Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04S2540
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ABÍLIO VASCONCELOS
Descritores: SOCIEDADE POR QUOTAS
GERENTE
ACTO VINCULATIVO
GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES
NULIDADE
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ200409300025402
Data do Acordão: 09/30/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 2049/03
Data: 02/05/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - Os actos praticados pelo gerente em nome da sociedade, e dentro dos poderes que a lei lhe confere, vinculam-na perante terceiros.
II - Quando uma sociedade comercial preste garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades e pretenda obter a declaração da sua nulidade, ao abrigo do disposto no art. 6º nº 3 do C.S.C., recai sobre a sociedade garante o ónus da prova da inexistência de interesse próprio e de relação de domínio ou de grupo com a entidade beneficiária.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A", Lda. intentou a presente acção, com processo ordinário, contra B, SCC, Lda., pedindo se declarem nulas ou, subsidiariamente, anuladas as hipotecas celebradas por escritura pública de 03 de Junho de 1993, lavrada de fls. 77v. a 79v. do Lº 132-I das Notas do 21º Cartório Notarial de Lisboa e que seja ordenado o cancelamento dos registos dos actos anulandos e todos os que depois deles e com base neles foram registados.

Para o efeito alega, em síntese que na sua assembleia geral de 10.05.1993, reunida a pedido de uma das suas sócias, foi deliberada a constituição das hipotecas em causa que tinham por conteúdo a prestação de garantia para pagamento de uma letra aceite por C, Lda, que esta não pagou, sendo certo que tais garantias não foram prestadas no interesse da autora e que entre esta e a C, Lda. não existe relação de domínio ou de grupo.

A Ré, citada, contestou dizendo, em súmula, que lhe não pode ser aposta qualquer limitação que afecte a validade das hipotecas, já que é terceiro e agiu de boa-fé, actuando a A. com abuso de direito, estando a invocada anulabilidade sanada, por caducidade do direito. Pede a improcedência da acção.

Houve réplica da autora.

Na 1ª instância foi a acção julgada improcedente e tendo a respectiva sentença sido confirmada, pelo acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de fls. 259 a 272, a A., irresignada recorreu para este Supremo Tribunal formulando, nas suas alegações, as seguintes essenciais conclusões:

1 - A hipoteca constituída pela A. a favor da recorrida é contrária ao interesse da A. pelo que a mesma não dispunha de capacidade de exercício para a prática do acto, nos termos dos nºs 1 e 3 do art. 6º do Cód. Soc. Comerciais.
2 - À autora cabia invocar o direito à invalidade do negócio jurídico e à ré alegar e provar factos demonstrativos do interesse próprio da A., na prestação das garantias e/ou de que esta sociedade tinha uma relação de domínio ou de grupo com a "C, Lda"..
3 - Não tendo a R. alegado a verificação de qualquer uma dessas duas situações, os factos susceptíveis de as integrarem não poderiam ser quesitados, como o não deveriam ter sido as afirmações pela negativa plasmadas a esse propósito pela A. na petição inicial.
4 - Com a introdução do nº 3 do art. 6º do Cód. Soc. Comerciais, o legislador quis acautelar os interesses dos credores sociais, tipificando dois casos de excepção ao regime de incapacidade ali estabelecido.
5 - A interpretação dada pelas instâncias àquele art. 6º nº 3 conduz à perversão da ratio legis, ao fazer impender sobre o impugnante o ónus de provar a não existência das duas situações ressalvadas, naquele preceito como condição de obter a invalidade das garantias prestadas no interesse de entidades terceiras relativamente a quem as presta.
6 - O grande vício do raciocínio das instâncias consistiu em tornar a inexistência das excepções como facto constitutivo do direito, imputando à A. o impossível ónus de provar aqueles factos negativos.

Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido.

Respondeu a recorrida pugnando pela improcedência da revista.

Corridos os vistos legais, cabe decidir.

A Relação considerou provados os seguintes factos:

1 - Tomada a deliberação, por escritura pública de 03 de Junho de 1993, lavrada a fls. 77v. a 79v. do Lº 132-I, das notas do 21º Cartório Notarial de Lisboa, a A. constituiu hipoteca a favor da ré sobre os seguintes bens:
- Fracção autónoma, designada pelas letras "IP", correspondente ao bloco oito, quinto andar esquerdo poente, destinada a habitação, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, designado por " Edifício Riamar, sito no largo de Camões, no lugar e freguesia de S.Pedro concelho de Faro, inscrito na respectiva matriz sob o art. 5679º e descrito na conservatória do Registo Predial de Faro sob a ficha nº 01834, da referida freguesia;
- Função autónoma designada pelas letras "IS", correspondente ao bloco oito, sexto andar esquerdo poente, destinada a habitação, do prédio urbano supra identificado.

2 - Aquelas hipotecas foram constituídas"... para garantia do pagamento de uma letra no valor de 11.409.300 pesetas, o que ao câmbio da portaria nº 3/93, de 6 de Janeiro, se traduzem em 15.143.567$00, a qual foi aceite pela sociedade "C, Lda. com sede na Senhora da Estrada, freguesia de Vilarouco, concelho de S. João da Pesqueira...".
3 - A "C, Lda." não honrou o seu compromisso para com a ré, não tendo procedido ao pagamento da letra, nem no vencimento - que ocorreu a 30 de Abril de 1993 -, nem posteriormente.
4 - No momento em que foi celebrada a assembleia geral, 10 de Maio de 1993, ainda não se encontrava devidamente registada a cessão de quota a favor da "D, Lda. pelo que a referida quota ainda estava registada, a favor de E, que, juntamente com F, eram sócias da autora.
5 - O capital social da C, Lda. encontra-se distribuído pelas sócias E e G, Lda.
6 - A autora tem por objecto a compra, administração e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, indústria de construção civil, incluindo a execução de empreitadas de obras públicas.
7 - O capital social da A. encontra-se dividido em duas quotas iguais, no valor de 200.000$00 cada uma, pertencentes a F e a "D, Lda..
8 - No dia 10 de Maio de 1993 reuniu a assembleia geral da autora.
9 - Nessa assembleia geral foi admitida a presença da senhora E.
10 - Pretendia a E que a ora A. constituísse hipotecas para garantir dívidas de uma sociedade de que aquela senhora é sócia, a "C, Lda".
11 - A sócia F, não estava de acordo com o acto pretendido por temer que os bens da A. viessem a responder pelas dívidas da "C, Lda", sociedade esta já então em muito precária condição económico-financeira, facto de que deu notícia naquela assembleia geral.
12 - O representante da sócia "D, Lda". pugnou pela prestação das garantias, referindo que os laços familiares existentes com a sócia da "C, Lda." impunham que a A. acudisse a esta última sociedade.
13 - Este argumento não foi, contudo, de molde a convencer a sócia F, a aprovar a deliberação que teve por conteúdo a constituição das hipotecas.
14 - A deliberação da A., que teve por conteúdo a prestação de garantias a dívida de terceiros foi, assim, tomada com os votos favoráveis da "D, Lda" e com a abstenção da sócia F.
15 - Não é comum às duas sociedades, Autora e C, Lda, a direcção de ambas, nem uma exerce a gestão da outra, nem a A. é sócia da C, Lda nem esta é sócia daquela.
16 - A ora R. fez distribuir, em 04 Abril de 1994, contra a A. e a referida C, Lda, execução ordinária para pagamento da letra e dos respectivos juros.
17 - Aquela execução foi distribuída ao 2º juízo do Tribunal Judicial de Faro, onde foi autuada com o nº 167/1994.
18 - O capital social da "D, Lda". está distribuído pelas sócias "G, Lda" e F.

Dispõe o art. 6º nº 1 do Cód. das Soc. Comerciais que "a capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessárias ou convenientes à prossecução do seu fim, exceptuados aqueles que lhe sejam vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular".

Por sua vez, prescreve o nº3 do mesmo preceito que "considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo".

E é neste nº 3 que terá de ser encontrada a solução para a questão que é posta em sede de revista.

Como acima se disse, peticiona a A. recorrente a declaração de nulidade ou, subsidiariamente, de anulação das hipotecas por si constituídas a favor da ré, para garantir o pagamento de uma letra aceite por C, Lda., com o fundamento de que tais garantias não foram prestadas no seu interesse e de que entre a A. e a C, Lda. não existe relação de domínio ou de grupo.

As decisões das instâncias foram no sentido da improcedência da acção por a A. não ter provado a inexistência daquele interesse e da relação de grupo.

Defende a A. recorrente que era à ré que incumbia a prova, para a obstaculização da declaração de nulidade, ou anulação, das referidas garantias, de que existia justificado interesse próprio da sociedade garante ou de que se tratava de sociedade em relação de domínio ou de grupos.

Portanto, a única questão objecto do recurso é, precisamente, a de saber se é a A. que tem de provar a inexistência do aludido interesse e da relação de grupo, ou se é sobre a ré que incide o ónus da prova da existência daquele interesse ou relação de grupo para, assim, poder obstar à decretação da pretendida nulidade, ou anulação.

Porém, antes de entrarmos na análise desta questão, há que fazer ressaltar a invalidade das considerações tecidas pela recorrente sobre a matéria de facto e organização do questionário.

Reiteradamente tem sido dito que o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, não pode conhecer da matéria de facto, a não ser nos casos excepcionais previstos no nº 2 do art. 722º do C.P. Civil.
As questões de facto são, em regra, julgadas definitivamente pela Relação cabendo ao Supremo acatar esse julgamento e proceder à aplicação definitiva do regime jurídico que julgue adequado nos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido.

E no que tange à organização do questionário são bem actuais e pertinentes os seguintes excertos do acórdão proferido em plenário, em 14/04/1999, publicado no D.R.IIS., de 17.07.99: "são bem diferentes os critérios a utilizar na organização da especificação e questionário e no julgamento da revista: naquele deverão considerar-se "as várias soluções da questão de direito" (art. 511º nº1 do C.P. Civil) enquanto que, na revista, "o direito aplicável" (art. 730º nº1 do mesmo Código), ou seja, a solução jurídica que efectivamente irá resolver a causa".

"Uma vez julgada a matéria de facto, proferida a respectiva decisão, o que passa a contar são as respostas ao questionário e não as perguntas (art. 653º do C.P.Civil)".
" O que cabe impugnar perante o Supremo é o julgamento feito, isto é, a substância em que a decisão se fundamentara.
"Na revista (um recurso que como regra tem efeito meramente devolutivo) só cabe apreciar se a lei foi respeitada, no triplo sentido de decidir se há erros de determinação da norma jurídica aplicável, da sua interpretação ou da sua aplicação, que caiba censurar e corrigir.

Por isso, os poderes do Supremo são os necessários ao exercício desta função, ou seja, os dos art.s 722º nº 2, segundo segmento, e 729º do C.P. Civil., e mais nenhuns, já que outros seriam desnecessários, impertinentes e desvirtuariam a função do Supremo como tribunal de revista".

Volvendo à questão supra enunciada, desde já se adianta que a decisão a proferir vai engrossar o caudal da corrente jurisprudencial e doutrinária, ilustrada no ac. deste Supremo Tribunal de 21/09/2000, publicado na Col. Jur-Acs. do S.T.J.- Ano VIII, III, págs. 36 e segs. (v. citações nele feitas), que defende caber à autora a prova da inexistência de justificado interesse próprio da sociedade garante ou de relação de grupo.

Na verdade, o citado art. 6º tem o seu fundamento no nº 1 do art. 9º da 1ª Directiva do Conselho da CEE nº 68/151, de 09/03/68 (in JOCE nº L-65, de 14/03/68), onde se dispõe que os autos realizados pelos órgãos sociais obrigam a sociedade relativamente a terceiros, mesmo quando tais actos são estranhos ao objecto social, a menos que excedam os poderes que a lei confere ou permite conferir aos referidos órgãos.

Todavia, os estados membros podem estabelecer que a sociedade não seja obrigada por actos que superem os limites do objecto social se provar que o terceiro sabia ou não podia ignorar, atentas as circunstâncias, que o acto superava os ditos limites; a publicação dos estatutos não poderá constituir prova bastante desse conhecimento".

Em consonância com esta regra, e como justificação para o texto do referido art. 6º, fez o nosso legislador constar do preâmbulo do DL 262/86, de 02/09, que aprovou o Cod. Soc. Com., sob o nº 23, o seguinte:

"Quanto à vinculação da sociedade pelos gerentes, adopta-se uma alteração importante ao regime vigente, que decorre da primeira Directiva da CEE. Os actos praticados pelo gerente em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhe confere vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato social ou resultantes da deliberação dos sócios. A sociedade pode opor a terceiros limitações de poderes resultantes do objecto social se provar que o terceiro tinha conhecimento de que o acto praticado não respeitava essa cláusula e se, entretanto, ela não tiver assumido o acto, por deliberação expressa ou tácita dos sócios, mas tal conhecimento não pode ser provado apenas pela publicidade dada ao contrato da sociedade (art. 260º)."

Do que se acaba de expor resulta que, para produzir efeitos perante terceiros, se faz recair sobre a sociedade o ónus de provar a sua incapacidade para a realização de certos negócios jurídicos.

E, a melhor hermenêutica jurídica leva, in casu, a que se faça incidir sobre a A. sociedade o ónus de provar a inexistência de justificado interesse próprio ou de relação de grupo.

Tendo sido a sociedade A. quem prestou, a terceiro, as questionadas garantias, e pretendendo ela valer-se, agora, da nulidade dos actos que praticou, deverá ser ela a ter que provar a inexistência de qualquer situação legitimadora dessa prática.

Aliás, transcrevendo o entendimento de Luís Serpa de Oliveira sobre este tema expresso no mencionado acórdão deste Supremo de 21 de Setembro de 2000, é "o órgão da administração da sociedade que tem condições para apurar se esta tem interesse próprio na prestação da garantia, bem como se lhe interessa ou não dar a conhecê-lo".

E, nada obsta a considerar a inexistência das duas situações ressalvadas no nº 3 do art. 6º do C.S.C. como elemento constitutivo do direito que a A. pretende fazer valer.

Basta atentar nos ensinamentos de Pires de Lima e Antunes Varela ministrados na anotação, no Código Civil Anotado, ao art. 342º.

"Para sabermos se um facto é constitutivo ou impeditivo não se pode olhar ao facto isoladamente considerado, mas à sua conexão com o direito invocado ou com a pretensão formulada.

Assim, o erro, o dolo e a coacção revestem em regra a natureza de factos impeditivos; mas, se o autor vier alegar qualquer desses vícios para pedir a declaração judicial de nulidade do negócio, esses factos passam a funcionar como constitutivos (da pretensão deduzida pelo autor).

Nos casos de dúvida sobre se determinado elemento é facto constitutivo ou é a sua falta que representa um facto impeditivo, o nº 3 do artigo 342º dá um critério supletivo, optando pela primeira solução".

Concluindo.

Quando uma sociedade comercial preste garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades e pretenda obter a declaração da sua nulidade, ao abrigo do disposto no art. 6º nº 3 do C.S.C., a sociedade garante tem que provar, para alcançar aquele objectivo, a inexistência de interesse próprio e de relação de domínio ou de grupo com a entidade beneficiária.

Como no caso em apreço a A. não provou a inexistência daquelas duas situações, tinha a acção que improceder.
Termos em que se julga o recurso improcedente e se confirma o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 30 de Setembro de 2004
Abílio Vasconcelos,
Ferreira Girão,
Luís Fonseca.