua execução, escolheu os meios adequados, de forma lenta, e deliberada, orientando a sua vontade para o “ declancher “ do acto, em contexto de  actuação “ frio et pacato ânimo “. Assim doutrina o Prof. Figueiredo Dias, in CCCP, ao art.º 132 e Prof. Beleza dos Santos, R L J,  Ano 67, 306 e segs. Na jurisprudência cfr. os Acs deste STJ de 6.1.2010,  de 17.1.2007,P.º n.º 3845/06, de 11.7.2007, P.º n.º 1583 /07   e ainda BMJ 358/260,  334/251, de 30.10.2003, P.º n.º 3281/03 e de 15/4/1998, P.º n.º 74798.

Não se colocam dúvidas de que a arguido conviveu, primeiro,  com a pai e a sua companheira, ora arguida, com quem depois se consorciou,  ingressando, de seguida,  o progenitor na cadeia, ficando o menor na  companhia  da madrasta, sendo lhe confiado em processo tutelar  corrente  no competente Tribunal de Família  e Menores.

Em sequência  a arguida agrediu o menor, com 5/6 anos,   no último ano de 2014, em número indeterminado de vezes, no interior da residência de ambos,  em datas e circunstâncias não concretamente apuradas, desferindo-lhe  várias pancadas, designadamente com fios eléctricos, cintos e objectos de madeira, e, numa das situações, apôs-lhe um ferro de engomar quente na mediana das costas do lado direito, provocando-lhe diversas lesões.

Em  data não concretamente apurada, mas compreendida entre o final do mês de Janeiro e 4 de Fevereiro de 2015, dirigiu-se ao menor  com um garfo que previamente aqueceu no fogão, queimou-lhe a região glútea, tendo-lhe provocado na zona dos quadrantes internos, duas queimaduras, uma na região glútea esquerda com 5x4cm e outra na região glútea direita com 4x3cm, ambas de maior eixo oblíquo inferomedialmente; ainda em data não concretamente apurada, mas situada nos primeiros dias do mês de Fevereiro, anterior ao dia 6 de Fevereiro de 2015, desferiu várias chicotadas com um objecto de características não concretamente apuradas, atingindo-o designadamente na zona da cabeça e rosto.

Esta clara exposição factual denota uma actuação repetida no tempo, logo reflectida que levou à escolha dos meios mais impiedosos e até cruéis (veja-se o uso de cintos, fios eléctricos), mas sobretudo, denotando uma  profunda insensibilidade para com a criança que lhe fora confiada, cujo pai era o seu  marido, valendo por isso,  vincado respeito, cuidado e  carinho,  a queimadura com um ferro de engomar  nas costas e o aquecimento, propositado, ao fogo   no fogão de um  garfo de ferro, e a sua aplicação na região glútea, originando queimaduras, e  com um chicote atingindo-o na cabeça e rosto.

O tempo decorrido não curou de refrear os seus  impulsos criminosos  nem de afrouxar a sua  manifesta violência e a sua personalidade  calculista e  obstinada,    que assim se revelou fria  e indiferente ao  grave sofrimento do  crime, ao desfear do  rosto e cabeça da criança, como de outras zonas onde proliferam  dezenas  de cicatrizes com significativa extensão, produto de um clima  a reclamar uma  intervenção vigorosa do direito penal, que, como se sabe,  é sempre subsidiária e fragmentária. 

Importa, pois, concluir pelo concurso dos elementos típicos do crime de ofensas  à integridade  física qualificadas, pela agravação  trazida pelas circunstâncias exemplificativamente englobadas no  n.º 2, do art.º 132.º, do CP.,  por que foi condenando, desatendendo-se à requalificação proposta.

Resta a reponderação da medida concreta da pena, havida por excessiva, desproporcional, face, por um lado, à s necessidades de prevenção geral e tutela de bens jurídicos e as necessidades prementes que em sede de prevenção especial, o caso reclama, além de que  não considerou devidamente as demais circunstâncias susceptíveis de influir positivamente na pena que lhe foi aplicada, designadamente, as condições pessoais e sociais da arguida, tal qual foram aferidas através de relatório social junto aos autos de fls. 515 a 520, mormente ao nível da avaliação da personalidade e conduta da arguida.

A arguida pugna por uma pena justa, aquela que é merecida, procurada de modo justo, enquanto resposta comunitária sobre o condenado e consequência pedagógico-social sobre a própria colectividade ao ver restabelecida a eficácia da lei.

 O processo de determinação da medida da pena é um derivado puro da posição tomada pelo ordenamento jurídico-penal em matéria de sentido,  limites e finalidade da aplicação das penas.

O legislador penal enunciou a filosofia, o quadro ideológico em que se move a   finalidade das penas, enunciando-o  no art.º 40.º, do CP, ditado pela  protecção  dos bens jurídicos e reinserção social do agente;  a protecção dos bens jurídicos; a acção criminosa, pela ostracização ao direito  e abalo  à estabilização do sistema social e às expectativas dos cidadãos  nas instituições, imprime  a função da pena de restabelecer a confiança institucional e a fidelidade ao direito, no dizer de Luhmann, citado por Teresa Serra, op. cit., pág. 45, nota 117.

A finalidade da pena começou por ser obediente a uma concepção ético-retributiva, ligada à medida da  culpa do infractor no CP de 18 86, evoluindo na reforma de 1982 para uma concepção ético-preventiva da pena, como escreve Taipa de Carvalho, in Liber Discipulorum, Coimbra ED., 2003, pág. 317, 329,para na revisão do CP  de 95 se centrar, numa mudança radical,  numa concepção preventivo-ética, cabendo à pena a função de prevenção.

E para este autor, na hierarquização entre a função preventivo-geral e  especial, a primazia incumbe a esta última; a prevenção geral só opera como limite mínimo  da pena determinada pelo  critério da prevenção especial.  Assim também, por ex.º, entre nós, Lourenço Martins, para quem face ao equívoco preceito do art.º 40.º, do CP, clarificado e  em conjugação  com o art.º 71.º n.º 1, do CP  ao determinar expressamente  que a pena é concretamente apurada em   função da culpa e  exigências de prevenção, deve assinalar-se à pena  a função retributiva, a justa retribuição do mal  causado, só depois se escalonando as funções preventivas e entre elas, e no topo,  a especial,  e só de seguida a prevenção geral, na esteira aliás de Zipf, figura de proa no direito alemão, de onde o nosso direito importou um vasto ideário  – cfr. Medida da Pena, págs 491 e 492.

  Ao colocar-se o homem no centro do epifenómeno que é a fixação da pena, “ as considerações da prevenção especial precederão as de prevenção geral “, são palavras suas, como num muito alargado leque de sistemas jurídico-penais  se perfilha e segue.   

A nossa jurisprudência tem assinalado,   “una voce“,  nesta ampla tarefa de fixação de medida da pena -muito longe de estar encerrada, ela é actual,  e menos ainda de reunir consenso-  a função prioritária da prevenção geral, reservando-se à culpa não só o fundamento punitivo, não há  pena sem culpa, como também a função de limite;  quaisquer que sejam as exigências de prevenção em caso algum  a culpa pode ser excedida; a culpa assume a função de antagonista da prevenção. 

Há assim como que uma moldura que fixa o limite inultrapassável da pena, definida pela culpa, enquanto juízo de censura, e, dentro dela actuantes as submolduras da prevenção geral e especial.     

              

A tarefa de fixação concreta da pena é uma tarefa complexiva porque se trata de converter em números,  magnitudes, factos,  com a marca penal, havendo   uma medida óptima, de prevenção geral,  de protecção dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, podendo, contudo, descortinar-se abaixo desse ponto outros patamares, intervindo considerações particulares do agente, de prevenção especial, \ assegurando ainda a tutela dos bens jurídicos, mas abaixo desse nível  perfila-se um limiar mínimo abaixo do qual a sociedade não suportava a pena – cfr. Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 229.

A culpa figura como limite máximo da pena; a defesa da ordem jurídica o limite mínimo (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, pág. 202, citando o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português –As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 227 a 231 e 244e 245 ); a sociedade aceita uma certa perda da eficácia da pena, mas assaca-lhe um limite incontornável, fazendo avultar, precisamente, o ideário de prevenção geral.

Cabe à culpa a função de moldura de topo, de partida na vertente da formação da pena, dentro do qual operam considerações de prevenção geral negativa, de dissuasão de potenciais delinquentes no sentido de que o crime não compensa, como ainda, de prevenção geral positiva, a  finalidade principal da pena,  de garantia das expectativas que os cidadãos esperam de protecção dos seus interesses, de tranquilidade,  segurança e  paz jurídica, como de prevenção especial, prevenindo a reincidência do agente. 

A pena, agora dirigida ao agente, a uma finalidade particular, propõe-se  levá-lo a interiorizar as consequências do crime, de modo a que o meio social retome o crédito perdido pela prática do delito, creditando-lhe confiança, crendo na sua mudança “in mellius“. 

E a consideração destes pontos determinam um papel importante na formulação última da pena, são o ponto de chegada no processo de formação, porque conduzem o julgador àquele ponto abaixo do qual a sociedade não tolera  a punição, tendo em vista a sua reinserção.

Intervêm, ainda, complementarmente circunstâncias que não fazendo parte do tipo, depõem a favor ou contra o arguido, como a intensidade do dolo, o grau de ilicitude, os sentimentos revelados, os motivos ou fins do agente, as suas condições pessoais, a conduta anterior ou posterior ao crime e a capacidade do agente para manter conduta lícita-n.º 2-, com grande relevo na prevenção especial negativa, norteada para a inocuização da sua eventual reincidência e perigosidade.

 O Colectivo  ponderou  a sua condição pessoal,  de empregada de limpezas em dois locais, visitando  com regularidade  o pai do enteado, preso no EP de ..., situação provocante de  um acentuado desconforto emocional, passando por um quadro de sintomatologia depressiva, experimentando dificuldades em lidar com o comportamento do enteado, sendo descrita pelo médico de família e por uma comadre,  como uma mulher dócil e meiga, sem traços de agressividade, adaptando-se sem censura, ao regime prisional.

No estabelecimento prisional a arguida não teve qualquer registo disciplinar, apresentando uma boa adaptação ao quadro normativo e uma postura tranquila e assertiva no trato com os técnicos, guardas prisionais e outros funcionários e trabalhava na oficina do seu pavilhão, com um desempenho positivo, recebendo visitas regulares da comadre, irmãos e mãe.

Em audiência de julgamento produziu uma confissão parcial dos factos, a seu jeito, de modo conveniente e para si mais favorecente, de maneira a desvirtuar a sua responsabilidade penal.

Tem o 12.º ano.

Não tem registados factos criminais ou outros, não se inferindo que, sem mais, seja portadora de bom comportamento anterior.

O crime em que a arguida se mostra incurso tem   contornos de elevada gravidade penal, de grande reprovabilidade  comunitária tanto no plano ético e moral como no plano jurídico-penal que naquela se  se revê, desde logo ao cominar uma moldura penal alargada entre 3 e 12 anos de prisão pela importância e grandeza dos valores jurídicos a acautelar e desde logo o da integridade física, enquanto direito fundamental, derivado em linha recta  do de protecção do direito à vida.

O dolo, a vontade de agredir, de ofender no corpo e na saúde o seu enteado, manifestou-se conscientemente, evidenciando, tenacidade e irrevogabilidade,  posto  que reiterando por algum tempo,   não se absteve de  como instrumentos  de agressão  usar  o ferro  quente de engomar,  o  ferro de garfo  que aqueceu ao fogo, que de objectos inofensivos, transformou em perigosos, fios eléctricos,  cintos e objectos  de madeira, chicote, não podendo ignorar as consequências graves desse uso advenientes, como advieram, o que bem  sabia e quis.

Aflora a prova produzida a instabilidade psíquica que a privação de liberdade imposta ao marido da arguida - nascida em 1990 - e as suas modestas condições económicas  lhe trouxeram, associadas à natureza difícil da criança,  de algum modo desorientando a arguida, mas essa circunstância, nunca desculparia esse seu procedimento, justificativo, antes,  do  recurso  ao auxílio, à intervenção das competentes entidades médicas e psicológicas, desligitimante da brutalidade exercida  sobre alguém  que, atenta a sua muito pouca idade,  se não defende  e nem queixa.

Logo o modo de execução, a partir dos  meios utilizados, as consequências do crime e o demais circunstancialismo do caso, muito particularmente  a convivência como menor, a quem oficialmente tinha sido confiado,   exprimem um elevado grau de ilicitude,  de violação de lei, visto o grau  de contrariedade ao direito   e os  resultados  provocados.

Os sentimentos de revelados  por parte da arguida são  de desprezo absoluto para com o menor  e  insensibilidade, mais próprios de um clima de  barbárie, absolutamente  inaceitável,  e de uma personalidade muito defeituosa, violenta e  malsã, que pede educação para o direito, agudizando evidentes  exigências em   termos de prevenção especial, prevenindo a sua futura reincidência, , atenta a conduta desviante que adoptou.

As exigências de prevenção geral, negativa, direccionadas para os cidadãos em geral, como forma de, pela pena, aplicada aos outros, se absterem  eles de cometer delitos, é muito  patente, atenta a espiral  de violência que, entre nós,  incide  sobre mulheres, idosos e crianças;  ao nível da prevenção geral positiva, a  finalidade principal da pena,  de garantia das expectativas que os cidadãos esperam de protecção dos seus interesses, de tranquilidade,  segurança e  paz jurídica  por parte dos órgãos aplicadores da lei, demandam, por ser presente um clima  com alguma dose de alarme social  em tais domínios, uma imperativa e firme actuação,  que tais   expectativas contemple  e realização assegure.

 Nestes termos e a tudo atendendo, como atendeu o Colectivo, a pena de aplicar à arguida, de 6 anos e 6 meses, é inteiramente de confirmar, obedecendo aos critérios de formação, de vinculação legal, previstos nos art.ºs 40.º e 71.º, do CP, nos parâmetros devidamente  ponderados da culpa e prevenção.

Nega-se provimento ao recurso.

Taxa de Justiça:.5 Uc. 

Armindo Monteiro (Relator)

Santos Cabral