Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02P2534
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: BORGES DE PINHO
Descritores: AUTO DE NOTÍCIA
ACUSAÇÃO
REQUISITOS
NULIDADES
CONTRA-ORDENAÇÃO
Nº do Documento: SJ200210160025343
Data do Acordão: 10/16/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2 J CR BARREIRO
Processo no Tribunal Recurso: 10370/02
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: DIR ORDEN SOC.
Legislação Nacional: CE98 ARTIGO 151 N1.
DL 433/82 DE 1982/10/27 ARTIGO 41 ARTIGO 58 N1 B C.
CRP98 ARTIGO 122 N1 ARTIGO 283 N3 B ARTIGO 374 N2 ARTIGO 379 N1 A.
Sumário : O auto de notícia de que apenas consta que o arguido realizou uma «manobra de ultrapassagem em local de que da sua realização resultou perigo para o trânsito no mesmo sentido e no sentido oposto» é um auto que não descreve os factos constitutivos da infracção e as circunstâncias em que esta foi cometida e que, por isso, como acusação, é nulo. Nula, igualmente, é a decisão da autoridade administrativa que em tal auto de notícia se fundou.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

1. Por decisão de 15-5-2001, proferida no processo de contra-ordenação n. 214064336, foi aplicada a A, melhor identificado nos autos, a coima de 30.000$00 e ainda a sanção acessória de inibição de conduzir por 30 dias dado que, face ao auto de notícia levantado pela GNR e constante de fls. 5, no dia 25-11-2000, e na estrada nacional nº 205, em Vila Seca, Barcelos, teria praticado "contra ordenação ao disposto no art. 35, n. 1 do Cód. Estrada, sancionável com coima de 20.000$00 a 100.000$00, nos termos do art. 35, n. 2 do C. Estrada, e ainda com sanção acessória de inibição de conduzir de 1 a 12 meses por força dos artigos 139 e 146, alínea e), todos do Código da Estrada" (fls. 11).

2. Não concordando com a decisão e sanções aplicadas, A interpôs recurso nos termos constantes de fls. 15 a 24, concluindo:

I - A decisão administrativa aqui recorrida é nula por ter sido proferida com base numa acusação nula já que se encontra formulada em termos conclusivos, vagos e genéricos que não permitem ao arguido o efectivo exercício do direito de defesa consagrado constitucionalmente, art. 41 DL n. 433/82, e art. 122, n. 1, e 283, n. 3, al. b), do CPP.
II - É igualmente nula por não conter a descrição dos factos, nem a sua subsunção à norma ou normas que constituem a infracção que foi imputada ao recorrente e pela qual foi condenado - art. 58, n. 1, al. b) e c), e 41, do DL n. 433/82, conjugado com os arts. 374, n. 2 e 379 do CPP.
III - A decisão recorrida também não explicita quaisquer motivos para concluir que, ao contrário do alegado fundamentadamente pelo recorrente, o auto de notícia contém todos os elementos indispensáveis a que alude o art. 151 do C. Estrada, nem indica quais os factos de que o recorrente estaria na posse para usar o seu direito de defesa, razão porque é nula por falta de fundamentação - art. 41 DL 433/82 e 374, n. 2 e 379, do CPP.
IV - A decisão recorrida ao afirmar que "o auto em apreço contém todos os elementos indispensáveis a que alude o art. 151, do Cód. da Estrada" e ainda que o arguido se encontrava " ... na posse de factos que lhe permitiriam usar o seu direito de defesa em toda a sua plenitude", condenando o recorrente, é ilegal - por errada interpretação e aplicação dos dispositivos legais contidos nos arts. 151, ns. 1 e 4 do CE, 58 n. 1, do DL n. 433/82 - e inconstitucional - por violação do art. 32, n. 10, da CRP.
V - Não é verdade o que consta do auto de notícia já que, segundo o mesmo, a pretensa infracção terá tido lugar na freguesia de Vila Seca e o auto foi levantado na sequência de uma interceptação do recorrente por parte da BT que ocorreu na freguesia de Gilmonde antes, de Vila-Seca, pelo que a decisão padece de erro nos pressupostos em que assenta.
VI - O recorrente no dia hora e local constantes da decisão recorrida não cometeu qualquer infracção ao C. da Estrada, designadamente aquela que lhe é imputada no auto de notícia e que terá servido de base à condenação aqui impugnada.
Nestes termos, e mais de direito, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que absolva o recorrente e ordene o arquivamento dos autos.

3. Neste Supremo Tribunal de Justiça, tendo os autos ido com vista ao Exmoº Procurador-Geral Adjunto, promoveu o mesmo a realização de audiência.
Marcada, e realizada esta com a observância das formalidades devidas e legais, ouvido o arguido e inquiridas as testemunhas, houve lugar a alegações orais.
Cumpre agora, apreciar e decidir.
Apreciando.

4. De harmonia com o que flui dos elementos juntos aos autos e resultou da audiência, no dia 25-11-2000, conduzindo o arguido o veículo de matrícula EP no sentido Barcelos-Apúlia, no local e hora referenciados no auto de notícia (estrada nacional n. 205, Vila Seca, comarca de Barcelos), teria realizado "manobra de ultrapassagem em local de que da sua realização resultou perigo para o trânsito no mesmo sentido e sentido oposto" (fls. 5), como aliás resulta expressamente desse mesmo auto de notícia que deu origem ao processo de contra-ordenação respectiva e à decisão da autoridade administrativa que ora se impugna.
Um auto de notícia que, pese embora toda uma necessidade de contenção escrita na explanação do ocorrido e presenciado, não encerra realmente em si mesmo uma qualquer factualidade que, ainda que minimamente, pudesse não só tipificar e caracterizar a perigosidade da própria ultrapassagem, que aliás não se descreve, como ainda, e sobretudo, servir de sustentáculo legal e de fundamento para a decisão da autoridade administrativa que aplicou a coima e a sanção inibitória de conduzir, como acusação ou libelo acusatório em que o auto de notícia em si mesmo se perfila e se apresenta, formal e substancialmente.

Na realidade o auto de notícia não deu plena satisfação ao determinado no próprio art. 151, n. 1, do C. da Estrada, dado não "mencionar os factos que constituem a infracção, no dia, a hora, o local e as circunstâncias em que foi cometida", sendo que no caso em concreto tais "circunstâncias", porque factuais, se apresentavam de extrema importância para indicar e sinalizar o concreto e preciso perigo que o signatário do auto de notícia "viu" na manobra de ultrapassagem, e que originou a sua intervenção.
O certo é que, para além de uma simples referência a uma ultrapassagem que o Sr. autuante considerou, bem ou mal, perigosa para o trânsito, nada mais há de minimamente concreto e fáctico que enroupe e sustente o juízo de perigosidade por si formulado, sinalizando o concreto e real perigo por ele divisado.
E perfilando-se como uma acusação, tal auto de notícia não deixa de se apresentar amputado de factos, conclusivo, vago e genérico, viciado pela ausência de uma concreta factualidade sinalizadora da perigosidade da manobra, com todas as suas consequências e reflexos em termos acusatórios, quer como delimitador do próprio libelo acusatório e sustentáculo-básico de uma posterior decisão condenatória, quer ainda, e não menos importante, no quadro e em parâmetros do cabal exercício de um direito de defesa por parte do arguido.
E muito embora estejamos no domínio do direito contra-ordenacional prevenido no DL 433/82, de 27 de Outubro, actualizado pelos DL. 356/89, de 17 de Outubro e 244/85, de 14 de Setembro, não se pode ignorar nem minimizar o apelo que nos arts. 32 e 41 se faz ao direito penal e processual criminal, como direito subsidiário, com todas as suas consequências.
No caso concreto e em apreço, é inquestionável que o auto de notícia de fls. 5 se apresenta viciado, sendo nulo e insubsistente como acusação.
Não contém, na verdade, quaisquer factos nem elementos concretos que sinalizem a perigosidade que se "viu" na manobra de ultrapassagem, exteriorizando-se apenas uma certa conceptualização sem substrato fáctico, mergulhando-se na vacuidade e generalidade de uma mera imputação conceitual, abstractalizada e não configurada em algo de real.

Não foi cumprido, aliás o prescrito no art. 151, n. 1, do C. Estrada, no que concerne à explanação das "circunstâncias", passíveis de sinalizar a perigosidade que se vislumbrou.
Assim, e consequentemente, há que de considerar nula a acusação ao arguido corporizada no auto de notícia de fls. 5 (art. 41, n. 1, DL 433/82, 151, n. 1, C. Estrada, 122, n. 1 e 283, n. 3, al. b) do CPP).
Sendo natural e consequentemente nula a própria decisão da autoridade administrativa, que aliás se impugnou e de que o referenciado auto de notícia é suporte, anotando-se e exarando-se no entanto que a referida decisão não deixaria mesmo assim de ser nula por força das disposições conjugadas dos arts. 58, n. 1, al. b) e c) e 41 do DL 433/82 e 374, n. 2, e 379, n. 1, al. a) do C.P.Penal devido à não narração de factos e à não subsunção dos mesmos às normas aplicáveis, sendo evidente e manifesto todo um deficit na fundamentação.

Pelo que, e decidindo.

5. Acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, concedendo-se provimento ao recurso, em declarar a nulidade da acusação deduzida e da decisão administrativa consequente, absolvendo-se o arguido e arquivando-se os autos.
Sem custas.

Notifique-se e cumpra-se o disposto no art. 70, n. 4, do DL 433/82.
Fls. 60 e 62 - pague-se.

Lisboa, 16 de Outubro de 2002.
Borges de Pinho,
Virgílio Oliveira,
Franco de Sá,
Flores Ribeiro.