Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4672/16.6T8LRS.L1.S2
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ROSA RIBEIRO COELHO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
ARRENDAMENTO PARA FINS NÃO HABITACIONAIS
DETERIORAÇÃO
PRESUNÇÃO DE CULPA
ÓNUS DA PROVA
LOCATÁRIO
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
Data do Acordão: 11/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / REVISTA EXCEPCIONAL.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / LOCAÇÃO / OBRIGAÇÕES DO LOCATÁRIO / RESTITUIÇÃO DA COISA LACADA.
Doutrina:
- Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, Arrendamento Urbano, Novo Regime Anotado e legislação complementar, anotação ao artigo 1044.° do Código Civil, Quid Júris, 2006 ; Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, 2014, p. 80;
- Menezes Cordeiro, Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, 2014, p. 80;
- Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 7ª edição, p. 89;
- Pereira Coelho, Direito Civil, Arrendamento, 1977, p. 156;
- Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, I, 4ª edição, p. 553;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 4ª edição, p. 381.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 629.º, N.º 2, ALÍNEA D) E 672.º, N.º 1, ALÍNEAS A), B) E C).
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1044.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 15-02-2001, RELATOR SIMÕES FREIRE, IN CJSTJ, TOMO I, P. 121;
- DE 26-01-2006, PROCESSO N.º 05B2346, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 28-02-2008, PROCESSO N.º 08B158, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

- DE 27-09-2007, PROCESSO N.º 9173/2006-6, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I – Ocorrendo na vigência de um contrato de locação deteriorações inerentes a uma utilização prudente da coisa locada, o locatário não tem de promover a sua recuperação, cabendo ao locador suportar as consequências desse desgaste.

II – Ocorrendo perda ou deteriorações que não possam ser consideradas como resultado de uma utilização prudente, responde por elas o locatário, salvo se resultarem de causa que lhe não seja imputável, nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização da coisa.

III – Esta responsabilidade do locatário pressupõe a sua culpa, que, em todo o caso, se presume.

IV – Cabe, por isso, ao locatário o ónus da prova dos factos impeditivos da sua culpa.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DA JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL



I - AA, S.A., intentou ação declarativa contra BB, S.A., pedindo a condenação desta a:

- reduzir/reconhecer o valor da renda mensal devida pelo arrendamento em causa nos autos proporcionalmente à área ora efetivamente locada, no valor de € 45.800,26;

- reembolsar a autora dos valores pagos a este título em excesso entre a data do sinistro, Março de 2015, e a data do acerto de rendas efetuado pela autora, Junho de 2015, no valor total de € 34.336,08, acrescidos de juros vencidos à taxa legal e dos vincendos desde a citação e até integral pagamento.

Alegou, em síntese nossa, que:

- desde Janeiro de 2010 tomou de arrendamento (não habitacional) à ré quatro módulos espaciais com a área que, devido a posterior aditamento, se cifra em 32.410,65 m2, com uma renda mensal que, à data do sinistro que entretanto ocorreu, era de € 57.245,62, que devido ao IVA totalizava € 70.412,11;

- em 3.3.2015 ocorreu no módulo 4, por motivos estritamente fortuitos, um incêndio que o destruiu, tendo a partir daí ficado reduzido aos restantes módulos o objeto do contrato;

- também a partir daí a autora reduziu proporcionalmente a renda que recebia de uma sua sublocatária, mas sem que a ré houvesse corrigido a renda do contrato referido em a), que continuou a ser paga integralmente, isto apesar da correspondência entre ambas trocada;

- a perda parcial da coisa locada permite que se exija a redução proporcional da renda.


A ré contestou sustentando a improcedência da ação e, reconvindo, pediu a condenação da autora a pagar-lhe € 80.117,52, com juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal de juros comerciais, quantia aquela correspondente ao valor mensal de € 11.445,36 que a autora, unilateralmente, deixou de pagar a partir de Junho de 2015 e até Dezembro do mesmo ano, mas que lhe são devidos, a título de lucros cessantes, já que a redução da renda unilateralmente praticada pela reconvinda decorreu de incêndio que lhe é imputável.


Houve réplica e, realizado o julgamento, foi proferida sentença que:

- condenou a ré a reconhecer a redução da renda devida pela autora, no âmbito do contrato dos autos, para € 45.800,26, mais IVA, por força da perda definitiva do módulo 4, a partir de 3.3.2015;

- condenou a ré a restituir à autora a quantia de € 33.597,67, com juros à taxa legal em cada momento vigente desde a citação até integral pagamento;

- condenou a autora a pagar à ré, a título de indemnização, a quantia de € 80.117,52, com juros de mora em cada momento vigente desde a citação até integral pagamento.


    Apelaram ambas as partes e a Relação de Lisboa julgou os dois recursos improcedentes.


   A autora AA, S.A., trouxe a este STJ o presente recurso de revista excecional, tendo apresentado alegações onde pede a revogação do acórdão recorrido na parte em que mantém a sua condenação a indemnizar a ré senhoria a título de lucros cessantes e, bem assim, que se fixe jurisprudência no sentido de que o inquilino apenas responde pela perda do locado se esta perda resultou de facto que lhe seja imputável e a título de culpa.

Formula, para tanto, as conclusões que passamos a transcrever:

1 - No presente processo, a A. Reconvinda, e ora Recorrente AA COATINGS, adiante identificada apenas por A., foi condenada a pagar à R. Reconvinte, e ora Recorrida, BB, S.A., a importância EUR. 80.117,52, a título de lucros cessantes pela perda do locado, identificado como módulo 4 do Pólo Industrial do …, no qual era arrendatária, sendo Senhoria, a Recorrida;

2 - 0 Acórdão da Relação de Lisboa, proferido nos presentes autos, julgou improcedente o recurso de Apelação apresentado pela A., tendo confirmado a decisão proferida em lª instância, o mesmo concluiu nos seguintes termos: "Conclui-se assim que: Ocorrendo um incêndio numa unidade fabril, durante o período de laboração da empresa Autora, e estando tal unidade arrendada pela Ré à Autora, é a esta, enquanto inquilina que incumbe o ónus de provar que o incêndio não ocorreu por culpa sua. Não tendo ficado provadas as circunstâncias em que o incêndio deflagrou e se propagou, é a Autora enquanto inquilina, responsável pela indemnização à senhoria dos danos verificados como consequência do incêndio.

Tais danos integram não só o vertente dos donos emergentes — a destruição e perda total do local arrendado — como a dos lucros cessantes — os montantes que a senhoria receberia do arrendamento de tal imóvel.

Assim e tudo visto, julgam-se improcedentes ambas as apelações, confirmando-se a decisão recorrida. Custas por Autora e Ré na proporção do respectivo decaimento."

3 - A 1ª Instância também havia condenado a A., e da mesma forma e com o mesmo fundamento, sendo certo que a Relação alterou a matéria de facto, mas manteve a decisão de direito;

4 - Ambas as doutas decisões, na parte em que condenam a A. a indemnizar a R. a título de lucros cessantes, se estribam no facto de, "não tendo ficado provadas as circunstâncias em que o incêndio deflagrou e propagou, é a A. enquanto inquilina responsável pela indemnização à Senhoria dos danos verificados como consequência do incêndio";

5 - A matéria de facto julgada provada nas instâncias encontra-se fixada, já não podendo ser objecto de alteração pelo Supremo Tribunal de Justiça;

6 - A douta decisão da Relação de Lisboa de que ora se recorre, interpreta o disposto no art. 1044º do Código Civil como atribuindo ao locatário o ónus de provar que a perda do locado não resultou de causa que não lhe seja imputável, nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização do mesmo locado; ou seja, desde que a coisa locada se perca ou deteriore, o mesmo locatário será sempre o responsável, ainda que nada se prove sobre a origem do facto que conduziu à referida perda ou deterioração;

7 - Com base neste entendimento, o Acórdão da Relação de Lisboa condenou a A. a pagar uma indemnização à R. por lucros cessantes decorrentes da perda do imóvel, em termos que melhor se encontram descritos na decisão recorrida;

8 - Decidiu a Relação de Coimbra, por douto Acórdão que transitou em julgado em 02.11.2011, cfr. certidão electrónica com o código de acesso "5WH5-USYK-VMZG-UTX0", doc.1 que se junta, com entendimento totalmente diferente do que serviu de base ao Acórdão recorrido, sendo certo que o Acórdão da Relação de Coimbra se desenvolve directamente no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito tratada no âmbito do presente processo, e do presente recurso (vide artigo 629º, nº 2, alínea d), do CPC), pelo que este é admissível.

9 - Com efeito, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que se encontra em contradição com o Acórdão ora recorrido, entende, em interpretação do citado art. 1044º do CC, que o Inquilino não é responsável [pela perda do locado] se as deteriorações provierem de facto seu mas de facto não culposo.

10 - Mais entende o Tribunal da Relação de Coimbra, por Acórdão transitado em julgado na data de 02.11.2011, emitido no âmbito do processo nº l521/08.2TBVIS, cuja certidão ora se junta, o seguinte (vide sumário do Acórdão na página 1):

"Sumário do Acórdão:

1 - A obrigação de manutenção e restituição da coisa no estado em que o arrendatário a recebeu (art.º 1043º, n.º 1, do CC) não afecta a regra acerca do risco inerente ao direito de propriedade, que corre por conta do locador - se a casa ficar destruída, total ou parcialmente, por caso fortuito ou de força maior, o locatário não é obrigado a reconstruí-la ou a repará-la.

2 - O arrendatário também não é responsável pela reparação se as deteriorações do prédio arrendado provierem de facto seu mas não culposo.

3 - Ao conceito de caso de força maior são atribuídas as características da imprevisibilidade e da inevitabilidade e como consequência a impossibilidade de cumprir, constituindo uma causa exoneratóría de responsabilidade do devedor integrável numa categoria genérica mais ampla de facto não imputável ao obrigado (n.º 1 do art.º 790º, do CC).

4 -(...)”

11 - Os Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Coimbra, a fls.15 do aresto, escrevem o seguinte:

         "{...) 8. A obrigação de manutenção e restituição da coisa no estado em que o arrendatário a recebeu (art.g 1043?, n.g 1, do CC) não afecta a regra acerca do risco inerente ao direito de propriedade, que corre por conta do locador e não do locatário -se a casa ficar destruída, total ou parcialmente, por caso fortuito ou de força maior, o locatário não é obrigado a reconstruí-la ou a repará-la. Mas a norma especialmente aplicável ò situação dos autos, no que tange à deterioração/destruição verificada no prédio arrendado, é a do art.g 1044?, do CC, disposição que, como vimos, respeita à perda (total ou parcial) ou às deteriorações do prédio não exceptuadas no art.- 10432, 0u seja, às deteriorações que não sejam provocadas peio desgaste do tempo ou inerentes a uma prudente utilização do prédio arrendado.

Tal regime é idêntico ao do art.g 1269g, do CC, em relação ao possuidor de boa fé, mas a lei presume aqui a culpa do locatário, que, segundo se depreende do art.g 1044?, do mesmo diploma, só não responderá pela perda da coisa ou por aquelas deteriorações se provar que provierem de causa que não lhe é imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização do prédio.

É certo que - como se alega no recurso - Pires de Lima e Antunes Varela defendem que "a expressão imputável ao locatário ou a terceiro, usada no art° 1044º,    significa apenas devida a facto do locatário ou de terceiro, pois não é necessária que haja culpa do locatário na perda ou deterioração da coisa", mas a solução afigura-se duvidosa, porquanto, além do mais, a imputabilidade do facto é no Código Civil, em geral, uma imputabilidade a título de culpa (cf., v. g., os art.gs 1136$ e 1188g, a respeito da responsabilidade do comodatário e do depositário, respectivamente), como seria injusto o agravamento excepcional da responsabilidade do locatário a que conduziria aquela interpretação.

Daí que também se propenda para o entendimento segundo o qual o inquilino não é responsável se as deteriorações provierem de facto seu mas de facto não culposo. (...)"

12 - O Tribunal da Relação de Coimbra entendeu ainda o seguinte, sempre no Acórdão- fundamento do presente recurso:

"{...) 9. Decorre da materialidade provada [maxime, II. 1. alíneas j), k) e r}] que o incêndio em apreço ocorreu por facto não imputável à Ré a título de culpa, ainda que sob a forma negligente.

O apurado circunstancialismo ligado ao evento danoso dos autos verificou-se "sem culpa" da Ré, desconhecendo-se, de resto (e nem sequer foi alegado - desde logo, por ter sido diverso o enquadramento fáctico gizado e apresentado nos autos pelos AA.) o que terá causado ou potenciado o "curto-àrcuito" na instalação eléctrica que originou o incêndio, sendo certo que apenas ficou assente nos autos a verificação de um simples curto-circuito, o que, por si só, desacompanhado de outros elementos, não permite qualquer imputação a título de culpa, mas, sim, a afirmação da inexistência de culpa por parte da arrendatária, conclusão que não deixa de ser corroborada pelos próprios AA., nomeadamente, na sua resposta à contestação/reconvenção (cf, sobretudo, itens 5g e 7- do dito articulado). No caso em análise, atendendo aos factos apurados, o locatário não é responsável pelo circunstancialismo que determinou o incêndio e consequentes danos, estando-se, assim, perante situação sujeita à regra acerca do risco inerente ao direito de propriedade, que, como se referiu, corre por conta do locador. {...)"

13 - O Tribunal da Relação de Coimbra veio entender que, no âmbito da interpretação do artigo 1044º do CC, se mostra necessário ter em conta que o locador, ao explorar a sua propriedade pelo contrato de arrendamento, assume o risco inerente ao direito de propriedade, risco esse que corre por sua conta, e não por conta do locatário;

14 - 0 Tribunal da Relação de Coimbra defendeu ainda que a norma prevista no art.1044º do CC, que respeita à perda total ou parcial do locado, é idêntica ao regime do art.1269º do CC, em relação ao possuidor de boa fé (art.º 1263º do CC: O possuidor de boa fé só responde pela perda ou deterioração da coisa se tiver procedido com culpa).

15 - Os Acórdãos em apreço, são assim, perfeitamente contraditórios: enquanto o art.1044º do CC, no entendimento do Acórdão ora recorrido, conduziria a que o locatário seja responsabilizado pela perda do locado se não lograr provar que os factos que originaram a mesma perda não lhe são imputáveis, já no entendimento do Acórdão-fundamento, o locatário só responde pela perda ou deterioração da coisa se tiver procedido com culpa, em similitude com o regime previsto no artigo 12632 do CC, aplicável ao possuidor de boa fé, cabendo, portanto, ao proprietário demonstrar a verificação de culpa por parte do locatário;

16 - No entendimento do Tribunal da Relação de Coimbra, não se verifica no artigo 1044º do CC a existência de um ónus da prova atribuído ao locatário, no sentido de este ter de demonstrar que a perda ou deterioração da coisa não resultaram de causa que não lhe seja imputável, sob pena de condenação e consequente obrigação de indemnizar o Senhorio;

17 - 0 Tribunal da Relação de Coimbra entende mesmo que seria injusto o agravamento excepcional da responsabilidade do locatário, a entender-se que o artigo 1044º do CC consagraria um ónus de prova do mesmo locatário, atendendo aos regimes previstos no Código Civil, nos artigos 1136º e 1188º, a respeito da responsabilidade do comodatário e do depositário respectivamente;

18 - Daí que o Tribunal da Relação de Coimbra também propenda para o entendimento segundo o qual o inquilino não é responsável se as deteriorações provierem de facto seu mas de facto não culposo;

19 - No caso dos presentes autos, nem sequer se provou a autoria do facto originador do sinistro de incêndio, desconhecendo-se em absoluto o que o originou, e se teve, ou não, mão humana, vide facto provado sob o nº 15, aditado pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público de …;

20 - Resulta da contradição entre os dois Acórdãos que, no entendimento do Tribunal da Relação de Lisboa a A. é responsável perante a R. pelo pagamento dos lucros cessantes pela perda do locado, mas que no entendimento da Relação de Coimbra seria obviamente absolvida, por não ter sido feita qualquer prova quanto à origem do sinistro de incêndio;

21 - Encontram-se preenchidos os demais requisitos, dos quais depende a admissibilidade do presente recurso de revista excepcional, previsto no artigo 672º do CPC;

22 - Está em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito. Com efeito, não se conhecendo as causas do incêndio em apreço nos presentes autos, resulta evidente que o entendimento sobre o disposto no art. 1044º, do CC, é decisivo para a melhor decisão da causa, sendo certo que, a aplicar-se a argumentação do Tribunal da Relação de Coimbra atrás transcrita, a A. seria sempre absolvida do pedido reconvencional da R., dado que não se fez qualquer prova, nem sobre a origem do incêndio, nem muito menos sobre eventual culpabilidade da A. no mesmo;

23 - Com efeito, o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa adoptou as conclusões do Ministério Público da Secção Única do DIAP de Alenquer, no processo NUIPC 156/15.8GAALQ, vide facto provado nº 15 pelo próprio Acórdão recorrido, no qual se refere que não foi possível sequer apurar se efectivamente se deveu, ou não, a uma conduta humana, o deflagrar do citado incêndio, limitando-se a retirar a conclusão de que, na falta de prova sobre os factos, a Inquilina é responsável em termos de presunção da culpa.

24 - A questão em apreço é manifestamente complexa, de difícil resolução, impondo uma cuidada ponderação em termos de se obter um consenso jurisprudencial que possa orientar senhorios e inquilinos, no âmbito dos respectivos contratos de arrendamento e atendendo à necessidade de ambas as partes conhecerem os riscos inerentes à perda, parcial ou total, do locado.

25 - É assim indesmentível a relevância jurídica da questão da interpretação do artº 1044, do CC, para a boa decisão da causa.

26 - Estão em causa interesses de particular relevância social. O contrato de arrendamento é um instrumento essencial do comércio jurídico, da actividade económica e do direito à habitação. A interpretação das consequências jurídicas decorrentes da perda do locado são absolutamente essenciais e assim relevantes socialmente.

27 - Existem em vigor milhares e milhares de contratos de arrendamento, quer no âmbito da actividade comercial/industrial, quer no âmbito habitacional, como é do conhecimento público e notório.

28 - Saber se o artigo 1044º do CC consagra uma presunção de culpa do Arrendatário em caso de perda do locado, sem que o Senhorio tenha de fazer qualquer prova sobre os factos que lhe estão na origem e sobre a sua imputabilidade culposa ao Arrendatário, é da maior relevância social, podendo mesmo considerar-se que o art.1044º do CC pode ser entendido como consignando um regime profundamente contrário aos princípios gerais do direito civil português, no qual a responsabilidade civil decorre, em geral, da imputação de um facto culposo ao seu agente, constituindo os casos de responsabilidade objectiva uma evidente excepção ao regime geral;

29 - Referir-se, como o faz o douto Acórdão recorrido, que a matéria relevante do artigo 1044º, não integra uma responsabilidade objectiva, mas antes uma atribuição do ónus da prova ao inquilino, é, salvo o devido respeito, uma questão quase de semântica, pois, na prática, como se vê no presente processo, o Arrendatário foi condenado apenas porque é Arrendatário, objectivamente Arrendatário, mas se fosse um comodatário, ou um depositário, por exemplo, já teria de ser o proprietário a fazer prova da sua culpa na ocorrência dos factos geradores do sinistro, ainda que todo o contexto fosse exactamente igual;

30 - Para o mesmo facto, e para a mesma imputabilidade, soluções diferentes, apenas porque num caso existe um comodatário/depositário, e no outro um arrendatário.

31 - Atribuir ao arrendatário o ónus da prova, no âmbito do artigo 1044º do CC, de demonstrar que a perda do locado não se deveu a facto que lhe seja imputável, constitui no caso, uma quase responsabilidade objectiva, sem qualquer fundamento de suporte;

32 - A questão que foi resolvida contraditoriamente nos dois Acórdãos em apreço é susceptível de criar fortes dúvidas e probabilidade de decisões jurisprudenciais divergentes em diversos processos judiciais de natureza cível, podendo mesmos suscitar forte controvérsia, atendendo a que o Inquilino pode ser objecto de condenação em responsabilidade civil pela perda de um locado, ainda que materialmente possa nada ter a ver com os factos geradores do sinistro, e apenas porque poderá não ter condições para provar o que quer que seja sobre o mesmo sinistro;

33 - A apreciação ora solicitada não visa apenas a defesa do interesse, no caso, da A., mas antes a protecção do interesse geral na boa aplicação do direito, atendendo as enormes consequências que para o Inquilino inocente poderão resultar da interpretação do artigo 1044º, do CC, no que se refere ao ónus da prova.

34 - Fica demonstrada a particular relevância social da necessidade de uma interpretação uniforme de jurisprudência que clarifique as decisões contraditórias ora em apreço, atendendo ao elevadíssimo número de contratos de arrendamento que existem em Portugal e a enorme relevância que tem na vida dos cidadãos, sendo certo que no artigo 1044º do CC não se expressa que exista um ónus da prova a fazer pelo Arrendatário na demonstração da sua inocência, ao contrário do que decidiu a Relação de Lisboa, em contradição com o que decidiu a Relação de Coimbra;

35 - O Acórdão da Relação de Lisboa ora recorrido está em contradição com o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra atrás identificado, e já transitado em julgado, de acordo com a certidão junto aos autos, inserindo-se ambos no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, não tendo sido proferido Acórdão de Uniformização de Jurisprudência com ele conforme, vide art.672º, nº 1, do CPC.

36 - Com efeito, os Acórdãos têm interpretações contraditórias entre si, na interpretação do artigo 1044º do CC, da atribuição do ónus da prova dele decorrente e da necessidade, ou não, da imputação do facto ao agente, numa perspectiva de culpa, que o Acórdão da Relação de Coimbra entende exigível e que o Acórdão da Relação de Lisboa dispensa, dando-se por reproduzido tudo quanto foi exposto quanto a esta matéria.

37 - Atendendo ao disposto no artigo 672º, nº 2, do CPC, encontram-se indicadas no presente recurso, as razões pelas quais a apreciação da questão, e a consequente uniformização de jurisprudência, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, as razões pelas quais os interesses em causa são de particular relevância social, e os aspectos de identidade que determinam a contradição alegada entre dois Acórdãos de Relações diferentes, juntando-se, às presentes alegações, certidão do acórdão-fundamento com o qual o Acórdão se encontra em oposição.

38 - Estão assim preenchidas as condições para que o Supremo Tribunal de Justiça verifique os pressupostos previstos no artigo 672º, nº 1, do CPC, decidindo em conformidade, designadamente nos termos do artigo 672º, nº 3, do CPC.

39 - A interpretação que melhor se adequa ao disposto no artigo 1044º do CC, em articulação com os princípios gerais da responsabilidade civil no direito português, designadamente, face aos regimes previstos nos artigos 1136º e 1188º do CC, regimes nos quais não existe qualquer dúvida de que o ónus da prova sobre a responsabilidade pela perda da coisa objecto do contrato, não impende nem sobre o comodatário, nem sobre o depositário, devendo entender-se que, no âmbito do artigo 1044º do CC, tal ónus também não impende sobre o arrendatário, como é o entendimento do Tribunal da Relação de Coimbra.

40 - Sufragado que seja, pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça, o entendimento do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra sobre a interpretação do artigo 1044º do CC, deverá ser a A. Reconvinda absolvida do pedido reconvencional formulado pela R. Reconvinte, dado que nada se provou sobre a causa na origem do sinistro de incêndio que destruiu o módulo 4, do Pólo Industrial do Carregado, revogando-se, nesta parte, o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.


Em contra-alegações vem defendida a improcedência do recurso, tendo a recorrida formulado as conclusões que passam a transcrever-se na parte mais relevante:

(…) 2 - No Douto Acórdão recorrido, ora colocado em crise pela Recorrente, foi decidido o seguinte:

"Conclui-se assim que:

Ocorrendo um incêndio numa unidade fabril, durante o período de laboração da empresa Autora, e estando tal unidade arrendada pela Ré à Autora, é a esta, enquanto inquilina que incumbe o ónus de provar que o incêndio não ocorreu por culpa sua2.

Não tendo ficado provadas as circunstâncias em que o incêndio deflagrou e se propagou, é a Autora enquanto inquilina, responsável pela indemnização à senhorio dos donos verificados como consequência do incêndio.

Tais danos integram não só a vertente dos danos emergentes - a destruição total do local arrendado - como a dos lucros cessantes - os montantes que a senhoria receberia do arrendamento de tal imóvel."

3 - E, vejamos o que sobre esta matéria diz a Douta Sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância:

"Sendo que o art°.1043° CC, depois de postular o dever do locatário de manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu do locador a fim de assim lha restituir no fim do contrato, ressalva dessa obrigação de manutenção as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato.

Crendo-se indiscutível que a perda por destruição da coisa arrendada não pode ser havida como uma deterioração inerente à sua normal e prudente utilização ou resultante do seu desgaste natural e portanto que o caso dos autos não encontra na norma do art°.1043 CC uma possível fonte de exclusão da obrigação da A. de ressarcir a R. dos prejuízos para si decorrentes do incêndio que reduziu a escombros o já referido módulo 4, impõe-se aquilatar se na situação que nos ocupa cabe à A., por via da disciplina da norma acima transcrita, suportar as consequências da perda pela R. de parte da sua propriedade, ou se pelo contrário, segundo a mesma norma, cabe à demandada esse risco.

Do muito que se tem escrito sobre a norma do art°.1044° CC, com interesse, parece poder dizer-se que dominantemente na doutrina e na jurisprudência a norma em referência contém uma regra de repartição do risco pela perda ou deterioração anormal da coisa locada segundo a qual corre pelo locador o risco decorrente da sua perda ou deterioração anómala por causa de força maior, caso fortuito ou acto de terceiro a quem o locatário não tenha facultado o uso da coisa e pelo locatário o risco resultante de circunstâncias imputáveis a si próprio ou a terceiro a quem tenha permitido a utilização da coisa.

Por outro lado parece certo que a norma em causa contém uma presunção de culpa pela deterioração ou perda da coisa locada incidente sobre o locatário.

Daí que, em caso de litígio, seja pacífico que «ao senhorio cabe a prova da perda ou deterioração da coisa, estando dispensado de demonstrar se as mesmas decorrem de acto do locatário ou de terceiro» enquanto «ao locatário cabe a prova de que a perda ou deterioração não lhe são imputáveis nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização dela» - cf. Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, in Arrendamento Urbano - Novo Regime Anotado e Legislação Complementar, pág.218.

Isto quando é certo que por no decurso do contrato o locatário ter o gozo e fruição da coisa é natural e razoável assumir que se ela se perde ou deteriora consideravelmente tanto se deve provavelmente a acto ou omissão dele.

Ora, se bem se vê, na situação que nos ocupa, ante a demonstrada destruição do módulo 4 objecto do arrendamento à A. esta não logrou fazer prova de que a referida destruição, resultante do incêndio que ali deflagrou em 3.3.2015, não emerge de facto que não lhe seja imputável ou à sublocatária a quem tinha subarrendado parte das instalações.

O que se afirma desde logo porque a demandante não logrou fazer prova da causa matriz do referido incêndio, que permanece por apurar.

Nem, ao contrário do que alegou e se lhe impunha, evidenciou circunstâncias que pudessem conduzir à conclusão de que o mesmo ocorreu fortuitamente e sem culpa sua.

Isto é que o incêndio havido nas instalações que ocupava, ocorrido durante o período de laboração da unidade industrial que lá funcionava, teve na origem um evento imprevisível, muito embora se previsto pudesse ter sido evitado, ocorrido por razão alheia a uma conduta culposa sua e àquela imprevisibilidade.

Sendo de frisar que a circunstância de se desconhecer a matriz do incêndio não pode ser havida como sinónimo da referida imprevisibilidade e causa fortuita.

(…)Aliás, sem prejuízo do acima escrito quanto ao valor probatório que se pode atribuir aos depoimentos de quantos em audiência versaram sobre a causa do incêndio, não pode deixar de dizer-se que a ser real a causa provável por eles apontada, - uma ignição durante o processo automático de limpeza de um dos robots de pintura, que para o efeito usava diluentes numa zona crítica de existência de electricidade estática -, é dificilmente concebível que tal evento pudesse ser integrado no conceito de caso fortuito.

Desde logo porque não pode deixar de considerar-se previsível a hipótese de em tais circunstâncias se criarem condições físicas para a ocorrência de ignições e o deflagrar de incêndios.

Aliás, como mostra a preocupação específica da A. em implementar na unidade industrial, e em especial nas zonas de laboração dos robots de pintura, medidas técnicas de prevenção, controlo e superação de incêndios.

Mas também porque não pode escamotear-se que o robot em referência, de acordo como o que se lê no relatório de fls. 270 e ss., teria sido instantes antes ao desencadear do sinistro objecto de intervenção reparadora na sequência de uma avaria/encravamento.

Sinal fortemente sugestivo do seu deficiente funcionamento na altura.

Como não pode deixar de intuir-se a ineficiência e aparente desadequação das medidas de controlo de risco de incêndios implementadas para o local ou o seu deficiente funcionamento na ocasião, (ainda que as mesmas fossem de ponta e estivessem aprovadas por entidades públicas), as quais se vê que, que em ambiente controlado e restrito - a cabine cie pintura em que estava o robot - não lograram manter circunscrito o sinistro, nem prevenir ou debelar o fogo  que vorazmente se propagou a toda a unidade industrial.

O que é dizer que, caso o incêndio havido tenha na sua origem as circunstâncias trazidas a juízo pelas testemunhas inquiridas e a hipótese por elas levantada, também referidas nos relatórios apresentados pela companhia de seguros Tranquilidade no processo, se impusesse concluir que o mesmo tem como motriz uma causa imputável à demandante, a quem cabia assegurar o adequado funcionamento dos equipamentos que utiliza na sua actividade industrial e a eficácia, operacionalidade e adequação dos meios de segurança e controlo de risco que a mesma exige.

(…) Donde se tenha por incontornável a obrigação da A. indemnizar a R. pelos prejuízos por ela sofridos em razão do incêndio referido no processo, designadamente, como ela pede, pelos respectivos lucros cessantes, nos termos admitidos pelos art°s.562°, 563° e 564° CC. O que leva a que se conclua pela procedência do pedido reconvencional, cuja associada pretensão moratória só pode se atendida nos termos dos art°s.805°, n°.1 e 806° CC."

4 - Como facilmente se retira das transcrições do douto Acórdão da Relação de Lisboa e da douta Sentença do Tribunal de Primeira Instância, não existe qualquer contradição com o Acórdão da Relação de Coimbra.

5 - Antes pelo contrário, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, que a Recorrente junta com as suas alegações, confirma o entendimento que constam daquela Sentença e Acórdão, assim como da abundante jurisprudência e doutrina que sobre esta matéria se debruça.

6 - Com efeito, o sumário do Douto Acórdão da Relação de Coimbra refere expressamente:

"1. A obrigação de manutenção e restituição da coisa no estado em que o arrendatário a recebeu (art.° 1443°, n.° 1, do CC) não afecta a regra acerca do risco inerente ao direito de propriedade, que corre por conta do locador - se a casa ficar destruída, total ou parcialmente, por caso fortuito ou de forca maior, o locatário não é obrigado a reconstruí-la ou a repará-la,

2. O arrendatário também não é responsável pela reparação se as deteriorações do prédio arrendado provierem de facto seu mas não culposo.

3. Ao conceito de caso de força maior são atribuídas as características da imprevisibilidade e da inevitabilidade e como consequência a impossibilidade de cumprir, constituindo uma causa exoneratória de responsabilidade do devedor integrável numa categoria genérica mais ampla de facto não imputável ao obrigado (n.° 1 do art.° 790°, do CC)."

7 - Sendo que, aquele Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, afirma, na parte decisória:

" 7. O contrato de arrendamento é um contrato bilateral e sinalagmático, gerador de obrigações para ambas as partes: para o senhorio, fundamentalmente as obrigações de entregar ao arrendatário a coisa locada, e de lhe assegurar o respectivo gozo (art.° 1031°, do CC); e para o arrendatário as enumeradas no art.° 1038° do mesmo diploma legal, entre as quais, a obrigação de utilizar o prédio prudentemente, no âmbito e para os fins do contrato [cf., especialmente, alíneas c) e d) do art.° 1038°, e ainda o art.° 1043, n.° 1, do mesmo Código, que ressalvando as deteriorações inerentes a uma "prudente" utilização, implicitamente responsabiliza o arrendatário pelas deteriorações que resultem de uma utilização "imprudente"].

O locatário responde pela perda ou deterioração da coisa, não excetuadas no artigo 1043°, salvo se resultarem de causa que lhe não seja imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização dela (art.º 1044°, do CC).”

8 - A obrigação de manutenção e restituição da coisa no estado em que o arrendatário a recebeu art.° 1043°, n.° 1, do CC não afecta a regra acerca do risco inerente ao direito de propriedade, que corre por conta do locador e não do locatário - se a casa fica destruída, total ou parcialmente, por caso fortuito ou de força maior, o locatário não é obrigado a reconstruí-la ou a repará-la.

Mas a norma especialmente aplicável à situação dos autos, no que tange à deterioração/destruição verificada no prédio arrendado, é a do art.° 1044°, do CC, disposição que, como vimos, respeita à perda (total ou parcial) ou às deteriorações do prédio não excetuadas no art.° 1043°, ou seja, às deteriorações que não sejam provocadas pelo desgaste do tempo ou inerentes a uma prudente utilização do prédio arrendado.

Tal regime é idêntico ao do art.° 1269°, do CC, em relação ao possuidor de boa fé, mas a lei presume aqui a culpa do locatário, que, segundo se depreende do art.° 1044°, do mesmo diploma, só não responderá pela perda da coisa ou por aquelas deteriorações se provar que provieram de causa que não lhe é imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização do prédio.

É certo que - como se alega no recurso - Pires de Lima e Antunes Varela defendem que "a expressão imputável ao locatário ou a terceiro, usada no art.° 1044°, significa apenas devida a facto do locatário ou de terceiro, pois não é necessária que haja culpa do locatário na perda ou deterioração da coisa", mas a solução afigura-se duvidosa, porquanto, além do mais, a imputabilidade do facto é no Código Civil, em geral, uma imputabilidade a título de culpa (cfr., v. g., os arts. 1136° e 1188°, a respeito da responsabilidade do comodatário e do depositário, respectivamente), como seria injusto o agravamento excepcional da responsabilidade do locatário a que conduziria aquela interpretação.

Daí que também se propendo para o entendimento segundo o qual o inquilino não é responsável se as deteriorações provierem de facto seu mas de facto não culposo.”

9. Decorre da materialidade provada [máxime, II. 1. Alíneas j), k) e r)] que o incêndio ocorreu por facto não imputável à Ré a título de culpa, ainda que sob a forma negligente.

O apurado circunstancialismo ligado ao evento danoso dos autos verificou-se “sem culpa" da Ré, desconhecendo-se, de resto (e nem sequer foi alegado - desde logo, por ter sido diverso o enquadramento táctico gizado e apresentado nos autos pelos AA.) o que terá causado ou potenciado o "curto-circuito" na instalação elétrica que originou o incêndio, sendo certo que apenas ficou assente nos autos a verificação de um simples curto-circuito, o que, por si só, desacompanhado de outros elementos, não permite qualquer imputação a título de culpa, mas, sim, a afirmação da inexistência de culpa por parte da arrendatária, conclusão que não deixa de ser corroborada pelos próprios AA., nomeadamente, na sua resposta à contestação/reconvençao (cf., sobretudo, itens 5º e 7° do dito articulado).

No caso em análise, atendendo os factos apurados, o locatário não é responsável pelo circunstancialismo que determinou o incêndio e consequentes danos, estando-se, assim, perante situação sujeita à regra acerca do risco inerente o direito de propriedade, que, como se referiu, corre por conta do locador."

8 - Há que referir que, ao contrário do que a Recorrente pretende, não existe qualquer fundamento válido para que este recurso tenha provimento, desde logo por questões processuais [veja-se os requisitos estabelecidos nos artigos 629°, n° 2, alínea d) e 672°, n° 1, alíneas a), b) e c) ambos do Código de Processo Civil].

9 - A jurisprudência e a doutrina já se debruçaram à exaustão quanto a esta questão, conclui sempre, e sem margem para dúvidas, que o artigo 1044° do Código Civil estabelece uma presunção de culpa que impende sobre o arrendatário, e que este terá sempre de afastar para não ser responsável pelos prejuízos causados pela perda parcial ou total do imóvel (no caso dos autos - perda total do módulo 4, sendo que o contrato de arrendamento que vincula Recorrente e Recorrida se mantém quanto ao restante).

10 - Finalmente, o Acórdão da Relação de Coimbra que a Recorrente vem trazer à colação, e apreciação deste Digníssimo Supremo Tribunal de Justiça, apenas vem confirmar o que já foi amplamente referido pelo Tribunal de Primeira Instância, na douta sentença proferida, e pelo também, douto Acórdão da Relação de Lisboa, que é o seguinte:

- provando o arrendatário que a perda (total ou parcial) do imóvel se ficou a dever a causa fortuita ou de forca maior, que não lhe é imputável a título de culpa, a perda do referido imóvel corre por conta do proprietário/locador, fundamentado no risco inerente ao direito de propriedade.

11 - Ou seja, o douto Acórdão da Relação de Coimbra, no qual a Recorrente sustentou todo o seu recurso, vem dizer que, efetivamente o artigo 1044° do Código Civil estabelece uma presunção de culpa, que cabe ao arrendatário afastar, no caso de perda total ou parcial do arrendado, sendo que, caso não a afaste é responsável pelos danos emergentes e lucros cessantes!

12 - E o mais importante, na análise deste recurso e das contra-alegações que agora se oferecem é que, e como bem referiu o Tribunal de Primeira Instância na sua douta Sentença, a Recorrente não conseguiu sequer provar a origem do incêndio, pelo que, consequentemente, não conseguiu afastar a presunção de culpa que sobre si impende!

13 - Terminando as considerações, quanto às alegações que a Recorrente apresentou, em lado algum do douto Acórdão da Relação de Coimbra se retira as conclusões que esta retirou na ligação/comparação dos regimes de comodato e de arrendamento!

14 - De acordo com o que importa doutrinalmente:

Em anotação ao artigo 1044° do Código Civil, in Arrendamento Urbano, Novo Regime Anotado e legislação complementar, de Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, Quid Júris, 2006: "O presente artigo consagra uma presunção de culpa do locatário relativamente às deteriorações consideráveis que o locado tenha sofrido. Assim, ao senhorio cabe a prova da perda ou deterioração da coisa, estando dispensado de demonstrar que as mesmas decorrem de acto do locatário ou de terceiro; ao locatário cabe a prova de que a perda ou deterioração não lhe são imputáveis nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização dela. Este regime compreende-se pelo facto de ser o locatário quem tem o gozo da coisa, estando obrigado à sua prudente utilização. Logo, se a mesma se perde ou apresenta deteriorações consideráveis, é razoável presumir que as mesmas decorrem de acto ou omissão daquele, assim promovendo a prudente utilização da coisa."

15 - Sendo que há que ter em consideração a abundante jurisprudência sobre esta matéria, ou seja, o artigo 1044° do Código Civil e a presunção de culpa que o mesmo estabelece na figura do arrendatário, nomeadamente os Acórdãos que passamos a indicar, e que supra transcrevemos na parte relevante para a decisão em causa:

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n° 05B2346, datado de 26 de janeiro de 2006, in www.dgsi.pt;

Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo n° 9173/2006-6, de 27 de setembro de 2007, in www.dgsi.pt;

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n° 08B158, datado de 28 de fevereiro de 2008, in www.dgsi.pt.

16. Sem mais considerações, é evidente que o recurso apresentado pela Recorrente não pode ter provimento, estando votado ao insucesso!


A Formação a que se alude o nº 3 do art. 672º do CPC proferiu acórdão recebendo o recurso como revista excecional por entender que é grande a relevância das questões jurídicas suscitadas.


Colhidos os vistos cumpre decidir, sendo questão sujeita à nossa apreciação a de saber se o art. 1044º do Código Civil estabelece uma presunção de culpa do locatário.



 II – As instâncias descrevem como provados os seguintes factos:

1) Por escrito datado de 2.1.2010, objeto de alteração em 25.11.2010, mediante o pagamento da renda mensal de € 53.512, pelo prazo de 30 anos, a contar de 30.6.2009, a R. deu de arrendamento à A. 32.410,65m2 de área coberta de parte dos prédios sitos na Quinta do …, lugar da …., …, descritos na Conservatória do Registo Predial sob os n°.s 1…4/20…2 e 4…8/19…6 da freguesia do …, correspondentes a quatro módulos espaciais numerados de 1 a 4.

2) Os módulos referidos em 1) destinavam-se ao exercício da atividade industrial e comercial da A., designadamente à atividade de pintura de componentes para automóveis.

3) O módulo 4 tinha a área coberta de 6.480 m2.

4) No módulo 4 a A. tinha instalada a linha de produção de pintura BCP (Body Colour Painting).

5) No módulo 4 encontrava-se também a sublocatária da A., CC, que ali desempenhava a sua atividade industrial.

6) Em 3.3.2015 ocorreu um incêndio que destruiu por completo o módulo 4, reduzindo o respetivo edifício e as linhas de produção nele instaladas a cinzas e escombros.

7) Em 3.3.2015 a renda mensal ascendia a € 57.245,62, mais IVA, num total de € 70.412,11.

8) Em 31.12.2015 a R. recebeu da Seguradora DD, para quem tinha transferido o risco da perda do imóvel, a quantia de € 2.310.344,35 pela perda do módulo 4.

9) Em Março, Abril e Maio de 2015 a A pagou à R., mensalmente, a quantia de € 70.412,11, IVA incluído, a título de renda.

10) Em Junho de 2015 e subsequentemente a A. pagou à R. a título de renda o valor de € 45.800,26, mais IVA, a título de renda.

11) Com data de 27.5.2015, a A. dirigiu à R. a carta que faz fls.76 e ss, por ela recebida, nos termos da qual lhe comunicou que no pagamento de renda a efetuar em Junho de 2015 procederia apenas ao pagamento da quantia de € 45.800,26, por redução proporcional da renda em razão da perda do módulo 4.

12) A R., a partir de Janeiro de 2016, reduziu a renda da A. para € 45.800,26.

13) Na atividade exercida pela Autora no módulo 4, eram utilizadas tintas e diluentes inflamáveis e gerada eletricidade estática pelos robots em atividade, sendo que os citados robots estavam equipados de origem com sistemas e programação destinados a eliminar a citada eletricidade estática, incluindo ligação à terra.

14) A A. mantinha instalados no módulo 4 diversos sistemas de segurança, entre os quais CO2 e água nebulizada para combate a incêndios, tendo os seus funcionários formação nesse domínio.

15) Teor do despacho de arquivamento promovido pelo Ministério Público da secção única do DIAP de …:

“Nos termos do art. 15º do CP, age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime, mas actuar sem se conformar com essa realização – negligência consciente – ou não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto – negligência inconsciente.

A negligência traduz-se assim na violação do dever objectivo de cuidado – o agente ao actuar não respeita certas regras de cuidado.

Reportando ao caso vertente, não foi possível sequer apurar se efectivamente se deveu ou não a uma conduta humana o deflagrar do denunciado incêndio.

Face ao exposto determino ao abrigo do preceituado no art. 277º nº 2 do CPP, o arquivamento dos presentes autos, sem prejuízo da sua reabertura caso surjam novos elementos probatórios que ponham em crise os fundamentos deste despacho”.

16) A Autora mantinha instalados no módulo 4 diversos sistemas de segurança, designadamente no exterior da Nave uma rede de combate a incêndios armada de acordo com o projeto de segurança, no interior das instalações uma rede de água com carretéis, extintores em número superior aos que estavam definidos no projeto de segurança, bem como um sistema automático de deteção e extinção de incêndios nas cabinas de pintura, um sistema de água nebulizada e, num outro compartimento, onde eram feitas as preparações das tintas, estava instalado um sistema de deteção e extinção automática por gás inerte CO2, tendo os seus funcionários formação nesse domínio de combate a incêndios.


III – Passemos então a analisar a questão que vem submetida à nossa apreciação.

Importa relembrar o conteúdo do comando decisório emitido na sentença e mantido no acórdão impugnado.

Dele constam as seguintes condenações:

a) - Da ré:

- a reconhecer a redução da renda devida pela autora no âmbito do contrato dos autos para € 45.800,26 mensais, mais IVA, por força da perda definitiva do módulo 4, a partir de 3.3.2015;

- a restituir à autora a quantia de € 33.597,67, acrescida de juros de mora nos termos que definiu, paga a mais pela autora a título de renda em Março, Abril e Maio de 2015;

b) - Da autora:

- a pagar à ré, a título de indemnização, a quantia de € 80.117,52, acrescida de juros de mora nos termos que definiu, para compensação dos lucros cessantes registados nos últimos sete meses de 2015.

   Destas condenações, as duas primeiras encontram-se transitadas em julgado, já que não são impugnadas neste recurso.

  Só a terceira constitui objeto desta revista, por dela não concordar a autora, reconvinda.

   Quanto ao pedido indemnizatório formulado na reconvenção, o acórdão recorrido seguiu raciocínio cujas linhas mestras podem ser resumidas assim:

- a norma constante do art. 1044º do CC estabelece, quanto à perda ou deterioração da coisa, uma presunção de culpa do locatário;

- esta presunção não foi afastada, porque se ignora o que causou o incêndio e como este se propagou;

- para além da indemnização imposta por aquele artigo – a referente à perda do imóvel –, têm também de ser compensados, a título de lucros cessantes, os rendimentos que o senhorio deixou de auferir devido à destruição da coisa.


   Das numerosas conclusões formuladas pela recorrente extrai-se apenas, na maioria delas, o esforço de demonstração dos pressupostos da revista excecional, nomeadamente a contradição entre o acórdão recorrido e um outro proferido em 2.11.2011 pela Relação de Coimbra[1], sem prejuízo de também aludir à relevância jurídica e social da questão discutida.

Quanto ao mérito, salienta a diferença entre a posição do locatário, por um lado, e a do comodatário e do depositário, por outro, já que, quanto a estes, os arts. 1136º e 1188º do C. Civil[2] estabeleceriam caber ao proprietário o ónus de provar a culpa dos mesmos – cfr. conclusões 17ª e 30ª; mais refere que, a aceitar-se estar o locatário onerado com uma presunção de culpa, tal significaria a existência de uma responsabilidade quase objetiva, contrária aos princípios gerais da responsabilidade civil no direito português – cfr. conclusões 29ª, 31ª e 39ª.

São estas, pois, as razões jurídicas pelas quais pede a inversão do decidido.

        Vejamos, então.

   O locatário tem direito ao gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição, enquanto é obrigação do locador entregar-lhe a coisa locada e assegurar-lhe o respetivo gozo – arts. 1022º e 1031º.

   E sobre o locatário impende também a obrigação primária de manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu – art. 1043º, nº 1.

Daí que possa ter evidentes e imediatos reflexos na vigência do contrato de locação a ocorrência de qualquer circunstância que determine a perda ou a deterioração, total ou parcial, da coisa que é seu objeto, sendo de distinguir diversas situações.

    Podem ocorrer deteriorações inerentes a uma utilização prudente da coisa locada, caso em que o locatário não tem de promover a sua recuperação, como resulta da parte final do último preceito citado, cabendo ao locador suportar as consequências desse desgaste.

   Já na hipótese de perda ou deteriorações que não possam ser consideradas como resultado de uma utilização prudente, a lei estabelece um regime segundo o qual as mesmas serão suportadas nuns casos pelo locatário, noutros pelo locador.

    Assim, lê-se no art. 1044º: “O locatário responde pela perda ou deteriorações da coisa, não excetuadas no artigo anterior, salvo se resultarem de causa que lhe não seja imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização dela.”

   Não tem sido unívoco, na doutrina, o entendimento acerca do que nesta norma se estatui.

   Pires de Lima e Antunes Varela[3] defendem que a responsabilidade do locatário aqui consagrada é objetiva, bastando que o evento danoso lhe seja devido, ainda que sem culpa; e isto porque o locatário utiliza no seu interesse uma coisa que não lhe pertence, sendo de estimular que dela faça um uso prudente.

    É ideia, porém, contrariada, como estes autores dão conta, por Pereira Coelho[4] que defende uma imputabilidade a título de culpa. Também Menezes Cordeiro[5], Menezes Leitão[6], Pinto Furtado[7] e Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e Caldeira Jorge[8] preconizam entendimento no sentido de uma responsabilidade a título de culpa, em todo o caso agravada, por esta, no caso, se presumir.

    Consideramos ser este o entendimento preferível, já que, na falta de outra indicação clara, a imputabilidade ao locatário deve ser entendida à luz do conceito que dela dá o CC no art. 488º, que é inequivocamente reportado a uma ideia de censura, e não de mera decorrência objetiva e material do dano.

   Aliás, estando-se, como se está, no campo da responsabilidade contratual, só assim se assegura coerência com o princípio básico que enforma o art. 799º, nº 1.

    Ademais, vai claramente neste sentido a sugestão dada pelo texto legal que afirma o princípio da responsabilidade do locatário, dele excetuando, todavia, casos configurados como factos impeditivos da aplicabilidade daquele, o que, por aplicação do nº 2 do art. 342º, leva à distribuição do ónus de prova nos termos indicados.

    Tem sido esta a linha de entendimento seguida por este STJ, como se vê dos diversos acórdãos mencionados pelos últimos autores que citámos e, ainda, dos acórdãos de 15.2.2001[9], de 26.1.2006[10] e de 28.2.2008[11].

Assim, não merece censura o acórdão recorrido.


  IV – Pelo exposto, julga-se a revista improcedente, confirmando-se o acórdão impugnado.

  Custas a cargo da recorrente.


Lisboa, 21.11.2019


Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho (Relatora)

Catarina Serra

Bernardo Domingos

__________

[1] Aliás, inexistente, como claramente resulta do confronto do acórdão recorrido com o acórdão fundamento, um e outro acabando por defender o mesmo entendimento – o do que o art. 1044º do CC presume a culpa do locatário, que só não responderá pela perda ou deterioração da coisa se provar que estes provieram de causa que lhe não é imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a sua utilização.  
[2] Diploma a que respeitam as normas doravante referidas sem menção de diferente proveniência
[3] Código Civil Anotado, Vol. II, 4ª edição, pág. 381
[4] Direito Civil, Arrendamento, 1977, pág. 156
[5] Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, 2014, pág. 80
[6] Arrendamento Urbano, 7ª edição, pág. 89
[7] Manual do Arrendamento Urbano, I, 4ª edição, pág. 553
[8] Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, 2014, pág. 80
[9] Relator Cons. Simões Freire, Col. Jur. – STJ, Tomo I, pág. 121
[10] Relator Cons. Duarte Soares, proc. 05B246, www.dgsi.pt
[11] Relator Cons. Serra Baptista, proc. 08B158, www.dgsi.pt