Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
18047/16.3T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: CHAMBEL MOURISCO
Descritores: SEGURO DE SAÚDE
USO LABORAL
Data do Acordão: 03/27/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA TRAZIDA PELA RÉ. JULGADA IMPROCEDENTE A AMPLIAÇÃO DA REVISTA REQUERIDA PELAS AUTORAS. JULGADOS PREJUDICADOS O RECURSO SUBORDINADO E A AMPLIAÇÃO DO OBJETO DE REVISTA REQUERIDA PELA RÉ.
Área Temática:
DIREITO DO TRABALHO – FONTES E APLICAÇÃO DO DIREITO DO TRABALHO / FONTES ESPECÍFICAS.
Doutrina:
- António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 2012, 16.ª Edição, Almedina, p. 97;
- Bernardo da Gama Lobo Xavier, Manual de Direito do Trabalho, Verbo, 2014, p. 273;
- José Andrade Mesquita, Direito do Trabalho, 2.ª Edição, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2004, p. 134;
- Júlio Manuel Vieira Gomes, Dos usos da empresa em Direito do Trabalho, Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XLIX, janeiro-dezembro de 2008, n.º 1-4, Almedina, p. 104;
- Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, Parte I, Dogmática Geral, 2012, 3.ª Edição, Almedina;
- Tiago Cochofel de Azevedo, Da relevância Jurídica dos Usos Laborais, Universidade Católica Editora, p. 116.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DO TRABALHO (CT): - ARTIGO 1.º.
ESTATUTOS DA AUTORIDADE NACIONAL DE COMUNICAÇÕES, APROVADO PELO DL N.º 39/2015, DE 16 DE MARÇO: - ARTIGO 1.º, N.º 1.
LEI DE ORGANIZAÇÃO E PROCESSO DO TRIBUNAL DE CONTAS, APROVADO PELA LEI N.º 98/97, DE 26-08: - ARTIGOS 44.º A 48.º.
LEI N.º 67/2013, DE 28-08, LEI-QUADRO: - ARTIGOS 3.º E 5.º, N.º 3.
DECRETO-LEI N.º 39/2015, DE 16-03: - ARTIGO 1.º, N.º 1.
LEI N.º 14/2003, DE 30-01.
LEI N.º 91/2001, DE 20-08 (LEI DE ENQUADRAMENTO ORÇAMENTAL): - ARTIGOS 2.º, N.º 3 E 3.º, N.º 2, ALÍNEA C).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 07-07-2016, PROCESSO N.º 156/12.0TTCSC.L1.S1;
- DE 09-03-2017, PROCESSO N.º 401/15.0T8BRG.G1.S1;
- DE 17-11-2017, PROCESSO N.º 1032/15.0T8BRG.G1.S1.
Sumário :
I - O período de dez anos e nove meses é insuficiente para consolidar como uso laboral uma prática do empregador que consistia em contratualizar, anualmente, um seguro coletivo de saúde, em benefício dos seus trabalhadores.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

           

           

                                                                       I

Relatório:

 1. AA e outros, todos identificados nos autos, intentaram a presente ação declarativa, com processo comum, contra a Autoridade Nacional de Comunicações (ANACOM), pedindo a condenação desta a:

 a) Garantir e proporcionar, de modo efetivo, aos autores e a todos os seus trabalhadores, um sistema complementar de segurança social, gratuito, na modalidade de seguro de saúde, que abranja, ainda, os descendentes daqueles, conferindo-lhes a opção de, a custas suas mas nas mesmas condições, incluírem os seus cônjuges como beneficiários desse contrato;

b) Como concretização do referido na alínea anterior, a assinar e executar, com efeitos reportados a 1 de janeiro de 2016, contrato de seguro de saúde, nas mesmas condições e que preveja as mesmas garantias e regalias, principais e complementares, constantes do caderno de encargos relativo ao concurso público que lançou em 2015;

c) Reembolsar os autores e os restantes trabalhadores das quantias por si pagas na contratação de seguro de saúde, cuja liquidação relegam para incidente próprio ou execução de sentença;

d) Acrescendo às quantias identificadas na alínea anterior, pagar os juros de mora, vencidos à taxa legal, desde 1 de janeiro de 2016 até integral pagamento, cuja liquidação relegam para incidente próprio ou execução de Sentença;

e) Pagar a cada um dos autores uma indemnização pelos danos causados, cuja liquidação também relegam para incidente de liquidação ou execução de sentença.

Para o efeito, alegaram, em síntese, que de há muito a ré proporcionava aquele seguro aos seus trabalhadores mas durante certo período de tempo deixou de o fazer.

 

 2. O tribunal da 1.ª instância, nos termos do art.º 61.º, n.º 2, do Código de Processo do Trabalho, decidiu:

a) – Absolver a ré da instância, por ilegitimidade dos autores, quanto aos pedidos formulados nas alíneas a) a d) do petitório, na parte em que respeitam aos demais trabalhadores da ré, que não os autores;

b) – Julgar extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, quanto aos pedidos formulados nas alíneas a) e b) do petitório, no que aos autores diz respeito;

c) – Julgar a ação improcedente quanto aos pedidos formulados nas alíneas c), d) e e) do petitório, no que aos autores diz respeito, absolvendo a ré do pedido.

 3. Inconformados, os autores interpuseram recurso para o Tribunal da Relação, tendo este concedido parcial provimento à apelação decidindo:

 a) Acrescentar à matéria de facto provada a seguinte alínea:

 AF) Consta do Regulamento do Pessoal do HH, homologado pelos Secretários de Estado das Finanças e das Comunicações, com efeitos a partir de 01-03-1990: (…) Art.º 98.º: Os trabalhadores do ICP ficam abrangidos pelos seguintes regimes de segurança social: a) os trabalhadores a que se refere o artigo 28.º do Decreto-Lei nº 283.º/89, de 23 de Agosto, mantêm o regime de segurança social de que beneficiavam à data de integração e que abrange a inscrição na Caixa Geral de Aposentações, Montepio dos Serviços do estado e regalias de carácter social vigentes naquela data; b) os restantes trabalhadores beneficiarão do regime geral de segurança social; Art.º 99.º: 1. O ICP poderá instituir em benefício dos seus trabalhadores, esquemas complementares de segurança social ou outros benefícios de índice social. (…);

b) Condenar a ré, ora apelada, a:

a) Garantir e proporcionar, de modo efetivo, aos autores um sistema complementar de segurança social, gratuito, na modalidade de seguro de saúde, que abranja, ainda, os descendentes daqueles, conferindo-lhes a opção de, a custas suas mas nas mesmas condições, incluírem os seus cônjuges como beneficiários desse contrato;

b) Como concretização do referido na alínea anterior, a assinar e executar contrato de seguro de saúde, nas mesmas condições e que preveja as mesmas garantias e regalias, principais e complementares, constantes do caderno de encargos relativo ao concurso público que lançou em 2015;

c) No mais, manter a sentença recorrida.

 

4. Inconformada com esta decisão, a ré interpôs recurso de revista, tendo formulado as seguintes conclusões:

A. O presente recurso tem por objeto o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no processo acima identificado, na parte e sobretudo na forma como considerou procedentes os pedidos dos Autores constantes das alíneas a) e b) do seu petitório original, em virtude de incorreta aplicação do direito à matéria de facto provada, atenta a natureza específica de pelo menos um dos sujeitos das relações jurídico-laborais sub judice - a Recorrente.

B. A Recorrente é uma entidade reguladora, Pessoa Coletiva de Direito Público, com a natureza de entidade administrativa independente - artigo 3.°, n.º 3 da Lei n.º 67/2013 e artigo 3.º da Lei Quadro das Entidades Reguladores (LQER) aprovado por aquela Lei.

C. A Recorrente tem atribuições de regulamentação de atividade económica, defesa de serviços de interesse geral, de proteção de direitos e interesses dos consumidores e de promoção e defesa da concorrência dos setores privado, público, cooperativo e social – artigo 3.º da LQER.

D. A Recorrente é dotada de autonomia administrativa, financeira e de gestão, regendo-se pelo direito da União Europeia que lhe seja diretamente aplicável, pelas normas constantes da lei quadro das entidades reguladoras, pela legislação setorial, pelos presentes estatutos, pelos regulamentos internos e demais disposições legais que lhe sejam aplicáveis - artigos 1.° e 3.° dos Estatutos da Recorrente.

E. A Recorrente é dotada de um elevado grau de independência do ponto de vista administrativo e financeiro mas tal não equivale a atribuição de poderes de autogestão absolutos e incondicionais, pois a atividade da Recorrente sempre será balizada pelas exigências legais aplicáveis, maxime pela Constituição da República Portuguesa e conformação ao princípio da legalidade, nos termos e para os efeitos, desde logo, do n.º 2 do artigo 266.° da Constituição da República Portuguesa.

F. Os trabalhadores da Recorrente encontram-se sujeitos ao regime jurídico do contrato individual de trabalho e encontram-se abrangidos pelo regime de segurança social – artigo 32.° da LQER e artigo 42.° dos Estatutos da Recorrente – ­­e no Acordo de Empresa de 2009, cláusula 80.ª, estipulasse que a Recorrente poderá instituir, em benefício dos seus trabalhadores, esquemas complementares de segurança social ou outros benefícios de índole social, como vista à uniformização possível das regalias e benefícios sociais para todos os trabalhadores da Recorrente, independentemente da sua proveniência.

G. Não é concretizada a forma efetiva de tais benefícios, não obstante certo é que, os instrumentos de regulamentação coletiva não podem contrariar norma legal imperativa.

H. O mesmo sucede aliás no caso dos usos laborais, nos termos do artigo 1.° do Código do Trabalho a atribuição de um uso de saúde, a verdade é que estes não podem sobrepor-se a norma imperativa que disponha em sentido contrário, como segue a Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça

I. A condenação da Recorrente nos precisos termos em que a mesma é determinada desconsidera o papel dos usos na hierarquia das fontes de Direito do Trabalho, tal como o legislador a consagrou.

J. Não podia o Tribunal da Relação condenar a Recorrente a implementar um uso determinando a mesma a celebrar e executar um contrato de seguro, inclusivamente com as especificidades e garantias estipuladas nos termos cristalizados no Caderno de Encargos relativo ao Concurso Público que lançou em 2015, sobrepondo-se e sem atender a normas imperativas que disponha em sentido contrário decorrente da natureza específica da Recorrente.

K. A Recorrente encontra-se vinculada, por imposição legal, a submeter os contratos, nomeadamente, o contrato em causa nos presentes autos, à fiscalização prévia do Tribunal de Contas – cfr. al. d) do n.º 3 do artigo 5.º da LQER e al. d) do n.º 3 do artigo 3.º dos Estatutos da Recorrente – que determinam, de forma expressa e inequívoca, que é aplicável à Recorrente «o regime de jurisdição e controlo financeiro do Tribunal de Contas».

L. Os titulares dos órgãos e os trabalhadores da Recorrente encontram-se sujeitos a responsabilidade financeira a efetivar pelo Tribunal de Contas – cfr. n.os 1 e 2 do artigo 46.° da LQER e n.os 1 e 2 do artigo 50.º dos Estatutos da Recorrente.

M. Encontram-se sujeitos a fiscalização prévia do Tribunal de Contas, os termos da al. c) do n.° 1 do artigo 5.º da LOFTC, os atos e contratos de qualquer natureza que sejam geradores de despesa ou representativos de quaisquer encargos e responsabilidades, diretos ou indiretos, para as entidades abrangidas pela sua jurisdição e controlo, como é o caso da Recorrente.

N. Em particular estão sujeitos à fiscalização prévia do Tribunal de Contas, os contratos de obras públicas, aquisição de bens e serviços, bem como outras aquisições patrimoniais que impliquem despesa, quando reduzidos a escrito por força da lei, definindo as leis orçamentais, para vigorar em cada ano orçamental, o valor abaixo do qual os contratos ficam dispensados de fiscalização prévia, considerando-se o valor global dos atos e contratos que estejam ou aparentem estar relacionados entre si -determina a al. b) do n.º 1 do artigo 46.º, em conjugação com o artigo 48.º.

 O. No orçamento de Estado para 2018 (e para 2015, 2016 e 2017) determinou-se que se encontram isentos de fiscalização prévia pelo Tribunal de Contas os atos e contratos, considerados isolada ou conjuntamente com outros que aparentem estar relacionados entre si, cujo montante não exceda o valor de EUR 350 000 - cfr. artigo 164.º da Lei n.° 114/2017, de 29 de dezembro.

P. Foi julgado provado o facto da alínea O) «A contratação de tal seguro coletivo de saúde (abrangendo trabalhadores e descendentes), representa para a ré, um custo médio arredondado, que pode variar em função do número de trabalhadores abrangidos, de EUR 400.000».

Q. À Recorrente não é permitido simplesmente e de forma totalmente desprendida assinar e executar o contrato que o Acórdão de que ora se recorre determina pois tal implica a violação de obrigações legais decorrentes da sua natureza jurídica específica, designadamente a obrigação de, primeiro, submeter um tal contrato ao escrutínio do Tribunal de Contas e ainda antes disso até prosseguir o procedimento de concurso público.

R. Ao assinar e executar o contrato nos termos em que foi condenada, sem visto prévio, a Recorrente estará a incumprir normas imperativas legais que a obrigam a submeter tal contrato a visto prévio - violando a lei e, mais ainda a Constituição, em particular do n.º 2 do artigo 266.º da Constituição.

S. Ao não assinar e assim não executar o contrato em causa, a recorrente incumprirá a decisão do Tribunal de que ora se recorre.

T. A condenação da Recorrente a assinar e executar o contrato de seguro sem mais e nos termos especificados na condenação é violadora da al. d) do n.º 3 do artigo 5.° da LQER; da al. d) do n.º 3 do artigo 3.º dos Estatutos da Recorrente; da al. b) do n° 1 do artigo 46.°, em conjugação com o artigo 48.º da LOFTC; e do artigo 164.º da Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro.

U. O Acórdão encontra-se igualmente ferido de inconstitucionalidade, sendo o artigo 1.° do Código do Trabalho inconstitucional quando interpretado no sentido em que um uso laboral se sobrepõe a normas imperativas de procedimento legal e administrativo na celebração de contratos públicos por parte de entidade administrativa independente com a natureza jurídica de pessoa coletiva de direito público, por violação das normas contantes do n.º 2 do artigo 266.º da al. c) do n.º 1 do artigo 209.º e do n.º 1 do artigo 214.º da Constituição da República Portuguesa.

 V. Impõe-se a alteração da decisão recorrida, absolvendo-se a Recorrente dos pedidos a) e b) dos Recorridos, atentos os seus precisos termos: ou, a manutenção da mesma na parte em que se decide pela existência de um uso, salvaguardando que a obrigação da Recorrente à implementação do mesmo sempre se encontrará dependente das normas imperativas que se lhe apliquem; dos procedimentos legais e imperativos a que esta se encontre sujeita atenta a sua específica natureza jurídica; e do resultado de decisões imperativas prévias à sua implementação que poderão obstar à sua realização.

Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis, deverá ser dado provimento ao presente recurso, alterando-se a sentença proferida e absolvendo-se a Recorrente dos pedidos, atentos os seus precisos temos; ou embora mantendo-se a mesma na parte em que decide pela existência de uso, que esta salvaguarde que a obrigação da Recorrente à implementação do mesmo sempre se encontrará dependente (i) das normas imperativas que se lhe apliquem, (ii) dos procedimentos legais e imperativos a que esta se encontre sujeita atenta a sua específica natureza jurídica, e (iii) do resultado de decisões imperativas prévias à sua implementação que poderão obstar à sua realização; com todas as consequências legais daí decorrentes,

 5. Igualmente inconformados, os autores identificados no requerimento com a referência n.º ..., apresentado em 30 de outubro de 2018, vieram interpor recurso subordinado que tem por objeto o acórdão da relação na parte em que decidiu pela coligação processual dos autores, incluindo os ora recorrentes, em detrimento do litisconsórcio, com efeitos, na legitimidade processual dos autores relativamente aos restantes trabalhadores da ré que não são parte na ação e nas custas a pagar, e, ainda, na parte em que absolveu a ré dos pedidos formulados na petição inicial sob as alíneas c), d), e e).

6. Por despacho do relator, transitado em julgado, foi decidido não admitir o recurso subordinado interposto pelos autores relativamente ao decidido no acórdão recorrido quanto à decisão de que a posição dos autores na ação é uma coligação ativa e a decisão sobre a ilegitimidade dos recorrentes quanto ao pedido para os trabalhadores não demandantes.

No mesmo despacho foi admitido o recurso subordinado, interposto pelos autores, na parte referente à absolvição da ré dos pedidos formulados na petição inicial sob as alíneas c), d), e e).

Quanto à parte do recurso subordinado admitido é assim de considerar a seguinte conclusão:

Os AA., Recorrentes, invocaram o dano de forma suficiente e na medida da sua possibilidade, face ao momento da instauração da ação, apenas relegando a sua liquidação para incidente autónomo, pelo que o Tribunal incorreu em erro de julgamento, que urge reparar.

7. A ré apresentou as suas alegações de resposta ao recurso subordinado e veio requerer a ampliação do âmbito deste pois, em seu entender, para além de não se verificar um dano, não se verificam os demais requisitos da responsabilidade civil.

No que diz respeito à parte do recurso subordinado admitido formulou as seguintes conclusões:

a) Os Recorrentes, ao contrário do que se alega, não invocaram ou demonstram quaisquer danos, não constituindo o único facto dado como provado e agora invocado pelos Recorrentes a demonstração de qualquer dano.

b) O facto de a Recorrida permitir que os Recorrentes contratassem diretamente com a companhia de seguros BB, de forma individual e a custas próprias, o referido seguro de saúde, não constitui por si só um dano.

c) Não se encontrando provada a existência de danos, forma-se caso julgado material sobre tal objeto, impedindo nova prova do facto em posterior incidente de liquidação, como segue a jurisprudência, pois o que importa é se ficou ou não demonstrado o dano, o que não se verifica.

d) Amplia-se o Recurso a este propósito, pois para além de não se verificar um dano, como alegado anteriormente, não se verificam os demais requisitos de responsabilidade civil, não se verificando, da parte da Recorrida, qualquer conduta de que possa decorrer qualquer condenação de indemnização por danos alegadamente causados, pois esta, não só agiu nos limites legais, como tudo fez para o cabal esclarecimento desses mesmos limites.

 e) A Recorrida não atuou em qualquer momento com dolo ou mesmo com mera culpa não sendo a sua conduta passível de ser considerada ilícita, pois perante a recusa do visto pelo Tribunal de Contas, encontrava-se vedada à Ré a adoção de qualquer outra atitude e se assim não tivesse atuado estaria, e aí sim, a incorrer em eventual responsabilidade financeira sancionatória, reintegratória, disciplinar e mesmo penal.

f) A Recorrida atuou em conformidade legal e respeito restrito da lei e em conformidade com os seus limites, não podendo de forma alguma ser o seu comportamento qualificado como ilícito, falecendo a análise da sua responsabilidade logo no primeiro pressuposto, atenta a sua inexistência.

8. Os autores responderam ao recurso de revista interposto pela ré, tendo suscitado a questão prévia do abuso de direito, afirmando que a conduta processual da ré está em frontal oposição com o reconhecimento de tais direitos sociais, pelo que não se percebe a forma como se insurge contra o acórdão recorrido, quando, ela própria, sempre agiu no sentido que o mesmo decidiu.

Vieram também os autores, ao abrigo do art.º 636.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, requerer a ampliação da revista para que o tribunal de recurso aprecie o fundamento por eles invocado na petição inicial de que o seu direito se funda não só no uso laboral, mas também na lei e regulamentação coletiva aplicável.

Finalmente, os autores defendem que a alegada inconstitucionalidade da interpretação feita no acórdão recorrido do art.º 1 do Código do Trabalho não merece ser atendida.

9. A ré apresentou resposta à questão prévia suscitada pelos autores do abuso de direito e à matéria da ampliação do âmbito recurso de revista requerida também pelos autores, pronunciando-se pela improcedência das mesmas.

10. Por despacho do relator, transitado em julgado, foi decidido:

a) Admitir o recurso de revista interposto pela ré, bem como a ampliação do seu âmbito pelos autores;

b) Admitir o recurso subordinado interposto pelos autores, na parte referente à absolvição da ré dos pedidos formulados na petição inicial sob as alíneas c), d), e e), bem como a ampliação do seu âmbito requerida pela ré.

11. Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que devem ser negadas as revistas e mantido o acórdão recorrido.

12. Nos recursos interpostos e respetivas ampliações suscitam-se as seguintes questões que cumpre solucionar:

a) A questão prévia suscitada pelos autores de que o recurso da ré consubstancia um exercício abusivo do direito de recurso, configurando litigância de má-fé.

b) Saber se a ré está obrigada a garantir e proporcionar, de modo efetivo, aos autores um sistema complementar de segurança social, gratuito, na modalidade de seguro de saúde, que abranja, ainda, os descendentes daqueles, conferindo-lhes a opção de, a custas suas mas nas mesmas condições, incluírem os seus cônjuges como beneficiários desse contrato, e se esse direito se funda não só no uso laboral, mas também na lei e regulamentação coletiva;

c) A inconstitucionalidade da interpretação efetuada no acórdão recorrido do art.º 1.º do Código do Trabalho no sentido em que um uso laboral se sobrepõe a normas imperativas de procedimento legal e administrativo na celebração de contratos públicos por parte de entidade administrativa independente com a natureza jurídica de pessoa coletiva de direito público, por violação das normas constantes do n.º 2 do art.º 266.º, da alínea c) do n.º 1 do art.º 209.º e do n.º 1 do art.º  214.º da Constituição da República Portuguesa;

d) Se deve ser mantido o acórdão recorrido na parte em que determina «Como concretização do referido na alínea anterior, a assinar e executar contrato de seguro de saúde, nas mesmas condições e que preveja as mesmas garantias e regalias, principais e complementares, constantes do caderno de encargos relativo ao concurso público que lançou em 2015»;

e) Determinar se se verificam os requisitos da responsabilidade civil de forma que a ré possa ser condenada nos seguintes pedidos:

(i) Reembolsar os autores e os restantes trabalhadores das quantias por si pagas na contratação de seguro de saúde, cuja liquidação se relega para incidente próprio ou execução de sentença;

(ii) Acrescendo às quantias identificadas na alínea anterior, pagar os juros de mora, vencidos à taxa legal, desde 1 de janeiro de 2016 até integral pagamento, cuja liquidação igualmente se relega para incidente próprio ou execução de Sentença;

(iii) Pagar a cada um dos autores uma indemnização pelos danos causados, cuja liquidação se relega, uma vez mais, para posterior incidente de liquidação ou execução de sentença.

           

                                                                       II

A) Fundamentação de facto:

O Tribunal da Relação fixou a seguinte factualidade:

A) - Todos e cada um dos autores são trabalhadores da ré.

B) - Tendo, todos eles, sido admitidos ao serviço da ré por via da contratação individual.

C) – Os trabalhadores da ré que são oriundos dos CC, por esse motivo, beneficiam de sistema privativo de saúde, a saber:

a) O sistema do Instituto das Obras Sociais/CC (IOS/CC) e

b) O sistema da DD, gerido pela DD - Associação de Cuidados de Saúde (DD ACS), no caso de dois trabalhadores, cuja integração nos quadros da ré ocorreu após a criação da DD, S.A. por cisão dos CC (operada pelo Decreto-Lei n.º 277/92, de 15 de dezembro).

D) - O quadro de pessoal da ré tem diferentes origens.

E) - Aquando da sua instituição, em 1989, os quadros de pessoal da ré foram integrados por cerca de 100 trabalhadores oriundos dos CC, grande parte dos quais originários da Direção dos Serviços Radioeléctricos, uma vez que a ré absorveu as funções de gestão e fiscalização do espectro radioeléctrico.

F) – A ré instituiu, em benefício dos trabalhadores provindos do mercado de trabalho, como os aqui autores, esquemas complementares de proteção social.

G) - Apenas os trabalhadores da ré que sejam oriundos dos CC têm direito ao regime privativo de saúde IOS/CC.

H) – A ré optou, desde o início, em benefício dos trabalhadores que não gozavam de qualquer sistema privativo de saúde (como os autores), pela contratualização de um seguro coletivo de saúde.

I) - Seguro esse que é atribuído a todos os trabalhadores não provenientes dos CC, independentemente da sua categoria, funções, antiguidade ou retribuição base.

J) - Tal contratualização foi concretizada nos seguintes períodos e com as seguintes companhias de seguros:

a) De 01/05/1992 a 30/04/1993, com a Companhia de EE;

b) De 01/05/1993 a 31/12/2010, com a Companhia de Seguros BB;

c) De 01/01/2011 a 31/12/2012, com a Companhia de Seguros FF e

d) De 01/01/2013 a 31/12/2015, com a Companhia de Seguros GG.

K) – A ré remeteu ao Secretário de Estado da Administração Pública, a carta cuja cópia consta de fls. 317 a 324 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, datada de 9/6/2015.

L) - O regime de saúde IOS/CC ou DD ACS, de que beneficiam os trabalhadores oriundos dos CC, inclui os membros do agregado familiar (os cônjuges e os descendentes até aos 25 anos, desde que estejam a estudar e a cargo dos pais).

M) - Os seguros que têm vindo a ser contratados pela ré incluem, também, os filhos dependentes, até atingirem os 25 anos de idade, dos trabalhadores não oriundos dos CC.

N) - Tais seguros podem abranger ainda, por opção dos trabalhadores, os respetivos cônjuges e filhos dependentes com idade superior a 25 anos, mas esse alargamento é e sempre foi integralmente suportado pelos trabalhadores através de desconto nos seus vencimentos, não existindo qualquer comparticipação da ré.

O) - A contratação de tal seguro coletivo de saúde (abrangendo trabalhadores e descendentes) representa, para a ré, um custo médio arredondado, que pode variar em função do número de trabalhadores abrangidos, de EUR 400 000 por ano.

P) - Ao qual acresce, o valor médio anual e arredondado de EUR 65 000, suportado pelos trabalhadores que por ele optem, através de desconto nos seus vencimentos, que diz respeito aos cônjuges, não constituindo, portanto, um encargo da ré.

Q) - Aproximando-se o fim do período contratual do seguro coletivo de saúde respeitante ao triénio 2013-2015, a ré decidiu lançar concurso público para contratação de seguro de saúde para o biénio 2016-2017, conforme deliberação, programa do concurso e caderno de encargos, cujas cópias constam, respetivamente, de fls. 325 a 328, de fls. 329 a 333 e de fls. 335 a 370 dos autos e que aqui se dão por integralmente reproduzidas.

R) - No decurso de tal concurso, a ré adjudicou a proposta apresentada pela Companhia de Seguros BB (rede ...), pelo valor de EUR 935 733,21 e respeitante ao biénio 2016-2017, conforme proposta e carta da ré a comunicar a adjudicação, cujas cópias constam, respetivamente, de fls. 373 a 396 e de fls. 397 e 398 dos autos e que aqui se dão por integralmente reproduzidas.

S) - Abrangendo 362 trabalhadores, 427 descendentes (dos quais, quatro com idade superior a 25 anos) e 107 cônjuges, num total de 896 beneficiários.

T) - Na sequência dessa adjudicação, celebrou com essa Seguradora, em 29/09/2015, o Contrato de Prestação de Serviços de Seguro de Saúde, cuja cópia consta de fls. 399 a 406 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida.

U) – A ré submeteu tal contrato ao processo de fiscalização prévia do Tribunal de Contas, por ofício cuja cópia consta de fls. 1521 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, datado de 2/10/2015.

V) - Sendo que o Tribunal de Contas recusou o visto, por acórdão n.º 15/2015 de 09/11/2015, cuja cópia consta de fls. 1535 a 1559 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida.

W) – A ré permitiu que os autores contratassem diretamente com a Companhia de Seguros BB, de forma individual e a custas próprias, o referido seguro de saúde, conforme Comunicação Interna dirigida pela ré aos seus trabalhadores a 04/12/2015, cuja cópia consta de fls. 413 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida.

X) – Em resposta à carta referida em K), o Secretário de Estado da Administração Pública, através do seu Chefe de Gabinete, remeteu à ré a carta cuja cópia consta de fls. 1511 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, datada de 9/6/2015, com a Nota n.º ..., cuja cópia consta de fls. 1512 a 1514 dos autos e que aqui se dá, igualmente, por integralmente reproduzida.

Y) – Em 9/7/2015, a ré procedeu à publicação do anúncio do Concurso Público, autorizado pela deliberação referida em Q), com vista à escolha da entidade a contratar para a prestação do serviço de seguro em causa e celebração do respetivo contrato, conforme documento cuja cópia consta de fls. 1515 a 1517 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida.

Z) – A ré recorreu do acórdão, referido em V), para o plenário da 1.ª Secção do Tribunal de Contas que confirmou a decisão recorrida, por acórdão n.º 1/2016 - 26.JAN-1.S/PL da 1.ª Secção do Tribunal de Contas – cuja cópia consta de fls. 1568 a 1609 e que aqui se dá por integralmente reproduzida.

AA) – A ré recorreu para o Tribunal Constitucional do acórdão, referido em Z), o qual decidiu não conhecer do objeto do recurso, por acórdão N.º 565/2016, de 14/10/2016, cuja cópia consta de fls. 1616 a 1641 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida.

AB) – A BB – Companhia de Seguros, S.A., remeteu à ré a carta cuja cópia consta de fls. 1659 e 1660 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, datada de 27/12/2016, através da qual lhe comunicou que considerava válido e não caducado o contrato, referido em T), comprometendo-se a cumpri-lo com a restrição do período contratual ao ano de 2017, de 01/01 a 31/12, e mediante o preço de EUR 467 866,60.

AC) - A ré submeteu o contrato, com a referida modificação por redução, ao processo de fiscalização prévia do Tribunal de Contas, por ofício cuja cópia consta de fls. 1667 a 1670 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, datado de 02/01/2017.

AD) - Por ofício cuja cópia consta de fls. 2048 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, datado de 23/03/2017, a ré foi notificada pelo Tribunal de Contas de que o Acordo Modificativo do Contrato de Prestação de Serviços outorgado em 29 de setembro de 2015 celebrado com a BB – Companhia de Seguros, S.A., cuja cópia consta de fls. 2050 a 2055 dos autos e que aqui se dá, igualmente, por integralmente reproduzida, havia sido visado em 17/03/2017.

AE) - A ré, em maio de 2017, lançou concurso público para contratação de seguro de saúde, para o período de 2018-2019, conforme anúncio, programa do concurso e caderno de encargos, cujas cópias constam, respetivamente, de fls. 2069 a 2071, de fls. 2072 a 2076 e de fls. 2078 a 2119 dos autos e que aqui se dão por integralmente reproduzidas.

AF) Consta do Regulamento do Pessoal do HH, homologado pelos Secretários de Estado das Finanças e das Comunicações, com efeitos a partir de 01-03-1990:

(…)

Art.º 98.º: Os trabalhadores do ICP ficam abrangidos pelos seguintes regimes de segurança social: a) os trabalhadores a que se refere o artigo 28.º do Decreto-Lei nº 283.º/89, de 23 de Agosto, mantêm o regime de segurança social de que beneficiavam à data de integração e que abrange a inscrição na Caixa Geral de Aposentações, Montepio dos Serviços do estado e regalias de carácter social vigentes naquela data; b) os restantes trabalhadores beneficiarão do regime geral de segurança social;

Art.º 99.º: 1. O ICP poderá instituir em benefício dos seus trabalhadores, esquemas complementares de segurança social ou outros benefícios de índice social.

B) Fundamentação de Direito:

B1) Os presentes autos respeitam a ação declarativa emergente de contrato de trabalho, com processo comum, que foi instaurada em 14 de julho de 2016.

O acórdão foi proferido em 16/06/2018, constante de fls. 2456 a 2481 (ocorreu lapso na data aposta no acórdão no que diz respeito ao ano – de 2017, como se pode comprovar pela ata).

Assim, o regime processual aplicável é o seguinte:

- O Código de Processo do Trabalho (CPT), na versão atual;

- O Código de Processo Civil (CPC) na versão atual.

B2) Os autores, nas suas contra-alegações, suscitam a questão prévia do abuso de direito, referindo que o recurso interposto pela ré consubstancia um exercício abusivo do direito de recurso, configurando litigância de má-fé, tendo para o efeito alegado em síntese:

- Como ficou demonstrado nos Autos, desde logo por via da factualidade dada como provada, a Recorrente, ao longo de cerca de vinte e três anos (como salienta o Acórdão recorrido, a págs. 24), garante e proporciona, de modo efetivo, aos seus trabalhadores (incluindo os aqui Recorridos) um sistema complementar de segurança social, gratuito, na modalidade de seguro de saúde, que abrange, ainda, os descendentes daqueles, conferindo-lhes a opção de, a custas suas mas nas mesmas condições, incluírem os seus cônjuges como beneficiários desse contrato.

- A conduta processual aqui assumida pela Recorrente, em frontal oposição com o reconhecimento de tais direitos sociais (sistema complementar de segurança social, gratuito, na modalidade de seguro de saúde), consubstancia um abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium. Na verdade, não se percebe como pode a Recorrente insurgir-se contra o Acórdão proferido pelo Tribunal a quo quando, ela própria, sempre agiu no sentido que o mesmo decidiu.

- Tal constatação deveria ser suficiente, não apenas para condenar a Recorrente em litigância de má-fé, mas também para negar, liminarmente, provimento ao presente Recurso.

Embora os autores tenham invocado o abuso de direito e a litigância de má-fé com referência ao recurso de revista interposto pela ré, temos de considerar, face ao teor da alegação, que o que pretendem atacar é o facto de a ré ter contestado a ação.

Temos assim que a invocação do abuso de direito foi feita já em sede de recurso de revista, sendo entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, que não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, uma vez que estes são meros meios de impugnação das decisões judiciais visando a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de julho de 2016, processo 156/12.0TTCSC.L1.S1).

Por outro lado, do confronto da decisão da 1.ª instância com o acórdão recorrido, atento o desenrolar da lide, tendo sido proferidas pelas instâncias decisões não coincidentes, razão pela qual foi possível este recurso de revista, retira-se, face à pretensão dos autores, que a oposição deduzida pela ré, em tese, não é destituída de fundamento, o que afasta a alegada litigância de má-fé.

 

B3) A ré questiona se está obrigada a garantir e proporcionar, de modo efetivo, aos autores, um sistema complementar de segurança social, gratuito, na modalidade de seguro de saúde, que abranja, ainda, os descendentes daqueles, conferindo-lhes a opção de, a custas suas mas nas mesmas condições, incluírem os seus cônjuges como beneficiários desse contrato.

Os autores requereram a ampliação do objeto da revista, para que o tribunal de recurso conheça do fundamento por eles invocado de que o seu direito se funda na lei e regulamentação coletiva e não só no uso laboral, como se refere no acórdão recorrido.

Nos termos do art.º 1 n.º 1 do Decreto-Lei n.º 39/2015, de 16 de março a ré é uma pessoa coletiva de direito público, com a natureza de entidade administrativa independente, dotada de autonomia administrativa, financeira e de gestão, bem como de património próprio.

A ré sucedeu ao HH, que iniciou a sua atividade em 1989 e ao HH (…), que iniciou funções em 6 de janeiro de 2002, como resulta da informação constante da sua página oficial na internet.

Deriva da matéria de facto provada (alíneas a, b, d, f, h e j) que os autores foram admitidos ao serviço da ré por via da contratação individual, sendo certo que o quadro de pessoal desta tem diferentes origens, tendo a ré instituído, em benefício dos trabalhadores provindos do mercado de trabalho, como os autores, esquemas complementares de proteção social, que se concretizou pela contratualização de vários contratos de um seguro coletivo de saúde que vigoraram de 1/5/1992 a 31/12/2015.

Como também se provou (alíneas m e n) os referidos contratos de seguro incluem, também, os filhos dependentes, até atingirem os 25 anos de idade, dos trabalhadores não oriundos dos CC, podendo ainda abranger, por opção dos trabalhadores, os respetivos cônjuges e filhos dependentes com idade superior a 25 anos, mas esse alargamento é e sempre foi integralmente suportado pelos trabalhadores através de desconto nos seus vencimentos, não existindo qualquer comparticipação da ré.

O Regulamento do Pessoal do HH, homologado pelos Secretários de Estado das Finanças e das Comunicações, com efeitos a partir de 01-03-1990, no seu art.º 99.º n.º 1, referia que o ICP poderia instituir em benefício dos seus trabalhadores, esquemas complementares de segurança social ou outros benefícios de índice social. 

Também o Acordo de Empresa, celebrado entre o HH e o Sindicato Democrático dos Trabalhadores das Comunicações e dos Media e outros, refere na sua cláusula 80.ª n.º 1, que o HH poderá instituir, em benefício dos seus trabalhadores, esquemas complementares de segurança social ou outros benefícios de índole social.

O n.º 2 da referida cláusula explica os objetivos pretendidos, referindo que se visa a uniformização possível das regalias e benefícios sociais para todos os trabalhadores do HH, independentemente da sua proveniência.

Sublinhe-se que os trabalhadores da ré oriundos dos CC beneficiam do sistema privativo de saúde denominado «Instituto das obras sociais IOS/CC» ou do sistema da DD (alíneas c) dos factos provados).

O Regulamento do Pessoal do HH e o Acordo de Empresa, numa perspetiva programática, limitam-se a permitir a instituição de esquemas complementares de segurança social ou outros benefícios de índole social, não derivando dos mesmos que a ré tenha de contratualizar qualquer seguro coletivo de saúde.

Assim, não assiste razão aos autores quando pretendem, por via da ampliação do objeto da revista, que se declare que o seu direito se funda na lei e na regulamentação coletiva, pelo que tal pedido tem de ser julgado improcedente.

No entanto, ficou provado que a ré contratualizou seguros coletivos de saúde, que vigoraram de 1/5/1992 a 31/12/2015, com a abrangência referida nas alíneas m) e n) dos factos provados.

Importa pois determinar se esta prática da ré de contratualizar, no referido período, os ditos seguros de saúde pode ser considerada como um uso laboral consolidado, na aceção do art.º 1 do Código do Trabalho, que prevê que o contrato de trabalho está sujeito, em especial, aos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho, assim como aos usos laborais que não contrariem o princípio da boa-fé.

Bernardo da Gama Lobo Xavier (Manual de Direito do Trabalho, Verbo, 2014, pág. 273) define os usos laborais como práticas gerais (padrões de conduta) ligados a domínios relevantes para o contrato de trabalho, quer no âmbito de cada estabelecimento, empresa ou grupo de empresas, quer no sector ou profissão.

António Monteiro Fernandes (Direito do Trabalho, 2012 – 16.ª Edição, Almedina, pág.97) também defende que os usos laborais são «práticas usuais, normais ou tradicionais, definidoras de soluções comuns ou uniformes para questões práticas que podem suscitar-se nas relações de trabalho» (...), e «o que caracteriza as referidas práticas é a repetição, a continuidade, que define uma “solução padronizada”, mas não um imperativo incontornável. É-lhes estranha a “convicção generalizada de juridicidade”, elemento subjetivo do costume como fonte de direito».

Maria do Rosário Palma Ramalho (Tratado de Direito do Trabalho, Parte I – Dogmática  Geral, 2012 – 3.ª Edição, Almedina) salienta que «A particular relevância dos usos no domínio laboral justifica-se por dois motivos: de uma parte, pela importância que as práticas associadas a determinadas profissões têm na organização do vínculo de trabalho; de outra parte, pelo facto de os usos da empresa e da profissão do trabalhador serem, com frequência, tomados em consideração para integrar aspetos do conteúdo do contrato de trabalho que não tenham sido expressamente definidos pelas partes».

Júlio Manuel Vieira Gomes (Dos usos da empresa em Direito do Trabalho, estudo publicado na Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XLIX, janeiro-dezembro de 2008, nº 1-4, Almedina, pág. 104), referindo-se aos usos laborais, sublinha que existe consenso que se trata de uma prática realizada sem convicção da sua obrigatoriedade jurídica, nisso se diferenciando do costume, acrescentando ainda que «ínsita ou implícita na noção de uso é a ideia de uma reiteração ou repetição de um comportamento, ao longo do tempo ou, melhor, de um período de tempo relevante». Quanto ao tempo necessário para que nasça um uso menciona que os ordenamentos que dão relevância aos usos não estabelecem esse lapso de tempo, acrescentando que essa é uma questão que cabe aos tribunais decidir no caso concreto, podendo aquele lapso de tempo variar em função da importância social e económica do uso.

O Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se recentemente quanto aos usos laborais.

Assim, no acórdão de 9 de março de 2017, proferido no PROC. n.º 401/15.0T8BRG.G1.S1 (Revista) - 4ª Secção, foi sumariado «Para que determinada prática, a nível de gestão empresarial, possa constituir um uso de empresa é necessário que a mesma se encontre sedimentada durante um considerável lapso de tempo, de forma a permitir que se possa concluir no sentido da existência de uma regra que leve os trabalhadores a adquirir legitimamente a convicção de que, no futuro e definitivamente, a mesma será aplicada».

No acórdão de 17 de novembro de 2017, proferido no processo n.º 1032/15.0T8BRG.G1.S1, foi sumariado: «Os usos correspondem a práticas sociais reiteradas não acompanhadas da convicção de obrigatoriedade, em cuja noção está ínsita ou implícita a ideia de uma reiteração ou repetição dum comportamento ao longo do tempo».

Regressando ao caso dos autos temos que a ré como entidade reguladora é uma pessoa coletiva de direito público, com natureza de entidade administrativa independente, com atribuições em matéria de regulação da atividade económica, de defesa dos serviços de interesse geral, de proteção dos direitos e interesses dos consumidores e de promoção e defesa da concorrência dos setores privado, público, cooperativo e social, dispondo de autonomia administrativa e financeira (art.º 3.º da Lei n.º 67/2013, de 28 de agosto – Lei-quadro das entidades administrativas independentes com funções de regulação da atividade económica dos setores privado, público e cooperativo).

Nos termos do art.º 5, n.º 3, da citada Lei é aplicável às entidades reguladoras o regime de jurisdição e controlo financeiro do Tribunal de Contas.

Assim, a ré está sujeita à fiscalização do Tribunal de Contas, nomeadamente, nas circunstâncias previstas na lei à fiscalização prévia, nos termos dos artigos 44.º a 48.º da Lei n.º98/97, de 26 de agosto – Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas.

No entanto, o facto de a ré estar sujeita à fiscalização prévia do Tribunal de Contas não é impeditivo da satisfação dos direitos adquiridos pelos seus trabalhadores.

A  Lei n.º 14/2003, de 30 de janeiro, que disciplina a atribuição de regalias e benefícios suplementares ao sistema remuneratório, aplicável à ré por força do disposto no seu art.º 2, por referência do art.º 2, n.º 3, da Lei n.º 91/2001, de 20 de agosto (Lei de enquadramento orçamental)  proíbe, no seu art.º 3.º, n.º 2 alínea c), a atribuição de seguros dos ramos vida e não vida, exceto os obrigatórios por lei.

O art.º 6 deste último diploma legal, estatuindo sobre as situações existentes, exceciona todas as regalias e benefícios suplementares ao sistema remuneratório que correspondam a direitos legitimamente adquiridos.

Quando esta Lei disciplinadora da atribuição de regalias e benefícios suplementares ao sistema remuneratório entrou em vigor, logo no dia seguinte ao da sua publicação, tinham decorrido dez anos e nove meses sobre a data do início do primeiro seguro.

A questão que se coloca é saber se quando a referida lei entrou em vigor o alegado direito dos autores se deve ou não considerar legitimamente adquirido, ou seja se nessa data a conduta do empregador de contratualizar anualmente os contratos coletivos de seguro de saúde já estaria consolidada como um uso laboral.

No já citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de março de 2017, proferido no PROC. n.º 401/15.0T8BRG.G1.S1 (Revista) - 4ª Secção, foi sumariado «Quatro anos é tempo insuficiente para que se configure a existência de uma regra subjacente ao comportamento do empregador que durante esse lapso de tempo, anualmente, concedeu o gozo da terça-feira de Carnaval aos seus trabalhadores, pelo que não se pode considerar constituído um uso de empresa».      

Também no citado acórdão de 17 de novembro de 2017, proferido no processo n.º 1032/15.0T8BRG.G1.S1, foi sumariado «Concedendo a empresa o gozo da terça-feira de Carnaval a todos os seus trabalhadores, sindicalizados ou não, sem perda de retribuição, prática que sempre vigorou na empresa desde a sua fundação em 1994 até 2013, configura-se uma prática constante, uniforme e pacífica integrante dum uso da empresa que justifica a tutela da confiança dos seus trabalhadores, pelo que não podia esta retirar unilateralmente o seu gozo a partir de 2014».

Tiago Cochofel de Azevedo (Da relevância Jurídica dos Usos Laborais, Universidade Católica Editora, pág.116) refere que «No que respeita ao tempo necessário a que o uso se consolide, a lei não estabelece qualquer regra ou critério, à semelhança aliás do que sucede com o regime constante do Código Civil, devendo a matéria ser analisada casuisticamente. Naturalmente que, quanto maior for a frequência com que o uso é chamado a atuar maior será a probabilidade da prática nele corporizada se estabilizar em padrão de comportamento e regra de atuação, com a qual as partes podem legitimamente contar.

Por seu turno, quanto menor o âmbito subjetivo de aplicação do uso mais intensidade este revestirá na conformação das práticas reiteradas. Assim, para que um uso de profissão (ou mesmo de setor) se forme será tendencialmente necessário mais tempo para que a conduta configure uma prática generalizada, atenta a dispersão de sujeitos que por aquele são abrangidos; já no que respeita a usos de empresa, o facto de estes corresponderem a condutas padronizadas que têm frequentemente por subjacente fundamentos de racionalidade na gestão coletiva dos diversos contratos de trabalho por parte do empregador (provenientes por isso de uma origem única) facilita a sua sedimentação».

Este mesmo autor no que concerne à frequência do uso sustenta que «no plano laboral, a frequência do uso dependerá, em última análise, do seu objeto. As práticas diárias mais facilmente (e sobretudo mais rapidamente) constituirão usos, por oposição àquelas que apenas se manifestam esporadicamente.

A tónica será, também aqui, a efetiva aplicação da conduta usual sempre que houver ocasião para tal. E poderá dar-se o caso de cada trabalhador só beneficiar uma única vez de uma só prestação – assim será na atribuição aos trabalhadores de um prémio quando atinjam uma certa antiguidade na empresa – o que não afastará  a qualificação da conduta como uso».

Giulio Quadri, citado por Júlio Manuel Vieira Gomes (no estudo já referido), sustenta que o lapso de tempo necessário para a gestação de um uso poderia ser mais reduzido em Direito do Trabalho, porquanto os comportamentos dos sujeitos evoluem e consolidam-se mais rapidamente «na intempérie das relações de trabalho subordinado».

José Andrade Mesquita (Direito do Trabalho, 2ª ed., Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2004, pág 134) observa que o lapso de tempo necessário para que se constitua um uso pode até depender da frequência da reiteração, sendo necessário mais tempo para que se constitua o uso da empresa de uma gratificação anual, do que para o uso que consiste no tratamento diário de uma pausa como tempo de trabalho.

Assim, para que determinada prática, a nível de gestão empresarial, possa constituir um uso de empresa é necessário que a mesma se encontre sedimentada durante um considerável lapso de tempo, de forma a permitir que se possa concluir pela existência de uma regra que leve os trabalhadores a adquirir legitimamente a convicção de que, no futuro e definitivamente, a mesma será aplicada.

O lapso de tempo necessário a atender para que se considere constituído um uso de empresa depende da frequência da reiteração do comportamento do empregador, devendo ser apreciado em cada caso concreto.

Quanto à necessidade de apreciação em cada caso concreto, Júlio Manuel Vieira Gomes, refere que é um dos raros aspetos em que existe consenso entre os autores, citando Ernst Heissmann quando este refere que «saber com que regularidade e durante quanto tempo é que é necessária que a conduta se repita é questão a que não se pode responder em abstrato, tudo dependendo do caso concreto».

A prática do empregador que se repete anualmente, traduzindo-se na contratualização de um seguro coletivo de saúde em benefício dos seus trabalhadores, para se consolidar como um uso de empresa necessita de uma considerável sedimentação no tempo, de forma que se possa deduzir que esse comportamento se transformou em regra.

No caso dos autos, dez anos e nove meses é tempo insuficiente para se concluir no sentido da existência de uma regra subjacente à prática do empregador que durante esse lapso de tempo, anualmente, contratualizou um seguro coletivo de saúde em benefício dos seus trabalhadores, pelo que não se pode considerar constituído um uso de empresa.                 

O referido lapso de tempo não basta para consolidar essa prática do empregador como uso, caracterizada por uma frequência reiterada anualmente, pois tal período de tempo nem sequer corresponde a um terço do ciclo normal da duração de uma relação laboral.

Assim, quando a Lei n.º 14/2003, de 30 de janeiro, que proibiu a atribuição de seguros dos ramos vida e não vida, exceto os obrigatórios por lei, entrou em vigor, os alegados direitos dos autores      não se podiam considerar adquiridos.

Pelo exposto, respondendo à primeira, ficando todas as outras prejudicadas, a ré não está obrigada a garantir e proporcionar, de modo efetivo, o sistema complementar de segurança social, gratuito, na modalidade de seguro de saúde, pretendido pelos autores.

           

                                                           III

Decisão:

Face ao exposto acorda-se:

1. Julgar improcedente a pretensão dos autores de que o recurso interposto pela ré consubstancia um exercício abusivo do direito de recurso;

2. Conceder a revista à ré revogando o acórdão recorrido na parte em que a condenou a:

a) Garantir e proporcionar, de modo efetivo, aos autores um sistema complementar de segurança social, gratuito, na modalidade de seguro de saúde, que abranja, ainda, os descendentes daqueles, conferindo-lhes a opção de, a custas suas mas nas mesmas condições, incluírem os seus cônjuges como beneficiários desse contrato;

b) Como concretização do referido na alínea anterior, a assinar e executar contrato de seguro de saúde, nas mesmas condições e que preveja as mesmas garantias e regalias, principais e complementares, constantes do caderno de encargos relativo ao concurso público que lançou em 2015;

3. Julgar improcedente a ampliação do objeto da revista requerida pelos autores;

4. Julgar prejudicado o recurso subordinado interposto pelos autores;

5. Julgar prejudicada a ampliação do objeto da revista requerida pela ré;

6. Custas do recurso de apelação e do recurso de revista a cargo dos recorrentes.

Anexa-se sumário do acórdão.

Lisboa, 27 de março de 2019.

Chambel Mourisco (Relator)

Pinto Hespanhol

António Leones Dantas