Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
592/17.5T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: APLICAÇÃO FINANCEIRA
INTERMEDIÁRIO
RESPONSABILIDADE
PRESSUPOSTOS
TRANSMISSÃO DE CRÉDITO
CEDENTE
CESSIONÁRIO
INCUMPRIMENTO TEMPORÁRIO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 04/30/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: JULGADO PROCEDENTE O RECURSO DE REVISTA / REVOGADO O ACÓRDÃO RECORRIDO, REPRISTINANDO A DECISÃO DA 1.ª INSTÂNCIA.

Área Temática:
DIREITO CIVIL – PROCESSO EM GERAL / INCIDENTES DA INSTÂNCIA / INTERVENÇÃO DE TERCEIROS / OPOSIÇÃO / OPOSIÇÃO MEDIANTE EMBARGOS DE TERCEIRO – PROCESSO DE EXECUÇÃO / EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA / PAGAMENTO / ADJUDICAÇÃO.
DIREITO MOBILIÁRIO – INTERMEDIAÇÃO / ACTIVIDADES / INTERMEDIÁRIOS FINANCEIROS / ORGANIZAÇÃO E EXERCÍCIO / RESPONSABILIDADE CIVIL.
Doutrina:
- António Barreto Menezes Cordeiro, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, 2.ª edição, Almedina, p. 165 ; Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo IV, 2010, p. 222 ; Tomo III, p. 512;
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª edição, 9.ª reimpressão, p. 101;
- Brigitte Keuk, Vermorgensschaden und Interesse, 1968, p. 11-12;
- Deutsch, Haftungsrecht, 2.ª ed., p. 495;
- Gomes da Silva, O dever de prestar e o dever de indemnizar, p. 123;
- Paulo Mota Pinto, Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, I , 2008, p. 528 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º 1 E 799.º, N.º 1.
CÓDIGO DOS VALORES MOBILIÁRIOS (CVM): - ARTIGOS 293.º, N.º 1, ALÍNEA A) E 304.º-A.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 24-01-2019, PROCESSO N.º 2406/16.4T8LRA.C2.S1;
- DE 07-02-2019, PROCESSO N.º 31/17.1T8PVZ.P1.S1, AMBOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

1. O direito de indemnização pressupõe a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil que são: o facto, a ilicitude, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
2. Na responsabilidade do intermediário financeiro presume-se a culpa quando o dano seja originado pela violação de deveres de informação.
3. O dano é a supressão ou diminuição de uma situação favorável, reconhecida ou protegida pelo Direito.
4. A obrigação, enquanto bem mobiliário, consiste num documento representativo de um direito de crédito que confere, ao seu titular, a faculdade de exigir a restituição da quantia monetária titulada, na data do vencimento do empréstimo.
5. A transmissão da obrigação implica a transferência do direito de crédito, mediante o instituto da cessão, ficando o cessionário com todas as faculdades que lhe são inerentes, desde logo, a exigência do reembolso do capital investido.
6. Não existe incumprimento definitivo do devedor, mas simples mora, quando, após a data de vencimento do título, continuam a ser pagos os juros remuneratórios acordados.
7. Com a cessão do crédito, opera imediatamente a transferência do direito à prestação do cedente para o cessionário, pelo que aquele deixa de ter direito de restituição do reembolso, não sofrendo o correspondente dano.
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 592/17.5T8LSB.L1.S1[1]
*

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça – 1.ª Secção[2]:

I. Relatório

AA e BB, Lda., intentaram, em 6/1/2017, acção declarativa, com processo comum, contra Banco CC, S.A., pedindo que este seja condenado a pagar-lhes a quantia de € 54.420,20, acrescida de juros à taxa supletiva legal para as operações comerciais, contados sobre a quantia de € 50.000,00, desde a citação e até integral e efectivo pagamento.

Para tanto, alegaram, em síntese:

Em Novembro de 2007, a ré, através de funcionários seus na agência de ..., induziu o primeiro autor a adquirir uma obrigação DD Rendimento Mais 2004, no valor de 50.000,00 €, convencendo-o de que se tratava de “uma aplicação em tudo igual a um depósito a prazo”, cujo “capital era garantido pelo banco réu”, sem lhe prestar as devidas informações.

Em 27/5/2015, o primeiro autor cedeu à segunda autora a sua posição, passando esta a ficar titular da obrigação que aquele adquirira.

A DD, SGPS, S.A., não pagou aquela obrigação na data do seu vencimento, em 24/10/2014, sendo que foram pagos os respectivos juros semestrais até Setembro de 2015 – de início ao primeiro autor e, após 27/5/2015, à segunda autora -, nem o fez posteriormente em face da sua insolvência.

Se o primeiro autor soubesse que se tratava de um produto de risco e que o capital não era garantido pelo Banco, nunca teria feito a subscrição daquela obrigação.

Contestou a ré, por excepção, invocando a incompetência em razão do território[3], a ineptidão da petição inicial por contradição entre a causa de pedir e o pedido, a ilegitimidade activa e a prescrição, e por impugnação motivada, alegando, em resumo, que não se tratava de produto de risco, não estava obrigada a advertir o investidor sobre a hipótese de insolvência da emitente, não violou o dever de informação e o primeiro autor sempre foi uma pessoa informada, meticulosa e ciosa do seu investimento. Concluiu pela procedência das excepções invocadas ou, caso assim não se entenda, pela improcedência da acção.

      Na resposta, os autores pugnaram pela improcedência das excepções.

Na audiência prévia realizada, foi proferido despacho saneador, onde foram julgadas improcedentes as excepções da ineptidão e da ilegitimidade activa, tendo sido relegado para final o conhecimento da prescrição; foi fixado o objecto do litígio e foram enunciados os temas da prova.

Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, após o que, em 15/5/2018, foi proferida sentença a julgar a acção improcedente, absolvendo a ré do pedido.

Inconformados, os autores interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 6/12/2018, deliberou nos seguintes termos: “conceder parcial provimento ao recurso e, consequentemente, em condenar o réu a pagar ao autor AA a quantia de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), a que acrescem os juros de mora contados a partir da citação até integral pagamento.

O réu vai absolvido do mais peticionado.”

Inconformado, desta feita, o banco réu interpôs recurso de revista e apresentou a respectiva alegação com as seguintes conclusões:

“1) Na mesma acção é Autora a sociedade BB, Lda, de que o 1º Autor é sócio – vide doc. 1 junto à PI nunca impugnado.

2) Resulta dos factos provados que o 1º Autor, beneficiário da decisão recorrida, cedeu a sua Obrigação a esta sociedade em 27 de Maio de 2015. Ou seja, a partir de 27 de Maio de 2015, a 2ª A. inscreveu no seu património a dita Obrigação DD – necessariamente com a atribuição de um valor.

3) A essa data, a DD – entidade emitente das Obrigações negociadas – não estava em situação de incumprimento, mas apenas, e eventualmente, de mora, por ter sido deliberada extensão da emissão por mais um ano – o que deu origem ao pagamento de juros até Setembro de 2015.

4) Assim, a DD poderá ter incorrido em mora no reembolso do capital investido, entre o dia 24 de Outubro de 2014 – data originalmente anunciada de vencimento da emissão – e o dia 27 de Setembro de 2016, data da sua declaração de insolvência.

5) Só nesta data se verifica, então sim, o incumprimento definitivo! E só nessa data se consuma o dano que um tal incumprimento implica!

6) O dano a que os AA. se referem nos autos referem-se inelutavelmente ao incumprimento definitivo do reembolso das obrigações, porquanto apenas com a situação de verificação objectiva do incumprimento do reembolso incorre o respectivo investidor num desvalor patrimonial equivalente ao que juridicamente chamamos dano!

7) Até esse momento de confirmação do não-reembolso, existe a expectativa, maior ou menor, de receber a prestação a que cada credor tinha direito!

8) A simples mora, devida e regularmente ressarcida com o pagamento de juros para lá da data de vencimento, não implica um dano que não seja exactamente o do atraso na prestação!

9) Todavia, no caso, esse concreto dano da mora foi ressarcido pelo pagamento de juros.

10) Não podemos confundir o dano da mora com o dano do incumprimento! E principalmente no caso sub judice, em que a cessão de titularidade da Obrigação ocorreu num momento em que haveria  mora, mas antes de se verificar o incumprimento definitivo do reembolso, apenas verificado com a declaração de insolvência!

11) Esta simples circunstância implica que, ao contrário do invocado na douta decisão em crise, o 1º A. não sofreu qualquer dano, pois que, à data de cessão do instrumento financeiro à sociedade de que era sócio, não havia ainda sofrido o dano.

12) O dano, enquanto incumprimento definitivo da obrigação de reembolso do capital, veio a materializar-se em data em que o título pertencia já à 2ª A.

13) A cessão da obrigação à sociedade-Autora constitui um negócio de endosso sobre um valor mobiliário, pelo qual o adquirente (2ª A.) ingressa na posição jurídica do cedente, concretamente quanto a todos os direitos inerentes a tal instrumentos, considerados estes enquanto todos os direitos que emergem da relação jurídica geral assumida pela entidade emitente dos títulos e que constituirão os direitos à remuneração e ao reembolso do capital.

14) O direito a indemnização em si mesmo, e ainda que fosse já perfeito à data da cessão, não é um direito inerente ao título!

15) Os direitos inerentes não incluem, sob qualquer perspectiva, qualquer conjunto de actos ilícitos e/ou culposos de que o cedente houvesse sido “vítima”, como que deixando pendente a formação a um eventual direito de indemnização se completados os restantes pressupostos desse direito - ou há direitos formados ou não haverá nada!

16) A responsabilidade civil é uma das fontes das obrigações. E, para se verificar, necessita da verificação cumulativa dos pressupostos previstos no art.º 483º e 798 do Código Civil! Só quando verificados esses pressupostos existe o respectivo direito.

17) Em suma, não se formou qualquer direito de indemnização, fosse na esfera do 1º A., por não ter sofrido qualquer dano, ou da 2ª A., por não ter sofrido qualquer acto ilícito ou culposo que fosse causa do não reembolso da obrigação de que foi titular!

Ainda que assim se não entenda,

18) A atribuição da obrigação a uma sociedade, e pelo simples facto de ser uma sociedade, sempre implicou uma atribuição patrimonial a esta, com um contravalor nas contas a favor do 1ª A..

19) Assim, o 1º A. foi ressarcido do seu dito dano (para que entenda que o sofreu), fosse por recebimento do preço ou pela atribuição de um crédito sobre a adquirente!

20) O Tribunal a quo violou por errónea interpretação ou aplicação o disposto nos art.ºs 55.º e 210.º do CdVM, 483.ª, 562.º, 564.º e 798.º do Código Civil.

Termos em que se conclui pela procedência do presente recurso, e por via dele pela revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que absolva o Réu do pedido, assim se fazendo...

... JUSTIÇA!”

   Os autores contra-alegaram pugnando pela confirmação do acórdão recorrido.

O recurso foi admitido como de revista, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, modo de subida e efeito que foram mantidos pelo Relator no despacho liminar.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.
       Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais de conhecimento oficioso, que aqui não relevam, e tendo presente que se apreciam questões e não razões, a única questão que importa dirimir consiste em saber se o 1.º autor não sofreu qualquer dano susceptível de lhe conferir o direito de indemnização que pretende fazer valer na acção.

II. Fundamentação


1. De facto

No acórdão recorrido foram considerados provados, após reapreciação da matéria de facto impugnada, os seguintes factos:
1. O 1.º Autor é empresário e tem o 6.º ano de escolaridade.
2. A 2.ª Autora é uma empresa que tem por objeto perfilagem de aço e outros metais, fabricação de elementos de construção em metal, nomeadamente, estruturas, perfis e chapas, comercialização, importação e exportação de materiais siderúrgicos, perfis e perfilados, tubos, chapas, materiais de construção e acessórios para a indústria de serralharia e construção civil.
3. A 2.ª Autora tem como gerentes o 1.º Autor e a sua mulher, ..., e obriga-se pela assinatura de um gerente.
4. Até à nacionalização do “EE, S.A.”, a totalidade do capital social do Banco em causa era detida pela sociedade “EE, SGPS, S.A.”, a qual, por sua vez, era detida, também na íntegra, pela sociedade então denominada “DD, SGPS, S.A.”.
5. O 1.º Autor é, perante o Banco Réu, investidor “não qualificado”.
6. O 1.º Autor, cliente do Banco, tinha um depósito a prazo no montante de € 52.000,00.
7. Em 23 de novembro de 2007, o 1.º Autor autorizou a aquisição de uma “Obrigação Rendimento Mais 2004”, no valor de € 50.000,00, produto que lhe foi apresentado como tendo muita procura e que lhe proporcionaria um rendimento superior ao de um depósito a prazo.
8. Não foi dada ao Autor a nota informativa do produto.
9. O primeiro Autor tinha plena confiança nos seus interlocutores do Banco, por achar que eram pessoas íntegras e de palavra, que se preocupavam com os interesses dos clientes do Banco.
10. Em 27 de maio de 2015, o 1.º Autor pediu a transferência da titularidade da obrigação “DD Rendimento Mais 2004” para a 2.ª Autora.
11. A “DD, SGPS, S.A.” não pagou as obrigações “DD RENDIMENTO MAIS 2004” na data do seu vencimento, em 24 de Outubro de 2014.
12. Ainda assim, pagou, todavia, os juros semestrais até setembro de 2015, fazendo-o ao 1.º Autor até 27/05/2015 e à 2.ª Autora a partir dessa data.
13. Entretanto, a “DD, SGPS, S.A.”, hoje denominada “DD, S.A.” apresentou, no Tribunal da Comarca de Lisboa, um Processo Especial de Revitalização, o qual correu seus termos pela 1.ª Secção de Comércio - J4, com o número 22922/15.4T8LSB, o qual terminou sem aprovação do Plano de Recuperação.
14. A “DD, S.A.” foi, entretanto, declarada insolvente por sentença, de 29/06/2016, proferida pelo Tribunal da Comarca de Lisboa, 1.ª Secção de Comércio - J4, no âmbito do processo número 23449/15.0T8LSB, sem que tivesse sido paga a obrigação dos autos.
15. No momento da subscrição não havia qualquer indicação de que a emissão pudesse vir a não ser paga ou qualquer ideia sobre o risco de insolvência da emitente.
16. O produto foi apresentado como “seguro”.
17. Os clientes deviam ser convidados a aderir ao novo produto como se se tratasse de um simples sucedâneo de um depósito a prazo;
18. Foi dito que não obstante tratar-se de obrigação a dez anos, era um produto sem qualquer risco e que podia ser resgatado a qualquer altura;
19. O 1.º Autor só aceitou a subscrição do título em causa porque lhe foi afiançado pelo Banco Réu que o retorno da quantia subscrita era garantido pelo próprio Banco, uma vez que se tratava de um sucedâneo melhor remunerado de um depósito a prazo, com semelhantes características;
20. Os funcionários do Banco tinham perfeita consciência de que o primeiro Autor, devidamente informado, nunca, em circunstância alguma, aceitaria subscrever um produto como aquele que está em causa nestes autos;
21. Ao subscrever aquele produto, nunca passou pela cabeça do primeiro Autor – nem tal lhe foi alvitrado – de que o empréstimo só poderia ser reembolsado a partir de Outubro de 2014 e se tal tivesse acontecido, o primeiro autor nunca teria aceitado a sugestão do Banco Réu;
22. Nunca o primeiro Autor teria aceitado subscrever uma Obrigação “DD Rendimento Mais 2004”, se lhe tivessem sido bem explicadas as características do produto que lhe estava a ser vendido e, sobretudo, se lhe tivesse sido mostrada a “nota interna”, nomeadamente nos capítulos “Reembolso antecipado”; “Liquidez” e “Subordinação”, bem como a ausência de garantia do Banco à subscrição;
23. O 1.º Autor nunca teve intenção de adquirir obrigações da “DD, SGPS, S.A.”;
24. Ao 1.º autor foi dito, ainda, que caso necessitasse de resgatar o capital antes do prazo convencionado que arranjariam outro investidor para tomar a sua posição.


2. De direito

Encontramo-nos no âmbito da responsabilidade civil contratual.

Como é sabido, em termos gerais, constituem pressupostos deste tipo de responsabilidade civil: o facto, a ilicitude, o vínculo de imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

Estes pressupostos são, aliás, comuns à responsabilidade civil extracontratual, existindo diferenças apenas quanto ao ónus da prova da culpa, a qual se presume na responsabilidade contratual (cfr. art.º 799.º, n.º 1 do Código Civil).

Relativamente aos demais pressupostos, já compete ao credor fazer a respectiva prova, por serem elementos constitutivos do seu direito à indemnização[4], nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil.

No que à responsabilidade do intermediário financeiro diz respeito, como é o caso do demandado, por ser uma instituição financeira, assumindo ope legis essa qualidade [alínea a) do n.º 1 do art.º 293.º do Código dos Valores Mobiliários[5]], a sua responsabilidade está delineada no art.º 304.º-A deste Código nos seguintes moldes:


«Artigo 304º-A

Responsabilidade civil


1 – Os intermediários financeiros são obrigados a indemnizar os danos causados a qualquer pessoa em consequência da violação dos deveres respeitantes à organização e ao exercício da sua actividade, que lhes sejam impostos por lei ou por regulamento emanado de autoridade pública.

2 – A culpa do intermediário financeiro presume-se quando o dano seja causado no âmbito de relações contratuais ou pré-contratuais e, em qualquer caso, quando seja originado pela violação de deveres de informação.».

Da interpretação desta disposição legal resulta que o facto ilícito que pode fazer despoletar a responsabilidade do intermediário financeiro se identifica com a violação de deveres legais e regulamentares atinentes ao exercício da actividade de intermediação financeira e que, no âmbito contratual e pré-contratual, se presume a culpa do intermediário financeiro.

Assim, concatenando este preceito com a disciplina vertida no art.º 798.º do Código Civil, pode, em suma, considerar-se que a efectivação da responsabilidade civil contratual do intermediário financeiro pressupõe a ocorrência de um facto ilícito (que se traduz na infracção de deveres legais ou emergentes de regulamento), a verificação da culpa (cabendo ao intermediário demonstrar que o inadimplemento não provém de culpa sua) e a existência de um dano que esteja ligado, por um nexo de causalidade, à conduta do interveniente financeiro[6].

Dito isto, vejamos o caso dos autos.

No acórdão recorrido, foi reconhecida a responsabilidade do banco réu com base na violação do dever de informação, procedendo à transcrição de outro acórdão relatado pelo 1.º Adjunto e em que interveio a 2.ª Adjunta como 1.ª Adjunta. Nele, foi afirmado que seguiam a doutrina desse acórdão, esclarecendo que os juros peticionados apenas eram devidos “os de mora sobre o capital de € 50.000,00 não restituído, contados desde a citação até integral pagamento” e aditando, unicamente, o seguinte:

Uma última questão: se bem que a acção tenha sido intentada por AA e BB, Lda., o certo é que todos os elementos que integram a responsabilidade civil se repercutiram na esfera jurídica do 1.º autor, incluindo o dano que se verificou quando a DD, SGPS, S.A. não pagou a obrigação DD RENDIMENTO MAIS 2004 na data do seu vencimento, em 24 de Outubro de 2014.

No recurso, o único pressuposto que vem posto em causa é o dano, uma vez que o recorrente sustenta que o 1.º autor não sofreu qualquer dano em virtude de ter transferido a titularidade da obrigação para a 2.ª autora e porque, na data da transferência, a entidade emitente ainda não se encontrava em incumprimento definitivo, tendo apenas incorrido em mora.

Vejamos:

Naturalisticamente, o dano é a supressão ou diminuição de uma situação favorável.

“Normalmente, o dano jurídico vem aferido à lesão de interesses juridicamente tutelados pelo Direito[7] ou, se se quiser, à perturbação de bens juridicamente protegidos[8]”. No entanto, estas asserções levantam algumas dificuldades em situações concretas em que pode faltar um determinado bem e, não obstante, haver dano[9]. Por outro lado, também é susceptível de faltar o interesse, em sentido objectivo ou em sentido subjectivo, sem que seja de excluir, só por isso, a existência de dano[10].

Daí que se nos afigure mais correcto partir da noção natural de dano e, à semelhança da ilicitude, atentar nas normas jurídicas em jogo, quer para identificar o dano, quer para o delimitar.

Como ensina o Prof. Menezes Cordeiro, “No fundo, o dano em sentido jurídico deve ser aferido à chamada ilicitude objectiva, isto é, às soluções preconizadas pelo Direito para o ordenamento, desde que tomadas em abstracto e consideradas independentemente da vicissitude de violação voluntária”[11].

Deste modo, partindo daquela noção natural de dano, pode obter-se a noção jurídica definindo o dano jurídico como a supressão ou diminuição de uma situação favorável, reconhecida ou protegida pelo Direito.

Esta noção encontra apoio directo no n.º 1 do art.º 483.º, na medida em que nele não se comina uma obrigação de indemnizar prejuízos, mas tão-só a obrigação de os indemnizar quando, em determinadas circunstâncias, tenha sido violado “… o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios …”.

O único dano que foi reconhecido, ao 1.º autor, traduz-se na falta de reembolso da obrigação que havia adquirido à DD, SGPS, S.A., denominada “Obrigação Rendimento Mais 2004”, no valor de 50.000,00 €.

Do art.º 348.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais extrai-se um conceito legal de obrigação como “valor mobiliário que confere direitos de crédito iguais sobre a entidade emitente”[12].

“Enquanto bem mobiliário, a obrigação consiste num documento representativo de um direito de crédito que confere, ao seu titular, a faculdade de exigir a restituição da quantia monetária avançada, a que acrescem os juros acordados, na data do vencimento do empréstimo”[13].

Relativamente à titularidade, independentemente da posição assumida sobre a sua natureza jurídica[14], temos como adquirido que “a relação existente entre o titular da posição jurídica mobiliária e o documento representativo dessa mesma posição é intrínseca à própria titularidade, ou seja, os eventuais direitos reais sobre o documento não são autónomos, nem poderão ser exercidos por outrem que não seja o próprio titular”.[15]

Por isso, o art.º 55.º, do CVM atribui legitimação activa dispondo, no n.º 1: “Quem, em conformidade com o registo ou com o título, for titular de direitos relativos a valores mobiliários está legitimado para o exercício dos direitos que lhes são inerentes.” E, quanto a estes, acrescenta no n.º 3:

São direitos inerentes aos valores mobiliários, além de outros que resultem do regime jurídico de cada tipo:

a) Os dividendos, os juros e outros rendimentos;

b) Os direitos de voto;

c) Os direitos à subscrição ou aquisição de valores mobiliários do mesmo ou de diferente tipo.

Ora, no caso dos autos, constata-se que a obrigação que o 1.º autor subscreveu em 23/11/2007, foi por si transferida para a 2.ª autora em 27 de Maio de 2015 ((cfr. n.ºs 7 e 10 da fundamentação de facto provada, acima elencada).

É certo que tal obrigação tinha como vencimento o dia 24 de Outubro de 2014 e que, nessa data, a entidade emitente não a pagou (cfr. facto provado sob o n.º 11).

Porém, também é verdade, tal como ficou demonstrado, que a mesma entidade continuou a pagar os juros semestrais (remuneratórios acordados) até Setembro de 2015, fazendo-o ao 1.º autor até 27/5/2015 e, a partir daí, à 2.ª autora (n.º 12 da fundamentação de facto).

Isto significa que as partes não consideraram vencida a obrigação e que respeitaram a nova titularidade.

Daí que não se possa afirmar que houve incumprimento definitivo na data prevista para o vencimento da obrigação (cfr. art.º 801.º do Código Civil), mas apenas que incorreu em mora (cfr. art.º 804.º, n.º 2, do mesmo Código), sendo que esta não chegou a transformar-se ou converter-se em incumprimento definitivo por não se tratar de nenhuma das situações previstas no art.º 808.º, n.º 1 daquele Código, a saber: perda (subsequente à mora) do interesse do credor, a apreciar objectivamente (n.º 2) ou falta de realização da prestação em “prazo razoavelmente fixado pelo credor”, sob a cominação estabelecida no preceito legal - interpelação admonitória ou cominatória.

Com a transmissão da obrigação para a 2.ª autora, em 27 de Maio de 2015, o 1.º autor deixou de ser titular do direito de crédito que a mesma titula.

Verificou-se, assim, uma autêntica cessão desse crédito à 2.ª autora (cfr. art.º 577.º, n.º 1, do Código Civil).

Ocorrida a cessão desse crédito, operou, imediatamente, a transferência do direito à prestação do cedente para o cessionário, com todas as faculdades que lhe são inerentes[16].

Deste modo, com a aludida cessão, operou a transferência imediata do direito de crédito titulado pela obrigação do 1.º autor (cedente) para a 2.ª autora (cessionária), com todas as faculdades inerentes.

A faculdade essencial é a exigência da restituição da quantia a que se reporta a obrigação.

Assim, tendo o 1.º autor cedido o seu direito, é óbvio que não pode exigir o reembolso da quantia pedida ao demandado, através desta acção que propôs em 6/1/2017, numa altura em que nenhum direito tinha sobre a invocada obrigação que adquirira.

E, estando em causa o reembolso da quantia titulada pela referida obrigação, o direito à sua restituição não se integrou na sua esfera jurídica na data do seu vencimento, ainda que a violação ilícita que fundamentou o pedido tivesse ocorrido antes dessa data. Tal ocorreu com o incumprimento definitivo da devedora, que apenas se verificou com a insolvência, em 29/6/2016 (cfr. facto provado sob o n.º 14).

Nessa altura, o 1.º autor já não era titular do correspondente direito, pelo que não sofreu o inerente dano.

Não se verifica, pois, o dano que foi reconhecido ao 1.º autor no acórdão recorrido, traduzido na falta de reembolso da obrigação que havia adquirido à DD, SGPS, S.A., denominada “Obrigação Rendimento Mais 2004”, no valor de 50.000,00 €, pelo que não lhe assiste o correspondente direito de indemnização.

Procedem, por conseguinte, as conclusões a ele atinentes, não sendo de apreciar qualquer eventual direito (ou falta dele) da 2.ª autora, como parece depreender-se da conclusão 17.ª, visto que a acção foi jugada improcedente, quanto a ela, na primeira instância e dessa parte não foi interposto recurso de apelação, tendo transitado em julgado.

O recurso de revista merece, pois, provimento, havendo que repristinar a decisão da 1.ª instância.

Sumário:
1. O direito de indemnização pressupõe a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil que são: o facto, a ilicitude, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
2. Na responsabilidade do intermediário financeiro presume-se a culpa quando o dano seja originado pela violação de deveres de informação.
3. O dano é a supressão ou diminuição de uma situação favorável, reconhecida ou protegida pelo Direito.
4. A obrigação, enquanto bem mobiliário, consiste num documento representativo de um direito de crédito que confere, ao seu titular, a faculdade de exigir a restituição da quantia monetária titulada, na data do vencimento do empréstimo.
5. A transmissão da obrigação implica a transferência do direito de crédito, mediante o instituto da cessão, ficando o cessionário com todas as faculdades que lhe são inerentes, desde logo, a exigência do reembolso do capital investido.
6. Não existe incumprimento definitivo do devedor, mas simples mora, quando, após a data de vencimento do título, continuam a ser pagos os juros remuneratórios acordados.
7. Com a cessão do crédito, opera imediatamente a transferência do direito à prestação do cedente para o cessionário, pelo que aquele deixa de ter direito de restituição do reembolso, não sofrendo o correspondente dano.

III. Decisão

Por tudo o exposto, acorda-se em julgar o recurso de revista procedente e em revogar o acórdão recorrido, repristinando a decisão da 1.ª instância.


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Custas pelos recorridos.


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Lisboa, 30 de Abril de 2019

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[1] Do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Cível de Lisboa – Juiz 14.
[2] Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Juíza Conselheira Dr.ª Maria João Vaz Tomé
2.º Adjunto: Juiz Conselheiro Dr. António Magalhães

[3] Certamente por lapso, visto que a acção já fora proposta no Tribunal da Comarca de Lisboa, que entende ser o competente.
[4] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª edição, 9.ª reimpressão, pág. 101.
[5] Na versão do Decreto-Lei n.º 357-A/2007, de 31 de Outubro, a que nos referiremos, salvo menção em contrário, por ser aquela que estava em vigor (cfr. n.º 1 do art.º 12.º do Código Civil) na data em que o 1.º autor adquiriu a “Obrigação Rendimento Mais 2004 – 23 de Novembro de 2007 (cfr. facto n.º 7 da fundamentação de facto).
[6] Assim, entre outros, os recentes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Janeiro de 2019 e de 7 de Fevereiro de 2019, proferidos, respectivamente, no processo n.º 2406/16.4T8LRA.C2.S1 e no processo n.º 31/17.1T8PVZ.P1.S1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
[7] Cfr. Brigitte Keuk, Vermorgensschaden und Interesse (1968), 11-12, citada por Menezes Cordeiro, Tratado, II, tomo III, pág. 512.  
[8] Cfr. Deutsch, Haftungsrecht, 2.ª ed., 495 e Gomes da Silva, O dever de prestar e o dever de indemnizar, 123, o qual fala na frustração dos fins que, pela atribuição do bem, podiam ser prosseguidos, ambos ali também citados.
[9] Pense-se num caso de perturbação na contratação, onde não existe, ainda, qualquer bem concreto.
[10] Por essa razão, a noção actual de interesse é feita decorrer da noção do próprio dano e não o inverso, sustentando-se que o interesse surge como a utilidade que, uma vez suprimida, dá azo a um dano – cfr. PINTO, Paulo Mota, Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, I (2008), 528 e segs..
[11] Tratado, cit., II, tomo III, pág. 512.
[12] Cfr. A Barreto Menezes Cordeiro, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, 2.ª edição, Almedina, pág. 165.
[13] Ibidem, ob. e local citados.
[14] Sendo possível evidenciar três posições: 1. Coexistência de dois direitos distintos; 2. Desconsideração da dimensão real do título de crédito; e 3. Absorção da dimensão real pela dimensão obrigacional.
[15] Ibidem, ob. citada, pág. 204.
[16] Neste sentido, António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, tomo IV, 2010, pág. 222.