Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
29/04.0JDLSB-Q.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: SANTOS CABRAL
Descritores: FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Data do Acordão: 06/05/2013
Votação: MAIORIA COM 3 VOTOS DE VENCIDO
Referência de Publicação: DR, I SÉRIE, 131, 10.07.2013, P. 4015
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: FIXADA JURISPRUDÊNCIA
Área Temática:
DIREITO PENAL - FACTO / FORMAS DO CRIME - CRIMES CONTRA O PATRIMÓNIO EM GERAL - CRIMES CONTRA A VIDA EM SOCIEDADE / CRIMES DE FALSIFICAÇÃO.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS.
Doutrina:
- Conceição Ferreira da Cunha, “Questões actuais em torno de uma vexata questio: o crime continuado”, em estudos em Homenagem do Professor Figueiredo Dias, p. 325 e ss..
- Eduardo Correia, Teoria do Concurso em Direito Criminal, p. 84 e ss.; Unidade e Pluralidade de Infrações – Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, p. 91 e ss.
- Figueiredo Dias, Direito Penal Parte Geral, Tomo I, pp. 349 e ss, 978 e ss., 990 e ss., 1018 e ss.
- Helena Moniz, O Crime de falsificação de documentos. Da falsificação de documentos à falsidade intelectual; “ Burla e falsificação de documentos: concurso real ou aparente?, Anotação ao Assento n.º8/2000, do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de maio de 2000”, RPCC Ano 10, fasc.3, Julho-Setembro 2000, p. 461 e ss.; “Falsificação de documentos e Burla: Unidade ou Pluralidade de sentidos autónomos de ilicitude?”, Anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29 de Junho de 2010, RPCC, Ano 21, fasc.2, Abril-Junho 2011, p.325 e ss.
- Jeschek, Tratado de Derecho Penal, pp. 285, 656 e ss..
- João da Costa Andrade, Da Unidade e Pluralidade de Crimes, p. 139 e ss..
- Luís Duarte Almeida, O Concurso de normas em direito penal, Almedina, 2004, p.83.
- Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, p. 675.
- Roxin, Derecho Penal Parte General, p. 314 e ss..
- Victor Pereira e Alexandre Lafayette, “Código Penal Anotado e Comentado”, p. 664.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 30.º, 437.º, 446.º.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 217.º, 256.º, N.º1, AL. A).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-Nº 76/02, DE 26.2.2002 (PROC. N.º 647/98).
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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 13-12-2007, DE 05-12-2007, DE 18-10-2007, DE 26-10-2011.
-*-
ACÓRDÃOS DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA:
-DE 14/02/1992, DE 23/5/2000 (N.º 8/2000, DR, I SÉRIE – A, 119) E DE 16/01/2003, (N.º1/2003, PROCESSO N.º 609/02, DR, I SÉRIE – A, 49, DE 27-02).
Sumário :
“A alteração introduzida pela Lei 59/2007 no tipo legal do crime de falsificação previsto no artigo 256 do Código Penal, estabelecendo um elemento subjectivo especial, não afecta a jurisprudência fixada nos acórdãos de fixação de jurisprudência de 19 de Fevereiro de 1992 e 8/2000 de 4 de Maio de 2000 e, nomeadamente, a interpretação neles constante de que, no caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256º, nº 1, alínea a), e do artigo 217º, nº 1, do mesmo Código, se verifica um concurso real ou efectivo de crimes”
Decisão Texto Integral:

                               Acordam neste Supremo Tribunal de Justiça

            AA veio interpor recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, nos termos dos artigos 437.° e seguintes do Código de Processo Penal, alegando, em síntese, que:

            Nestes termos, conclui pedindo que o presente recurso seja admitido e consequentemente seja fixada uniformização de jurisprudência quanto à existência de concurso aparente ou de concurso real e efectivo, entre os crimes de burla e falsificação de documento, quando este último é praticado com o único intuito de -preparar ou facilitar o crime de burla, tendo em conta a legislação em vigor após a Lei 49/2007.

Juntou certidão de acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15 de Dezembro de 2011, proferido no processo 29/04-acórdão recorrido-e constante de fls 4 e seguintes dos presentes autos que se dá por reproduzido. Igualmente junto a fls 29 se encontra igualmente o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29 de Junho de 2010 proferido no processo 4395/03-acórdão fundamento-e que, também, se dá por reproduzido.   

Por acórdão de 17 de Janeiro de 2013 julgou-se verificada a oposição de julgados quanto aos acórdãos proferidos no âmbito dos recursos referidos e, em consequência, ordenou-se o prosseguimento dos presentes autos para fixação de jurisprudência no que respeita à interpretação dos artigos 256 e 217 do Código Penal.

Notificados nos termos do artigo 442 nº1 do Código de Processo Penal a Exª Srª Procuradora Geral Adjunta, bem como o recorrente AA, vieram apresentar alegações formulando, respectivamente, as seguintes conclusões:

1. Nos acórdãos de 19 de Fevereiro de 1992 e de 4 de Maio de 2000, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu que, sendo diversos e autónomos, entre si, o bem jurídico violado pela burla e o bem jurídico tutelado pela incriminação da falsificação, no caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla verificava-se concurso real ou efectivo de crimes.

2. No artigo 30.°, nº 1, do Código Penal ficou «cristalizada» a regra da equiparação do concurso ideal ao concurso real preconizada pelo Professor Doutor Eduardo Correia, que, relativamente à unidade e pluralidade de infracções, há muito defendia que a unidade da conduta não devia ser o índice da unidade do crime, como pretendia a teoria naturalística, mas nullum crimen sine lege e nulla poena sine lege; cf. Direito Penal, Parte Geral I, p. 1027.

22 Sem prejuízo de, nas situações da apelidada "consumpção impura", ser aplicável a moldura penal mais grave, correspondente ao crime de falsificação, porque, conforme explicita também Figueiredo Dias, «nas hipóteses de concurso aparente as leis abstractamente aplicáveis são também aplicáveis em concreto, são na realidade aplicáveis ao "grande facto "», sem que tal implique desrespeito pelos princípios antes essa distinção devia radicar-se nos valores protegidos pelos tipos legais de crime efectivamente realizados pela conduta do agente, ou pelo número de vezes que esta preenchia o mesmo tipo legal de crime.

3. A punição do concurso de crimes, constituindo um caso especial de determinação da pena, encontra-se prevista nos artigos 77.0 e 78.0 do Código Penal, sendo seu pressuposto, não uma situação de unidade criminosa, mas, pelo contrário, que o agente tenha efectivamente realizado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles.

4. Ao determinar-se que a moldura legal da pena do concurso tem como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos crimes concorrentes e como limite máximo a soma das penas por aqueles impostas, não se acolheu o sistema da acumulação material.

5. Partindo da consideração do agente enquanto pessoa, com uma dada personalidade unitária, mas sem que os crimes concorrentes perdessem autonomia, optou-se antes por um sistema - de pena conjunta, obtida através de um cúmulo jurídico - em que a pena única é determinada, dentro da moldura penal do concurso fixada nos termos acima referidos, atenta a avaliação em conjunto dos factos e da personalidade do agente, que neles se revela, e do grau das exigências gerais da culpa e da prevenção que se façam sentir.

6. Os crimes concorrentes não perdem pois a sua individualidade, não só porque são previamente fixadas as penas correspondentes, como estas vão ter importante repercussão ao nível da pena única, uma vez que será determinada entre um mínimo igual à duração da pena parcelar mais elevada e um máximo correspondente à soma material da duração das penas parcelares impostas.

7. O património, globalmente considerado, constitui o bem jurídico protegido pela incriminação da burla prevista no artigo 217.°, nº 1, do Código Penal.

8. No crime de burla, constituem elementos do tipo objectivo de ilícito o emprego de astúcia por parte do agente, determinante de erro ou engano da vítima, que a motiva à prática de actos que lhe causam, ou a terceiro, prejuízo patrimonial, podendo o ardil empregue pelo agente para induzir a vítima em erro ou engano consistir ele próprio num outro tipo legal de crime.

9. O bem jurídico tutelado pela incriminação da falsificação prevista no artigo 256.°, nº 1, do Código Penal é a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental.

10. Realizada a falsificação não ocorre ainda a violação do bem jurídico, mas tão-somente perigo dessa violação. O perigo de lesão não constitui elemento do tipo objectivo, basta que, em abstracto, a actuação do agente seja susceptível de ofender o bem jurídico protegido pela incriminação. É, pois, um crime de perigo abstracto.

11. A Lei nº 59/2007, de 04/09, aumentou o número dos elementos subjectivos especiais da ilicitude. Deste modo, mesmo que o agente não actue com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, cometerá ainda assim o crime de falsificação desde que tenha tido intenção de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.

12. A questão que neste conflito se coloca pressupõe já ultrapassado o momento da análise lógico-conceitual das relações existentes entre uma pluralidade de normas incriminadoras que o comportamento do agente em abstracto convoca, e, por isso, verificado já se aquelas normas são concretamente aplicáveis ou se entre elas alguma assume uma posição de prevalência que exclua a aplicação de outras.

13. Eduardo Correia, depois de considerar que a unidade ou pluralidade de valores jurídico-criminais negados pela conduta do agente constituía o princípio que permitiria determinar o número de crimes por este cometidos e de se questionar como determinar a ilicitude material, concluía que o tipo legal era o «portador, o interposto da valoração jurídico-criminal, ante o qual se acham colocados os tribunais e o intérprete. Os juízos valorativos exprimem-se, em linguagem jurídico-criminal, como em parábolas, através dos tipos legais, e a antijuridicidade duma relação social, ao menos numa primeira afirmação, pela possibilidade da sua subsunção a um de tais tipos».

14. Mas como não bastasse atender apenas à antijuridicidade da conduta do agente, pois nesta não se esgotava a infracção, Eduardo Correia defendia que importava levar ainda em conta os juízos de censura de que a actuação do agente era passível, em virtude de pluralidade de resoluções que tivessem conduzido à frustração da eficácia subjectiva determinadora da norma. Como índice da «unidade ou pluralidade de determinações volitivas», apontava a necessidade da consideração da conexão temporal entre as várias etapas da conduta do agente.

15. O critério da unidade ou pluralidade de bens jurídicos violados pela conduta do agente vem sendo aprofundado pela doutrina, com especial destaque para a obra de Figueiredo Dias que, salientando o avanço significativo da concepção de Eduardo Correia e acentuando que o tipo legal de crime constitui factor relevante para a distinção, observa porém que «o tipo de ilícito, o verdadeiro portador da ilicitude material, é sempre formado pelo tipo objectivo e pelo tipo subjectivo de ilícito, e que, para além do bem jurídico, o autor e sua conduta são também igualmente constitutivos do tipo objectivo de ilícito.

16. Defende assim que, para se concluir pela unidade ou pluralidade de crimes a punir nos termos do artigo 77.0 do Código Penal, há que recorrer a uma compreensão e consideração global do sentido social do comportamento do agente reflectido nos tipos de ilícitos aplicáveis, em ordem a verificar-se:

- os crimes em concurso se reconduzem a uma pluralidade de sentidos sociais autónomos dos ilícitos-típicos cometidos; ou, pelo contrário,

- o comportamento global é «dominado por um único sentido autónomo da ilicitude, que a ele corresponde uma predominante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos-típicos praticados».

17. No primeiro caso, estaremos perante um concurso efectivo, a punir nos termos do artigo 77.°, n.os 1 e 2, do Código Penal; na segunda situação somos confrontados com um problema axiológico e teológico de relacionamento de sentidos e de conteúdos do ilícito», que nos coloca perante uma pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis, mas não face a uma pluralidade de crimes efectivamente cometidos, pelo que o concurso, meramente aparente, de crimes deverá ser punido na moldura respeitante ao tipo legal que «incorpora o sentido dominante», sendo o sentido do ilícito excedente valorado na medida da pena concreta.

18. Assim, para decidir o presente conflito de jurisprudência, terá de questionar-se se o critério de diferenciação radicado na diversidade ou unidade dos bens jurídicos violados deverá ser o ponto de partida e de chegada, ou se, volvidos mais de 50 anos sobre o notável trabalho de Eduardo Correia, o referido critério, continuando embora como ponto de partida, deverá, alargando horizontes, desenvolver-se no sentido da realização do desígnio de que o Direito responda, cada vez mais, ao real pulsar da vida social.

19. Afigura-se-nos que a posição defendida por Figueiredo Dias, ao assentar numa consideração global do sentido social de ilicitude do comportamento típico, apelando assim para a necessidade da procura de eventuais conexões, objectivas e subjectivas, entre os sentidos de ilícito coexistentes, em ordem a poder-se surpreender sentidos autónomos ou predominantes, corresponde à desejável adequação do Direito ao real sentido social da vida.

20. E tal posição está alicerçada na interpretação conjugada dos citados artigos 30.°, nº 1, e 77.°, nº 2, do Código Penal. Na verdade, sendo o sistema perfilhado pela lei o da pena conjunta, o conceito de «tipos de crimes efectivamente cometidos» pressupõe que a pluralidade de crimes implica a integralidade do conteúdo de ilícito correspondente a cada um dos tipos preenchidos pelo comportamento global do agente. Conforme acentua Figueiredo Dias, esta conclusão deriva necessariamente da norma do artigo 77.°, nº 2, do Código Penal, ao impor a punição do concurso com uma pena conjunta cujo limite máximo da moldura penal aplicável é constituída pela soma das penas parcelares aplicáveis a cada um dos crimes concorrentes.

21. Sendo assim, não é legítimo que se considere como constituindo concurso efectivo, punido nos termos do artigo 77.° do Código Penal, conduta que, integrando um dos elementos do tipo predominante, seja também elemento constitutivo de outro tipo legal de crime, ou seja, como refere Figueiredo Dias, «naqueles casos que embora tecnicamente de concurso, em que os conteúdos de ilícito - segundo o seu sentido no contexto do comportamento global - se interceptam parcialmente em maior ou menor medida». Punir tais casos segundo a norma do artigo 77.°, nº2, do Código Penal, significaria sempre, como enfatiza FIGUEIREDO DIAS «violar o princípio Jurídico-constitucional da proibição da dupla valoração».

22. E como bem acrescenta o mesmo Autor, esta solução não viola «o mandato (também ele jurídico-constitucional) da esgotante valoração da matéria ilícita». Efectivamente assim não sucede se «o conteúdo ilícito que excede o sentido do ilícito dominante, não tendo influência na determinação da moldura do concurso, todavia relevar para o efeito de determinação da medida concreta da pena».

23. O aplicador do direito deverá, pois, captar o pulsar da vida para a compreender e assim alcançar o sentido social da ilicitude típica que ressuma do comportamento global do agente - integrado por uma pluralidade de sentidos autónomos, ou antes constituindo uma predominante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos típicos praticados».

24. E não se receie que desta orientação resulte uma excessiva indefinição e uma injustificável dificuldade de aplicação. Não serão, normalmente, superiores às que resultam das exigências da procura irrecusável de uma justiça substantiva por parte do aplicador da lei.

25. Tanto mais que, como assinala Figueiredo Dias, na interpretação da realidade global deverá recorrer-se ao auxílio resultante de vários critérios com aptidão, na sua consideração conjugada, para, face ao comportamento global inerente a cada situação concreta, revelar a existência de um «sentido de ilícito absolutamente dominante, preponderante ou principal» entre os sentidos de ilícito co-existentes, que assim se revelam como subsidiários ou dependentes; ou, diversamente, permitir concluir pela verificação de vários autónomos sentidos de ilicitude típica.

26. Importará assim recorrer aos seguintes critérios:

unidade de sentido do acontecimento ilícito global-final; crime instrumental ou crime-meio; conexão espácio-temporal das realizações típicas; diferentes estádios de evolução ou de intensidade da realização global.

27. Se da análise lógico-conceitual, e neste sentido "formal", resultar que o comportamento do agente preenche vários tipos legais de crime, importa apreciar e decidir, agora numa análise substancial do comportamento global do agente, quando daquela pluralidade de normas aplicáveis se pode concluir que estamos face a uma pluralidade de crimes «efectivamente cometidos» a punir nos termos do artigo 77.0 do Código Penal.

28. Também entendemos que a verificação de uma pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis não é suficiente para se poder concluir pela pluralidade de "crimes efectivamente cometidos" a punir nos termos das normas do artigo 77.0 do Código Penal.

29. Haverá, pois, que avaliar se no comportamento global do agente se reflecte uma pluralidade de sentidos autónomos de ilicitude típica situação integradora de «crimes efectivamente cometidos», a punir com uma pena única segundo as referidas normas -- ou se, pelo contrário, pese embora a pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis, aquele comportamento do agente espelha antes um único sentido autónomo de ilicitude - face a «uma predominante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos típicos praticados» -, a punir então em termos de concurso aparente ou impuro de crimes.

30. Sendo o engano astucioso elemento do tipo objectivo do crime de burla e constituindo, por outro lado, a falsificação meio privilegiado para a criação desse engano, formando a essência deste, a falsificação é, pois, já uma parte do ilícito burla.

31. Por outro lado, se a falsificação for levada a cabo unicamente como meio da realização do crime de burla e neste esgotando a concreta danosidade social inerente à falsificação, ou seja, restringindo-se o sentido e os efeitos da falsificação somente à sua função de crime-meio face ao crime de burla, parece-nos não assumir um sentido de ilicitude típica autónoma, mas antes, considerando o comportamento global do agente, um sentido absolutamente dependente do sentido social do ilícito global.

32. O que implica a conclusão de que estamos face a um «concurso impuro de crimes», e não face a um concurso efectivo de crimes a punir nos termos do artigo 77.°, nº 2, do Código Penal, sob pena de violação da proibição jurídico-constitucional de dupla valoração, e sem que tal implique a inobservância do princípio jurídico-constitucional de esgotante apreciação, pois a conduta do agente integradora da falsificação será tida em conta na determinação da medida concreta da pena.

33. Esta solução não afasta, naturalmente, a possibilidade de poder verificar-se concurso efectivo a punir nos termos do artigo 77.°, nº 1 e 2, do Código Penal, sempre que o comportamento do agente, que reflecte o sentido da ilicitude típica da falsificação, não esgote no cometimento do crime de burla os seus sentido e efeitos de danosidade social, reflectindo antes o comportamento global do agente uma pluralidade de sentidos autónomos de ilicitude; o que é sempre possível apurar com o recurso aos critérios acima enunciados.

34. Concluímos assim que quando a falsificação seja realizada como meio de cometimento de um crime de burla e neste esgote o seu sentido e efeitos de danosidade social, não ocorre um concurso efectivo de crimes a punir nos termos do artigo 77.°, n.os 1 e 2, do Código Penal, mas antes um concurso aparente ou impuro de crimes, em que a falsificação relevará apenas no momento da determinação da medida concreta da pena.

É este o sentido em que a jurisprudência deve ser fixada.

                  Por seu turno o recorrente formula as seguintes conclusões

 1° Neste recurso de uniformização de jurisprudência o que está em causa é a existência de concurso aparente ou de concurso real e efectivo, entre os crimes de burla e falsificação de documento, quando este último é praticado com o único intuito de preparar ou facilitar o crime de burla, tendo em conta a legislação em vigor após a Lei 59/2007.

2° Na realidade a alteração introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro. no corpo do nº 1, do art. 256°, do Código Penal, aponta para a existência de um concurso aparente entre este e o crime de burla, quando aquele é cometido como instrumental deste.

3° A lei dispunha que "Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo ( ... )", e passou a dispor que "Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime. Tendo esta nova redacção conferido o argumento da instrumentalidade necessária para que se trate de um concurso aparente entre o crime de burla e falsificação de documento, na medida em que este é praticado unicamente com o intuito de cometer o crime de burla.

4° Paulo Pinto de Albuquerque chama a atenção para esta alteração legislativa, afirmando que: "Há concurso aparente (consunção) entre o crime de falsificação de documento e o crime de burla ou qualquer outro crime que tenha sido preparado, facilitado, executado ou encoberto por intermédio de documento falso, tendo o legislador propositadamente afastado a jurisprudência dos acórdãos de fixação de jurisprudência do ST J de 19/02/1992 e 8/2000.

5-Com efeito, o legislador deixou claro, na revisão do CP de 2007, que a acção típica de falsificação pode ser querida exclusivamente com a intenção de preparar, facilitar, executar ou encobrir um crime, sendo este elemento subjectivo típico parte constitutiva do próprio ilícito subjectivo e não um facto de agravação.

6° Sendo assim, a punição nestes casos em concurso efectivo redundaria numa dupla punição do mesmo facto. A conclusão é inelutável, em face da opção política criminal do legislador: o concurso é meramente aparente, sendo a punição do crime-Instrumento de falsificação subsidiária da punição do crime-fim.

7° O crime de falsificação é um acto preparatório e executório do crime de burla, assim o acto de falsificar documentos para que desta forma uma terceira pessoa acredite na veracidade dos mesmos, consubstancia o conceito de astúcia em provocar engano sobre factos, elemento essencial e típico do crime de burla, portanto punir o agente, também, pelo crime de falsificação de documentos será, puni-lo duplamente pela mesma actuação, violando-se assim princípios constitucionais.

8° Esta nova corrente jurisprudencial entende que no concurso aparente de infracções, o campo de aplicação das duas normas assemelha-se a dois círculos concêntricos, de forma que todos os elementos cabem numa norma e também na outra, e que os mesmos elementos de facto não podem ser apreciados duas vezes, sendo exactamente isto que acontece no caso em que a falsificação envolve com certeza o erro ou engano sobre os factos astuciosamente provocados a que alude o crime de burla, sendo assim, este resultado a consequência geral daquela actividade.

9° Desta forma, ao punir o crime de burla já se está a contar com a actividade de falsificação, sendo de incluir no tipo legal da burla todos os meios usados pelo agente para cometer o ilícito, no sentido de utilização de erro ou engano. Dir-se-á que a falsificação faz parte do tipo legal de burla e não pode ser autonomizada, em relação à burla de que faz parte, sob pena de violação do princípio "ne bis in idem”

10° Aliás o mesmo já acontece com o direito penal tributário em que se verifica concurso aparente entre fraude fiscal e burla, este alterado em 2004, e que deveria ser transferível para o direito penal comum, tendo em conta o princípio da harmonização da lei penal aplicada em território português.

11° Posição igualmente defendida por Figueiredo Dias em 2007 (Lições de Direito Penal), em que este Professor expõe, de forma nova e fundamentada, a sua adesão expressa à tese do concurso aparente entre burla e falsificação com a intenção de burlar exclusivamente uma determinada pessoa, porque há no comportamento global um sentido de ilicitude absolutamente dominante ou mesmo único que permite a sua recondução jurídico-penal à unidade do facto.

12° O próprio direito penal espanhol considera existir concurso aparente entre o crime de burla e falsificação de documentos, quando este é praticado como meio para atingir a execução daquele, pois caso contrário o agente seria punido duplamente pela prática do mesmo crime.

13° Dúvidas não restarão que a alteração da lei penal operada em 2007, nomeadamente na redacção do corpo do artigo 256°, nº1, pretendia consagrar estas correntes jurisprudenciais que consideram existir concurso meramente aparente de normas entre o crime de burla e falsificação, de documentos, quando a falsificação de escritos é apenas praticada como instrumento para executar o crime de burla, á semelhança do já consagrado na lei penal tributária.

Termina pedindo que seja fixada jurisprudência no sentido da existência de concurso aparente, entre os crimes de burla e falsificação de documento, quando este último é praticado com o único intuito de preparar ou facilitar o crime de burla, tendo em conta a legislação em vigor após a Lei 49/2007, bem como toda a corrente jurisprudencial nesse sentido.

                                         Os autos tiveram os vistos legais

                                                               *

                                                  Cumpre decidir.

I

Do antecedente histórico.

Na análise da questão que é proposta importa revisitar os fundamentos dos acórdãos de fixação de jurisprudência 8/2000 e de 19 de Fevereiro de 1992 e, nomeadamente, a forma como evoluiu a análise do tema da unidade e pluralidade de infracções.

Nesta última vertente é incontornável o dispositivo do artigo 30.º do Código Penal, traduzindo o pensamento de Eduardo Correia, que contem a chave da problemática do concurso de crimes, do crime continuado e do crime único constituído por uma pluralidade de actos ou acções [1] O n.º 1 do mesmo artigo contém duas partes, ambas reportadas a situações de pluralidade de crimes cometidos pelo mesmo agente – na primeira parte dispõe-se que o número de crimes se determina pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos pela conduta do agente; na segunda parte declara-se que o número de crimes também se determina pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. Por esta forma se chama à colação os denominados “concurso heterogéneo” (realização de diversos crimes decorrente da violação de diversas normas incriminadoras) e “concurso homogéneo” (realização plúrima do mesmo crime decorrente de violações da mesma norma incriminadora).

Importa referir que, em qualquer uma das situações descritas, o comportamento do agente tanto se pode consubstanciar num só facto ou numa só acção, como em vários factos ou acções. Na realidade, a partir de um só facto ou de uma só acção podem integrar-se diversos tipos legais, por violação simultânea de diversas normas incriminadoras, bem como o mesmo crime plúrimas vezes, por violação da mesma norma incriminadora; igualmente a partir de vários factos, ou de várias acções, pode realizar-se o mesmo crime plúrimas vezes, por violação repetida da mesma norma incriminadora, bem como diversos crimes, por violação de diversas normas incriminadoras.

Qualquer uma destas hipóteses configura um concurso de crimes, uma vez que este sucede quando o mesmo agente cometa mais do que um crime, quer mediante o mesmo facto, quer mediante vários factos.

            Somos assim reconduzidos ao que a propósito concluiu Eduardo Correia quando escreveu que, de acordo com uma concepção normativista do conceito geral de crime, a unidade ou pluralidade de crimes é revelada pelo " número de valorações que, no mundo jurídico-criminal, correspondem a uma certa actividade. ( ... ). Pluralidade de crimes significa, assim, pluralidade de valores jurídicos negados. ( ... ) Pelo que, deste modo, chegamos à primeira determinação essencial de solução do nosso problema: se a actividade do agente preenche diversos tipos legais de crime, necessariamente se negam diversos valores jurídico-criminais e estamos, por conseguinte, perante uma pluralidade de infracções; pelo contrário, se só um tipo legal é realizado, a actividade do agente só nega um valor jurídico-criminal e estamos, portanto, perante uma única infracção" .

No cerne do critério enunciado, e que constitui a trave mestra de toda a elaboração doutrinal que, a propósito, se escreveu no nosso país, estão princípios nucleares do direito penal uma vez que, seguindo a argumentação do mesmo Mestre [2] ,” mais do que em nenhum outro campo da vida jurídica, se impõe no direito criminal o princípio da segurança do direito e a necessidade de assinalar um fundamento sólido à actividade jurisprudencial pois que a valoração jurídico-criminal não pode ser deixada ao arbítrio do juiz, mas deve ser formulada de maneira, tanto quanto possível, precisa”.

Para dar realidade a este pensamento, adianta Eduardo Correia, possui a técnica legislativa um recurso, que consiste precisamente no «tipo legal de crime».

Nele descreve o legislador aquelas expressões da vida humana que, em seu critério, encarnam a negação dos valores jurídico criminais que violam os bens ou interesses jurídico-criminais. Neles vasa a lei como em moldes os seus juízos valorativos, neles formula de maneira típica a antijuricidade, a ilicitude criminal. Depois, uma vez formulados esses tipos legais de crimes, impõe-nos ao juiz como quadros, a que este deve sempre subsumir os acontecimentos da vida para lhes poder atribuir a dignidade jurídico-criminal.

Consequentemente, o juiz não pode valorar à sua vontade as relações submetidas à sua apreciação, mas deve sempre, em cada caso, para que as possa considerar antijurídicas, verificar se elas são subsumíveis a um tipo legal de crime. O tipo legal é, pois, o portador, o interposto da valoração jurídico-criminal, ante o qual se acham colocados os tribunais e o intérprete.

            Se todos os juízos de valor jurídico-criminais hão-de ser fornecidos, através de tipos legais de crimes, é, por outro lado, certo que cada tipo legal há-de ser informado por um específico valor jurídico-criminal. Consequentemente, se diversos tipos legais de crime são preenchidos, necessariamente se negam diversos valores jurídico-criminais, da mesma maneira que, se um só tipo é realizado, um só valor nega a actividade criminosa do agente

            Assim, conclui Eduardo Correia, que a possibilidade de subsunção duma relação da vida a um ou vários tipos legais de delito é a chave para determinar a unidade ou pluralidade a unidade ou pluralidade de crimes.[3]

                        

Porém, elucida o mesmo Professor que,

Para que exista uma infracção não basta que uma conduta seja tipicamente antijurídica: é preciso, também, que ela possa ser reprovada ao seu agente, isto é, que seja culposa. Assim, ao lado daquele Juízo que refere o comportamento humano a bens ou valores jurídico-criminais, outro juízo de valor se requer como pressuposto do crime, o qual se analisa na censura dum certo facto típico à pessoa do seu agente.

Por vezes o momento psicológico correspondente à realização de uma série de actividades subsumíveis a um mesmo tipo legal estrutura-se de tal forma que o concreto juízo de reprovação tem de ser formulado várias vezes. Consequentemente, o todo formado por tais actividades, enquanto encarnam a violação do mesmo bem jurídico, fragmenta-se na medida em que algumas das suas partes são objecto de um juízo autónomo de censura, adquirindo, portanto, independência e individualidade.

Assim, a consideração da «culpa», elemento essencial ao conceito de crime, constitui um limite do critério segundo o qual se determinaria a unidade ou pluralidade de infracções, pela unidade ou pluralidade de tipos realizados. A unidade de tipo legal preenchido não importará definitivamente a unidade das condutas correspondentes, na medida em que, sendo vários os juízos de censura que as ligam à personalidade do seu agente, outras tantas vezes esse mesmo tipo legal se torna aplicável, e deverá, por conseguinte, considerar-se existente uma pluralidade de crimes.

            Tais juízos de reprovação têm de ser desdobrados, e repetidos, sempre que uma pluralidade de resoluções, e de resoluções no sentido de determinações de vontade, tiver iluminado o desenvolvimento da actividade do agente.

Com efeito, afirma o mesmo Professor, a resolução neste sentido é o termo daquele especifico momento do processo volitivo em que o «eu» pondera o valor, ou desvalor, os prós e os contras dum projecto concebido. É o termo daquela específica fase da volição que, metafisicamente se costuma descrever como constituída por uma luta de motivos e contra motivos, em que o próprio intervém numa afirmação da sua personalidade. Deste modo, quando se trate de um projecto criminoso que entra em execução, é precisamente no momento em que o agente toma a resolução de o realizar que a ineficácia da norma, na sua função de determinação, se verifica. Se, pois, diversas resoluções foram tomadas para o desenvolvimento da actividade criminosa, diversas vezes deixa a norma de alcançar concretamente a eficácia determinadora a que aspirava e vários serão os juízos de censura a formular ao agente.

            O índice da unidade, ou pluralidade, de determinações volitivas apenas se pode consubstanciar na forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, olhando, fundamentalmente, à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente. A experiência, e as leis da psicologia, referem que, se entre diversos actos medeia um largo espaço de tempo, a resolução que, porventura, inicialmente os abrangia a todos, se esgota no intervalo da execução, de tal sorte que os últimos não são a sua mera descarga, mas supõem um novo processo deliberativo. Daqui resulta que se deve considerar existente uma pluralidade de resoluções sempre que se não verifique, entre as actividades efectuadas pelo agente, uma conexão de tempo tal que, de harmonia com a experiência normal e as leis psicológicas conhecidas, se possa e deva aceitar que ele as executou a todas sem ter de renovar o respectivo processo de motivação.[4] [5]

II

No caso do crime de burla e falsificação estamos em face de tipos legais distintos que visam proteger bens jurídicos diversos, nomeadamente, na burla, o agente, actuando com a intenção de conseguir um enriquecimento ilegítimo (próprio ou alheio), induz outra pessoa em erro, fazendo com que esta, por esse motivo, pratique actos que causam a si mesma (ou a terceiro) prejuízos de carácter patrimonial. O bem jurídico aqui protegido consiste, pois, no património, globalmente considerado. A burla é um crime de dano, cuja consumação só ocorre com a efectiva lesão do património. [6]

Por seu turno, a burla apresenta-se como um crime de resultado cortado ou parcial, já que no plano objectivo basta o prejuízo patrimonial (ou de terceiro) e, no plano subjectivo, exige-se que o agente actue com a intenção de obter (para si ou para outrem) um enriquecimento ilegítimo que não carece de concretização objectiva, bastando para o efeito que se observe o empobrecimento da vítima.

Reportando-nos à falsificação importa salientar que Já anteriormente, em sede de Uniformização de Jurisprudência- 1/2003- se considerou que o crime de falsificação de documento é um crime contra a vida em sociedade, em que é protegida a segurança e confiança do tráfico probatório, a verdade intrínseca do documento enquanto tal, como bem jurídico. É um crime de perigo (o mero acto de falsificação põe em perigo a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório) abstracto (basta que o documento seja falsificado para que o agente possa ser punido). Um crime intencional em que o agente necessita de actuar com «intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo» não se exigindo no entanto, uma específica intenção de provocar um engano no tráfico jurídico.

Mas é um crime em que deve ser devidamente enfatizada a essencialidade da existência ou possibilidade de um prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, sendo que o benefício e o prejuízo podem ser de ordem económica ou moral .

Sublinha-se no mesmo Acórdão que «exigindo-se que o agente actue com intenção de causar um prejuízo ou de obter um benefício ilegítimo mantém-se o crime de falsificação de documentos ainda em estreita ligação com o crime de burla».

Com efeito, é um crime intencional: para que as condutas desenhadas nas alíneas a) a c) do n.º 1 do art. 256.º sejam puníveis é necessário que o agente tenha actuado com «intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo». É, pois essa especial inclinação da vontade do agente que faz toda a diferença, determinando (se existente) a punição que, assim, fica dela dependente

Na mesma linha singrou o Tribunal Constitucional no acórdão 76/02 de 26.2.2002 (proc. n.º 647/98), referindo que  «também nestes casos, os bens jurídicos protegidos (a segurança e a credibilidade no tráfico jurídico probatório relacionado com documentos no primeiro caso e a realização da justiça no segundo caso) tem claramente uma natureza supra individual, residindo a sua titularidade no Estado

Colocando a questão no domínio constitucional, não deixou aquele Tribunal de reconhecer que «é certo que, embora os crimes de falsificação praticada por funcionário e de denegação de justiça não visem directamente a protecção ou mesmo a satisfação (no caso de denegação de justiça) de interesses colectivos, e de não incluírem por consequência como seu pressuposto, a violação de interesses particulares, a verdade é que tais interesses são em muitos caso ofendidos através da sua comissão. Alguns destes casos haverá, porventura, concurso de crimes, como quando a falsificação servir para a prática de burla, caso em que o ofendido se poderá constituir como assistente. E genericamente, pode dizer-se que tais incriminações visam indirectamente proteger também interesses particulares, como resulta de o tipo subjectivo de ilícito de crime de falsificação do artigo 257º incluir a "intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado" e de o crime de denegação de justiça, sempre que a justiça é pedida pelos particulares, ter como consequência necessária a insatisfação do interesse particular nessa administração

Na verdade, se é certo que a falsificação pode constituir o meio, o artifício fraudulento que está no cerne da burla, igualmente é exacto que, na comparação dos dois tipos, existe uma bipolaridade de bens jurídicos protegidos o que aliás se revela na sua diferente natureza (pública e semi-pública), reflectindo tal diversidade. Consequentemente, à pluralidade de tipos legais integrados deve corresponder uma pluralidade de crimes.

Aliás, importa realçar que, independentemente da proximidade que exista entre os bens jurídicos protegidos pelos tipos em causa, a pluralidade de resoluções prévias significa uma pluralidade de crimes cometidos pois que se violam as determinações de diferentes normas e, consequentemente, são autónomos os fundamentos para o juízo referencial de censura em que a culpa se analisa.

III

Se tal conclusão é formulada, de forma sustentada, à luz do ensinamento proposto por Eduardo Correia igualmente a mesma linearidade lógica oferece a apreciação nos termos propostos por Figueiredo Dias, apontando a necessidade de se prestar atenção ao facto de que “o tipo de ilícito, o verdadeiro portador da ilicitude material, é sempre formado pelo tipo objectivo e pelo tipo subjectivo de ilícito. A segunda observação que formula é a de que o tipo objectivo tem sempre como seus elementos constitutivos o autor, a conduta e o bem jurídico, só da conjugação destes elementos - e também da sua ligação ao tipo subjectivo de ilícito - resultando o sentido jurídico social da ilicitude material do facto que o tipo abrange. Todos estes elementos parece deverem ser tidos em conta e valorados - e não apenas em si mesmos, mas ainda no sentido que da sua consideração global resulta - na determinação da unidade ou pluralidade de tipos violados.

Para o mesmo Autor o bem jurídico assume, na questão da tipicidade, um relevo primacial e insubstituível, devendo recorrer-se aos restantes elementos típicos numa perspectiva de consideração global do sentido social do comportamento que integra o tipo. Só assim, acrescenta, se podendo ter a esperança de aceder à compreensão do sentido jurídico-social do comportamento delituoso. O que se tem de contar são sentidos da vida jurídico-penalmente relevantes que vivem no comportamento global.

Nesta última perspectiva o "crime" por cuja unidade ou pluralidade se demanda é o facto punível e, por conseguinte, uma violação de bens jurídico-penais que integra um tipo legal ao caso efectivamente aplicável. A essência de uma tal violação não reside, pois, nem, por um lado, na mera "acção", nem, por outro, na norma ou no tipo legal que integra aquela acção: “reside no substrato de vida dotado de um sentido negativo de valor jurídico-penal, reside no ilícito típico: é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal que decide, em definitivo, da unidade ou pluralidade de factos puníveis e, nesta acepção, de crimes”.[7]

Tal posicionamento encontrou o apoio de alguns autores como Conceição Ferreira da Cunha referindo que o “critério, defendido por Figueiredo Dias, da "unidade ou pluralidade de sentidos sociais de ilicitude do comportamento global, parece-nos ter potencialidades para, perante as concretas situações da vida, distinguir com justeza o que deve considerar-se uno do que deve qualificar-se de múltiplo: "O que se tem de contar para determinação da unidade ou pluralidade de crimes não são por uma parte acções externas, como tal indiferentes ao sentido do comportamento; nem por outro lado tipos legais de crime como entidades abstractas, mesmo que concretamente aplicáveis ao caso. O que se tem de contar são sentidos da vida jurídico-penalmente relevantes que vivem no comportamento global".[8]

Segundo esta orientação vários factores deverão ser considerados, não assumindo cada um deles isoladamente relevância decisiva, mas sendo tomados no seu conjunto, e no âmbito das concretas circunstâncias do comportamento em causa, pois é esse conjunto, esse "comportamento global", que tem significado segundo um juízo de ilicitude material. Assim, os bens jurídicos afectados, a unidade ou pluralidade de resoluções, a distância ou proximidade espácio-temporal entre as acções, as conexões de sentido entre elas (por exemplo, a relação meio-fim), o modo como tais bens jurídicos, condutas e relações encontram tradução nos tipos legais de crime, a unidade ou pluralidade de vítimas, serão elementos a relevar.

Na verdade, para Figueiredo Dias, só da conjugação dos elementos objectivos do tipo legal (autor, conduta e bem jurídico) e "também da sua ligação ao tipo subjectivo de ilícito” resultaria o "sentido jurídico-social da ilicitude material do facto que o tipo abrange"; assim, todos estes elementos deveriam ser valorados "e não apenas em si mesmos, mas ainda no sentido que da sua consideração global resulta" na determinação da "unidade ou pluralidade dos tipos violados

De salientar que este último elemento deverá ser considerado decisivo, pelo menos no âmbito dos crimes contra bens eminentemente pessoais

Adianta João da Costa Andrade[9], na esteira de Figueiredo Dias, que a essência do critério da unidade, ou pluralidade de infracções, está no apelo à concepção global do tipo e a consequente assunção do critério da unidade ou pluralidade dos bens jurídicos violados pela conduta do agente como critério operativo para distinção da unidade ou pluralidade de crimes.          Só da consideração global do sentido social do comportamento que integra o tipo poderá aceder à compreensão do sentido jurídico-social do comportamento delituoso.

Assim, nos termos propostos por aquele Professor, é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal, que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de factos puníveis e, nesta acepção, de crimes.

Sintetizando, adianta Figueiredo Dias, se decisiva é, pois, a análise do significado do comportamento global que lhe empresta um sentido material (social) de ilicitude, terá então de reconhecer-se, de um ponto de vista teleológico e de valoração normativa "a partir da consequência", a existência de dois grupos de casos:

(a) o caso ("normal") em que os crimes em concurso são na verdade recondutíveis a uma pluralidade de sentidos sociais autónomos dos ilícitos-típicos cometidos e, deste ponto de vista, a uma pluralidade de factos puníveis - hipóteses que chamaremos de concurso efectivo (art. 30.°-1), próprio ou puro;

 (b) e o caso em que, apesar do concurso de tipos legais efectivamente preenchidos pelo comportamento global, se deva ainda afirmar que aquele comportamento é dominado por um único sentido autónomo de ilicitude, que a ele corresponde uma predominante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos-típicos praticados - hipóteses que chamaremos de concurso aparente, impróprio ou impuro.[10] [11]

            A questão é, então, única e simplesmente determinar se entre a burla e a falsificação, que é instrumento para o seu cometimento, existe esse sentido único de ilicitude; essa conexão subjectiva e objectiva que, sem qualquer dúvida, aponta para uma sobreposição na tutela jurídica a conjugar com o princípio “ne bis”

           

Na verdade, sendo fora de dúvida que nos encontramos perante a integração de tipos legais diferentes, que tutelam bens jurídicos diversos, o eximir à afirmação de um concurso de crimes à luz do artigo 30 do Código Penal tem subjacente o afirmar da violação de tal princípio.

            Sobre tal tema já oportunamente se pronunciou o Tribunal Constitucional quando, chamado a avaliar a ofensa do princípio ne bis .. na afirmação de um concurso real entre os crimes de falsificação e burla, concluiu que o mesmo não era violado assentando a sua argumentação na circunstância de os bens jurídicos tutelados serem distintos nos crimes em presença e, chamando á colação os acórdãos n.ºs  102/99 (publicado no Diário da República, II Série, de 1 de Abril de 1999) e 566/2004), refere que  «Verdadeiramente, pois, o que importa é saber se se está perante a “prática do mesmo crime” ou perante um concurso efectivo de infracções, quer este concurso seja real, quer seja ideal (Sobre todos estes conceitos, cf. EDUARDO CORREIA, Unidade e Pluralidade de Infracções, Coimbra).

É que, sendo o concurso de crimes efectivo, e não meramente aparente, a dupla penalização não viola o princípio constitucional do ne bis in idem. E isto, porque as sanções, que cada uma das normas penais que se encontram em concurso prevê, se destinam, cada uma delas, a punir a violação de um bem jurídico diferente; ou, então, porque o bem jurídico, que a mesma conduta viola por mais do que uma vez, é um bem jurídico eminentemente pessoal. Em ambos os casos, não se está em presença do mesmo crime, embora se esteja em presença do mesmo facto ou da mesma acção delituosa, o que vale por dizer de uma mesma conduta naturalística.

Para decidir se existe um único crime ou um concurso efectivo de crimes, há que recorrer - recordam aqueles autores (ob. e loc. cit.) - “aos conceitos jurídico-processuais e jurídico-materiais desenvolvidos pela doutrina do direito e processo penais”».

            Ora, os fundamentos constantes destes arestos são inteiramente transponíveis para o caso dos autos, pois o acórdão recorrido, como acima se salientou, também assentou a sua argumentação na circunstância de os bens jurídicos tutelados serem diferentes nos crimes em presença, nessa base afastando a tese do concurso aparente e afirmando a existência de concurso efectivo entre a burla e a falsificação de documentos, que foi instrumental para induzir a vítima em erro.

            Nem, em bom rigor, o recorrente questiona tal pressuposto. O que sustenta é que tal argumento seria irrelevante, porque o que interessa é determinar se um mesmo “pedaço de vida” que “integra uma determinada conduta criminalmente relevante está ou não contida em outro comportamento típico mais abrangente”.

            Ora, não cabe ao Tribunal dizer qual é a melhor interpretação do direito ordinário quanto aos elementos integradores de cada tipo, por forma a concluir que se verifica uma situação de concurso aparente e não de concurso efectivo. Não estando em causa a vertente processual do princípio, que poderia exigir outro critério ou indagações complementares para determinação do que é “o mesmo crime” (designadamente, com recurso aos institutos relativos ao objecto do processo), nada impede que o legislador configure o sistema sancionatório penal quanto ao concurso de infracções em matéria criminal segundo um critério de índole normativa e não naturalística, de modo que ao “mesmo pedaço da vida” corresponda a punição por tantos crimes quantos os tipos legais que preenche, desde que ordenados à protecção de distintos bens jurídicos, como é seguramente o caso dos que prevêem a burla e a falsificação de documentos. Não ficando a protecção de lesão ou perigo de lesão de bens jurídicos merecedores de tutela penal esgotada ou consumida por um dos tipos que a conduta do agente preenche, não viola o princípio da necessidade das penas e, consequentemente, o ne bis in idem material, a punição em concurso efectivo (concurso ideal heterogéneo), mediante esse critério teleológico, do crime-meio e do crime-fim, porque cada uma das punições sanciona uma típica negação de valores pelo agente.

Deste modo, importa concluir que as normas dos artigos 30.º, n.º1, 217.º, n.º 1, e 256.º, n.º 1 do Código Penal, na interpretação que delas faz o acórdão recorrido, no sentido em que permite a punição em concurso efectivo pelos crimes de burla e falsificação de documentos, assente na distinção dos bens jurídicos tutelados pelos respectivos tipos legais, não ofende a Constituição, nomeadamente os artigos 2.º e 29.º, n.º 5, da Lei Fundamental.

 

IV

Aprofundando a resposta à questão proposta no domínio do concurso aparente de infracções considera Figueiredo Dias que, do sentido global do ilícito, emerge a ideia central, que preside à categoria do concurso aparente, que se foca nas situações da vida em que, preenchendo o comportamento global mais que um tipo legal concretamente aplicável, se verifica entre os sentidos de ilícito coexistentes uma conexão objectiva e/ou subjectiva tal que deixa aparecer um daqueles sentidos de ilícito como absolutamente dominante, preponderante, ou principal, e, hoc sensu, autónomo, enquanto o restante, ou os restantes, surgem, também a uma consideração jurídico-social segundo o sentido, como dominados, subsidiários ou dependentes.

Considera o mesmo Autor que a submissão do caso à incidência das regras de punição do concurso de crimes constantes do art. 77 seria desproporcionada, político-criminalmente desajustada e, ao menos em grande parte das hipóteses, inconstitucional. A referida dominância de um dos sentidos dos ilícitos singulares pode ocorrer em função de diversos pontos de vista: seja, em primeiro lugar e decisivamente, em função da unidade de sentido social do acontecimento ilícito global; seja em função da unidade de desígnio criminoso; seja em função da estreita conexão situacional, nomeadamente, espácio-temporal, intercedente entre diversas realizações típicas singulares homogéneas; seja porque certos ilícitos singulares se apresentam como meros estádios de evolução ou de intensidade da realização típica global.

O critério de primacial relevo para a conclusão pela tendencial unidade substancial do facto - apesar da pluralidade de tipos legais violados pelo comportamento global - é o da unidade, segundo o sentido social assumido por aquele comportamento, do sucesso ou acontecimento (hoc su, do "evento" ou "resultado") ilícito global-final

É exactamente na sequência dessa configuração, desenhando o concurso aparente em função dum sentido de ilícito único, que Figueiredo Dias extrapola as considerações que definem a relação existente entre falsificação e burla fazendo apelo ao critério do crime instrumental ou crime-meio.

Na perspectiva do mesmo Autor a relação entre o ilícito puramente instrumental (crime-meio) e o crime-fim correspondente um ilícito singular surge, perante o ilícito principal, unicamente como meio de o realizar e nesta realização esgota o seu sentido e os seus efeitos.

Para Figueiredo Dias a valoração autónoma e integral do crime-meio representaria uma violação da proibição jurídico-constitucional da dupla valoração; enquanto, do outro lado, a sua consideração como conformadora de um concurso impuro não viola o mandamento (também ele jurídico-constitucional) de esgotante apreciação porquanto ele deverá influenciar a medida da pena do concurso. Impõe-se, por isso, na sua perspectiva, a conclusão de princípio favorável a um concurso aparente. Sem que importe, uma vez mais, a existência ou não de uma conexão objectiva (parentesco dos bens jurídicos violados) ou subjectiva (unidade ou pluralidade de resoluções) entre os tipos legais violados pelo comportamento global.

E, pronunciando-se sobre a questão concreta nos presentes autos, ou seja a atenção na relação entre uma falsificação de escrito utilizada unicamente como meio de burlar alguém, refere não existir qualquer dúvida em convir, por via de princípio e só por ele, na solução do concurso aparente. Nesse sentido existiriam duas considerações fundamentais, nomeadamente o facto de o acto de falsificação ser levado a cabo unicamente no contexto situacional da realização do crime-fim e de nele esgotar a sua danosidade social; e a de a falsificação constituir já uma parte do ilícito da burla, pelo que a autonomização do conteúdo de ilícito daquele significaria uma dupla valoração do mesmo substrato de facto. [12]

V

Admite-se que o enunciado critério do crime-meio constitua um elemento relevante no apontar de uma especial conexão de ilicitude, quando não subjectiva, entre os dois tipos legais sob escrutínio uma vez que exista uma única resolução criminosa parametrizada, essencialmente, pela conexão temporal. Porém, perante a situação de pluralidade de resoluções, estamos em crer que o mesmo critério não assume uma virtualidade tal que permita a afirmação da existência de um concurso aparente de infracções.

Na verdade, quando a opção desvaliosa pelo ilícito se desdobra numa repetição do querer o agente tem perfeita consciência de que, por tal forma, viola duplamente a lei penal. Uma coisa é o agente que, numa convergência temporal, falsifica o documento e o utiliza de imediato numa continuidade de desígnio criminoso e outra a falsificação que, em momento posterior e desligada no tempo, é utilizada como artifício fraudulento.

A consideração da pluralidade de crimes perante a pluralidade de resoluções distanciadas no tempo, e ainda que tendo subjacente uma instrumentalidade, não colide com o principio ne bis in pois que não é o mesmo comportamento que é punido duplamente, mas são dois comportamentos autónomos que não se sobrepõem e que por igual devem se objecto de valoração.

            Aliás, lateralmente, não pode deixar de se notar que a consagração em abstracto da regra do concurso aparente entre os dois tipos legais, e mesmo na hipótese de pluralidade de resoluções, consubstanciaria um incentivo ao recurso à falsificação como forma de burla pois que o agente saberia que, mesmo que utilizasse esta, sempre o crime seria consumido pela burla.

Por outro lado, a consagração abstracta da instrumentalidade como critério decisivo, independentemente da unidade ou pluralidade de resoluções, pode implicar o sucessivo alargar do leque de tipos legais ali encandeados uma vez que não se vislumbra razão para não considerar também abrangido no mesmo conceito do crime-instrumento o furto que permitiu a aquisição do documento que veio a ser falsificado com a finalidade de posteriormente ser utilizado na burla.

VI

Tentando redescobrir a chave da questão do concurso aparente não podemos omitir as palavras de Eduardo Correia quando, reportando-se à figura da consunção, refere que “se olharmos os valores ou bens jurídicos que os diferentes tipos legais de crime respiram ou referem também descobriremos entre eles laços da mais estreita dependência Alguns desses bens jurídicos são forjados pela fusão de dois ou mais valores que já vários preceitos penais protegem outros resultam de se acrescentar um elemento novo ao valor ou bem jurídico doutro tipo outros ainda são entre si diversos só porque exprimem no plano criminal a especifica significação. De diferentes formas ou graus da ofensa e um mesmo interesse ou valor (v. g., crimes de perigo e de dano).

Entre tais valores ou bens jurídicos verificam-se, assim, relações de mais e menos uns contêm-se já nos outros. Em tais relações pode suceder que a reacção contra a violação concreta do bem jurídico realizado pelo tipo enformado pelo valor menos vasto se efective já pela aplicação do preceito que tem em vista a defesa de bens jurídicos mais extensos. Quando isso acontece, as disposições penais vêm a encontrar-se numa relação de consunção: uma consome já a protecção que a outra visa. E como não pode oferecer dúvidas que a mais ampla, a lex consumens, tem em todo o caso de ser eficaz, é manifesto, sob pena de clara violação do princípio ne bis in idem, que a menos ampla, a lex consumta, não pode continuar a aplicar-se.”

Significa o exposto que a exclusão de um preceito é devida, não a que o seu ponto de vista esteja contido já noutro sendo por ele consumida, mas a que, dada a protecção de uma norma, a que a outra concederia é pouco significativa, pouco importante, podendo por isso deixar de ser tomada em conta e ficar, assim, impune a respectiva actividade.

É, também, sobre a força do princípio da consunção que, entre outras hipóteses, se apoia a exclusão das disposições que punem certas condutas quando estas traduzem uma vontade de aproveitar, garantir ou assegurar a impunidade de outros crimes.

            A exclusão por consunção dos chamados delitos de realização intencionada há-de naturalmente resultar da punição de infracções cujo conteúdo criminal os absorva objectiva e subjectivamente. Estes últimos terão, pois, de ser delitos que contenham já a valoração objectiva de um fim, ou de uma intenção do agente, e situar-se-ão por conseguinte, predominantemente, no domínio dos crimes que têm como elemento constitutivo uma determinada intenção[13].Simplesmente, nunca poderá o intérprete limitar-se a verificar o âmbito da intenção que caracteriza e domina o primeiro delito, para poder fixar as incriminações de actividades que, pela sua punição, ficam consumidas : ao seu lado deve, na verdade, tomar-se em conta a violação efectiva e concreta de bens jurídicos que aquele delito abrange e aquela a que as actividades posteriores dão lugar. [14] [15]

É exactamente por esta razão, ou seja pela consideração de que a diversidade de ofendidos implica uma ruptura com a convergência de bens jurídicos tutelados, que é pressuposto da consunção, que Eduardo Correia, convocando Honig, refere que, no caso de falsificação de documento para cobrir um abuso de confiança (ou burla diremos nós por paralelismo de posições), fica excluída a possibilidade de consunção já que aquela actividade não se pode considerar, em qualquer caso, contida na intenção de apropriação que pertence ao abuso de confiança (tal como na burla).[16]

Na mesma senda se orienta Jeschek quando refere que só há lugar à consunção quando o conteúdo do ilícito e da culpa duma acção típica inclui outro facto ou, por outra forma, outro tipo, de maneira que a condenação por um expressa já exaustivamente o desvalor de todo o evento lex consumens derogat legi consumptae. A diferença da consunção frente à subsidiariedade radica na circunstância de que aqui se apresentam diversos delitos em conexões típicas, coisa já tida em conta pelo legislador ao estabelecer o marco penal dos tipos em questão.

A acção típica que siga o delito, e unicamente pretenda assegurar, aproveitar ou materializar o proveito obtido pelo primeiro facto, fica consumida quando não se lesiona nenhum outro bem jurídico e o dano não se amplia quantitativamente para além do já ocasionado (facto posterior impune ou, melhor, punido simultaneamente) Aqui o típico da relação entre o delito e o facto posterior radica em que o autor deve em abstracto realizar esse facto posterior se deseja que o facto principal tenha algum sentido para ele.  

Consequentemente, a apropriação da coisa furtada por parte do ladrão não constitui nenhuma apropriação indevida que se deva perspectivar com independência porque o furto só se materializa com o ânimo de apropriação mas, em contrapartida, a venda da coisa a um terceiro de boa-fé deve castigar-se como burla pois que no património do adquirente se lesa um novo bem jurídico. Ainda exemplificando afirma o mesmo autor que o mesmo se deve afirmar na relação entre apropriação indevida e burla. Se mediante o uso dum documento furtado se ocasiona à vítima, por burla, um dano adicional, e o facto posterior é punível com independência[17]

Reconduzindo-nos aos precisos termos da relação entre o crime de falsificação e o crime de burla temos por adquirido que, não só não são coincidentes os bens jurídicos tutelados, como, também, que a falsificação não é, necessariamente, o instrumento para a consumação da burla. A instrumentalidade da falsificação está indubitavelmente ligada a uma maior sofisticação no meio fraudulento utilizado o que por alguma forma faz surgir o paradoxo de a uma ilicitude com uma densidade mais acentuada poder corresponder uma mesma tipificação em termos penais.

Acresce que o titular do direito violado pelo crime de falsificação não é necessariamente o mesmo do crime de burla. Na verdade, a invocação de uma falsa identidade, ou qualidade, invocando um documento, tem subjacente a colisão com o direito de terceiro cuja identidade, ou qualidade, é alterada com o intuito de defraudar a vítima da burla e isto sem invocar o sempre presente interesse do Estado na fiabilidade dos instrumentos que asseguram as relações entre cidadãos e instituições que o integram.

Igualmente é certo que a opção desvaliosa pelo ilícito se desdobra numa repetição do querer em que o agente tem perfeita consciência de que, por tal forma, viola duplamente a lei penal.

A consideração da pluralidade de crimes perante a pluralidade de resoluções distanciadas no tempo, ainda que tendo subjacente uma instrumentalidade, não colide com o citado princípio ne bis in idem pois que não é o mesmo comportamento que é punido duplamente, mas são dois comportamentos autónomos que não se sobrepõem e que por igual devem se objecto de valoração.

Conclui-se, assim, que em nosso entender o critério do crime instrumento não é suficiente para a afirmação de existência de concurso aparente entre os dois crimes configurada como consunção.

A conclusão lógica, face ao disposto no artigo 30 do Código Penal é a afirmação da existência de um concurso real de infracções entre o crime de burla e falsificação. Tal conclusão tem implícita a concordância com as uniformizações de jurisprudência citadas e formuladas no domínio da anterior legislação.

VII

Importa, porém, segmentar uma situação particular que merece uma especial atenção. Na verdade, uma coisa é o agente que numa convergência temporal falsifica o documento e o utiliza de imediato numa continuidade de desígnio criminoso e outra a falsificação que, em momento posterior, e desligado no tempo, é utilizada como artifício fraudulento.

            Importa salientar que, naquela hipótese, e na unidade de resolução conducente à pluralidade de normas violadas, assume uma especial fisionomia a existência de uma dimensão conexional subjectiva relativamente à qual, citando Luís Duarte Almeida, alguns pensadores portugueses do início do século passado expressamente demonstravam ter já consciência.

            Na perspectiva deste Autor estarão verificados para cada um dos crimes em "concurso" os elementos da tipicidade subjectiva. A conexão que se afirmou subjectiva parece unir dois crimes cuja prática obedece como que a uma única opção criminosa, a uma única resolução contra o direito.

A opção criminosa não tem existência abstracta enquanto decisão contra o direito, antes se concretizando numa decisão livre de lesão de um determinado bem jurídico em dada manifestação concreta, lesão que pode passar (é este o ponto crucial) pela prática de mais de um crime - prática efectiva, por haver nessa variedade criminosa uma idêntica variedade de bens jurídicos protegidos, mas profundamente ligados numa conexão subjectiva. Como referia Gomes da Silva trata-se de uma conexão "material e psicológica.[18]

Em última análise o que está em causa é a existência de uma conexão subjectiva entre ambos os crimes praticados que se consubstancia uma unidade de resolução criminosa. É possível, quanto mais não seja no domínio da hipótese, que o agente falsifique e burle numa conexão de tal forma sucessiva que seja possível afirmar uma única resolução consubstanciando aquilo que Figueiredo Dias, nos termos expostos, denomina o sentido único do ilícito.

VIII

  Do significado da alteração legislativa introduzida pela Lei 59/2007

Na interpelação deste Tribunal pleno em relação ao tema do concurso entre os crimes de falsificação e burla importa agora analisar a nova configuração que a Lei 59/2007 desenhou na estrutura do artigo 256 do Código Penal ao aditar o segmento “ou de preparar, facilitar executar ou encobrir outro crime”.

Na verdade, de acordo com o artigo 437 do Código de Processo Penal, a necessidade de uniformização tem subjacente a circunstância de, no domínio da mesma legislação, existirem soluções opostas. Pressuposto essencial é, assim, a existência de uma alteração normativa que, determinando a pluralidade de decisões de sinal contrário, justifique a uniformização.

No caso vertente, não está em causa a tarefa de defesa da jurisprudência a que alude o artigo 446 do CPP, mas sim a necessidade de uma redefinição jurisprudencial na consequência da alteração introduzida pelo citado diploma legal e da existência de decisões contraditórias que sobre a mesma incidem.

Tratando-se de uma definição ex novo em face de uma nova redacção legal, igualmente é certo que o intérprete não pode relegar para o limbo toda uma evolução jurisprudencial que se suscitou sobre o tema. Evocando a mesma temos um primeiro momento de definição uniformizadora com o Acórdão de Uniformização de 14 de Fevereiro de 1992 que, chamado a pronunciar-se sobre o tema, proclama que são diversos e autónomos, entre si, o bem jurídico violado pela burla e o bem jurídico protegido pela falsificação, que se visam proteger com a incriminação, ou sejam, respectivamente, o património do burlado e a fé pública dos documentos necessária à normalização das relações sociais, como no n.º 4 ficou evidenciado;

A tal conduz o critério teleológico que se deve ter igualmente por adoptado no aludido n.º 1 do artigo 30.º do Código Penal (como aliás se referiu no n.º 4) para se operar a distinção entre unidade e pluralidade de crimes, determinando o conceito de pluralidade de crimes a partir da indagação sobre se o procedimento ou conduta do agente viola ou não disposições que consagram e protegem interesses diferentes.

Consequentemente, a mesma decisão fixou jurisprudência afirmando que, no caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação, e de burla, do artigo 228.º, n.º 1, alínea a), e do artigo 313.º, n.º 1, do Código Penal, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes.[19]

Decorridos alguns anos, face a nova alteração legal, nomeadamente a introduzida pelo Decreto-lei 48/95, novamente é suscitada a apreciação do Supremo Tribunal de Justiça que, chamado a escrutinar a melhor interpretação, reafirmou a posição anteriormente assumida, concluindo que, sendo distintos os bens jurídicos tutelados pelos tipos legais de crime de burla (o património) e de falsificação de documento (que não será tanto a fé pública dos documentos [. . .] mas, antes, a verdade intrínseca do documento enquanto tal (cf. F. Dias e Costa Andrade “ O legislador de 1982 optou pela descriminalização do crime patrimonial de simulação” Colectânea de Jurisprudência, ano VIII, t. III, p. 23) ou ‘a verdade da prova documental enquanto meio que consente a formulação de um juízo exacto, relativamente a factos que possam apresentar relevância jurídica’ (cf. Malinverni, Enciclopedia del Diritto, vol. XIII, pp. 632-633) e não se verificando, entre eles, qualquer relação de especialidade, subsidiariedade ou consunção nem se configurando nenhum dos crimes em relação ao outro como facto posterior não punível [. . .] deve continuar a concluir-se que a conduta do agente que falsifica um documento e o usa, astuciosamente, para enganar ou induzir em erro o burlado integra (suposta, naturalmente, a verificação de todos os elementos essenciais de cada um dos tipos), efectivamente, em concurso real, um crime de falsificação de documento e um crime de burla.»,,,,,,,,Por todo o exposto, não se vê qualquer razão para que a doutrina constante do acórdão fundamento deva ser alterada. Impõe-se, contudo, fazer uma actualização na referência aos artigos hoje vigentes.

Conclui a mesma decisão no sentido de uniformizar a jurisprudência na esteira do entendimento anteriormente seguido decidindo que  : «No caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256º, nº 1, alínea a), e do artigo 217º, nº 1, respectivamente, do Código Penal, revisto pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes.»-(Acórdão de Uniformização de Jurisprudência.º 8/2000. DR 119 SÉRIE I-A de 2000-05-23)

Sendo certo que a novidade legislativa justifica a necessidade de uma definição perante a oposição de julgados, não nos podemos alhear da forma como este Supremo Tribunal de Justiça delimitou a questão quer antes, quer depois, da alteração legal. Efectivamente, já após a alteração contida na lei ora em apreço, este Tribunal teve ocasião de se pronunciar diversas vezes sobre o tema e fê-lo no sentido de que não existiam razões para alterar o posicionamento constante do Acórdão de Fixação de Jurisprudência 8/2000[20]

IX

Da inovação legislativa consubstanciada na expressão inovadora “ou de preparar, facilitar executar ou encobrir outro crime” encontra respaldo alguma doutrina no sentido de que a mesma tem um significado preciso de consagrar a orientação que, em face do artigo 30 do Código Penal, entende que entre o crime de falsificação e o crime de burla se encontra um concurso aparente de crimes e, nomeadamente, que se configura a existência de uma consumpção. Assim,

Reportando-se à referida alteração, Paulo Pinto de Albuquerque avança, assertivamente, no sentido de que há concurso aparente (consunção) entre o crime de falsificação de documento e o crime de burla ou qualquer outro crime que tenha sido preparado, facilitado, executado ou encoberto por intermédio de documento falso, tendo o legislador propositadamente afastado a jurisprudência dos acórdãos de fixação de jurisprudência do STJ de 19.2.1992 e nº 8/2000…...Refere o mesmo Autor que com efeito, o legislador deixou claro, na revisão do CP de 2007, que a acção típica de falsificação pode ser querida exclusivamente com a intenção de preparar, facilitar, executar ou encobrir um crime, sendo este elemento subjectivo típico parte constitutiva do próprio ilícito subjectivo e não um factor de agravação (como sucede no crime de homicídio). Sendo assim, a punição nestes casos em concurso efectivo redundaria numa dupla punição do mesmo facto. A conclusão é inelutável, em face da opção de política criminal do legislador: o concurso é meramente aparente, sendo a punição do crime-instrumento de falsificação subsidiária da punição do crime-fim.[21]

Pelas mesmas coordenadas se orientam Victor Pereira e Alexandre Lafayette no seu Comentário ao Código Penal.[22] Por seu turno Helena Moniz revisitando um tema já por si anteriormente abordado[23] encontra agora um novo ponto de sustentação na alteração legal referindo que o crime de falsificação de documentos, ainda que o continuemos a entender como um crime que lesa um bem jurídico colectivo, o da segurança e fiabilidade no tráfico jurídico-probatório, é em muitas situações a "arma" utilizada para a prática de um outro ilícito. Isso mesmo acabou por se tomar mais explícito com a redacção dada ao art. 256.°, nº 1, do Código Penal, pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro. Na verdade, agora tomou-se claro que o documento falsificado pode servir para "preparar, facilitar, executar" um crime, ou ainda para "encobrir" um outro crime.

Esta alteração da norma facilita o meu entendimento tradicional - concurso aparente por consumpção. Desde 1993 (O Crime de falsificação de documentos. Da falsificação de documentos à falsidade intelectual) que tenho considerado que aquele que falsifica um documento, utilizando-o para a prática de um crime de burla, independentemente de a falsificação ter sido realizada com esse objectivo ou de ter sido dada essa finalidade ao documento falsificado num momento posterior, só deverá ser punido pelo crime de burla (considerando que a moldura da pena era suficientemente ampla para permitir ter este aspecto em conta aquando da determinação concreta da pena).[24]

Conclui a mesma Autora que não estando nós perante um concurso de normas, mas perante um concurso (aparente) com uma pluralidade de ilícitos, deve haver sempre uma análise caso a caso, para que se possa concluir se, em face da situação concreta e analisando globalmente o comportamento, estamos ou não perante uma unidade global de um único sentido de ilicitude, de desvalor jurídico-social; análise casuística que, afinal, acaba por diminuir o sentido de qualquer acórdão de fixação de jurisprudência o não entendimento de que não obstante serem distintos os bens jurídicos protegidos por ambos os tipos, se impor uma punição da mesma conduta por dois diferentes tipos legais de crime em clara violação do princípio do ne bis in idem.

Assim, a primeira questão que é proposta ao intérprete é a do significado jurídico da expressão agora aditada pela citada Lei. No que respeita, sufragando a lição de Figueiredo Dias, as palavras em que o legislador consagra o comando legal nem sempre se apresentam ausentes de qualquer equivocidade e, pelo contrário, muitas vezes denotam uma natureza polissémica face á qual se impõe a tarefa interpretativa. Por isso, o texto legal se torna carente de interpretação, oferecendo as palavras que o compõem, segundo o seu sentido comum e literal, um quadro de significações dentro do qual o aplicador da lei se pode mover e pode optar sem ultrapassar os limites legítimos da interpretação.…Na verdade, o intérprete move-se no âmbito das possíveis significações linguísticas do texto legal e tem de respeitar o sistema da lei, não lhe quebrando a harmonia, não lhe alterando ou rompendo a sua coerência interna. Só até onde chegue a tolerância do texto, e a elasticidade do sistema, é que o intérprete se pode resolver pela interpretação que dê à lei um sentido mais justo e mais apropriado às exigências de entre as várias acepções que a letra da mesma comporte e o sistema não exclua. É, pois, neste campo que o juiz pode conformar o sentido da norma, valorando as significações pelos critérios da recta justiça e da utilidade prática. No entanto, se é certo que o mesmo interprete está ligado aos juízos de valor – bem como aos sentidos e finalidades – da norma inscritos no pensamento do legislador histórico, é igualmente exacto que o mesmo se deve comprometer com a análise das novas exigências e realidades, entretanto surgidas, as quais não estiveram presentes no espírito originário do feitor da lei. Tal tarefa tem único limite que se consubstancia na impossibilidade de ultrapassar o teor literal da regulamentação e o seu campo de significações adequadas ao entendimento comum e normal das palavras constantes da norma a interpretar.

            Como refere Jeschek o sentido da lei, qualquer que ele seja, só pode expressar-se através de palavras. Estas são o objecto primacial da interpretação e, por isso, deve ser sempre respeitado o sentido literal possível como limite extremo da interpretação que tem como índice fundamental a legalidade.

Confrontados no caso concreto com a necessidade de recorrer aos diversos segmentos em que a norma se coloca para determinar o seu conteúdo exacto é permitido atribuir um lugar de eleição á própria vontade do legislador expressa no relatório que constitui o proémio do diploma de inovação legislativa. Por tal forma se respiga a afirmação de que “os crimes de falsificação são objecto de diversas alterações. O conceito de documento de identificação é reformulado, passando a designar-se como documento de identificação ou de viagem e a englobar o cartão de cidadão. No elemento subjectivo especial destes crimes, inclui-se a intenção de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime. O âmbito das condutas típicas é ampliado, referindo-se os hologramas e quaisquer componentes do documento, bem como o respectivo uso, detenção ou cedência. No caso específico de atestado falso, criminaliza-se a conduta de quem emita o documento ignorando se os factos dele constantes são verdadeiros”.

É indesmentível o intuito do legislador de incluir algo mais no âmbito do tipo legal, nomeadamente aquilo que denomina elemento subjectivo especial. Tal opção de vontade introduz algo de novo no âmbito da questão do concurso de crimes de burla e falsificação?

-Estamos em crer que não. Na verdade, fazendo apelo a Figueiredo Dias, em muitos tipos legais de crime existem especiais elementos subjectivos que não pertencem ao dolo do tipo enquanto conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo e que todavia, de forma essencial, co-determinam o desvalor da acção e definem a área de tutela típica. Em muitos tipos subjectivos de ilícito, ao dolo do tipo acrescem especiais elementos subjectivos. A distinção entre os elementos pertencentes ao dolo do tipo e os especiais elementos subjectivos do tipo agora em consideração está em que estes, ao contrário daqueles, não se referem a elementos do tipo objectivo de ilícito, ainda quando se liguem à vontade do agente de realização do tipo: o seu objecto encontra-se fora do tipo objectivo de ilícito, não havendo por isso, na parte que lhes toca, uma correspondência ou congruência entre o tipo objectivo e o tipo subjectivo de ilícito . E todavia, refere o mesmo Autor, também estes elementos cumprem a função de individualizar uma espécie de delito, de tal forma que, quando eles faltam, o tipo de ilícito daquela espécie de delito não se encontra verificado.

            Adianta Figueiredo Dias que a questão mais delicada suscitada por estes especiais elementos subjectivos (intenções, motivos, pulsões afectivas, elementos da atitude interna) reside no facto de tais elementos, pela sua própria natureza, não serem quase nunca recondutíveis a um qualquer acontecimento exterior mas, pelo contrário, se analisarem em dados e relações puramente ou predominantemente internos; sendo por isso muitas vezes difícil afirmar se um concreto elemento respeita ainda ao tipo de ilícito ou antes ao tipo de culpa.

            O critério deve ser que o elemento questionado pertence ao tipo de ilícito se ele serve, ainda, a definição de uma certa espécie de delito e se refere, por esta via, ao bem jurídico protegido, ou se visa ainda caracterizar o objecto da acção, a forma da sua lesão ou uma qualquer tendência relevante para o ilícito. [25][26]

Também na procura do traço distintivo daquele elemento refere Jeschek[27]  que ao dolo adicionam-se com frequência especiais elementos subjetivos do tipo, que são também componentes da ilicitude pessoal da acção, na medida em que caracterizam mais detalhadamente a vontade de acção do autor. Como modificações da vontade típica de acção, oferecem, da mesma forma que o dolo, a estrutura da finalidade e referem-se, como este, ao bem jurídico protegido, ao objeto da acção ou à forma e maneira da sua lesão. As denominações "elementos subjetivos da ilicitude" e "elementos subjetivos do tipo" são equivalentes: a primeira centra-se na inclusão de todo o grupo de elementos nos factores que caracterizam a ilicitude duma classe de delito, enquanto que a segunda indica que estes elementos se utilizam na estrutura do tipo.

Normalmente os elementos subjetivos do tipo servem para construir a ilicitude de uma determinada classe de delito, mas também se utilizam, com menor frequência, para desenhar figuras qualificadas ou privilegiadas a partir dum delito base.

            Nem todos os componentes dum preceito penal que descobrem factores anímicos são elementos subjetivos da ilicitude. Há que distinguir entre estes e os elementos do tipo de culpa. Decisivos para a delimitação são os critérios que servem para diferenciar com carácter geral entre a ilicitude e a culpa. Assim, os componentes subjetivos dum preceito penal unicamente interessam para a ilicitude quando caracterizam a vontade de acção do autor na medida em que afectam a forma de comissão do facto, o objeto da acção protegida pelo tipo ou o bem jurídico. Constituem, pelo contrário, elementos da culpa todas aquelas circunstâncias que caracterizam com mais precisão a formação da vontade do autor, porquanto situam numa luz mais, ou menos, negativa a sua atitude interna de que nasce a decisão da prática do facto

Por seu turno Roxin[28] refere que o problema dos elementos subjetivos do tipo não consiste na sua existência, mas na delimitação dos elementos subjetivos especiais da culpa. Não é possível localizar os elementos subjetivos no tipo aduzindo como fundamento que os mesmos fundamentam ou reforçam o juízo de desvalor social sobre o facto pois o início de desvalor social não distingue entre ilicitude e culpa. A ideia fundamental para a delimitação deve ser a circunstância que é decisivo para localizar sistematicamente os elementos subjetivos na ilicitude: a referência ao tipo delictivo. Um elemento subjetivo pode caracterizar o tipo delictivo ao referir-se ao bem jurídico protegido; mas também pode coadjuvar na determinação do tipo delictivo caraterizando o objecto da acção típica. Em contrapartida quando um elemento não se refere ao tipo delictivo, mas unicamente descreve motivos, sentimentos e atitudes internas independentes daquele (e agravantes por regra geral), trata-se de elemento da culpabilidade

Assim, assumida a natureza e especificidade do elemento especial subjectivo agora introduzido no tipo legal, importa equacionar da sua relevância para o tema que suscita a nossa atenção e aqui temos por adquirido que, se alguma ilação se pode extrair, é a de que o adicionar do segmento de preparação facilitação, execução ou encobrimento de outro crime ao tipo legal deve ser interpretado como o reforço da tutela do bem jurídico caucionado pelo crime de falsificação, afastando a relevância da instrumentalidade, ou do critério do crime meio ou crime instrumento, como determinante da afirmação de um concurso aparente de infracções entre a burla e a falsificação.

            Em suma, entende-se que do reforço do elemento subjectivo do tipo não se pode extrair qualquer argumento no sentido de que o legislador pretendeu afirmar o traço comsumptivo entre os dois crimes e, bem pelo contrário, se alguma referência se pode intuir na vontade do legislador é de que o crime de falsificação mantem a sua autonomia, não sendo absorvido, não obstante a circunstância de se destinar a preparar, facilitar executar ou encobrir outro crime”. Na verdade, não pode ser entendida de outra forma a afirmação de que o crime de falsificação se mantem na sua completude, e sem qualquer absorção, não obstante constituir o meio de executar outro crime. 

Configurado, assim, o tema da presente unificação de jurisprudência estamos em crer que mantêm inteira validade os pressupostos que informaram as decisões de uniformização que nasceram à luz da anterior redacção do artigo 256 do Código Penal, nomeadamente o Acórdão de 19 de Fevereiro de 1992 e o Assento 8/2000 de 4 de Maio de 2000. Igualmente é linear a conclusão de que a alteração legislativa introduzida pela Lei 59/2007, e relativa ao artigo 256 do Código Penal, não contem qualquer virtualidade que fundamente uma inflexão na interpretação contida nas duas referidas decisões de uniformização de jurisprudência.

Nestes termos fixa-se jurisprudência no sentido de que:

“A alteração introduzida pela Lei 59/2007 no tipo legal do crime de falsificação previsto no artigo 256 do Código Penal, estabelecendo um elemento subjectivo especial, não afecta a jurisprudência fixada nos acórdãos de fixação de jurisprudência de 19 de Fevereiro de 1992 e 8/2000 de 4 de Maio de 2000 e, nomeadamente, a interpretação neles constante de que, no caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256º, nº 1, alínea a), e do artigo 217º, nº 1, do mesmo Código, se verifica um concurso real ou efectivo de crimes”

Custas a cargo do recorrente.

Taxa de Justiça 4 UC

Lisboa, 5 de Junho de 2013

Santos Cabral (relator)

Oliveira Mendes

Souto de Moura

Maia Costa (vencido, nos termos da declaração de voto que junto)

Pires da Graça

Raul Borges (vencido nos termos da declaração de voto que junto)

Isabel Pais Martins

Manuel Braz (vencido de acordo com a declaração de voto que junto)

Pereira Madeira

Santos Carvalho

Henriques Gaspar (com a declaração concordante com a posição do Senhor Conselheiro Manuel Braz relativamente à rejeição do recurso; ultrapassada a questão da admissibilidade, voto no sentido dos Senhores Conselheiros Maia Costa e Raul Borges)

Rodrigues da Costa

Arménio Sottomayor (com declaração de que entendo que inexiste oposição de acórdãos pelas razões expostas no voto do Exmo. Conselheiro Manuel Braz; ultrapassada esta questão, voto o acórdão)

Noronha Nascimento.

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[1] Conf. “ Unidade e Pluralidade de Infrações – Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz” pag. 91 e seg.

[2] Conf. “Teoria do Concurso em Direito Criminal” pag 84 e seg
[3] Ibidem pag  91
[4] Ibidem pag 97
[5] Refere Eduardo Correia que posto que uma actividade possa desenvolver-se em momentos sucessivos sem que por isso tenha de supor-se uma pluralidade de resoluções certo é todavia que a distância temporal que os pode separar não é ilimitada. É preciso não perder de vista que a pluralidade de actos só não importa a pluralidade de determinações na medida em que cada um deles se analisar num puro explodir (déclencher) mais ou menos automático da carga volitiva correspondente ao projecto querido, não presidindo a essa descarga, ou não presidindo necessàriamente, aquela actividade de avaliação de motivos que referimos. Ora, a experiência e as leis da psicologia ensinam-nos que, em regra, se entre diversos actos medeia um largo espaço de tempo, a resolução que porventura inicialmente os abrangia a todos se esgota no intervalo da execução, de tal sorte que os últimos não são já a sua mera descarga, mas supõem um novo processo deliberativo.
[6] Consequentemente a burla é, ainda, um crime material ou de resultado, pois que apenas se consuma com a saída das coisas ou dos valores da esfera de disponibilidade do sujeito passivo ou da vítima na qual existe uma participação desta, uma vez que a saída das coisas ou dos valores decorre de um comportamento do sujeito passivo.
[7] Figueiredo Dias Direito Penal Parte Geral Tomo I pag 978 e seg.
[8] Questões actuais em torno de uma vexata questio: o crime continuado em estudos em Homenagem do Professor Figueiredo Dias pag 325 e se g
[9] Da Unidade e Pluralidade de Crimes pag 139 e seg
[10] Sendo certo que só para o primeiro grupo de hipóteses deverá ter lugar uma punição nos termos do art. 77.°, enquanto para o segundo deverá intervir uma punição encontrada na moldura penal cabida ao tipo legal que incorpora o sentido dominante do ilícito e na qual se considerará o ilícito excedente em termos de medida (concreta) da pena
[11] Direito Penal Parte Geral pag 990 e seg.
[12] Acrescenta Figueiredo Dias que “problema discutível pode ser o de saber se isto é assim suposta a unidade de resolução, ou se ainda poderá abranger hipóteses de dupla resolução, eventualmente espaçadas no tempo, Cremos exacta, para certas constelações, esta segunda alternativa: se alguém toma a decisão de fabricar documento falso para se, proporcionando-se a situação, burlar com ele alguém; e se esta eventualidade se verifica mais tarde relativamente a uma certa vítima, implicando assim uma segunda resolução ou uma renovação da resolução anterior, ainda aí parece deverem ser os princípios do concurso impuro que devem reger a situação. Ponto é sempre, naturalmente, que se não verifique um alargamento da actividade criminosa ou não venha a verificar-se uma multiplicação das vítimas” (obra citada pag 1018 e seg) .
Todavia, em sentido diverso se pronuncia já Helena Moniz (RPPC 2000 PAG 466) referindo que “Concluímos pois, que se a falsificação de documentos é realizada como meio para atingir um crime de burla o agente apenas deverá ser punido pela prática de um crime de burla dada a relação de consunção e sempre que se tratar de uma falsificação de um dos documentos previstos no nº3 deste artigo será um caso de consunção impura). No entanto, a consunção apenas se verifica se houver uma unidade de resolução criminosa, isto é, o agente tem que falsificar para burlar. Se, pelo contrário, existirem duas resoluções criminosas autónomas (uma de falsificar e uma posterior de burlar, por acaso utilizando o anterior documento falsificado) quer sob o ponto de vista temporal, quer sob o ponto de vista psicológico, então sim estaremos perante um concurso real.
Assim, a questão da existência de concurso aparente de infracções coloca-se em função de diversos tipos legais de crime violados ou do mesmo tipo legal violado diversas vezes e a existência de uma unidade ou pluralidade de resoluções”.

[13] Na verdade, na medida em que a lei exija para a existência do delito a intenção do agente de se apropriar do valor de uma coisa alheia e como tal o puna, ela abrange e consome todas aquelas condutas do mesmo sujeito, ainda que em si criminosas, que caibam dentro dessa intenção e não importem por outro lado um aumento do dano causado pelo primeiro delito. ………
[14] E isto, refere Eduardo Correia, “independentemente de que as condutas posteriores tivessem sido de antemão pensadas ou sejam só um desenvolvimento da intenção de apropriação que se requer para a punição deste crime. Assim, por exemplo, se alguém furta um animal e mais tarde, para afastar de si as suspeitas do furto, o mata, não se poderá falar de um concurso efectivo de crime de furto e de dano. Pelo menos quando a intenção de apropriação que presidiu à subtracção do objecto correspondente à vontade de alcançar sobre ele todos os poderes, como se proprietário fosse, e, portanto, também o poder de o destruir, danificar, etc. Se então e por outro lado o prejuízo objectivamente causado não aumenta em função da realização desta actividade, não se encontra fundamento para ao lado do furto considerar existente um outro crime, como o de dano: o conteúdo criminal deste acha-se já consumido pela punição do furto e, portanto, deve considerar-se excluída a aplicação da disposição que o prevê e pune.
E o que se diz do furto pode repetir-se em relação ao abuso de confiança, à burla etc”.
[15] Assim, a punição do furto não consome a actividade do agente através da qual a coisa furtada é posta em penhor, pois com tal conduta acrescenta-se ao dano anteriormente produzido um outro: o que se causa ao penhorista. Em princípio, pode mesmo afirmar-se que logo que uma pessoa diferente da ofendida pelo primeiro crime é prejudicada pela posterior actividade do agente, fica excluída a possibilidade de a punição desta ser consumida pela daquele
[16] Obra citada pg 140 e seg e, essencialmente, nota de rodapé pag 144
[17] Tratado de Derecho Penal pag 656 e seg.
[18] O Concurso de normas em direito penal pag 83
[19] Na mesma decisão refere-se, como pressuposto da uniformização decretada, que, para se concluir pela existência do concurso efectivo de crimes torna-se necessário, além da pluralidade de tipos violados, o recurso ao critério da pluralidade de juízos de censura (dolo ou negligência) traduzido por uma pluralidade de resoluções criminosas autónomas.

[20] Acordão de 13-12-2007 Relator Santos Cabral; Acordão de 05-12-2007 Relator Maia Costa; Acordão de 18-10-2007 Relator Santos Carvalho; Acordão de 26-10-2011 Relator Pires da Graça.
[21] Comentário do Código Penal pag 675
[22] Codigo Penal Anotado e Comentado pag 664
[23] O Crime de falsificação de documentos. Da falsificação de documentos à falsidade intelectual e RPCC Ano 10.fadc3 Julho-Setembro de 2000 pag 461 e seguintes.
[24] RPPC Ano 21 abril-Junho pag 326 e seg
[25] Segundo a sua estrutura material são as "intenções" os especiais elementos subjectivos que mais próximos se encontram do dolo do tipo. A intenção pode constituir apenas uma das formas que assume o elemento volitivo do dolo, a forma que chamámos do dolo intencional ou dolo directo de primeiro grau. Em casos destes a "intenção" não assume evidentemente nenhuma autonomia como especial elemento do tipo subjectivo de ilícito: ela pertence integralmente ao (e esgota-se no) dolo do tipo. Noutros casos, porém, o tipo de ilícito é construído de tal forma que uma certa intenção surge como uma exigência subjectiva que concorre com o dolo do tipo ou a ele se adiciona e dele se autonomiza. Isso sucede, como acima se sublinhou, sempre que a intenção tipicamente requerida tem por objecto uma factualidade que não pertence ao tipo objectivo de ilícito
[26] Direito Penal Parte Geral Tomo I paga 349 e seguintes
[27] Tratado de Derecho Penal pag 285
[28] Derecho Penal Parte General pag 314 e seguintes

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Voto de vencido

            A questão das relações entre os crimes de falsificação e de burla já foi objeto de fixação de jurisprudência por este Supremo Tribunal de Justiça.

No acórdão de 19.2.1992, decidiu-se: “No caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do art. 228º, nº 1, a), e do art. 313º, nº 1, respetivamente, do Código Penal, verifica-se concurso real ou efetivo de crimes.”

Esta jurisprudência foi reafirmada, após a reforma penal de 1995, pelo Assento nº 8/2000, que apenas alterou as referências aos tipos legais, doravante art. 256º, nº 1, a), quanto ao crime de falsificação, e art. 217º, nº 1, quanto ao crime de burla.

Com a Lei nº 59/2007, de 4-9, a redação do corpo do nº 1 do art. 256º sofreu uma profunda modificação. Onde antes se dizia: “Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo…”, aditou-se “…ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime…”.

            O crime de falsificação inclui agora essa intenção como elemento subjetivo típico (adicional ao dolo genérico), como elemento integrante do próprio tipo legal de crime, que reveste as características de crime de intenção ou de resultado cortado.

            Donde resulta que, quando a falsificação é um crime-meio, pré-direcionado à preparação, facilitação, execução ou encobrimento de outro crime, como por exemplo o de burla, a punição pelos dois crimes redundaria na punição da mesma conduta duas vezes, ou seja, seria uma violação frontal do princípio non bis in idem.

            Entre a falsificação e a burla estabelece-se agora uma relação de consunção ou de subsidiariedade (concurso aparente), devendo ser punido o crime-fim (a burla), a não ser que caiba ao crime-meio (a falsificação) pena mais grave.

            Inevitável é, pois, concluir que a doutrina do Assento nº 8/2000 caducou, com a Lei nº 59/2007, de 4-9, não podendo ser reabilitada por nova decisão deste Supremo Tribunal.

            Revejo, assim, a posição tomada no acórdão de 5.12.2007, proc. nº 3989/07, por mim relatado.

                                                          Maia Costa

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               Declaração de voto de vencido.

       Acompanho a declaração de voto do Exmo. Conselheiro Eduardo Maia Costa.

       Divergindo, como se diverge, da solução proposta, afigura-se-nos perfeitamente dispensável, e estulta seria outra posição, porque perfeitamente inconsequente e mesmo inútil, alinhar qualquer argumentação a nível do que a doutrina e jurisprudência têm debitado a propósito da temática do concurso de infracções, maxime, no concreto plano ora em causa, que nada traria de novo, até porque o acórdão aborda tais questões de forma plena.

       Daí que, a assumida postura de intervenção e de desprendida afirmação de sinal contrário, seja a de alinhavar algumas dúvidas a partir da consideração de posições jurisprudenciais assumidas em casos semelhantes ou paralelos, em que estão em equação os mesmos crimes, em conjunção, ou não, com outros, maxime, emergentes de “regiões normativas especiais”, de modo a tentar perceber a pelo menos aparente diferença de tratamento de qualificação a nível concursal.

        A solução ora proposta a norma, resultante de fixação de jurisprudência, situa-se numa linha de continuidade e de reafirmação/confirmação da doutrina fixada no domínio da versão originária do Código Penal de 1982, pelo Acórdão do Plenário das secções criminais deste Supremo Tribunal de 19 de Fevereiro de 1992 (publicado no Diário da República, I Série-A, n.º 84, de 09-04-1992, pp. 1674 a 1677), que, por unanimidade, decidiu que «No caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 228.º, n.º 1, alínea a), e do artigo 313.º, nº 1, respectivamente, do Código Penal, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes», e reeditado oito anos depois, face à nova versão do Código Penal, introduzida pela terceira revisão do Código Penal, operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15-03, entrado em vigor em 1-10-1995, pelo Assento n.º 8/2000, de 04-05-2000 (publicado no Diário da República, I Série-A, n.º 119, de 23-05-2000, pp. 2309 a 2311), assim indevidamente cognominado, pois que a figura processual dos assentos foi banida a partir da revogação do artigo 2.º do Código Civil pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12-12, e que fixou jurisprudência em termos similares, de tal modo que novas são apenas as referências às novas normas incriminadoras: «No caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256.º, n.º 1, alínea a), e do artigo 217.º, n.º 1, respectivamente, do Código Penal, revisto pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes», sendo de anotar que tais coincidentes soluções assentam sobretudo na afirmação da diversidade dos bens jurídicos tutelados nos crimes de falsificação e de burla, diversidade esta que afastaria a possibilidade de invocação de violação do princípio ne bis in idem material, posição, aliás, cuja constitucionalidade foi certificada pelo Tribunal Constitucional, e ora com a presente solução.

       Entretanto, em decisão obtida em plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 17-02-2000, proferido no processo n.º 344/99, da 5.ª Secção, in Sumários de Acórdãos do STJ, Gabinete dos Juízes Assessores, n.º 38, Fevereiro de 2000, p. 82, foi deliberado “O decidir-se que o crime complexo (peculato) absorve os restantes crimes (burla e falsificação) não torna falsa a tese de estes se encontrarem numa relação de concurso real ou efectivo”.

       E para melhor se entender o contexto em que a afirmação é feita, acrescenta-se: “A circunstância de, em decisão preliminar, se ter reconhecido a existência de oposição de acórdãos, não obsta a que, ao proceder-se à audiência final, se deva reapreciar tal matéria e se possa decidir em sentido contrário”. 

      O AUJ n.º 8/2000, que na formulação da fixação de jurisprudência se distanciou do anterior apenas na indicação dos preceitos em jogo, teve cinco votos de vencido, sendo um expresso e os demais por mera adesão, aí se invocando a violação do princípio ne bis in idem, salientando-se então que “A falsificação faz parte do tipo legal da burla e não pode ser autonomizada, em relação à burla de que faz parte, sob pena de violação do princípio constitucional de non bis in idem”.     

      No domínio de vigência do Acórdão de 1992, a partir da redacção dada ao artigo 217.º do Código Penal pela revisão de 1995, verificaram-se desvios à doutrina por aquele firmada, de que são exemplos:

      Acórdão de 27-01-1998, processo n.º 696/97, CJSTJ 1998, tomo 1, p. 181, em cujo sumário se pode ler: a fabricação de módulos de cheques integra o crime p. p. pelo art. 256, n.º 3, do CP, visto, por si só, não incorporarem qualquer valor.

Quando tal falsificação, seguida do preenchimento daqueles módulos, se insira numa conduta dirigida à prática de um crime de burla não assume autonomia, relevando apenas como factor agravativo de tal crime, para efeitos de doseamento da pena, à semelhança do que acontece com os crimes de falsificação de bilhetes ou de cartões de contribuinte, efectuada com a mesma finalidade. 

       Acórdão de 3-12-1998, recurso n.º 728/98, com um voto de vencido, CJSTJ 1998, tomo 3, p. 231 - o crime de burla consome o crime de falsificação, quando aquele seja cometido através deste – no mesmo sentido o acórdão de 13-05-1999, processo n.º 495/97, BMJ n.º 487, p. 215.

       Igualmente no sentido de concurso aparente, citando o anterior, o acórdão de 07-01-1999, processo n.º 953/98-3.ª Secção, BMJ n.º 483, p. 24, donde se extrai: o crime de peculato consome os de burla e falsificação, quando dos actos que configuram burla e daqueles que definem falsificação fica delineada uma actividade que, no seu conjunto e no seu escopo, visa e logra uma apropriação ilegítima, traduzida num enriquecimento ilegítimo do agente-funcionário à custa do património da entidade pública lesada e de um seu prejuízo, com obtenção para o mesmo agente de um benefício ilegítimo. 

 

     “Certificando” a constitucionalidade da interpretação feita no AUJ 8/2000, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 303/2005, de 08-06-2005, processo n.º 242/2005, da 3.ª Secção (publicado no Diário da República, II Série, n.º 150, de 05-08-2005, p.p. 11177 a 11182), concluiu que «as normas dos artigos 30.º, n.º 1, 217.º, n.º 1, e 256.º, n.º 1, do Código Penal, na interpretação que delas faz o acórdão recorrido, no sentido em que permite a punição em concurso efectivo pelos crimes de burla e falsificação de documentos, assente na distinção dos bens jurídicos tutelados pelos respectivos tipos legais, não ofende a Constituição, nomeadamente os artigos 2.º e 29.º, n.º 5, da lei fundamental».

     O acórdão recorrido sobre que incidiu o recurso de constitucionalidade era o acórdão deste Supremo Tribunal de 03-03-2005, que defendera a interpretação daquelas normas no sentido em que permitia aquela punição desde que aquela falsificação tenha sido o artifício concretamente utilizado, confirmando a jurisprudência fixada pelo AUJ 8/2000, assentando a sua argumentação na circunstância de os bens jurídicos tutelados serem diferentes nos crimes em presença, nessa base afastando a tese do concurso aparente.

     A questão foi analisada à luz do princípio ne bis in idem material, por o caso dos autos não colocar “um problema de violação do princípio constitucional da proibição do «duplo julgamento» na vertente processual, pois o que está em causa é a alegada violação do princípio por «dupla penalização» do arguido, no âmbito do mesmo processo e por um só acto de julgamento, aspecto cuja cobertura pelo enunciado do princípio no n.º 5 do artigo 29.º da Constituição não é isenta de dúvidas”.

     Apoiando-se no decidido nos acórdãos n.ºs 102/99, 244/99 e 566/2004, adiantou que «…nada impede que o legislador configure o sistema sancionatório penal quanto ao concurso de infracções em matéria criminal segundo um critério de índole normativa e não naturalística, de modo que ao «mesmo pedaço de vida» corresponda a punição por tantos crimes quantos os tipos legais que preenche, desde que ordenados à protecção de distintos bens jurídicos, como é seguramente o caso dos que prevêem a burla e falsificação de documentos».

     O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 375/2005, de 07-07-2005, processo n.º 337/2005, da 2.ª Secção (publicado no Diário da República, II Série, n.º 182, de 21-09-2005, p.p. 13677 a 13684), versando acórdão da Relação de Lisboa, de 20-01-2005, que aplicara o mesmo AUJ 8/2000, veio a seguir de muito perto o anterior acórdão, concluindo da mesma forma não ser violado o princípio ne bis in idem material quando distintos os bens jurídicos tutelados nos crimes em presença e decidindo não julgar inconstitucional a norma extraída das disposições conjugadas dos artigos 256.º, n.º 1, alínea a), e 217.º, n.º 1, do Código Penal, segundo a qual no caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla se verifica concurso real de crimes.

     O acórdão tem uma declaração de voto, em que se esclarece que foi votada a decisão, mas não a fundamentação, podendo ler-se aí que “a plena compreensão do elemento subjectivo especial da falsificação [a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo] permite aproximar, na perspectiva do bem jurídico protegido, este crime da burla. Também a burla comporta um elemento subjectivo especial (para além do dolo) - a intenção de enriquecimento ilegítimo -, cuja configuração tem pontos de convergência com o da falsificação (embora o benefício almejado nesta não tenha de ser patrimonial). Por isso, recorrendo à lapidar fórmula preconizada por Figueiredo Dias para definir o concurso aparente, legal ou impuro de crimes, entendo ser defensável, no caso sub judicio, que «o conteúdo ou a substância criminosa do comportamento é esgotantemente abarcado pela aplicação ao caso de um só dos tipos violados» (Direito Penal, Sumários e Notas das Lições do Prof. Doutor Jorge Figueiredo Dias ao 1.º ano do Curso Complementar da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra de 1975-1976, pp. 102 e 103…). Deste modo, pode concluir-se que, em determinados casos, se verifica uma consunção, sendo o agente punível apenas por burla”.

    E mais adiante refere: “ (…) nesta perspectiva, a falsificação, se consumida pela burla, passaria a ser ponderada como circunstância (agravante) geral na determinação da pena concreta, à semelhança do que sucede, por exemplo, quanto à violação de domicílio no âmbito do furto qualificado, por determinação expressa do artigo 204.º, n.º s 1, alínea f) e 3, do Código Penal”.

     Entretanto, este Supremo Tribunal fixou jurisprudência sobre matéria semelhante, estando em causa concurso de crime fiscal com os crimes de falsificação e de burla previstos no Código Penal.

     Assim, o Acórdão n.º 3/2003 - Processo n.º 735/1999 -, de 7 de Maio de 2003, (publicado no Diário da República, I-A Série, n.º 157, de 10-07-2003, pp. 3890 a 3906), fixou a seguinte jurisprudência:

    «Na vigência do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, com a redacção original e a que lhe foi dada pelo Decreto - Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro, não se verifica concurso real entre o crime de fraude fiscal, previsto e punido pelo artigo 23.º daquele RJIFNA, e os crimes de falsificação e de burla, previstos no Código Penal, sempre que estejam em causa apenas interesses fiscais do Estado, mas somente concurso aparente de normas com prevalência das que prevêem o crime de natureza fiscal».

     O acórdão teve três votos de vencido, sendo o vencimento expresso pelo relator vencido (os demais acompanharam as razões aduzidas nessa declaração), que afirma no final que aplicaria, no que diz respeito à questão do concurso do crime de burla com o crime de falsificação, a jurisprudência fixada em 1992 e 2000.     

     Já anteriormente este Supremo Tribunal se pronunciara no sentido de concurso aparente, como se retira do acórdão de 19-03-1998, proferido no recurso n.º 1280/97, publicado na CJSTJ1998, tomo 1, p. 235, e no BMJ n.º 475, p. 261, versando caso de factura falsa, em que se alinham as três posições possíveis relativamente à questão da relação concursal em presença:

1. A que considerava apenas o crime de fraude fiscal - artigo 23.º do RJIFNA -, existindo uma relação de especialidade entre os crimes de fraude fiscal e de falsificação e um concurso aparente entre o crime de fraude fiscal e de burla; posição defendida por Figueiredo Dias e Costa Andrade, RPCC, pág. 71, e em parte pelos acórdãos do STJ de 3-10-1996 e de 1-10-1997, processos n.º s 678/96 e 1219/96.

2. A que considerava um crime de burla agravada e um crime de falsificação de documento, não se verificando qualquer concurso aparente entre a fraude fiscal e o crime de burla, por serem diversos os bens jurídicos, posição defendida por Nuno Sá Gomes, Ciência e Técnica Fiscal, n.º 376, p. 22 e ss., e no acórdão do STJ de 15-12-1993, processo n.º 45029, in Scientia Ivridica, T. XLIII, 1994, n.º s 247/249, p. 141 e ss.

3. A que defendia a existência de concurso real entre as infracções comuns de burla e falsificação e a infracção fiscal do artigo 23.º do RJIFNA, posição defendida nos acórdãos de 11-10-95 e de 04-10-1995, processos n.º s 47.938 e 47.891.

     Assumida foi a posição, apoiando-se em Eduardo Correia, RLJ, Ano 100, pp. 306, 323 e 371, Figueiredo Dias e Costa Andrade, na publicação citada e acórdão do STJ de 1-10-1997, processo n.º 1219/96, de adesão à solução do concurso aparente dos crimes de burla, falsificação e fraude fiscal, com prevalência do crime de fraude fiscal.

     Sobre a matéria, no BMJ consta o seguinte sumário:

     «Quando a conduta do agente de diversas infracções é subsumível ao domínio da lei criminal, nomeadamente, aos crimes de falsificação e burla, e ao domínio penal tributário, nomeadamente ao crime de fraude fiscal, verifica-se um concurso aparente entre os crimes de burla, falsificação e fraude fiscal, com prevalência do crime de fraude fiscal».

     E na CJSTJ, o que segue:

     «Pratica um crime de fraude fiscal, previsto e punido no art. 23.º do RJIFNA, e não também em acumulação real, um crime de falsificação de documento e outro de burla agravada, quem, enviando à administração do IVA uma factura falsa, por respeitar a negócios inexistentes, pede e obtém daqueles serviços o quantitativo do referido imposto, correspondente a tais negócios, sem que, previamente, tenha entregue nos Cofres do Estado».

     No acórdão de 02-07-1998, processo n.º 219/98, CJSTJ 1998, tomo 2, p. 230, afasta-se o crime de abuso de confiança fiscal e afirma-se: apenas comete o crime de fraude fiscal o arguido que utiliza facturas falsas que sabe serem falsas para efeito de dedução de IVA e diminuição de rendimento colectável para efeito de diminuição do IRC – o valor do imposto é artificiosamente alterado, mediante o recurso a falsificações de facturas. 

     No acórdão de 08-10-1998, processo n.º 1.471/97, CJSTJ 1998, tomo 3, p. 189, foi decidido: “No crime de fraude fiscal, p. p. pelo artigo 23.º do DL 20-A/90, na redacção do DL 394/93, a existência de falsificação corresponde a um elemento típico daquele ilícito quando a sua ocorrência resulte da ocultação de factos ou valores que devem ser inseridos nas declarações apresentadas. Nestas circunstâncias verifica-se um concurso aparente entre o aludido crime de fraude fiscal e o crime de falsificação de documento, p. p. pelo artigo 256.º, n.º 1, do Código Penal.

     No acórdão de 02-03-2000, processo n.º 810/99, da 5.ª Secção, in Sumários de acórdãos do STJ, Gabinete dos Juízes Assessores, n.º 39, Março de 2000, p. 63, após afirmar que “embora no domínio do concurso entre os crimes de fraude fiscal, falsificação de documentos e burla, se perfilem na doutrina e na jurisprudência três teses” (…), “é de perfilhar o entendimento que considera apenas a existência do crime de fraude fiscal, p. p. no art. 23 do RJIFNA, verificando-se uma relação de especialidade entre os crimes de fraude fiscal e de falsificação, e um concurso aparente entre o crime de fraude fiscal e o de burla”.       

  

     Comparando a fixação de jurisprudência de 2003 com a de 1992 e 2000, ressalta a ideia de que a solução de qualificação jurídica quando em concurso crimes de falsificação e de burla, estando em causa sem dúvida a tutela de bens jurídicos diversos, como efectivo ou aparente, variará conforme estejam em causa questões do domínio geral em que os prevaricadores são sujeitos que se movem no âmbito do direito penal comum, ou do foro dos interesses do Estado na cobrança de impostos.

     Face à diversidade dos bens jurídicos protegidos na falsificação e na burla, a verdade é que o legislador para situações com alguma similitude, e estando inclusive, em causa a concorrência dos dois crimes, a par de outro, consagra regimes diversos, a duas velocidades, uma no plano do direito penal comum e outra no direito penal especial, secundário, como se a falsificação de um qualquer livro, factura, documento e o respectivo uso fossem realmente diversas e não pudessem, inclusive, por hipótese não meramente académica, serem praticadas pelo mesmo real sujeito passivo; afinal, nada impede que um burlão como tal qualificado à luz dos padrões do direito penal clássico, não possa ser, concomitantemente, devedor de impostos, assumir o papel de um free rider, que goza dos benefícios concedidos pela colectividade, mas que foge à comparticipação na respectiva realização através do pagamento de impostos. Com o devido respeito, parece-nos não se justificar a adopção de dois pesos e duas medidas na previsão de norma para uma mesma conduta, independentemente do que se visa e de quem possa vir a ser o lesado/prejudicado com a conduta, consoante se esteja no quadro do direito penal clássico e do direito penal secundário, sendo que ali o sujeito prejudicado é determinado, preciso, concretizado e aqui os interesses postergados pela atitude do free loader são indeterminados, difusos, enfim, não individualmente encabeçados, não se podendo olvidar que por força de vários factores, como novas tecnologias, complexificação do sistema fiscal, progrediram os fenómenos de evasão ilegítima e fraude fiscal, «cujas proporções revelam uma danosidade muitas vezes superior à dos crimes comuns», como se dizia já há quase 20 anos, no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 394/93, de 24-11.

     Com a incriminação da fraude fiscal visa-se proteger o erário público de fraudulenta diminuição da receita tributária decorrente do não pagamento de quantitativos de prestações tributárias a que o autor da infracção está obrigado.

     Por outro lado, há que tomar em consideração que a falsificação ou viciação de livros, programas ou ficheiros informáticos e quaisquer outros documentos ou elementos probatórios exigidos pela lei tributária, é tida no crime fiscal de fraude qualificada, não no quadro de uma relação concursal, real e efectiva, mas apenas como circunstância de acumulação, agravativa, como decorre do disposto no artigo 104.º, n.º 1, alínea d), do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, igualmente o sendo o respectivo uso, sabendo-os o agente falsificados ou viciados por terceiro - alínea e).

     Mais. De acordo com o n.º 3 do mesmo artigo 104.º, os factos previstos nas alíneas d) e e) do n.º 1 do preceito, ou seja, a falsificação e o uso de documento falsificado não são puníveis autonomamente, salvo se pena mais grave lhes couber. (Note-se que o artigo 104.º é aplicável à fraude contra a segurança social, nos termos do n.º 3 do artigo 106.º, como, aliás, acontece desde o Decreto-Lei n.º 140/95, de 14-06).

     O que parece significar que em 2001 o legislador retornou a um panorama visível no quadro do artigo 451.º, § único, do Código Penal de 1886, que previa o crime de burla por defraudação, em que um dos meios de defraudação era o emprego de alguma falsificação de escrito (2.º) e de acordo com o § 1.º «A pena mais grave de falsidade, se houver lugar, será aplicada”, proposição geralmente entendida como consagrando uma relação de alternatividade entre os crimes de burla e de falsificação, quando o primeiro é cometido por meio de uma falsidade. Contra esta solução Maia Gonçalves, Código Penal Português, 4.ª edição, Livraria Almedina, 1979, ponto 4, p. 765. 

    E de acordo com o n.º 4 do artigo 87.º do RGIT, que prevê como crime tributário comum, o crime de burla tributária, exclui-se igualmente de punição autónoma a falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante, salvo se pena mais grave lhes couber.

    O crime de fraude fiscal, tal como o de burla é um “crime de resultado cortado” e Figueiredo Dias e Costa Andrade, “O crime de fraude fiscal no novo direito penal tributário português (Considerações sobre a factualidade típica e o concurso de infracções)”, RPCC, ano 6, p. 71, debruçando-se sobre as relações de concurso entre a fraude fiscal do RJIFNA e os crimes de falsificação de documentos e de burla do Código Penal, a propósito do concurso do crime de fraude fiscal com a falsificação de documentos, adiantam que aquele está numa relação de concurso aparente ou legal com a falsificação e acrescentam: “Para além disso, também não haverá espaço para um concurso efectivo (real ou ideal) com a burla, mas tão só para um concurso legal ou aparente com esta infracção. E isto depois de se ter valorado a produção do resultado como fundamento autónomo de agravação da pena. Os casos de efectiva ocorrência do resultado lesivo – os únicos em que obviamente tem sentido questionar a aplicabilidade da norma incriminatória da burla – hão-de, assim, ser tratados sob o regime da medida da pena, em que o resultado esgota relevância jurídico-penal”.

    A não autonomização da falsificação é solução legislativa presente em outro segmento do direito penal secundário, concretamente no Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, que estabelece o regime dos crimes contra a economia e contra a saúde pública.

    No crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, p. p. pelo artigo 36.º, do referido Decreto-Lei, o meio fraudulento consubstanciado em utilização de documento falsificado configura o preenchimento do tipo legal, fora do quadro de uma relação concursal a proteger bens jurídicos diversos - n.º 1, alínea c).  

    No crime de fraude na obtenção de crédito, p. p. pelo artigo 38.º, do mesmo diploma, o uso de documentos falsos integra a descrição do tipo como componente naturalística de um comportamento visando determinado objectivo - n.º 1, alíneas a) e b).

    A falsificação de um qualquer documento não pode ser vista como crime apenas invocável com autonomia quando praticada no domínio do direito penal comum, mas já fenómeno de segunda linha, não primacial, quando em causa estiver o seu aproveitamento no plano do direito penal secundário, sobretudo se conduzido a ludibriar o Estado.

     

    A clara opção legislativa assumida pelo legislador nos artigos 87.º e 104.º do RGIT num quadro concursal em que estão em causa bens jurídicos distintos e emergentes mesmo de duas ordens normativas diferentes, não pode deixar de constituir um sinal, um guia de interpretação, não se vislumbrando obstáculos intransponíveis a que possa servir na interpretação das normas do direito penal comum.

      

     Como vimos, o argumento apresentado como incontornável na tese que afasta a possibilidade de consunção, o fundamento avançado para a impossibilidade de afirmação do concurso aparente, quer nos acórdãos uniformizadores do STJ de 1992 e de 2000, quer nos dois acórdãos do Tribunal Constitucional de 2005, está na diversidade dos bens jurídicos tutelados nas duas incriminações.

     O Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciou no sentido de no crime de falsificação de documento se poder verificar a confluência, concorrência de bens jurídicos diferentes, inclusive os protegidos em parte com a incriminação da burla. 

     Com efeito, parece não poder afirmar-se, sem mais, de modo definitivo, que os bens jurídicos tutelados sejam completamente autónomos, perfeitamente distintos, incontornavelmente puros na sua conformação e substanciação, sem hipóteses de margens de contacto, conexão, interligação ou interpenetração, sendo pelo menos discutível a apontada como inultrapassável diversidade de bens jurídicos protegidos na burla e na falsificação, como se refere no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2003, de 16-01-2003, proferido no processo n.º 609/02 (Diário da República, I Série – A, n.º 49, de 27-02), em que estava em causa a admissibilidade de constituição de assistente em processo por crime de falsificação de documento.

     Procedendo o acórdão à análise do tipo legal da falsificação de documento, após referir-se que “(…) é um crime contra a vida em sociedade, em que é protegida a segurança e confiança do tráfico probatório, a verdade intrínseca do documento enquanto tal, como bem jurídico”, e que é “um crime intencional em que o agente necessita de actuar com «intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo», não se exigindo, no entanto, uma específica intenção de provocar um engano no tráfico jurídico”, afirma-se: “Mas é um crime em que deve ser devidamente enfatizada a essencialidade da existência ou possibilidade de um prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, sendo que o benefício e o prejuízo podem ser de ordem económica ou moral.

    E é sublinhado que «exigindo-se que o agente actue com intenção de causar um prejuízo ou de obter um benefício ilegítimo mantém-se o crime de falsificação de documentos ainda em estreita ligação com o crime de burla».

   Com efeito, é um crime intencional: para que as condutas desenhadas nas alíneas a) a c) do n.º 1 do artigo 256.° sejam puníveis é necessário que o agente tenha actuado com «intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo». É, pois essa especial inclinação da vontade do agente que faz toda a diferença, determinando (se existente) a punição que, assim, fica dela dependente”.

     E termina, afirmando: “Não pode, assim, dizer-se que com o tipo legal em causa só se quis proteger o bem jurídico público acima referido”.

      

     Sobre esta aproximação dos bens jurídicos protegidos nos dois tipos legais em presença e os pontos de convergência dos elementos subjectivos de um e outro, se pronunciara Maria Fernanda Palma na declaração de voto no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 375/2005, supra citado.

      

      A perfeição do tipo só se alcança verificada a presença da dita intenção de prejudicar outra pessoa, violando interesses patrimoniais de particulares.

     Quando com a falsificação se procure obter benefício ilegítimo, com prejuízo de outra pessoa, o tipo legal protege não só o bem colectivo segurança e confiança no tráfico probatório, mas também o património do concreto prejudicado com ela. O caso concreto dirá que reais bens jurídicos tutelados estão em causa.

     Como se refere no acórdão uniformizador n.º 1/2003, a circunstância de no tipo do artigo 256.º do Código Penal ser protegido um interesse de ordem pública não afasta, sem mais, a possibilidade de, ao mesmo tempo, ser também imediatamente protegido um interesse susceptível de ser corporizado num concreto portador, aquele cujo prejuízo o agente visava, assim se afirmando a legitimidade material do ofendido para se constituir assistente.

     Suposta a unicidade de resolução criminosa o ilícito puramente instrumental (crime-meio) estará contido no crime-fim; a valoração autónoma e integral do crime-meio representaria uma violação da proibição jurídico-constitucional da dupla valoração.

     Conclui-se que a introdução do novo segmento teve em vista realçar a não punição autónoma como crime meio da falsificação, que é aproveitada na concretização da burla, desde que se não verifique entre os dois comportamentos desconexão temporal significativa, tudo dependendo da real fisionomia do quadro factual em presença.

     Assim sendo, distanciamo-nos da solução adoptada no acórdão de 26-10-2011, processo n.º 1441/07.8JDLSB.L1.S1, em que interviemos como adjunto, não se deixando de anotar que no caso concreto aí versado se teve em atenção a renovação da reiteração criminosa praticada, como se retira da parte final do segmento em que a questão foi tratada: “Procede, em ambas as ilicitudes (a de burla e a de falsificação, e entre ambas,) o concurso real de crimes, atenta a renovação da reiteração criminosa praticada”.

 Raul Borges

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            Penso que se não verificam, na presente situação, os pressupostos do recurso para fixação de jurisprudência previsto no artº 437º do Código de Processo Penal (CPP).

O acórdão recorrido, proferido em 15/12/2011 pela Relação de Lisboa no proc. nº 29/04.0JDLSB.L1 apreciou a seguinte situação:

Pessoas que haviam sido condenadas no Tribunal Judicial da comarca de Oeiras, em 24/03/2006, pela prática, além do mais, de 6 crimes de falsificação de documento p. e p. pelo artº 256º, nºs 1, alíneas a) e c), e 3, do CP, em concurso efectivo com 6 crimes de burla qualificada p. e p. pelos artºs 217º, nº 1, e 218º, nº 2, alínea a), do mesmo código, após a entrada em vigor da nova redacção desse artº 256º, dada pela Lei nº 59/2007, considerando que dela resultava não ser efectivo, mas aparente, o concurso entre os crimes de falsificação de documento e burla, requereram a reabertura da audiência, ao abrigo do artº 371º-A do CPP, a fim de ser aplicado o novo regime, que assim lhes seria mais favorável.

            Desatendida pelo tribunal de 1ª instância a pretensão de verificação do alegado concurso aparente, foi interposto recurso para a Relação de Lisboa, que, no acórdão recorrido, depois de identificar a questão que lhe era colocada como sendo a de saber se a redacção dada pela Lei nº 59/2007 ao nº 1 do artº 256º do CP excluía o concurso efectivo entre os crimes de falsificação e burla, afastando desse modo a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça através do acórdão nº 8/2000, decidiu que assim não era, afirmando:

«Na nossa perspectiva, o legislador não se envolve nessa questão.

O que vem dizer o legislador é que comete o crime de falsificação, não apenas quem tem intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, mas também, a partir de 2007, quem, mesmo sem nenhuma dessas intenções, falsificar documento para preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime. (…).

Como refere o STJ no acórdão citado, o que releva em sede de concurso real é a natureza distinta dos bens jurídicos tutelados pelas respectivas normas incriminatórias e essa natureza não foi beliscada pela alteração legislativa».

O acórdão fundamento, proferido também pela Relação de Lisboa, em 29/06/2010, no proc. nº 4395/03, no âmbito de recurso interposto de decisão que condenara o arguido pela prática, em concurso efectivo, de um crime de falsificação de documento p.  e p. pelo artº 256º, nºs 1, alíneas c) e e), e 3, e  outro de burla p. e p. pelos artºs 217º, nº 1, e 218º, nº 2, alínea a), decidiu que, sendo a falsificação de documento o meio de realizar o crime de burla, o concurso era aparente, considerando:

«(…) este crime-meio, nestas circunstâncias, não deve ser punido em concurso efectivo com o crime-fim. O crime-meio deve servir apenas de factor de agravação da pena dentro da moldura com que deva ser punido o crime de burla, com o qual está em concurso aparente.

A punição autónoma do crime de falsificação representaria uma dupla valoração (…).

É esta a posição actual de Figueiredo Dias (…), que se entende seguir, contra a doutrina firmada nos dois acórdãos de uniformização de jurisprudência do STJ: o publicado no DR, I, de 9/4/1992 e o de 4/5//2000, publicado no DR, I, de 23/5/2000, que reafirmou, no âmbito da vigência da redacção de 1995 do CP, a jurisprudência que já tinha sido fixada no ac. anterior.

Desde que o último destes acórdãos foi publicado, surgiram pelo menos sete novos dados que servem de fundamentação suficiente da divergência relativamente àqueles acórdãos de fixação de jurisprudência (art. 445/3 do CPP).

Um é a anotação de Helena Moniz publicada na RPCC 2000/3/457 (…).

Outro é uma pequena nota de Figueiredo Dias, no Comentário Conimbricense, Coimbra Editora, Tomo II, 1999, págs. 109/110 (…).

Um terceiro é a posição tomada por Figueiredo Dias e Costa Andrade quanto ao concurso aparente entre o crime de fraude fiscal (crime de falsidade) e a burla (O crime de Fraude Fiscal no Novo Direito Penal Tributário Português: Considerações sobre a Factualidade Típica e o Concurso de Infracções, na RPCC, 1996, págs. 71 e seguintes) que haveria a tentação de considerar transferível para o direito penal comum, como entendeu Luís Duarte D’ Almeida, no seu “Concurso de Normas” em Direito Penal, Almedina, Março de 2004, págs. 71/73 (…).

O quarto dado é a posição do referido Luís Duarte D’ Almeida que (…) defende que a punição pelo regime do concurso efectivo de crimes (de falsificação e de burla) é excessiva (…).

O quinto é a (…) posição de Figueiredo Dias, na nova edição das suas lições de Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2ª edição, Agosto de 2007, em que este Professor expõe, de forma nova e fundamentada, a sua adesão expressa à tese do concurso aparente entre burla e falsificação com a intenção de burlar exclusivamente uma determinada pessoa (…).

O sexto dado novo é a alteração ocorrida com a Lei 59/2007, de 04/09.

A redacção anterior dizia: 1 – Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo: …

Agora diz-se: 1 – Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime: …

Para este novo elemento chama a atenção Paulo Pinto de Albuquerque (…), que a propósito escreve (sendo o sétimo dado novo):

Há concurso aparente (consunção) entre o crime de falsificação de documento e o crime de burla ou qualquer outro crime que tenha sido preparado, facilitado, executado ou encoberto por intermédio de documento falso, tendo o legislador propositadamente afastado a jurisprudência dos acórdãos de fixação de jurisprudência do STJ de 19/02/1992 e 8/2000 (…).

Pelo que antecede, conclui-se que o arguido deve ser punido pelo concurso aparente dos crimes de burla qualificada e de falsificação (a burla consome a falsificação)».

Como se vê, o acórdão recorrido adere expressamente à jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça através do acórdão 8/2000, afirmando, ainda que por remissão para essa decisão uniformizadora, a existência de concurso efectivo entre os crimes de falsificação de documento e burla, mesmo na situação, que ali está em causa, em que a falsificação é levada a cabo com intenção de realizar a burla.

Contrariamente, o acórdão fundamento decidiu que, no caso de a conduta do agente preencher a previsão dos crimes de falsificação e burla, sendo a falsificação meio de realização da burla, a situação é de concurso aparente, divergindo expressamente daquele acórdão uniformizador, apresentando como razões para essa divergência posteriores posições doutrinárias e a alteração introduzida no nº 1 do artº 256º do CP pela Lei nº 59/2007.

Parece, pois, fora de dúvida que os acórdãos recorrido e fundamento estão em oposição um com o outro. Mas relativamente a uma questão sobre a qual existe já jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, que é, repete-se, a de saber se é efectivo ou aparente o concurso entre os crimes de falsificação de documento e burla, na situação em que a falsificação é praticada com intenção de realizar a burla. Essa é que é a verdadeira questão de direito sobre a qual os acórdãos recorrido e fundamento conflituam. A afirmação que cada um faz acerca do alcance da alteração introduzida pela Lei nº 59/2007 é instrumental, ou melhor, fundamento da decisão tomada relativamente à referida questão. O acórdão recorrido aceita essa jurisprudência; o acórdão fundamento diverge dela.

Sendo assim, a oposição que releva não é a existente entre os acórdãos recorrido e fundamento, mas sim a configurada entre a jurisprudência já fixada e o acórdão que dela diverge. Havendo já jurisprudência fixada a resolver o conflito entre dois acórdãos, o caso não se situa no âmbito do artº 437º do CPP, pois então não se coloca a questão de fixar jurisprudência sobre ele, visto essa jurisprudência já existir. O que nesse caso há é uma decisão contra jurisprudência fixada, situação prevista e solucionada no artº 446º do mesmo código. Dizendo de outro modo, se o conflito jurisprudencial já foi resolvido por acórdão de fixação de jurisprudência, a questão que se pode colocar é só a da reavaliação dessa jurisprudência. E a divergência, com o alcance previsto no artº 446º, não deixa de o ser pelo facto de se fundar em alteração legislativa que pretensamente teria invalidado a jurisprudência fixada.

Concluindo, o recurso que poderia ser interposto para o Supremo Tribunal de Justiça era do acórdão fundamento, ao abrigo do artº 446º, no prazo próprio e por quem tivesse legitimidade, podendo, por essa via, e nunca pela que foi seguida, reexaminar-se a jurisprudência fixada pelo apontado acórdão nº 8/2000.

Nesta perspectiva, este recurso para fixação de jurisprudência deveria ser rejeitado, por inadmissibilidade, nos termos do artº 441º, nº 1, do CPP.

 Manuel Braz