Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
239/16.7YHLSB.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: PROPRIEDADE INDUSTRIAL
MARCAS
DENOMINAÇÃO DE ORIGEM
SINAL DISTINTIVO
MONUMENTO NACIONAL
PATRIMÓNIO ARQUEOLÓGICO
DIREITO COMUNITÁRIO
DIRECTIVA COMUNITÁRIA
DIRETIVA COMUNITÁRIA
Data do Acordão: 03/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA E DETERMINADA A BAIXA DO PROCESSO
Área Temática:
DIREITO DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL – REGIMES JURÍDICOS DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL / MARCAS / MARCAS DE PRODUTOS OU DE SERVIÇOS.
Doutrina:
-Carlos Olavo, Propriedade Industrial, Almedina, 1997, p. 43;
-Couto Gonçalves, Manual de Direito Industrial, Almedina 2008, 2.ª Edição, p. 234.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL (CPI): - ARTIGO 223.º, N.º 1, ALÍNEAS B) E C).
Referências Internacionais:
PRIMEIRA DIRETIVA 89/104/CEE, DO CONSELHO DE 21 DE DEZEMBRO DE 1988: - ARTIGO 3.º, N.º 1, ALÍNEA C).
DIRETIVA (UE) 2015/2436, DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, DE 16 DE DEZEMBRO DE 2015: - ARTIGO 4.º, N.º 1, ALÍNEA C).
Jurisprudência Estrangeira:
ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA (TJUE):


- PROCESSO N.º C-107/97, DE 04-05-1999;
- PROCESSO N.º C-108/97, DE 04-05-1999, WINDSURFING CHIEMSEE PRODUKTIONS- UND VERTRIEBS GMBH (WSC) CONTRA BOOTS- UND SEGELZUBEHÖR WALTER HUBER;
- PROCESSO N.º C-109/97, FRANZ ATTENBERGER.
Sumário :
I - O artigo 223.º/1, alínea c) do Código da Propriedade Industrial corresponde aos artigos 3.º/1, alínea c) da Primeira Diretiva 89/104/CEE do Conselho de 21 de dezembro de 1988 e 4.º/1, alínea c) da Diretiva (UE) 2015/2436 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2015, impondo-se a sua interpretação à luz da jurisprudência comunitária.

II - No que respeita às marcas que são constituídas exclusivamente por indicações que possam designar, no comércio, a proveniência geográfica do produto nos casos em que o nome geográfico em causa não tenha atualmente, para os meios interessados, uma ligação com a categoria de produtos em causa, a autoridade competente deve apreciar se é razoável pensar que esse nome possa, para os meios interessados, designar a proveniência geográfica dessa categoria de produtos.

III - Nessa apreciação, é conveniente, mais especialmente, ter em conta o conhecimento maior ou menor que os meios interessados têm do nome geográfico em causa, bem como as características do lugar designado por este e da categoria de produtos em causa

IV - O nexo entre o produto em causa e o lugar geográfico não depende necessariamente do fabrico do produto nesse lugar.

V - A marca registada "Abrigo do Lagar Velho", classificado hoje como Monumento Nacional (Decreto 17/2003, de 24 de junho), não constitui designação geográfica, designa um sítio arqueológico localizado no Vale do Lapedo, concelho de Leiria, identificado por referência a uma ruína de um antigo lugar existente perto do local conhecido por "Lagar Velho".

VI - "Menino do Lapedo" constitui um achado arqueológico, esqueleto de criança, que assim passou a ser designado pelos visitantes da zona e pela comunidade científica, que prova a miscigenação entre o Homo Neandertal e o Homo Sapiens, designação que foi registada como marca, sendo Lapedo o nome de uma aldeia sita no Vale com o mesmo nome da freguesia de Santa Eufémia, concelho de Leiria.

VII - A marca " Menino do Lapedo" é uma marca composta por dois elementos um dos quais - o vocábulo "Lapedo" - designa a região onde foi encontrado o mencionado achado arqueológico. O outro elemento, ainda que genérico, não constitui em si nenhum dos sinais referidos na alínea c) do artigo 223.º do CPI que sirva para designar a espécie, qualidade, quantidade, destino, valor, época ou meio de produção do produto ou da prestação de serviço, mostrando-se, assim, excluída a aplicabilidade da previsão constante do artigo 223.º/1, alínea b) à referida marca.

VIII - Ainda que tais marcas fossem compostas exclusivamente pelos sinais mencionados no artigo 223.º/1, alínea c) do CPI, não existindo conhecimento de que produtos ou serviços já existam com essas designações, que no seu conjunto têm caráter distintivo, não se vislumbra nem resulta dos factos provados que as pessoas, que saibam que tais designações respeitam aos referidos locais e achado, estabeleçam ou possa estabelecer qualquer nexo de causalidade entre os produtos e serviços e a sua proveniência geográfica, referenciados que estão a um lugar arqueológico e a um achado arqueológico.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. O Ministério Público propôs ação declarativa de condenação contra Empreendimentos Turísticos do AA, SA.

2. Pede que seja declarada a nulidade e anulados os registos da marca nacional n.º 405259 - MENINO DO LAPEDO e n.º 405260 - ABRIGO DO LAGAR VELHO.

3. Os registos foram concedidos, respetivamente, em 17-4-2007 e 15-2-2008 e pedidos em 9-8-2006.

4. Assinalam os serviços e produtos referenciados em 2 infra da matéria de facto.

5. O Abrigo do Lagar Velho é uma jazida arqueológica e paleontológica localizada no Vale do Lapedo, concelho de Leiria.

6. Nele se descobriu um esqueleto humano, sepultura infantil, vulgarmente conhecido como " Menino do Lapedo", designação atribuída pelos técnicos responsáveis pela escavação quando da descoberta do mencionado achado arqueológico.

7. A ré reivindicou a exclusividade do uso das referidas expressões por mensagem eletrónica dirigida à Câmara Municipal de ... onde referiu " vimos por este meio comunicar a V. Exas a proibição de qualquer publicação sobre o 'Menino do Lapedo', "Abrigo do Lagar Velho" e "Vale do Lapedo" sob pena de cobrarmos valores respeitantes a publicidade"

8. O Abrigo do Lagar Velho foi classificado em 24-6-2013 como Monumento Nacional.

9. Sustenta o autor que, (a) conforme expressamente consagrado na lei (artigo 74.º/3 da Lei n.º 107/2001) " os bens provenientes da realização de trabalhos arqueológicos constituem património nacional", estando fora do comércio jurídico privado, tal o caso do "Abrigo do Lagar Velho" e do achado designado " Menino do Lapedo".

10. Ora conferindo o registo da marca " o direito de propriedade e de exclusivo da marca para os produtos e serviços a que se destina", daí resulta que apenas a sociedade ré pode utilizar as referidas denominações; então, a admitir-se o mesmo, um particular poderia condicionar " o uso de sinais distintivos que fazem parte da herança cultural que é pertença de todos".

11. As marcas em causa constituem sinais do Estado cujo uso por particulares implica autorização competente (artigo 239.º/1, alínea d) do CPI), autorização que não ocorreu.

12. O registo das marcas em causa deveria também ser recusado por serem constituídas exclusivamente " por indicação de proveniência geográfica" e " por sinais que se tornaram usuais na linguagem corrente"; ora a marca "Abrigo do Lagar Velho" é constituída por sinal exclusivamente indicativo da proveniência geográfica e a designação "Menino do Lapedo" é designação usual na linguagem corrente," sendo meramente descritiva do referido achado e do local onde o mesmo foi descoberto" mostrando-se, assim, violadas a alíneas c) e d) do n.º1 do artigo 223.º do CPI.

13. Considera o autor que os registos foram concedidos com infração dos seguintes artigos:

- 239.º/1, alínea g) (considerada a redação original dada pelo Decreto-Lei n.º 36/2003, de 5 de março que aprovou o Código da Propriedade Industrial) à qual passou a corresponder a alínea d) (com a redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 143/2008, de 25 de julho que aditou ao preceito apenas a expressão inicial " O emprego de"), texto que se continua a manter na atual versão do CPI dada pela Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto.

Artigo 239.º

1- Constitui ainda fundamento de recusa de registo de marca

[…]

d) O emprego de nomes, retratos, expressões ou figurações sem que tenha sido obtido autorização das pessoas a que respeitam e, sendo já falecidos, dos seus herdeiros ou parentes até ao 4º grau ou, ainda que obtida, se produzir o desrespeito ou desprestígio daquelas pessoas.

- 238.º/1, alínea c) (redação original)

Artigo 238.º

Fundamentos de recusa do registo

1 - Para além do que se dispõe no artigo 24.º, o registo de uma marca é recusado quando esta

[…]

c) Seja constituída, exclusivamente por sinais ou indicações referidos nas alíneas b) a e) do n.º1 do artigo 223.º.

- 238.º/1, n.º 4, alínea a) (redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 143/2008, de 25 de julho)

4 - É ainda recusado o registo de uma marca que contenha em todos ou alguns dos seus elementos:

a) Símbolos, brasões, emblemas ou distinções do Estado, dos municípios ou de outras entidades públicas ou particulares, nacionais ou estrangeiras, o emblema e a denominação da Cruz Vermelha, ou de outros organismos semelhantes, bem como quaisquer sinais abrangidos pelo artigo 6.º-ter da Convenção da União de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial, salvo autorização;

Artigo 222.º

Constituição da marca

1 - A marca pode ser constituída por um sinal ou conjunto de sinais suscetíveis de representação gráfica, nomeadamente palavras, incluindo nomes de pessoas, desenhos, letras, números, sons, a forma do produto ou da respetiva embalagem, desde que sejam adequados a distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outras empresas

Artigo 223.º

Exceções

1 - Não satisfazem as condições do artigo anterior

c - Os sinais constituídos, exclusivamente, por indicações que possam servir no comércio para designar a espécie, a qualidade, a quantidade, o destino, o valor, a proveniência geográfica, a época ou meio de produção do produto ou da prestação do serviço, ou outras características dos mesmos;

d - As marcas constituídas, exclusivamente, por sinais ou indicações que se tenham tornado usuais na linguagem corrente ou nos hábitos leais e constantes do comércio

Lei n.º 107/2001, de 8 de setembro (Lei do Património Cultural)

Artigo 3.º

1. Através da salvaguarda e valorização do património cultural, deve o Estado assegurar a transmissão de uma herança nacional cuja continuidade e enriquecimento unirá as gerações num percurso civilizacional singular.

2. O Estado protege e valoriza o património cultural como instrumento primacial de realização da dignidade da pessoa humana, objeto de direitos fundamentais, meio ao serviço da democratização da cultura e esteio da independência e da identidade nacionais.

3. O conhecimento, estudo, proteção, valorização e divulgação do património cultural constituem um dever do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais.

Artigo 7.º

Direito à fruição do património cultural

1 - Todos têm direito à fruição dos valores e bens que integram o património cultural, como modo de desenvolvimento da personalidade através da realização cultural.

2 - A fruição por terceiros de bens culturais, cujo suporte constitua objeto de propriedade privada ou outro direito real de gozo, depende de modos de divulgação concertados entre a administração do património cultural e os titulares das coisas.

3 - A fruição pública dos bens culturais deve ser harmonizada com as exigências de funcionalidade, segurança, preservação e conservação destes.

4 - O Estado respeita, também, como modo de fruição cultural o uso litúrgico, devocional, catequético e educativo dos bens culturais afetos a finalidades de utilização religiosa.

Artigo 74.º

Conceito e âmbito do património arqueológico

3 - Os bens provenientes da realização de trabalhos arqueológicos constituem património nacional, competindo ao Estado e às Regiões Autónomas proceder ao seu arquivo, conservação, gestão, valorização e divulgação através dos organismos vocacionados para o efeito, nos termos da lei.

Decreto-Lei n.º 280/2007, de 7 de agosto que estabelece o regime jurídico do património imobiliário público

Artigo 18.º (inalienabilidade)

Os imóveis do domínio público estão fora do comércio jurídico, não podendo ser objeto de direitos privados ou de transmissão por instrumentos de direito privado.

Artigo 20.º (impenhorabilidade)

Os imóveis do domínio público são absolutamente impenhoráveis

14. A sentença de 1ª instância considerou que as restrições de ordem pública incidem sobre o imóvel, propriedade do administrador da ré e onde ocorreram os achados, em virtude das normas que regulam a classificação destes como monumento nacional e da sua inclusão em zona de especial proteção (ZEP).

15. No entanto, as designações em si não fazem parte do domínio público, nada obstando a que sobre elas incidam direitos de natureza privada como poderia ser, por exemplo, o direito de autor sobre a designação " Menino do Lapedo", enquanto criação intelectual original, se assim for o caso.

16. Não é aplicável ao caso o disposto no artigo 239.º/1, alínea d) do CPI " já que num caso se trata de um sítio arqueológico ('Abrigo do Lagar Velho') e, no outro caso, de um esqueleto de criança de há 20 ou 30 mil anos ('Menino do Lapedo').

17. A sentença julgou a ação procedente e provada, declarando nulos os registos das aludidas marcas nacionais por entender que no caso se verificava a previsão constante do artigo 239.º/1, alínea e) do CPI que prescreve constituir fundamento de recusa do registo de marca

e) O reconhecimento de que o requerente pretende fazer concorrência desleal ou de que esta é passível independentemente da sua intenção.

18. Considerou a sentença que o réu " ao registar as marcas que reproduzem na íntegra as designações por que ficaram conhecidos o achado " Menino do Lapedo" e o sítio arqueológico "Abrigo do Lagar Velho" onde o mesmo ocorreu, não podia a ré ignorar serem tais expressões usadas pelos responsáveis e a generalidade das pessoas envolvidas para identificar os ditos achado e sítio, desde que assim foram designados a partir da sua descoberta em 1998 com eco nos meios de comunicação e publicações da especialidade.

19. Assim, bem sabia que seriam tais achados e as respetivas designações necessariamente utilizadas, em publicações e atividades induzidas pelos mesmos, como turismo cultural e afins ou respetivos produtos e suportes publicitários, pelas entidades envolvidas na respetiva promoção maxime a Câmara Municipal de Leiria ou o Instituto Português de Arqueologia […]

20. E nos termos do artigo 317.º/1, alínea c) do CPI constitui concorrência desleal todo o ato de concorrência contrário às normas e usos honestos de qualquer ramo de atividade económica, nomeadamente as invocações ou referências não autorizadas feitas com o fim de beneficiar do crédito ou da reputação de um nome, estabelecimento ou marca alheia"

21. Ora a ré deixou poucas dúvidas quanto à sua intenção de beneficiar de crédito e reputação associados às expressões " Abrigo do Lagar Velho" e "Menino do Lapedo" quando, em mensagem dirigida à Câmara municipal de Leiria, datada de 14-7-2014, comunicava a esta a proibição de qualquer publicação sobre as mesmas, sob pena e cobrar publicidade".

22. Mais considerou a sentença que os registos são nulos, nos termos do artigo 33.º/1, alínea b) do CPI, "quando, na respetiva concessão, tenha havido preterição de procedimentos ou formalidades imprescindíveis para a concessão do direito", impondo-se autorização das entidades competentes na medida em que as referências das marcas às aludidas designações consubstanciam ato de concorrência desleal".

23. Interposto recurso pela ré, sustentou esta que não se verifica concorrência desleal e, a entender-se que não é concebível que "a Câmara Municipal de ... se abstenha de referir, nomeadamente, em publicações, achados arqueológicos de relevo nacional e internacional ocorridos na área da sua jurisdição" (ver sentença), direito que a ré se arrogou conforme email enviado pela ré em 14-7-2014 (ver facto 16), então a nulidade deveria ser decretada tão somente para a classe 16 da classificação de Nice que contempla produtos de "Papel, papelão e produtos feitos desses materiais e não incluídos em outras classes; material impresso; artigos para encadernação; fotografias; papelaria; adesivos para papelaria ou uso doméstico; materiais para artistas; pincéis; máquinas de escrever e material de escritório (exceto móveis); material de instrução e didático (exceto aparelhos); matérias plásticas para embalagem (não incluídas em outras classes);carateres de imprensa; clichês."

24. O Tribunal da Relação confirmou a decisão recorrida considerando que o registo e anulável nos temos conjugados dos artigos 223.º/1, alínea c) e 266.º/1 do CPI visto que " na verdade, não se nos oferece dúvida que estamos na presença de sinais que consistem em nomes genéricos "Menino", "Abrigo", "Lagar", "Velho" sendo que, no primeiro caso, a designação genérica vem ainda associada à zona geográfica "Lapedo", inexistindo deste modo qualquer fator distintivo das marcas.

25. É que do exposto se retira desde logo que as marcas em discussão são constituídas exclusivamente por estes sinais indicadores da área geográfica insuscetíveis de apropriação exclusiva (cf. artigo 223.º, alínea c) e 2 do CPI) e pelo signo "Menino" que é uma daquelas designações genéricas também insuscetível de apropriação exclusiva.

26. Esta natureza dos signos que por sua vez constituem em exclusivo as marcas referidas transportam a situação para a previsão do artigo 238.º/1, alínea c) do CPI constituindo fundamento absoluto de recusa do registo" a determinar nulidade por força do disposto no artigo 265.º do CPI.

27. O acórdão considerou prejudicadas as demais questões postas pelo recorrente.

28. Interposto recurso para o STJ, foi o mesmo admitido pois, embora a Relação haja confirmado a decisão de 1ª instância, certo é que o fez com base em fundamento diferente daquele que levou a sentença de 1ª instância a julgar a ação procedente (cf. artigo 671.º/3 do CPC).

29. O recorrente concluiu a minuta de recurso nos seguintes termos:

1 - O Tribunal de segunda instância, ao julgar a ação procedente, fez uma errada interpretação e aplicação da lei.

2 - In casu, à data da concessão das marcas identificadas no ponto 2) dos Factos Provados, não existia na lei (como não existe ainda hoje), designadamente no Código da Propriedade Industrial, aprovado pelo DL 36/2003 de 05/03, qualquer preceito legal que impedisse a Ré de registar as marcas «Menino do Lapedo» e «Abrigo do Lagar Velho», para assinalar produtos de certas e determinadas classes.

3 - Por esse motivo, o INPI concedeu à Ré, e bem, o registo das marcas agora em discussão.

3 (bis)- Atenta a matéria de facto provada nos presentes autos, as marcas cuja nulidade se requer não se incluem em nenhuma das proibições (absolutas e/ou relativas) elencadas no Código da Propriedade Industrial, designadamente símbolos de Estado, concorrência desleal ou denominações genéricas.

4 - Como bem sublinhou o tribunal de primeira instância, as marcas constantes do ponto 2) dos Factos Provados não fazem, enquanto tais, parte do domínio público, nem constituem sinais compostos por símbolos do Estado, Municípios ou outras entidades públicas nacionais ou estrangeiras, conforme havia alegado o Ministério Público na sua petição inicial (artigos 234°, n°. 2, alínea d) e 239°, alínea a) do CPI).

5 - Contrariamente ao propugnado pelo tribunal de primeira instância, o registo de tais marcas também não consubstancia um ato de concorrência desleal, nos termos previstos no artigo 24.º, n°. 1, alínea d), conjugado com o artigo 317.º, ambos do CPI.

6 - As marcas identificadas no ponto 2) dos Factos Provados também não são, como defende o Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão sob recurso, marcas sem capacidade distintiva, compostas de sinais constituídos, exclusivamente, pela designação geográfica ou que indicam a espécie, o género, as qualidades, as quantidades ou por qualquer razão sejam signos genéricos do produto ou serviço, conforme preceituado no artigo 223.º, n°. 2 e 238.º, n°. 1, alínea c) do CPI.

7 - A fundamentação de direito defendida no Acórdão sob recurso não encontra o mínimo sustento na lei.

8 - Os sinais constitutivos das marcas «MENINO DO LAPEDO» e «ABRIGO DO LAGAR VELHO» não correspondem a denominações (seja da espécie, qualidade, quantidade, destino, valor, proveniência geográfica, época ou meio de produção) dos produtos que a Ré visa produzir ou comercializar.

9 - A marca «MENINO DO LAPEDO» não é constituída por sinal exclusivamente indicativo da proveniência geográfica como exige a lei.

10 - No caso sub iudice, as marcas cuja nulidade se peticiona não são, como parece resultar do Acórdão sob recurso, «MENINO» «ABRIGO» «LAGAR» «VELHO» ou «LAPEDO», mas sim «MENINO DO LAPEDO» e «ABRIGO DO LAGAR VELHO» (Cf. Ponto 2) dos Factos Provados), o que é substancialmente diferente.

11 - Tem sido entendimento unânime da doutrina e jurisprudência que é por intuição sintética e não por dissecação analítica que o julgador deve proceder à análise das marcas registadas.

12 - No caso em apreço, a ré não reivindica para seu uso exclusivo, nem é essa a questão em discussão, as palavras «MENINO» «ABRIGO» «LAGAR» «VELHO» ou «LAPEDO».

13 - O n°. 2 do artigo 223° do CPI visa salvaguardar as situações em que um sinal, que a início não tinha capacidade distintiva, a adquira em consequência do seu uso mais ou menos prolongado no tráfico («secondary meaning»).

14 - As marcas em discussão («MENINO DO LAPEDO» e «ABRIGO DO LAGAR VELHO»), atenta a sua especial composição, têm capacidade individualizadora e distintiva, não contendem com nenhuma das proibições previstas lei, pelo que não deverão ser declaradas nulas.

15 - Aquando do registo das marcas em discussão, não existia na lei qualquer norma que fosse causa proibitiva do seu registo.

16 - Em Agosto de 2017, foi submetida a análise, por parte do Ministério da Justiça, uma Proposta de Lei que visava alterar, entre outros o n°.4 do artigo 238.° (Fundamentos de Recusa de Registo), com aditamento de alínea c) com a seguinte redação: «sinais que reproduzam ou incluam referências, nominativas ou figurativas, a museus, objetos, monumentos ou outros imóveis que constituam património cultural de acordo com a legislação vigente, salvo autorização».

17 - A douta sentença sob recurso violou, por erro de interpretação e/ou de aplicação, o artigo 8.o do Código Civil, o artigo 16° do DL 143/2008 de 25/07, o artigo 607, n.°. 3° do CPC, assim como os artigos 33.°, 34.°, 222.°, 223.°, n°. 1, alíneas a), c) e n°. 2, 238.°, 239.°, 240.°, 241.°, 242.°, 244.° e 258.° do Código da Propriedade Industrial (na redação que lhe foi dada pelo DL 36/2003 de 05/03).

Termos em que, e no muito que V. Exas. se dignarão suprir, deve o douto Acórdão sob recurso ser revogado e substituído por outro que, dando provimento ao recurso julgue a ação improcedente.

30. Factos provados

1. A ré é uma sociedade comercial, constituída em 16.08.1999 com sede em ..., Leiria, que tem por objeto social “atividades turísticas, restauração, bares, turismo de habitação, exploração hoteleira, atividades imobiliárias e construção”.

2. A ré é titular dos registos de marcas (verbais) nacionais nº 405260 ABRIGO DO LAGAR VELHO e n° 405259 MENINO DO LAPEDO, pedidos em 9.08.2006 e concedidos em 15.02.2008 e 17.04.2007, respetivamente, para assinalar nomeadamente os seguintes produtos e serviços nas classes 14, 16, 18, 20, 21, 25, 29, 30, 33, 39 e 43 da Classificação de Nice: “Artigos de bijuteria e de relojoaria”; “Publicações e publicações periódicas, nomeadamente livros, revistas, brochuras, publicação de textos, panfletos de informação, catálogos, roteiros turísticos”; “Artigos em couro ou imitação de couro”; estatuetas em madeira, em cera, em gesso ou em matérias plásticas”; “Estátuas em porcelana, em terracota ou em vidro, objetos em porcelana, faiança, vidro”; “Artigos de vestuário, calçado, chapelaria e cintos”; “Geleias, doces e compotas”; “Pão, pastelaria, confeitaria, doçaria”; “Vinhos, aperitivos”; “Organização de passeios turísticos”, passeios e visitas guiadas a locais de interesse” e “Serviços de restauração, alojamento temporário”.

3. O “Abrigo do Lagar Velho” é um sítio arqueológico excecional nos domínios da biologia evolutiva humana e da arqueologia pré-histórica mundiais, localizado no Vale do Lapedo, concelho de Leiria, margem esquerda da ribeira da Caranguejeira, identificado em 1998 e assim denominado pelos arqueólogos que então reportaram a sua identificação, por referência a uma ruína de um antigo lagar existente perto do local, conhecido por “Lagar Velho”, nos termos dos relatórios preliminares juntos a fls. 62 a 83 dos autos que aqui se dão por reproduzidos.

4. O mencionado Abrigo corresponde a uma jazida arqueológica e paleontológica de valor nacional e internacional, conhecida por integrar uma sequência estratigráfica representativa de boa parte das ocupações humanas do Paleolítico Superior da região entre há cerca de 30.000 e 20.000 anos.

5. Nas escavações efetuadas pelos arqueólogos em 1998 no mencionado Abrigo (ponto 2 do presente enunciado de factos), por conta do Instituto Português de Arqueologia do Ministério da Cultura, foi achado um esqueleto de criança que os arqueólogos designaram por “esqueleto Lagar Velho I”, a qual representa a única sepultura humana do Paleolítico Superior conhecida em toda a Península Ibérica, e a primeira que evidencia a miscigenação entre o Homem de Neandertal e o Homo Sapiens.

6. O mencionado esqueleto de criança passou a ser vulgarmente conhecido pelos visitantes da zona e comunidade científica da especialidade por “Menino do Lapedo”, nome informalmente dado pelos arqueólogos desde o início do achado e pelo qual foi designado, nomeadamente, por uma reportagem televisiva radiodifundida sobre o mesmo nas vésperas do Natal de 1998.

7. O achado arqueológico do Abrigo do Lagar Velho e do “Menino do Lapedo” foi alvo de estudos científicos portugueses e estrangeiros desde a sua descoberta em 1998, tais como os identificados no artigo 8º da petição inicial, que aqui se dão por reproduzidos.

8. A identificação do Abrigo do Lagar Velho e a escavação da sepultura infantil aí encontrada foram amplamente divulgadas desde Dezembro de 1998 e deram origem à publicação de uma extensa monografia em 2002, assim como diversos artigos em revistas, a partir de 1999.

9. […] Foi homologada, por despacho do Ministro da Cultura de 29.05.2003, a proposta do IPA de classificar o Abrigo do Lagar Velho como Monumento Nacional, em razão nomeadamente de conter potencialmente, e manifestamente, “um dos vestígios mais importantes da pré-história antiga europeia: o célebre Menino do Lapedo”.

10. […]

11 - Por edital n° 13/2004 de 14.01.2004, a Câmara Municipal de Leiria tornou pública a classificação, como Monumento Nacional, do Abrigo do Lagar Velho no Vale do Lapedo, freguesia de Santa Eufémia, concelho e distrito de Leiria […]

12. Pelo Decreto n° 17/2013 de 24 de Junho, publicado no Diário da República, I série, N° 119 de 24.06.2013 foi decretada aquela classificação.

13. A Portaria n° 630/2013 de 20 de Setembro declarou que é ZEP o Abrigo em toda a sua extensão horizontal e vertical, mas também a zona envolvente, correspondente ao Vale do Lapedo.

14.[…]

15.[…]

16. Em 14.07.2014, a ré remeteu à Câmara Municipal de ... a mensagem eletrónica junta a fls. 100 e 101 dos autos, que aqui se dá por reproduzida, com o seguinte teor: “Vimos por este meio comunicar a V. Exa., a proibição de qualquer publicação sobre o “MENINO DO LAPEDO”, “ABRIGO DO LAGAR VELHO” e “VALE DO LAPEDO”, sob pena de cobrarmos valores respeitantes a publicidade”.

17 […]

18. Lapedo é a designação de uma aldeia situada na freguesia de Santa Eufémia, concelho de Leiria.

Factos não provados:

A. A ré ao obter o registo a seu favor das marcas nacionais “Abrigo do Lagar Velho” e “Menino do Lapedo” pretendeu assegurar-se do uso exclusivo de tais expressões.

B. A Direção-Geral do Património Cultural teve conhecimento do registo das referidas marcas a favor da ré (ponto 2 do enunciado de factos provados, supra) na sequência da publicação do artigo referenciado no ponto 17 dos supra enunciados factos provados.

C. “Abrigo do Lagar Velho” identifica um terreno localizado no Lapedo, mais concretamente numa parte do prédio misto de que o administrador da ré é dono e legítimo possuidor.

D. Esse nome (ponto “C” do presente enunciado de factos não provados) reporta-se a um domínio territorial privado, porquanto foi inventado pelos próprios donos do terreno, tendo, entre os mesmos, passado de geração em geração.

E. A designação “Abrigo do Lagar Velho” já existia muito antes do ano de 1998 e era utilizada pelos proprietários desse mesmo terreno.

Apreciando

31. As questões a decidir consistem em saber se as aludidas expressões que a ré pretende utilizar para os produtos das mencionadas classes da Classificação de Nice têm em si eficácia distintiva, considerados os vocábulos que entram na sua composição; e se, independentemente dos vocábulos que as compõem, não lhes deve ser reconhecida eficácia distintiva por serem constituídas exclusivamente (b) por indicações que possam servir no comércio para designar a proveniência geográfica do produto (b)

32. A decisão recorrida considera, se bem a interpretamos, que a marca é desprovida de qualquer caráter distintivo quando na sua composição entram vocábulos que em si mesmos são genéricos, tal o caso dos vocábulos "Menino", "Abrigo", "Lagar", "Velho".

33. No entanto, no que respeita à composição da marca, o princípio que vigora é o princípio da liberdade e, por isso, " quem pretenda obter o registo de determinado sinal como marca pode compor esse sinal como bem lhe aprouver […] recorrendo a expressões nominativas, de linguagem comum ou de fantasia, ou a desenhos ou à combinação desses elementos" (Propriedade Industrial, Carlos Olavo, Almedina, 1997, pág. 43).

34. Não é, pois, impeditivo que uma marca seja composta por vocábulos correntes conquanto assuma caráter distintivo (v.g. "Corte Inglês", "Vista Alegre") e isso pode suceder ainda que a marca seja constituída por um vocábulo:  pensemos nas marcas "Apple" (maçã) destinada a projetar e comercializar produtos eletrónicos de consumo, computadores, etc. ou "Continente"): ver artigo 222.º/1 do CPI: " a marca pode ser constituída por um sinal […].

35. Não é, todavia, admissível a monopolização da denominação genérica que seja indispensável à identificação do produto ou das suas qualidades, ou seja, " quando se refere ao nome próprio (ainda que não o mais usual) do produto ou serviço que assinale ou, ainda, quando designe o conceito (económico ou natural) do género a que esse produto ou serviço pertença de um modo considerado relevante no mercado" (Manual de Direito Industrial, Couto Gonçalves, Almedina 2008, 2ª edição, pág. 234). Por isso, não pode admitir-se "Leite" como marca para lacticínios ou " Dentífrico" para designar pasta de dentes ou "Vestuário" para designar confeção de roupas.

36. As aludidas marcas dispõem, assim, de eficácia distintiva nos termos do artigo 223.º/1, alínea a) ainda que, na sua composição, se incluam vocábulos que pela sua natureza genérica não sejam considerados de uso exclusivo do requerente da marca, ressalvados os casos em que, na prática comercial, os sinais tenham adquirido eficácia distintiva (artigo 223.º/2 do CPI).

37. Quanto à outra questão, importa recordar que a marca registada "Abrigo do Lagar Velho" designa um sítio arqueológico localizado no  Vale do Lapedo, concelho de Leiria, identificado por referência a uma ruína de um antigo lugar existente perto do local conhecido por "Lagar Velho" e "Menino do Lapedo" constitui um achado arqueológico, esqueleto de criança, que assim passou a ser designado pelos visitantes da zona e pela comunidade científica sendo "Lapedo" uma aldeia da freguesia de Santa Eufémia, concelho de Leiria.

38. O acórdão recorrido considerou que as marcas em discussão são constituídas "exclusivamente por estes signos indicadores da área geográfica insuscetíveis de apropriação exclusiva", violando-se, assim, o disposto no artigo 223.º/1, alínea c) do CPI.

39. Importa referir que em 9-8-2006, quando os registos foram pedidos, estava em vigor o CPI de 2003, na sua versão original, cujo artigo 223.º/1, alínea c) tinha redação que se manteve inalterada e que correspondia à redação constante do artigo 3.º, alínea c) da Diretiva 89/104/CEE  do Conselho de 21 de dezembro de 1988 que harmoniza as legislações dos Estados-Membros em matéria de marcas que dispunha que será recusado o registo ou ficarão sujeitos a declaração de nulidade, uma vez efetuados, os registos relativos " às marcas constituídas exclusivamente por sinais ou indicações que possam servir, no comércio, para designar a espécie, a qualidade, a quantidade, o destino, o valor, a proveniência geográfica ou a época de produção do produto ou da prestação do serviço, ou outras características dos mesmos"; entretanto a Diretiva 2015/2436 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2015, que aproxima as legislações dos Estados-Membros em matéria de marcas manteve a referida redação no correspondente artigo 4.º/1, alínea c).

40. O recorrente salienta que o registo das aludidas marcas não era proibido pela legislação vigente e prova disso é que foi apresentada proposta de lei à Assembleia da República em agosto de 2017 visando alterar disposições do CPI, entre outros diplomas, introduzindo designadamente no artigo 238.º/4 do CPI um novo fundamento de recusa de registo de marca que contenha em todos ou algum dos seus elementos " sinais que reproduzam  ou incluam referências, nominativas ou figurativas, a museus, objetos, monumentos ou outros imóveis que constituam património cultural de acordo com a legislação vigente, salvo autorização".

41. Constitui, nos termos da legislação vigente anteriormente assinalada, Monumento Nacional o "Abrigo do Lugar Velho" sito no Vale do Lapedo.

42. No entanto, o que aqui importa considerar é se as referidas marcas são constituídas, " exclusivamente, por indicações que possam servir no comércio para designar […]  a proveniência geográfica […) do produto ou da prestação de serviços, ou outras características dos mesmos".

43. Não será pois pelo facto de estarmos perante marcas que incluam referências a objetos ou imóveis que constituam património cultural que o registo será nulo mas antes por ser constituído, exclusivamente, por sinais ou indicações referidos na alínea c) do n.º1 do artigo 223.º conforme resulta da conjugação dos artigos 238.º/1, alínea c) e 265.º/1, alínea a) do CPI.

44. Não está adquirido nos autos que a ré esteja a produzir no assinalado local, ou em qualquer outro, produtos constantes de alguma das classes abrangidas pelo registo das referidas marcas.

45. No que respeita à marca "Abrigo do Lagar Velho" não se vê que esta expressão designe um nome geográfico, pois ela referencia tão somente o sítio arqueológico, assim denominado pelo menos desde 1998, onde existe um importante achado arqueológico.

46. Este sítio arqueológico está classificado como Monumento Nacional (MN) pelo Decreto n.º 17/2013, de 24 de junho, que referencia o local geográfico onde se se situa, ou seja, "na margem esquerda da ribeira da Caranguejeira, Vale do Lapedo, freguesia de Santa Eufémia, concelho e distrito de Leiria, conforme planta constante do anexo ao presente decreto, do qual é parte integrante".

47. De igual modo a Portaria n.º 630/2013, de 20 de setembro, considerando que se justifica a criação de uma Zona Especial de Proteção (ZEE) que " inclua não só o Abrigo propriamente dito, em toda a sua extensão horizontal e vertical, mas também a área envolvente, dado o seu grande potencial cultural e natural", geograficamente definindo essa ZEE " ao Vale do Lapedo, abrangendo toda a morfologia do canhão e contornando as duas vertentes pelo limite superior".

48. Quanto à marca "Menino do Lapedo" é constituída por mais de um sinal um dos quais constitui parte do nome geográfico - Vale do Lapedo - onde se situa o lugar onde foi achada a única sepultura humana do Paleolítico Superior conhecida em toda a Península Ibérica e a primeira que evidencia a miscigenação entre o Homem Neandertal e o Homo Sapiens.

49. Com efeito, e tal como se refere nas conclusões do advogado- geral BB nos casos Windsurfing Chiemsee Produktions- und Vertriebs GmbH (WSC) contra Boots- und Segelzubehör Walter Huber (C-108/97) e Franz Attenberger (C-109/97), " convém observar, antes de mais, que só cabem no âmbito desta disposição as marcas constituídas «exclusivamente» por sinais ou por indicações de conteúdo puramente descritivo. Por conseguinte, as marcas compostas que, além das indicações em causa, contenham uma ou várias palavras, imagens, representações, etc., que, isoladamente ou em combinação com a indicação descritiva, conferem um carácter distintivo à marca, não estão abrangidas".

50. Ora a marca " Menino do Lapedo" é uma marca composta por dois elementos um dos quais - o vocábulo "Lapedo" - designa a região onde foi encontrado o mencionado achado arqueológico. O outro elemento, ainda que genérico, não constitui em si nenhum dos sinais referidos na alínea c) do artigo 223.º do CPI que sirva para designar a espécie, qualidade, quantidade, destino, valor, época ou meio de produção do produto ou da prestação de serviço.

51. Desde logo por tal razão está excluída a aplicabilidade da previsão constante do artigo 223.º/1, alínea c) também à referida marca " Menino do Lapedo".

52. Admitindo que as referidas marcas se subsumiam ao prescrito no referido artigo 223.º/1, alínea c) do CPI ainda assim não se afigura que o respetivo registo pudesse ser rejeitado.

53. No acórdão do Tribunal de Justiça de 4 de maio de 1999 respeitante aos processos apensos C-107/97 e C-108/97 interpretou-se a correspondente disposição da Diretiva 89/104/CEE referindo-se o seguinte:

54. "Em primeiro lugar, há que salientar que, de acordo com o artigo 3.°, n.°1, alínea c), da diretiva, é recusado o registo de marcas descritivas, ou seja, de marcas compostas exclusivamente de sinais ou de indicações que possam servir para designar as características das categorias de produtos ou de serviços para as quais esse registo é pedido.

55. Ao assim proceder, o artigo 3.º, n.°1, alínea c), da diretiva prossegue um fim de interesse geral, que exige que os sinais ou indicações descritivas das categorias de produtos ou serviços para as quais é pedido o registo possam ser livremente utilizadas por todos, nomeadamente como marcas coletivas, ou em marcas complexas ou gráficas. Esta disposição impede, portanto, que tais sinais ou indicações sejam reservados a uma única empresa com base no seu registo como marca.

56. Mais especialmente quanto aos sinais ou indicações que possam servir para designar a proveniência geográfica de categorias de produtos para as quais é pedido o registo da marca, em especial os nomes geográficos, existe um interesse geral em preservar a sua disponibilidade devido, designadamente, à sua capacidade não apenas para salientar eventualmente a qualidade de outras propriedades das categorias de produtos em causa, mas, também, para influenciar de forma diversa as preferências dos consumidores, por exemplo ao ligar os produtos a um lugar que pode suscitar sentimentos positivos.

57. O interesse geral que subjaz à disposição cuja interpretação é pedida pelo juiz de reenvio é, de resto, demonstrado pela possibilidade, que consta do artigo 15.º, n.°2, da diretiva, de os Estados-Membros preverem, por derrogação ao artigo 3.°, n.°1, alínea c), que sinais ou indicações suscetíveis de servirem para designar a proveniência geográfica dos produtos possam constituir marcas coletivas.

58. Deve, também, salientar-se que o artigo 6.°, n.° 1, alínea b), da diretiva, a que o órgão jurisdicional de reenvio se refere nas suas questões, não contraria o que se acaba de afirmar a propósito do objetivo do artigo 3.°, n.°1, alínea c), e, de resto, também não influencia de modo determinante a interpretação deste. Com efeito, o artigo 6.°, n.°1, alínea b), que se destina, nomeadamente, a regular os problemas que se suscitam quando uma marca composta no todo ou em parte por um nome geográfico tenha sido registada, não confere aos terceiros o uso desse nome como marca, antes se limita a garantir que eles possam utilizá-lo de modo descritivo, ou seja, como indicação relativa à proveniência geográfica, na condição de a utilização ser feita em conformidade com práticas honestas em matéria industrial ou comercial.

59. Deve, seguidamente, declarar-se que o artigo 3.°, n.°1, alínea c), da diretiva não se limita a proibir o registo de nomes geográficos como marcas apenas nos casos de eles designarem lugares geográficos determinados que sejam já reputados ou conhecidos em relação à categoria do produto em causa e que, portanto, tenham um nexo com este nos meios interessados, isto é, o comércio e o consumidor médio desta categoria de produtos no território para o qual é pedido o registo.

60. Com efeito, resulta do próprio texto do artigo 3.º, n.°1, alínea c), que se refere às «indicações relativas... à proveniência geográfica», que os nomes geográficos suscetíveis de serem utilizados pelas empresas devem igualmente ficar à disposição destas como indicações de proveniência geográfica da categoria de produtos em causa.

61. Por conseguinte, em virtude do artigo 3.°, n.°1, alínea c), da diretiva, a autoridade competente deve apreciar se um nome geográfico cujo registo como marca é pedido designa um lugar que apresenta atualmente, para os meios interessados, uma ligação com a categoria de produtos em causa ou se é razoável pensar que, no futuro, tal nexo possa ser estabelecido.

62. Para apreciar se, neste último caso, esse nome geográfico é suscetível, para os meios interessados, de designar a proveniência da categoria de produtos em causa, é conveniente, mais especialmente, tomar em conta o conhecimento maior ou menor que estes últimos têm desse nome, bem como as características do lugar que este designa e a categoria dos produtos em causa.

63. A este respeito, deve salientar-se que, em princípio, o artigo 3.º, n.°1, alínea c), da diretiva não se opõe ao registo de nomes geográficos que sejam desconhecidos nos meios interessados ou, pelo menos, desconhecidos como designação de um lugar geográfico ou ainda de nomes em relação aos quais, devido às características do lugar designado (por exemplo, uma montanha ou um lago), é inverosímil que os meios interessados possam pensar que a categoria de produtos em causa provenha desse lugar.

64. Tendo em conta o que precede, há que responder às questões relativas ao artigo 3.º, n.°1, alínea c), da diretiva que este deve ser interpretado no sentido de que

— não se limita a proibir o registo de nomes geográficos como marcas apenas nos casos em que estes designem lugares que tenham atualmente, para os meios interessados, uma ligação com a categoria de produtos em causa, mas se aplica igualmente aos nomes geográficos suscetíveis de serem utilizados no futuro pelas empresas interessadas como indicação de proveniência geográfica da categoria de produtos em causa;

— nos casos em que o nome geográfico em causa não tenha atualmente, para os meios interessados, uma ligação com a categoria de produtos em causa, a autoridade competente deve apreciar se é razoável pensar que esse nome possa, para os meios interessados, designar a proveniência geográfica dessa categoria de produtos;

— nesta apreciação, é conveniente, mais especialmente, ter em conta o conhecimento maior ou menor que os meios interessados têm no nome geográfico em causa, bem como as características do lugar designado por este e da categoria de produtos em causa;

— o nexo entre o produto em causa e o lugar geográfico não depende necessariamente do fabrico do produto nesse lugar".

65. Aplicando estas noções, importa desde logo ponderar a este respeito que não há nenhum elemento de facto que nos diga se há produtos de algumas das aludidas classes que sejam comercializados com a aludida marca.

66. A proveniência geográfica do produto, no caso em apreço e em termos gerais, afigura-se indiferente para o público consumidor, não se vislumbrando viável fixar nexo de causalidade entre o aludido local, que os interessados sabem ser um sítio arqueológico, e a proveniência geográfica do produto.

67. Tais designações, para além de não se referirem a um lugar geográfico, como se disse, ainda assim seria inverosímil que os interessados pudessem pensar que a categoria dos produtos em causa proviesse do sítio arqueológico ou da zona envolvente que passou a ser protegida nos termos da lei.

68. A menção do sítio arqueológico ("Abrigo do Lagar Velho") ou do achado arqueológico ("Menino do Lapedo") releva para o consumidor pela circunstância de ela figurar num produto que se deseja adquirir, não em razão da sua origem geográfica, mas pela designação em si que o identifica. Ela permite-lhe recordar o sítio arqueológico visitado ou que se deseja conhecer.

69. Assim sendo, a questão que se pode suscitar é a de saber se a ré, com o registo destas marcas, o que quis foi obstar a que os nomes pelos quais já eram amplamente conhecidos ao tempo em que o registo da marca foi pedido os mencionados sítio arqueológico e achado arqueológico, classificados ulteriormente como Monumento Nacional, pudessem ser publicitados, divulgados, mencionados para quaisquer fins.

70. Refira-se, no que respeita à referência geográfica quando esta consta da marca registada, que os terceiros "têm o direito de utilizar quer indicações indiretas (por exemplo, perífrases ou imagens) que designem a mesma proveniência geográfica, quer, se necessário for, a própria indicação geográfica, como endereço, em documentos ou dados que não sejam a marca, que digam respeito às suas mercadorias ou à sua atividade comercial em geral, conformando-se com as práticas honestas no setor da atividade económica em causa. Assim, podem com toda a razão utilizar a indicação supracitada como termo geográfico (isto é, no sentido original e literal) na correspondência comercial, nos anúncios publicitários insertos na empresa ou na rotulagem do produto, etc. […] Por exemplo, não vejo por que é que se deveria proibir a venda, nas lojas de artigos turísticos à beira do lago, camisas ou outras lembranças, com a menção 'Chiemsee', prática que está muito divulgada nas regiões turísticas. Diferente desta é a questão de saber se esta venda deve satisfazer determinados requisitos ( poderia, poer exemplo, exigir-se que o uso da indicação se limite áquilo que é absolutamente necessário, que os produtos vendidos tenham uma marca legal, de maneira a não darem a impressão que a sua marca é 'Chiemsee' que os produtos em causa não sejam colocados perto dos que usam legalmente esta última marca, que a menção desse termo seja feita com carateres tipográficos que não causem confusão" (ver Conclusões identificadas supra).     

71. Considerou-se que o registo pela requerente do nome do famoso lago "Chiemsee" - ver conclusões do Advogado-Geral - "era lícita nos termos do artigo 3.°, n.°1, alínea c), da diretiva. Com efeito, este termo geográfico não parece designar, no presente caso, a proveniência geográfica, mas somente valorizar os sentimentos positivos e agradáveis que a imagem do lago no meio de um belo meio ambiente natural suscita na imaginação de quem a capta (tal como a recordação ou a perspetiva de uma vida natural, de férias ou de atividades desportivas)"

72. "O artigo 3.º/1, alínea c) da diretiva "significa que uma indicação geográfica tem um poder distintivo e pode constituir legitimamente uma marca que designa os produtos de uma determinada empresa, desde que a escolha desta indicação seja 'arbitrária' […] desde que ela não constitua nem possa constituir uma indicação de proveniência nem uma denominação de origem. A razão disto reside no facto de, neste caso, a perceção do termo geográfico não provocar nenhuma associação especial na imaginação do público, mas ter o mesmo resultado que teria se se tivesse escolhido qualquer outro termo ou nome de pura invenção" (ver conclusões)

73. Como se disse, o presente recurso foi admitido porque o Tribunal da Relação decidiu com base em fundamento diferente daquele que estava em causa nas alegações de recurso para a Relação considerando " prejudicadas as demais questões colocadas" (ver fls. 246), ou seja, a sentença considerou, ponderando a matéria de facto, tão somente existir concorrência desleal por violação do disposto nos artigos 239.º/1, alínea e) a que correspondia na versão original do CPI o artigo 24.º/1, alínea d) conjugado com os artigos 33.º/1, alínea b) e c) e com o artigo 317.º/1, alínea c) da CPI, idênticos nas versões original e atual.

74. Nas alegações de revista para o STJ o recorrente, na conclusão 5ª, sustenta que o registo das aludidas marcas não constitui ato de concorrência desleal. No entanto, o STJ não pode apreciar esta questão visto que o princípio da substituição, no que toca ao conhecimento pelo Supremo Tribunal das questões que a Relação houve por prejudicadas, a que alude o artigo 665.º do CPC está expressamente excecionado pelo artigo 679.º do CPC/2013 contrariamente ao que sucedia no Código anterior conforme prescrito no artigo 726.º.  

75. O recurso procede e, assim sendo, a decisão não pode manter-se à luz deste fundamento só que se impõe a baixa dos autos ao Tribunal da Relação para apreciar as questões que ficaram prejudicadas.

Concluindo

I - O artigo 223.º/1, alínea c) do Código da Propriedade Industrial corresponde aos artigos 3.º/1, alínea c) da Primeira Diretiva 89/104/CEE do Conselho de 21 de dezembro de 1988 e 4.º/1, alínea c) da Diretiva (UE) 2015/2436 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2015, impondo-se a sua interpretação à luz da jurisprudência comunitária.

II - No que respeita às marcas que são constituídas exclusivamente por indicações que possam designar, no comércio, a proveniência geográfica do produto nos casos em que o nome geográfico em causa não tenha atualmente, para os meios interessados, uma ligação com a categoria de produtos em causa, a autoridade competente deve apreciar se é razoável pensar que esse nome possa, para os meios interessados, designar a proveniência geográfica dessa categoria de produtos.

III - Nessa apreciação, é conveniente, mais especialmente, ter em conta o conhecimento maior ou menor que os meios interessados têm do nome geográfico em causa, bem como as características do lugar designado por este e da categoria de produtos em causa

IV - O nexo entre o produto em causa e o lugar geográfico não depende necessariamente do fabrico do produto nesse lugar.

V - A marca registada "Abrigo do Lagar Velho", classificado hoje como Monumento Nacional (Decreto 17/2003, de 24 de junho), não constitui designação geográfica, designa um sítio arqueológico localizado no Vale do Lapedo, concelho de Leiria, identificado por referência a uma ruína de um antigo lugar existente perto do local conhecido por "Lagar Velho".

VI - "Menino do Lapedo" constitui um achado arqueológico, esqueleto de criança, que assim passou a ser designado pelos visitantes da zona e pela comunidade científica, que prova a miscigenação entre o Homo Neandertal e o Homo Sapiens, designação que foi registada como marca, sendo Lapedo o nome de uma aldeia sita no Vale com o mesmo nome da freguesia de Santa Eufémia, concelho de Leiria.

VII - A marca " Menino do Lapedo" é uma marca composta por dois elementos um dos quais - o vocábulo "Lapedo" - designa a região onde foi encontrado o mencionado achado arqueológico. O outro elemento, ainda que genérico, não constitui em si nenhum dos sinais referidos na alínea c) do artigo 223.º do CPI que sirva para designar a espécie, qualidade, quantidade, destino, valor, época ou meio de produção do produto ou da prestação de serviço, mostrando-se, assim, excluída a aplicabilidade da previsão constante do artigo 223.º/1, alínea b) à referida marca.

VIII - Ainda que tais marcas fossem compostas exclusivamente pelos sinais mencionados no artigo 223.º/1, alínea c) do CPI, não existindo conhecimento de que produtos ou serviços já existam com essas designações, que no seu conjunto têm caráter distintivo, não se vislumbra nem resulta dos factos provados que as pessoas, que saibam que tais designações respeitam aos referidos locais e achado, estabeleçam ou possa estabelecer qualquer nexo de causalidade entre os produtos e serviços e a sua proveniência geográfica, referenciados que estão a um lugar arqueológico e a um achado arqueológico.

Decisão

Concede-se a revista e anula-se o acórdão recorrido, impondo-se a baixa dos autos ao Tribunal da Relação a fim de conhecer as questões suscitadas pelo recorrente que ficaram prejudicadas.

Custas pela parte a final vencida


Lisboa, 22-3-2018


Salazar Casanova (Relator)

Távora Victor

António Piçarra