Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
748/17.0PBMAI-A.P1-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: CARLOS ALMEIDA
Descritores: ESCUSA
JUÍZ DESEMBARGADOR
IMPARCIALIDADE
PROCESSO DISCIPLINAR
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Data do Acordão: 06/14/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA
Decisão: NÃO CONCEDIDA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – SUJEITOS DO PROCESSO / JUIZ E TRIBUNAL / JURISDIÇÃO / IMPEDIMENTOS, RECUSAS E ESCUSAS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 9.º, N.º 1, 39.º, 40.º E 43.º, N.ºS 1 E 2.
Sumário :

I - O Juiz desembargador requerente apresentou pedido de escusa, temendo que a sua intervenção num processo de violência doméstica possa ser vista como suspeita dada a crítica pública, nos meios de comunicação e nas redes sociais, de decisões por ele anteriormente proferidas nesta matéria. II - Um pedido de escusa ou de recusa, enquanto instrumento de garantia da imparcialidade do tribunal, não se destina a aquilatar se o juiz possui ou não os requisitos necessários para o exercício de funções jurisdicionais. Trata-se de matéria completamente estranha ao processo e a este STJ, que ao CSM cumpre apreciar. III - Ao STJ não compete, portanto, pronunciar-se quanto à questão de saber se o juiz desembargador está ou não em condições de julgar todos os casos que lhe forem atribuídos ou uma determinada categoria de casos, sendo certo que da distribuição, enquanto modo de repartição igualitária e aleatória do serviço judicial entre os magistrados, não pode ser excluída determinada espécie de processos. Estando ao serviço, o juiz tem aptidão para julgar todos os processos que lhe forem distribuídos com os quais não tiver uma particular relação. IV - Não será, por certo, o facto de o CSM ter instaurado um processo disciplinar ao requerente, que, tanto quanto se sabe, tem a ver com a eventual utilização de expressões consideradas menos adequadas e não propriamente com o teor da decisão proferida, que pode gerar receio quanto à imparcialidade do julgador. V - Não será também a crítica pública, justa ou injusta, feita nos meios de comunicação e nas redes sociais a anteriores decisões proferidas ou subscritas pelo requerente que constitui motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. VI - A liberdade de imprensa e de expressão e informação constitucionalmente asseguradas não afastarão, por certo, o tribunal do dever de, no respeito dos demais princípios e valores enunciados na lei fundamental, administrar a justiça penal de acordo com a lei e o direito, como estabelece o n.º 1 do art. 9.º do CPP, não se podendo o juiz sentir-se condicionado pela forma como aqueles direitos, numa sociedade aberta e democrática, são quotidianamente exercidos pelos mais variados actores, não existindo, pois, qualquer fundamento para o deferimento do solicitado pedido de escusa.

Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça


I - RELATÓRIO
1 – O Dr. AA, juiz desembargador colocado no Tribunal da Relação do ..., pediu que este tribunal o escusasse de intervir na apreciação de um recurso interposto no processo em epígrafe, dizendo o seguinte:

AA, juiz desembargador, vem formular perante V.ªs Ex.ªs pedido de escusa, nos termos e com os fundamentos seguintes:

1. O requerente exerce, actualmente, funções na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do ...;

2. No âmbito das suas funções, foi relator de um acórdão, publicado em 11.10.2017, proferido no processo n.º 355/15.2 GAFLG.P1, pelo qual foi julgado improcedente recurso interposto da decisão de primeira instância que condenou um dos (dois) arguidos, além do mais, por crime de violência doméstica, na pena de 15 meses de prisão, suspensa na sua execução;

3. O acórdão proferido confirmou a decisão da primeira instância (com a qual se conformara a ofendida/assistente), mas, distorcendo, intencionalmente, o sentido da decisão, uma publicação periódica (jornal diário) chamava para notícia de primeira página o aludido acórdão, dizendo, em título, que o Tribunal da Relação "desculpava" a violência doméstica contra mulher que cometeu adultério, fazendo, assim, passar a mensagem de que o tribunal tinha absolvido o agressor enganado pela mulher e omitindo que o tribunal superior tinha, apenas, confirmado uma condenação;

4. A partir daí, a "notícia" espalhou-se nas chamadas "redes sociais", exponenciando-se a mentira de que o juiz AA "desculpava", "justificava" ou "minimizava" a violência doméstica e ainda fazia "censura moral" (sic) à mulher;

5. Como é do conhecimento público (pela amplíssima divulgação que teve), cavalgando a onda da mentira e deturpação, algumas pessoas promoveram uma campanha de ódio e de instigação à violência contra o aqui peticionante, com apoio da comunicação social;

6. Tendo começado por manifestar, publicamente, que não iria, nem poderia, intervir em decisões jurisdicionais, por estar obrigado a respeitar a independência dos tribunais e dos juízes, o Conselho Superior da Magistratura (CSM) deu o dito por não dito e acabou por decidir perseguir disciplinarmente o peticionante;

 7. Desde então, tem-se andado a escabichar as decisões em que intervém o juiz AA (seja como relator, seja como adjunto) para as pôr em causa e encontrar um pretexto (qualquer que seja) para prosseguir a campanha persecutória e pressionar o CSM a agir contra si;

8. Claro exemplo do que afirma, é a recente "notícia" do jornal "Diário de Notícias" de 30.05.2018, publicada na página 8 e com chamada de primeira página, sob o título "Vítima ser a única testemunha anula prisão por violência doméstica" (documento que vai junto);

9. O pretexto foi um acórdão em que o peticionante interveio como adjunto e razões formais (utilização do processo abreviado fora do condicionalismo legal) determinaram a anulação da decisão que condenou o arguido a pesada pena de prisão (efectiva) pelo crime de violência doméstica;

10. Como evidencia o teor do texto publicado, com um título que deturpa o sentido da decisão, o objectivo foi pôr em causa a decisão porque nela interveio o Juiz AA.

Bem revelador é o facto de o nome do peticionante ser aí várias vezes mencionado, com total despropósito, e, sobretudo, a referência, com destaque, ao processo disciplinar que o CSM lhe instaurou.

Sendo o processo disciplinar de natureza confidencial até decisão final (artigo 113.º, n.º 1, do EMJ), o autor da "notícia" revela estar bem informado sobre o andamento do processo (chegando ao ponto de indicar o dia em que começaram a ser ouvidas as testemunhas) e a sua fonte de informação só pode estar no CSM (aliás, nem sequer é a primeira vez que surgem notícias sobre o processo disciplinar, que só podem ter origem no CSM);

11. Não é necessário ser muito perspicaz para perceber que "notícias" destas têm a mesma origem que aquelas que despoletaram a campanha de ódio e violência orquestrada pelas aludidas pessoas contra o peticionante. E servem os mesmos fins: colocar em causa as decisões em que intervenho e denegrir-me para provocar uma reacção do CSM contra mim.

12. É neste contexto de persistente campanha persecutória, com eco no CSM, que me foi distribuído o recurso interposto no processo n.º 748/17.0PBMAI, proveniente do Juízo Criminal (J3) da Instância Local da ....

O recurso é interposto pelo arguido que reage contra o despacho datado de 14.03.2018, pelo qual, em reexame dos pressupostos da prisão preventiva, foi mantida esta medida coactiva aplicada a BB, indiciado pela prática de um crime de violência doméstica previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b), do Código Penal.

 O parecer do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto nesta Relação é no sentido de que o recurso merece provimento e, portanto, que a medida coactiva de prisão preventiva deve ser revogada, sugerindo a sua substituição pela medida de obrigação de permanência na habitação.

Assim, é de admitir que a prisão preventiva tenha sido aplicada fora das hipóteses ou das condições legalmente previstas, ou que tenham deixado de subsistir as circunstâncias justificadoras da sua aplicação;

13. Porém, tendo em conta o quadro traçado, se a decisão for no sentido da procedência do recurso e da consequente revogação da prisão preventiva, é altamente provável que irá desencadear mais histeria, mais campanhas de ódio e mais exigência de reacção punitiva por parte do CSM que, a avaliar pelo que antes aconteceu, não deixará passar a oportunidade de voltar a arrogar-se o poder de sindicar a decisão judicial e reincidir na perseguição disciplinar.

Se a decisão for no sentido da improcedência do recurso e consequente manutenção da prisão preventiva, o arguido/recorrente, com toda a legitimidade, dirá que toda esta situação afectou a isenção e a liberdade de decisão do relator e porá em causa a justiça da decisão.

14. Justifica-se, pois, a derrogação, no caso, da regra do juiz natural, pois existe o risco de a sua intervenção gerar desconfiança, por estar condicionado e, portanto, não ter plena liberdade de decisão.

Como está implícito na formulação do pedido, não se realizou, ainda, a conferência para o julgamento do recurso.

Assim, ao abrigo do disposto no artigo 43.º, n.ºs 1 e 4, vem peticionar que V.ªs Ex.ªs o dispensem de intervir no julgamento deste recurso.

II – FUNDAMENTAÇÃO
2 – O Código de Processo Penal estabelece, no Capítulo VI do Título I do Livro I da sua primeira parte, o regime dos impedimentos, recusas e escusas, através do qual pretende, por um lado, assegurar a imparcialidade do tribunal e, por outro, impedir o desvirtuamento da forma como ele próprio configurou o processo penal.
Aquele primeiro desiderato decorre da própria noção de função jurisdicional, que pressupõe a existência de duas partes contrapostas e de um terceiro imparcial, alheio aos interesses de qualquer delas, que dirime o conflito existente entre as mesmas. A imparcialidade do juiz, que tem natureza subjectiva, mas que o legislador tem necessidade de objectivar enunciando as situações em que pode ocorrer, tem a ver com o facto de o juiz não servir as finalidades de nenhuma das partes em conflito, sendo a decisão, como decorre do artigo 9.º, n.º 1, do Código, proferida de acordo com a lei e o direito.
Daí que este diploma determine que não podem exercer a sua função no processo penal todos aqueles que, por relações familiares ou outras, necessariamente extraprocessuais, tenham um interesse relevante quanto ao sentido da decisão a proferir ou cuja intervenção no processo possa vir a ser considerada suspeita por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador. É o que resulta, quanto aos impedimentos, do artigo 39.º do Código de Processo Penal e, quanto às recusas e às escusas, do artigo 43.º, n.º 1, do mesmo diploma legal.
A razão de ser do segundo desiderato não se encontra relacionada com a imparcialidade do tribunal, mas com a garantia de, através do processo, se alcançar uma tutela judicial efectiva. O Código, ao desenhar a arquitectura do processo, configurou mecanismos de controlo e de aferição relacionados com a sua estrutura acusatória, que não podem ser desvirtuados no seu concreto modo de funcionamento. Ao estabelecer um sistema de recursos, o legislador pretendeu que as decisões proferidas pudessem vir a ser reexaminadas por outras pessoas que pudessem aquilatar da sua conformidade com a lei e o direito. Ao separar as funções do Ministério Público e do juiz, atribuindo àquele a responsabilidade pela dedução da acusação e pela sua sustentação efectiva na instrução e no julgamento, e ao instituir um mecanismo que permite o controlo judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, o legislador pretendeu que não se confundissem as funções de configurar o objecto do processo com as de julgar o caso. De igual forma, ao estabelecer, como regra, que não podem valer em julgamento, nomeadamente para o efeito da formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas na audiência, o legislador pretendeu que a decisão a proferir não fosse afectada por valorações efectuadas em momentos anteriores com base em meios de prova que não podiam ser valorados para aquele efeito.
Com estes fundamentos e visando alcançar estes objectivos, o legislador estabeleceu os impedimentos decorrentes do artigo 40.º do Código de Processo Penal e as causas de recusa e de escusa enunciadas no artigo 43.º, n.º 2, do mesmo diploma. Todas estas incompatibilidades, que têm origem intraprocessual e respeitam apenas a certos actos e não a todo o procedimento, visam, como se disse, impedir o desvirtuamento da forma como o legislador configurou o processo penal.

3 – É a esta luz que deve ser analisado o pedido do Sr. juiz desembargador para que este tribunal o escuse de participar na apreciação de um recurso de um despacho que reapreciou e manteve a prisão preventiva imposta a um arguido num processo em que lhe é imputada a prática de um crime de violência doméstica.
Não está em causa, portanto, a existência de uma incompatibilidade para a prática de um qualquer acto processual por o mesmo magistrado já ter anteriormente praticado outro, mas a existência de garantias de imparcialidade, temendo o Sr. juiz desembargador requerente que a sua intervenção num processo de violência doméstica possa ser vista como suspeita dada a crítica pública, nos meios de comunicação e nas redes sociais, de decisões por ele anteriormente proferidas nesta matéria.
Localizada e precisada desta forma a questão a resolver, analisemos então os fundamentos invocados pelo requerente.

4 – Sobre esta questão, há que dizer, em primeiro lugar, que um pedido de escusa ou de recusa, enquanto instrumento de garantia da imparcialidade do tribunal, não se destina a aquilatar se o juiz possui ou não os requisitos necessários para o exercício de funções jurisdicionais. Trata-se de matéria completamente estranha ao processo e a este Supremo Tribunal, que ao Conselho Superior da Magistratura cumpre apreciar.
Ao Supremo Tribunal de Justiça não compete, portanto, pronunciar-se quanto à questão de saber se o Sr. juiz desembargador está ou não em condições de julgar todos os casos que lhe forem atribuídos ou uma determinada categoria de casos, sendo certo que da distribuição, enquanto modo de repartição igualitária e aleatória do serviço judicial entre os magistrados, não pode ser excluída determinada espécie de processos.
Estando ao serviço, o juiz tem aptidão para julgar todos os processos que lhe forem distribuídos com os quais não tiver uma particular relação.
Vem isto a propósito dos termos em que foi realizado o pedido de escusa.
Embora não o tenha dito expressamente, o Sr. juiz desembargador parece implicitamente pretender que este tribunal, pelo menos por um determinado período de tempo, o dispense de intervir em processos que tenham um determinado objecto, no caso, que versem sobre crimes de violência doméstica, e não apenas no caso dos autos. Só isso satisfaria a sua pretensão.
Trata-se de desejo que, pela sua natureza e extensão, não pode ser acolhido por este tribunal.

5 – Mas, mesmo reduzindo o pedido de escusa a estes autos, verificamos que o Sr. juiz desembargador não tem qualquer relação com esta causa, com qualquer dos intervenientes na mesma, nem com os interesses sobre que a mesma versa, o que afasta claramente a aplicação do disposto no artigo 43.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Não será, por certo, o facto de o Conselho Superior da Magistratura ter instaurado um processo disciplinar ao requerente, que, tanto quanto se sabe, tem a ver com a eventual utilização de expressões consideradas menos adequadas e não propriamente com o teor da decisão proferida, que pode gerar receio quanto à imparcialidade do julgador.
E não será também a crítica pública, justa ou injusta, feita nos meios de comunicação e nas redes sociais a anteriores decisões proferidas ou subscritas pelo requerente que constitui motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
Tais críticas, tanto quanto nos é dado conhecer, não foram formuladas por existir uma particular relação do Sr. juiz desembargador com alguém ligado aos diferentes processos, mas pelo alegado enviesamento das suas decisões que, de acordo com os críticos, incorporariam valores estranhos ao nosso ordenamento jurídico actual.
A liberdade de imprensa e de expressão e informação constitucionalmente asseguradas não afastarão, por certo, o tribunal do dever de, no respeito dos demais princípios e valores enunciados na lei fundamental, administrar a justiça penal de acordo com a lei e o direito, como estabelece o n.º 1 do artigo 9.º do Código de Processo Penal, não se podendo o Sr. juiz sentir condicionado pela forma como aqueles direitos, numa sociedade aberta e democrática, são quotidianamente exercidos pelos mais variados actores.
Não existe, pois, qualquer fundamento para o deferimento do solicitado pedido de escusa.

III – DISPOSITIVO
3 – Pelo exposto, entende este tribunal não conceder ao Sr. Dr. AA, juiz desembargador colocado no Tribunal da Relação do ..., escusa de intervir na fase de recurso do processo em epígrafe, no qual é arguido BB.
Sem custas.


²

Supremo Tribunal de Justiça, 14 de Junho de 2018


(Carlos Almeida)


( Baltazar Pinto)


(Souto de Moura)