Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
296/11.2TBAMR.G1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: CONTRATO DE TROCA
BEM IMÓVEL
FORMA ESCRITA
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
Data do Acordão: 03/24/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais:
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / CONTRATOS EM ESPECIAL.
Doutrina:
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, Almedina, 6.ª ed., 516.
- Baptista Machado, “Tutela da Confiança e venire contra factum proprium”, Obra Dispersa, 850 e ss. .
- Cunha Gonçalves, Dos Contratos em Especial, 1953, 293; Tratado de Direito Civil, Vol. VIII, 628.
- Gianluca Falco, La Buona Fede e L’ Abuso del Diritto. Principii, fattispecie e cauistica, Giuffrè Editore, Milano, 2010, 4, 6, 20-23, 381, 387.
- J.M. Coutinho de Abreu, Do abuso de Direito – ensaio de um critério em direito civil e nas deliberações sociais, Almedina, Coimbra, 1983, p.43-45, 73 (nota 150).
- Luís Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, Fontes, Conteúdo e Garantia da Relação Jurídica, 3.ª edição, Universidade Católica Editora, 233- 249.
- Manuel de Andrade, “Sobre a Validade da Cláusulas de Liquidação de Partes Sociais pelo Último Balanço”, Revista de Legislação e Jurisprudência, Anos 86.º e 87.º, N.º 3040 e 3041, 307-308 (n.º 3041:º); Teoria Geral das Obrigações, 63-63.
- Menezes Leitão, Direito das Obrigações, 3.ª edição, 165.
- Mota Pinto, Paulo, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Vol., Coimbra Editora, 2008, 485.
- Orlando de Carvalho in “Teoria Geral do Direito Civil”, 1981, 45.
- Rui Alarcão, Direito das Obrigações, Coimbra 1983 (texto elaborado por Sousa Ribeiro, Sinde Monteiro, Almeno e Sá e J.C. Proença) com base nas lições do citado Professor ao 3.º ano Jurídico, 107- 110.
- Vaz Serra, “Abuso do Direito”, BMJ, n.º 85, 253; in Revista de Legislação e Jurisprudência, Anos 109.º e 115.º, 30-31 e 214-216.
- Vetorri, in “Il diritto dei contratti fra Constituzione, códice civile e códice di settore”, in Riv. Trim. Dir, proc. civ., 2008,3, 751.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 219.º, 220.º, 334.º, 408.º, N.º 1, 875.º, 879.º, AL. A) E AL. B), 939.º, 1378.º.
CÓDIGO COMERCIAL (CCOM): – ARTIGO 480.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 20-11-1995;
-DE 17-01-2002;
-DE 16-12-2010;
-DE 20-09-2011, IN WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I – A troca é um contrato não tipificado na normação civil, embora se surpreenda a sua inserção no regime de emparcelamento de prédios rústicos – art. 1378.º do Código Civil – e nominação específica no Código Comercial – art. 480.º;

II. – Por dever ser qualificado como contrato oneroso aplicam-se as regras do contrato de compra e venda quanto à necessidade de observância de forma escrita, se o contrato recair sobre bens imóveis – art. 939.º do Código Civil;

III. – A inobservância de forma escrita importará a nulidade do contrato.

IV. – A nulidade do contrato de troca não pode ser invocada por um dos contraentes, contra o outro de boa-fé, sob pena de a nulidade dever ser paralisada, por uso abusivo de direito, nomeadamente, por se verificar uma situação de venire contra factum proprium.
Decisão Texto Integral:

I. – Relatório.

AA e BB, casados, intentaram acção declarativa contra CC, pedindo que o réu seja condenado a reconhecer os autores como titulares do direito de propriedade sobre o imóvel descrito no artigo 1.º da petição, a restituir o imóvel livre de pessoas e bens, a abster-se de praticar quaisquer actos que impeçam ou dificultem que os autores gozem de modo pleno e exclusivo as faculdades inerentes ao seu direito de propriedade, a reconstituir a situação existente em momento anterior à sua acção sobre o dito imóvel repondo a vedação, com as dimensões e materiais que a compunham e as terras aí existentes e a restituir aos autores a quantia correspondente à vantagem patrimonial obtida com a intromissão no bem daqueles, importância que ascende, até ao momento, na quantia de € 28.000,00.

Para pedido que formulam, alegam, em síntese, que são proprietários de um prédio rústico, denominado “...”, sito no lugar de ... ou Monte ..., freguesia de ..., ... e que o réu vem usando, desde algum tempo a esta parte, sem título que o legitime, parcela considerável desse prédio, estabelecendo, na parte por ele apossada, um estaleiro de construção civil, contra a vontade dos autores.

Procederam à interpelação do réu, por diversas vezes e formas, para restituir o prédio apossado e bem assim reconstruir a vedação e reparar o muro danificado, tendo-se o ré recusado a efectuar qualquer das impetrações formuladas.    

Contestou o réu alegando que acordou com os autores em permutar parte de terrenos de que ambos eram proprietários, tendo os autores recebido do prédio do réu uma parcela de terreno com a área de cerca de 1209,50 metros quadrados e o réu do prédio dos autores uma parcela com a área de 862,560 m2. Ambas as partes, na sequência do acordo, delimitaram os prédios com marcos e com uma vedação constituída por rede de arame. Desde então, exerce a posse sobre a parcela de terreno na convicção de que é o proprietário do mesmo.

Acrescenta que, desde o momento em que tomou posse do terreno procedeu à sua limpeza, ao corte de árvores aí existentes, à regularização do pavimento, com recurso a máquinas retroescavadoras, à colocação de gravilha no pavimento, ao aparcamento de viaturas, à construção de u murete na parte em que este terreno confina com a via pública, à construção da vedação junto da via pública, à colocação de um portão para acesso ao mesmo, à colocação, no muro, de contadores da água e da luz, à ampliação dos materiais que necessita para o exercício da sua actividade de construtor civil, trabalhos que os autores presenciaram, sem nunca se oporem à sua realização.                 

Na réplica que opuseram à contestação dos réus, os autores referem que entabularam negociações com vista à venda do prédio, tendo posteriormente avançado com a possibilidade de permuta de parte do prédio, sem que, contudo, tais negócios viessem a ser celebrados. Ainda que se entenda que tal acordo de permuta foi celebrado, o mesmo é nulo por não obedecer à forma exigida por lei.   

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença – cfr. fls. 121 a 140 – em que foi decidido julgar a acção improcedente, absolvendo o réu dos pedidos formulados.

Em dissídio com o julgado, interpuseram s demandantes recurso de apelação, que por acórdão datado de 12-06-2014, decidiu manter o julgado da primeira instância.

Formada dupla conforme, impulsaram recurso de revista excepcional, que, por douto acórdão da comissão de apreciação preliminar, datado de 13 de Janeiro de 2015 – cfr. fls. 360 a 363 – foi decidido admitir o requestado recurso, com o fundamente em que se verificava uma contradição, sobre a mesma questão (fundamental) de direito, entre o decidido no acórdão recorrido e um acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Janeiro de 2002.    

Admitida a revista, consta do recurso, o quadro conclusivo que a seguir queda extractado.

I.A. – Quadro Conclusivo.

“i- A admissibilidade da presente revista excepcional tem por fundamento a circunstância de o acórdão recorrido estar em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito;

ii- No acórdão-fundamento apreciaram-se as seguintes questões: "a primeira, se existe abuso de " direito no exercício filiado na nulidade do contrato de compra e venda em causa, por inobservância da forma legal; a segunda, se o abuso de direito justifica (ou não) a validade do contrato de compra e venda em causa, apesar da falta de forma legal, a escritura pública; a terceira, consequências da declaração da nulidade do contrato de compra e venda em causa".

iii- Nesse Aresto conclui-se que "o abuso de direito não justifica que se considere válido (subsistente e eficaz) um contrato de compra e venda de bem imobiliário não formalizado por escritura pública" (sublinhado nosso), razão pela qual "o acórdão recorrido não poderá ser mantido ( .. .)" .

iv.- No acórdão recorrido apreciou-se a questão de saber se "não pode ser considerada a figura do abuso de direito no caso da nulidade derivar da falta de forma legar.”

v.- Colocada a questão, é desde logo afirmado no Aresto que "é hoje praticamente pacifica a possibilidade de se afastarem os efeitos decorrentes da nulidade por vício de forma através do instituto do abuso de direito";

vi- Descendo ao caso concreto, e considerando ser "razoável admitir que ao actuar como actuaram, os autores criaram no réu a legítima convicção e a confiança de que jamais iriam invocar a nulidade do contrato por falta de forma, para se eximir ao cumprimento da sua parte no contrato e, até, reivindicar a devolução da parte já entregue", entende o Tribunal «a quo» que resulta evidente que "invocar, agora, a nulidade do contrato de permuta, por falta de forma legal, é um evidente abuso de direito, traduzido num venire contra factum proprium e numa injustiça clara que este instituto pretende prevenir. Sendo assim, conclui, e porque as consequências do abuso de direito reflectem-se na paralisação do direito, terá a pretensão dos autores improceder', decidindo, em conformidade, "julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida";

vii.- A questão fundamental de direito tratada num e noutro Acórdãos, e que se demonstrou essencial para determinar o resultado numa e noutra decisões ali proferidas, consistiu em saber se o instituto do abuso de direito, previsto no artigo 334.º, do Código Civil, é susceptível de paralisar os efeitos produzidos pela nulidade decorrente da inobservância de forma prevista para os negócios translativos do direito de propriedade sobre imóveis, concluindo pela negativa o acórdão-fundamento e pela positiva, como sabido, o acórdão ora recorrido, o que consubstancia uma oposição directa (e não apenas implícita ou pressuposta) entre os dois acórdãos, pondo " em perigo, pela falta de uniformidade jurisprudencial em que se traduzem as decisões, a certeza na aplicação do direito;

viii.- A oposição entre os Acórdãos verificou-se à luz de um quadro normativo substancialmente idêntico, conformado, essencialmente, pelos artigos 220.º, 289.º, 334.º, 875.º (na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de Julho) e 939.º, do Código Civil, e 80.º (na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de Julho) do Código do Notariado;

ix.- Entendem os recorrentes que a interpretação conforme ao Direito constituído, i.e., das normas legais à luz das quais deve ser decidido o caso concreto, é aquela da qual se conclui que o instituto do abuso de direito é insusceptível de paralisar os efeitos decorrentes da nulidade, consubstanciada na inobservância da forma legal prescrita, de um negócio translativo do direito de propriedade sobre imóvel, pelo, nesse sentido, é evidente a sua adesão à posição que é sustentada no acórdão-fundamento;

x.- Outra interpretação não consente o disposto nos artigos 220.º, 286.º, 289.º, 875.º e 939.º do Código Civil;

xi.- Se os efeitos decorrentes da nulidade consubstanciada na inobservância da forma na celebração de negócios jurídicos translativos do direito de propriedade sobre imóveis pudessem ser paralisados por efeito do instituto do abuso de direito, tal significaria um convite à inobservância da forma legal, certo que bastaria o decorrer de um certo, e quiçá curto, lapso de tempo para que a transmissão de propriedade, embora inválida na sua génese, não mais pudesse ser posta em causa, uma vez que a invocação da nulidade, ou a reivindicação da propriedade corresponderia sempre, ou quase sempre, a um abuso de direito. i.e., qual seria o força do imperativo contido na norma legal, que obriga(va) à celebração por escritura pública de negócios que tivessem por objecto a propriedade de bens imóveis, se, embora correndo o risco de o mesmo ser declarado nulo, mas poupando, no caminho, custos consideráveis (que decorreriam da formalização do negócio), iguais efeitos se poderão obter, a jusante, por via directa da boa fé;

xii.- As razões que fundamentam aquele conjunto de normas, designadamente, os interesses públicos que as pelas mesmas se visam defender, estão num plano de tal modo elevado que o legislador consente aos próprios "autores" do vício, aqueles que conscientemente não observaram a forma prescrita, a invocação da nulidade daí decorrente - cfr., artigo 286.º°. Ademais, precavendo a hipótese de não ser exercida, por qualquer motivo (inconveniência, desconhecimento,..), pelas pessoas legitimadas, estabeleceu ainda o legislador que a mesma pode ser conhecida, de ofício, pelo tribunal.

xiii.- Todas estas circunstâncias dão ao intérprete indícios seguros de que a nulidade, ou a produção seus efeitos, decorrente da não observância da forma legalmente prescrita não podem ser paralisados pelo instituto da boa-fé;

xiv.- A posição sustentada pelo acórdão recorrido não encontra nos textos legais em que se apoia o mínimo de correspondência, pelo que é ilegítima semelhante interpretação;

xv.- É inexistente no processo a alegação de que o réu, aqui recorrido, confiou que os Autores jamais, invocariam a nulidade do contrato celebrado (vide, articulados apresentados); ademais, o referido "facto" não consta do elenco dos factos provados; por fim, dos factos julgados provados não é possível inferir-se tal realidade;

xvi.- O acordo de permuta deveria ter sido julgado nulo e, em consequência, ser determinado, ao abrigo do disposto no artigo 289.º, a restituição de tudo quanto houvesse sido prestado por seu efeito; xvii.- Ao decidir como decidiu violou, pois, o Tribunal «a quo» o disposto nos artigos 9.º, n.º 2, 220.º, 286.º, 289.º, 334.º, 875.º e 939.º do Código Civil, e 80.º, n.º1, do Código do Notariado, com a redacção anterior ao Decreto-lei n.º 116/2008, de 4 de Julho.

Os recorridos não contra-alegaram.

I.B. – Questões a merecer apreciação.

A única questão posta em tela de juízo para apreciação no recurso, prende-se com saber “se não pode ser considerada a figura do abuso de direito no caso da nulidade derivar de falta de forma legal.”

II. – FUNDAMENTAÇÃO.

II.A. – DE FACTO.

Para apreciação do recurso, tem-se por adquirida a factualidade que seguir queda extractada. 

“1.- No lugar de ... ou Monte ..., freguesia de ..., concelho de ..., existe um prédio rústico que confronta do Norte com os demandantes, do Sul e Poente com caminho público, e do Nascente com DD, inscrito na matriz sob o artigo …, e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ….

2.- Teor da escritura pública de compra e venda junta aos autos como documento n.º 3, cujo teor se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos.

3.- Os autores registaram o prédio identificado em 1. em seu nome no dia 21-04-1994.

4.- O réu ocupa e usufrui parte do prédio identificado em 1.

5.- Desde o momento em que tomou posse do terreno identificado em 4, o réu procedeu à sua limpeza do mato e plantas que aí crescem, ao corte de árvores aí existentes, à regularização do pavimento com o recurso a máquinas retroescavadoras, à colocação de gravilha no pavimento, ao aparcamento de viatura, à construção de um murete na parte em que este terreno confina com a via pública, à construção da vedação junto da via pública, à colocação de um portão para acesso ao mesmo, à colocação no muro de contadores da água e da luz, à ampliação de um anexo já aí existente, e ao armazenamento dos materiais que necessita para o exercício da sua actividade de construtor civil.

6.- O réu ocupa o prédio referido em 4. desde Janeiro de 2007.

7.- Há mais de 40 anos que os autores, por si e seus antecessores, plantam árvores, cortam a lenha, plantam e colhem alface, plantam e colhem cebolas, plantam e colhem tomates, plantam e colhem cenouras, plantam e colhem feijão, cortam e aproveitam a erva, as silvas e o mato que nasce espontaneamente no prédio identificado em 1., com excepção da parte ocupada pelo réu desde Janeiro de 2007.

8.- … de forma ininterrupta, à vista de toda a gente, sem a oposição de ninguém, e na convicção de que são os únicos proprietários do prédio identificado em 1. com excepção da parte da parcela ocupada pelo réu desde Janeiro de 2007.

9.- Em 2010 o réu foi interpelado pelos autores para restituir a parte do prédio que ocupa, o que aquele não fez.

10.- No ano de 2006, autores e réu acordaram em redefinir a configuração dos prédios de que eram e são proprietários e que confinavam entre si.

11.- Nos termos desse acordo, autores e réu acordaram em permutar parte do terreno que constituía esses seus prédios primitivos.

12.- Na sequência desse acordo, os autores receberam do primitivo prédio do réu uma parcela de terreno com a área de cerca de 1209,50 m2, e o réu recebeu do prédio identificado em 1. a área de cerca de 862,50m2.

13.- Na sequência desse acordo, autores e réu concordaram igualmente em delimitar os seus prédios, por força da permuta de terrenos supra identificada, com marcos e com uma vedação constituída por rede de arame ou malha-sol.

14.- O trato de terreno a que se alude em 4. tem a área de 862,50m2.

15.- O acordo de permuta supra referido foi vertido num documento e assinado pelo punho dos autores e do réu.

16.- Após a celebração desse acordo, os autores estiveram presentes e participaram na colocação dos marcos divisórios e aceitaram a vedação colocada pelo réu.

17.- Desde Janeiro de 2007 que o réu, por si e seus antecessores, de forma ininterrupta, à vista de toda a gente, sem a oposição de ninguém, exerce a sua posse sobre a parcela de terreno identificada em 4. e que antes do dito acordo integrava o prédio identificado em 1, na convicção de que é o proprietário desse terreno.”

II.B. – DE DIREITO.

II.B.1. – Negócio jurídico. Forma. Nulidade. Abuso de Direito.

A questão que justificou a admissão da revista excepcional prende-se com a divergência constatada na jurisprudência quanto a uma questão fundamental de direito, a saber se o exercício abusivo de um direito, consubstanciado na invocabilidade, ou alegabilidade, de um vício de forma – omissão de uma formalidade que a lei prescreve para a realização de um contrato de permuta (escritura pública) – pode paralisar a nulidade do contrato – tese defendida no acórdão recorrido – ou, ao invés – como se defendeu no acórdão exibido como contraditório – o abuso de direito não possui a virtualidade de paralisar a nulidade de um negócio a que haja falhado uma formalidade legal (escritura pública) exigida por lei.     
Para a Relação, os autores não poderiam profitar, ou prevalecer-se, do vício formal de falta de forma (redução do negócio a escritura pública) no negócio de permuta para obterem a nulidade do negócio e, consequentemente, retirar dessa declarada nulidade benefícios que se traduziriam na devolução da parcela à sua esfera de dominialidade.

Justificou a posição assumida, com a sequente argumentação: “Com efeito, é hoje já praticamente pacífica a possibilidade de se afastarem os efeitos decorrentes da nulidade por vício de forma através do instituto do abuso de direito. Veja-se a extensa lista de acórdãos dos vários tribunais superiores citados na sentença recorrida, por contraponto a apenas um do STJ e já do ano de 2002, citado pelos apelantes.

«O abuso de direito, consubstanciado num «venire contra factum proprium», consiste em alguém, comportando-se de maneira a criar na outra parte a legítima convicção de que certo direito não seria exercido, vem depois a exercê-lo.» - Acórdão da Relação do Porto de 29/09/97 in CJ, ano XXII, tomo IV, pág. 200.

Como observa Vaz Serra, RLJ, ano 115/167, citado no Acórdão atrás referido «se a nulidade por falta de forma legal é de interesse e ordem pública, também o é a ilegitimidade do exercício do direito por abuso deste. Não parece, pois, que a nulidade formal de um negócio jurídico deva ter sempre prioridade sobre a ilegitimidade do exercício do direito em consequência de abuso».

Segundo o artigo 334º do C. Civil, «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».

 Porque o Código Civil vigente consagrou a concepção objectivista do abuso de direito, não se exige, por parte do titular do direito, a consciência de que, ao exercer o direito, está a exceder os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, bastando que, objectivamente, esses limites tenham sido excedidos de forma manifesta e grave – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12/10/2010, in www.dgsi.pt.

Segundo Menezes Cordeiro, citado no referido Acórdão, o abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente e a sua proibição radica no princípio da confiança, pois “(…) um comportamento não pode ser contraditado quando ele seja de molde a suscitar a confiança das pessoas". E, segundo ele, os pressupostos da protecção da confiança através do venire contra factum proprium passam por: " 1° - uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium); 2° - uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis; 3° - um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma conduta na base ao factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;

4° - Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível."

A jurisprudência do STJ, de que são exemplos os acórdãos de 01/03/2007, de 15/05/2007 e de 08/06/2010, insertos na base de dados da ‘dgsi’, aceita serem basicamente estes os pressupostos da figura de «venire contra factum proprium»

Ora, é precisamente o que acontece nos presentes autos em que a atitude dos autores, estando presentes e participando na colocação de marcos divisórios, aceitando a vedação colocada pelo réu e todas as obras que o mesmo foi levando a cabo no terreno em questão, que tudo foi praticado à vista dos autores, cuja casa de morada é contígua a este terreno, sem a oposição dos mesmos, certamente que convenceu o réu que agora era o proprietário da parcela em questão e que nunca os autores iriam reivindicar o seu direito de propriedade sobre a mesma, baseando-se no facto de a permuta ser nula por vício de forma. Ou seja, os autores criaram no réu a confiança de que não invocariam a nulidade do contrato por vício de forma.

Dos factos provados resulta, assim, que os autores tiveram um comportamento perante o réu que criou uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria deste que acreditou na conduta daqueles.

É razoável admitir que ao actuar como actuaram, os autores criaram no réu a legítima convicção e a confiança de que jamais iriam invocar a nulidade do contrato por falta de forma, para se eximir ao cumprimento da sua parte no contrato e, até, reivindicar a devolução da parte já entregue.

Invocar, agora, a nulidade do contrato de permuta, por falta de forma legal, é um evidente abuso de direito, traduzido num «venire contra factum proprium» e numa injustiça clara que este instituto pretende prevenir.

Importa, ainda, dizer que a boa-fé do réu resulta do facto de ter acreditado que a actuação dos autores nunca conduziria ao pedido agora formulado, ter confiado na estabilidade da actuação daqueles, confiança essa que é plausível e razoável como já se deixou salientado.

Sendo assim, e porque as consequências do abuso do direito reflectem-se na paralisação do direito, terá a pretensão dos autores de improceder, improcedendo as conclusões da sua alegação quanto a esta questão.”

Por seu turno, o douto acórdão que foi considerado em antinomia com o acórdão recorrido, estimou, numa situação em que uma parcela de um prédio tinha sido comprada sem formalidade prescrita por lei que: “A noção de abuso de direito foi consagrada no Código de 66 (artigo 334º) segundo a concepção objectiva: para que haja lugar ao abuso de direito é necessário a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito.

 Esta contradição é patente no caso de "venire contra factum proprium".

 A proibição de " venire contra factum proprium" cai no âmbito do "ABUSO de DIREITO", através da fórmula legal que considera ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular excede os limites impostos pela boa-fé, como sejam os casos em que há contradição real, e não aparente, entre a conduta de um dos outorgantes que se vincula a dada situação futura, criando confiança na contraparte e a conduta posterior a frustrar a confiança criada.

 A ideia imanente na proibição do " venire contra factum proprium" e, conforme aponta BAPTISTA MACHADO, o do "dolus praesens": a conduta sobre que incide a valoração negativa é a conduta presente, sendo a conduta anterior apenas referência para, tendo em conta a situação então criada, se ajuizar da legitimidade da conduta actual "- cf. Tutela de Confiança e venire contra factum proprium", em "OBRA DISPERSA", vol. I, página 385.

4. Perante o que se deixa exposto, em conjugação com a matéria fáctica fixada, não temos dúvidas em precisar que o exercício do direito de invocar a nulidade do contrato de compra e venda em causa só por parte do autor traduz-se num caso de "venire contra factum proprium", já que a Autora mulher encontra-se, e encontrou-se, sempre arredada do negócio; ela não vendeu, não recebeu o preço, não participou nas mediações para a construção do muro. Por isso, não se pode falar em abuso de direito por parte da Autora ao intentar, como intentou, a presente acção com vista à declaração de nulidade do contrato de compra e venda celebrado entre o Autor marido e o Réu, sem observância da forma legal, a escritura pública conforme o estatuído no artigo 875º, do Código Civil.

Se o abuso de direito por parte do Autor/marido justifica (ou não) a validade do contrato de compra e venda em causa apesar da falta de forma legal, a escritura pública.

 1. POSIÇÃO DA RELAÇÃO E DOS RECORRENTES:

 1.a) A Relação de Coimbra decidiu que revestindo a arguição da nulidade as características de um abuso de direito, impõe-se que se reconheça a sua improcedência, mantendo-se o ajuizado contrato de compra e venda em causa.

 1.b) Os autores/recorrentes sustentam que o negócio celebrado entre Autor/marido e Réus não pode ser declarado válido com o fundamento no abuso de direito do mesmo autor, uma vez que para tal alienação seria sempre necessário o consentimento da Autora/mulher.

2. O abuso de direito constitui um vício típico, essencialmente distinto da falta de direito - cfr. ensinado VAZ SERRA, no BMJ, n. 85, página 265 -, de tal sorte que se o exercício abusivo do direito causar algum dano a outrem haverá lugar à obrigação de indemnizar; se o vício se tiver reflectido na celebração de qualquer negócio jurídico, este será, em princípio, nulo - cfr. ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª ed., pág. 547 / 548.

 Por outras palavras, a ilegitimidade do abuso de direito tem as consequências de todo o acto ilegítimo: pode dar lugar à obrigação de indemnizar; à nulidade nos termos gerais do artigo 294º; à legitimidade de oposição; ao alargamento de um prazo de prescrição ou de caducidade - cfr. PIRES de LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., págs. 299/300; VAZ SERRA, Revista Legislação e Jurisprudência, ano 107, pág. 25.

 3. Face a tais consequências na ilegitimidade de abuso de direito, surge o de saber qual a adequada no caso de abuso de direito na invocação da nulidade de contrato de compra e venda verbal, não celebrado por escritura pública.

 A consequência será a legitimidade de oposição à declaração de nulidade? Ou, será tão só a obrigação de indemnizar?

 Dito de outro modo, o abuso de direito poderá justificar que o contrato de compra e venda verbal seja válido?

 4. A questão tem sido objecto de larga análise quer no estrangeiro (como noticia VAZ SERRA, Revista Legislação e Jurisprudência, ano 103, págs. 215, nota 2; e MENEZES CORDEIRO, DA BOA FÉ no Direito Civil, vol. I, págs. 771/796) quer contra as normas civilistas, com reflexos na jurisprudência.

 4.a) VAZ SERRA, comentando a posição de M. ANDRADE, no sentido de oposição à declaração de nulidade, defende uma dupla solução, atendendo aos fins que o legislador teve em vista quando estabeleceu certa e determinada forma. Assim: a) se a finalidade da disposição legal respeitante à forma se destina a assegurar tão só a ponderação das partes a solução será a de oposição a declaração de nulidade; b) se a finalidade da disposição legal tem em vista um objectivo inconciliável com a eficácia da declaração não formalizada (como seja o caso do contrato de compra e venda de bens imobiliários, para a qual a lei exige escritura pública... não só para assegurar a ponderação das partes, mas para outros fins e, entre eles, a segurança e a certeza acerca da situação da propriedade imobiliária) a solução será a de ilegitimidade de oposição, ou seja, a nulidade pode ser invocada por quem cometeu abuso de direito, mas ter essa pessoa a obrigação de indemnizar a outra parte - cfr. REVISTA LEGISLAÇÃO e JURISPRUDÊNCIA, ano 109, págs. 30/31.

 4.b) No mesmo sentido está MENEZES CORDEIRO quando escreve: "a manutenção dos efeitos pretendidos pelos negócios nulos, mercê da intervenção subsequente do exercício do direito pressuposto, por forma que transcende manifestamente os limites impostos pela boa fé, implica a obtenção, mediante obrigações legais, dos efeitos procurados através do acto nulo. É precisamente isso que o Direito, recorrendo ao artigo 289 n. 1, sem atender, de propósito, a especificidades concretas, não quer".

 E acrescenta: "o exercício de um direito que implique a alegação de nulidade formal pode ser abusivo para contrariar a boa-fé: o titular exercente, em abuso, incorre em previsões de indemnização ou outras, consoante os efeitos práticos a ponderar". Não podem, à face do Direito português, manter-se, por via directa da boa-fé, os efeitos falhadamente procurados pelo acto nulo" - cfr. DA BOA-FÉ no DIREITO CIVIL, vol. II, págs. 795.

 4.c) Este Supremo Tribunal de Justiça acolheu os ensinamentos das insígnias civilistas citadas ao firmar a doutrina que o regime das nulidades que decorre dos artigos 285º e seguintes, do Código Civil obsta à procedência da arguição - por inobservância da forma legal - fundada em abuso de direito - cfr. acórdão de 11 de Julho de 1999, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 409, págs. 735/742.

 4.d) As posições de VAZ SERRA e de MENEZES CORDEIRO, a reflectir-se na doutrina do citado acórdão, merece a nossa inteira concordância, porquanto, por um lado, desaparecido o negócio, as partes não ficam desamparadas no que, ao seu abrigo, hajam prestado: assistem-lhes pretensões de restituição, conforme artigo 289º, do Código Civil; por outro lado, a invocação do abuso de direito não pode bloquear quer o poder de qualquer interessado invocar a nulidade do contrato por falta de escritura pública quer o poder do Tribunal de declarar oficiosamente a nulidade, cfr. artigo 286º, do Código Civil.

 Conclui-se, assim, que o abuso de direito não justifica que se considere válido (subsistente e eficaz) um contrato de compra e venda de bem imobiliário não formalizado por escritura pública.

 Conclusão a abranger o contrato de compra e venda em causa, de sorte a considerar-se nulo por não ter sido celebrado por escritura pública.” [[1]]
A propósito da boa-fé e das diversas formas que pode revestir o instituto jurídico do abuso de direito, tivemos ocasião de escrever, em acórdão por nós proferido, [[2]] que: “Nas relações jurídicas estabelecidas entre os sujeitos jurídicos rege como principio invadeável aquele de que, tanto na formação, como na execução dos contratos e das relações jurídicas relevantes para a ordem jurídica, se devem usar valores de boa-fé e de correcção. No dizer da sentença do tribunal da cassação (italiano), de 18 de Setembro de 2009 “como critérios de reciprocidade, finalizados, substancialmente, em manter uma relação jurídica num binário do equilíbrio e da proporcionalidade”. “Na aplicação prática a cláusula geral de correcção e boa-fé fornecem critérios de orientação teleológico de conduta nas relações de direito privado, consignando ao intérprete a ideia de obrigação e realizando nesta perspectiva, o que soe chamar-se “fecho ”do sistema legislativo”. [[3]]
“Ideia e critério fundante da teoria dos contratos, a cláusula geral de boa-fé permanece ínsita em todas as áreas do direito em que os sujeitos jurídicos devam assumir obrigações e direitos de reciprocidade e de comutatividade. Os comportamentos assumidos nas relações que se estabelecem devem pautar-se por regras de ética e de empenho pessoal no cumprimento dos deveres assumidos de modo a que se torne previsível, um são e salutar desenvolvimento do relacionamento contratual estabelecido.
A inferência/ilação das regras de comportamento de correcção relacional só são passíveis de apreciação no que é designado “direito vivente”, no sentido de que é a neste que se verte e exprime a conduta dos agentes sociais e é deste que se induz o particular-concreto para aferição dos parâmetros gerais estabelecidos como regras orientadoras do direito. [[4]]
Daí que “o Juiz, ainda que, “não invente direito novo, mas descobre ou revela direitos e deveres através de um proceder que se pode exemplificar tendo em conta algumas premissas de método”. “Entre estas premissas, os princípios gerais (sobretudo se dotados de cobertura constitucional) desenvolvem uma função fundamental de “directiva” para o Juiz na sua actividade de correcta “concretização” da indeterminação própria do dever geral de boa-fé”. [[5]]
Corolário da cláusula geral ou princípio de boa-fé é o exercício dos respectivos direitos ao eito de escopos éticos e sociais “pelo qual o próprio direito vem reconhecido e concedido pelo ordenamento jurídico positivo, o uso anormal do direito pode conduzir o comportamento do particular (no caso concreto) fora da esfera do direito subjectivo, tornando-o, por conseguinte, ilícito, segundo as normas gerais do direito material” [[6]/[7]]
“A esta nova luz, o abuso do direito é concebido - na teorização feita pela mais recente jurisprudência da Corte Suprema - como uma alteração juridicamente relevante do factor causal no exercício de um direito. O abuso do direito longe de pressupor uma violação no sentido formal delineia, pois, uma utilização alterada do esquema formal do direito, finalizada pelo conseguimento de objectivos ulteriores e diversos aos que estavam indicados pelo legislador”. [[8]]
Na estatuição do artigo 334.º do Código Civil “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
A ordem jurídica não protege de forma indelegável e absoluta um direito subjectivo e o interesse que lhe vai adstrito, no plano de um interesse positivo e funcionalmente tutelado. No desenvolvimento da equação ou tensão entre existência e alcance de interesse e reconhecimento e exercício do direito subjectivo “a ordem jurídica não aceita uma funcionalização geral do reconhecimento da titularidade (ou só do exercício) do direito subjectivo à existência de um interesse digno de protecção legal, objectivamente apreciado, e que tenha de justificar o exercício do direito nas circunstâncias em causa. Antes o direito subjectivo (distinto, pois, por esta nota, dos poderes-deveres ou poderes funcionais) comporta um poder não estritamente funcionalizado, ainda que não necessariamente arbitrário – o que é diverso da imposição de qualquer dever ou ónus de fundamentação teleológica, mesmo apenas em termos de “razoabilidade”. A regra, no direito privado (e correspondentemente com o sentido do modelo jurídico-privado de ordenação e afectação de recursos, terá, aliás, de ser sempre a de que, pelo menos no domínio do direito subjectivo, a definição e interpretação dos interesses para que se exerce o direito subjectivo apenas cabe ao seu titular, podendo, até, incluir, como via para sua satisfação, o próprio não exercício ou a destruição do respectivo objecto (salvo no caso de direitos indisponíveis). E em termos tais que o “substrato teleológico” do exercício da posição apenas relevará quando, além do prejuízo causado a terceiros, for radicalmente dissonante, ou contrário, em relação ao que pode justificar o reconhecimento do direito subjectivo e a colocação ao seu serviço do aparelho sancionatório estadual – em termos, portanto, de a movimentação deste aparelho se revelar inexigível in casu”. [[9]]
Na acepção de Orlando de Carvalho, versado pelo Autor citado, “O abuso de direito existe quando há um exercício do direito fora do âmbito do exercício do poder de autodeterminação que é próprio fundamento do reconhecimento de direitos subjectivos, propondo, como critério para o apurar a falta de interesse no exercício do direito a apreciar em abstracto ou concreto, e a transcendência do prejuízo em relação ao agente. Esta concepção implica, pois, uma distinção em relação à boa-fé entendida enquanto norma de conduta: enquanto nesta está em causa uma regulamentação da conduta dos particulares, um problema de actuação contra legem, no abuso de direito o que é relevante não é a violação do direito objectivo, e sim a falta de interesse conjugada com a “transcendência do prejuízo”.” [[10]]
O abuso de direito enquanto forma desviada e jurídico-socialmente reprovável de um direito subjectivo constitui-se como paralisador do exercício do direito na medida em que o interesse (positivo) prosseguido pelo respectivo titular se coloca numa posição de defraudação da expectativa jurídica expressa na estabilização jurídico-material da normação adrede. Vale por dizer que a ordem jurídica ao estabelecer consagrar as regras de accionamento e exercício dos direitos conleva um feixe de interesses que na sua tensão e conflitualidade podem obnubilar o interesse positivo associado ao direito subjectivo desde que o prejuízo que desse exercício advenha sobreleve na sua extensão e alcance. [[11]]
“Como consequência de uma eventual abuso do direito, o ordenamento põe uma regra geral, no sentido de recusar a tutela aos poderes, direitos e interesses exercitados em violação das correctas regras do exercício, posto serem mediante comportamentos contrários à boa-fé. Nesta forma de “mancanza di tutela” está a finalidade de impedir que possam ser conseguidos ou conservadas vantagens – e direitos conexos – através de actos em si estruturalmente idóneos, mas exercitados de modo a alterar-lhe a função, “violando la normativa di correttezza”. [[12]]
Manuel de Andrade qualificava a figura de abuso de direito como o exercício incorrecto e desviado do sentido que a lei e o Direito pretenderam fixar o direito subjectivo que o respectivo titular pode exercitar sem ofensa às regras de boa-fé, confiança jurídica e relacional que queda estabelecida entre os protagonistas de um contrato ou de uma relação jurídica tutelada pela ordem jurídica. [[13]] O acto de exercício ou pretensão de tutela do direito assume-se assim como contrário à consciência jurídica dominante ou prevalente numa determinada comunidade.
Para A. Varela, "para que haja lugar ao abuso do direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito” [[14]
Ocorre abuso do direito quando alguém, detentor de um determinado direito, consagrado e tutelado pela ordem jurídica, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e ostensivamente contra o sentimento jurídico dominante. Há neste exercício um desvio flagrante e ostentatório entre a dimensão do direito tutelado e compressão de um outro estado ou situação jurídica, que não estando salvaguardado pela ordem jurídica, terá obtido pela permanência na esfera jurídica de um outro sujeito, um estádio de quase direito que a consciência jurídica, numa assumpção de pré-juridicidade ou juridicidade fáctica, deve tutelar, ou pelo menos, obstar que seja torpedeado pelo direito validamente constituído.   
Os autores soem assimilar ao instituto do abuso do direito o facto de alguém adoptar um comportamento que tipicamente se dirige em determinado sentido e que, extravagantemente, de forma inusitada e perversa, adquire novo rumo ao arrepio do que já estava sedimentado numa determinada relação jurídica, substantiva ou processual.
Na doutrina do acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 20-11-1995: “A locução venire contra factum proprium traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente. Tal exercício é tido por parte da doutrina que o conhece como inadmissível. Como expressão da confiança, o venire contra factum proprium situa-se já numa linha de concretização da boa-fé. É o que acontece com a recondução do "venire" à doutrina da confiança, que revela um estádio elevado nessa tarefa da concretização da boa-fé. A confiança dá um critério para a proibição de venire contra factum proprium.
 Os princípios que, à face do Direito civil português, permitem detectar a presença de um facto gerador de confiança podem ser induzidos das regras referentes às declarações de vontade, com relevância para a normalidade – art. 236º, nº 1 – e o equilíbrio – art. 237º. Significa isto que o quantum relevante de credibilidade para integrar uma previsão de confiança, por parte do factum proprium, é, assim, função do necessário para convencer uma pessoa normal, colocada na posição do confiante e razoável, tendo em conta o esforço realizado pelo mesmo confiante na obtenção do factor a que se entrega. Assim se obtém o enquadramento objectivo da situação de confiança. Requer-se, porém ainda um elemento subjectivo: o de que o confiante adira realmente ao facto gerador de confiança.
É que bem pode acontecer que, não obstante a presença de elementos objectivos suficientes para justificar a protecção da confiança, o beneficiário em potência, por razões específicas, não tenha de facto confiado na situação que se lhe oferecia. Não cabe então oferecer-lhe a protecção jurídica. Ou que, tendo confiado, tenha desacatado (ou descurado) a observância de deveres de indagação que ao caso deviam caber. O que significaria que, apesar da verificação de tais elementos objectivos geradores da confiança, a mesma não "resistiria" aos cuidados de diligência resultantes do cumprimento do dever de indagação.”

A expressão "venire contra factum proprium" significa, portanto, uma proibição jurídico-factual da assumpção de um comportamento contraditório, postulando dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo.

O venire contra factum proprium encontra respaldo nas situações em que uma pessoa, por um certo período de tempo, se comporta de determinada maneira, gerando expectativas na outra de que o seu comportamento permanecerá inalterado.

Em vista desse comportamento, existe um investimento, a confiança de que a conduta será a adoptada anteriormente, mas depois de referido lapso temporal, é alterada por comportamento contrário ao inicial, quebrando dessa forma a boa-fé objectiva (confiança).

Na escalpelização ou escrutínio recenseador dos autores evidenciam-se quatro elementos para a caracterização do venire: comportamento, geração de expectativa, investimento na expectativa gerada e comportamento contraditório.

A tutela da confiança atribui ao venire um conteúdo substancial, no sentido de que deixa de se tratar de uma proibição à incoerência por si só, para se tornar um princípio de proibição à ruptura da confiança, por meio da incoerência. O fundamento da proibição do comportamento contraditório é, justamente, a tutela da confiança, que mantém relação íntima com a boa-fé objectiva.
Verifica-se que na sua estrutura, o “venire contra factum proprium” pressupõe a existência de duas condutas contrapostas da mesma pessoa, que arrancando da sua licitude intrínseca, se revelam, no arco do tempo, distintas e contraditórias. Assim a primeira (o “factum proprium”) revela-se antinómica e contraditória da segunda, a acção desencadeada para contraminar o statuo quo estabelecido, de forma a que essa relação oposicional justifica a emergência da figura proibitiva e vedante em que se constitui o princípio do abuso do direito. Este princípio arranca da necessidade da confiança enquanto valor e exigência ético-axiológica conducente a uma estabilidade sócio-pessoal e jurídica das pessoas no conspecto das relações societárias que se vão sedimentando na prática inter-relacional. Pela reiteração e aquisição de um estado fáctico-jurídico devem merecer protecção da ordem jurídica, em homenagem à manutenção e tutela de determinados comportamentos da comunidade jurídico-social. É que estando a sociedade organizada na base de relacionamentos tendencialmente estáveis, exige que cada sujeito assuma perante os demais um comportamento congruente e minimamente estável de modo a permitir um desenvolvimento harmonioso e previsível das respectivas condutas interpessoais e institucionais. A ruptura de códigos e comportamentos assumidos conduz a frustrações de perspectivas e de projectos que podem tornar-se incomportáveis no tráfego comercial e no inter-relacionamento dos sujeitos que o convalidam.  
O abuso de direito deve ser concebido “como um comportamento que, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação dos interesses de outrem.” [[15]]   
Para este Professor, o abuso de direito deve ser compreendido, numa tríplice vertente: “1) É abusivo o comportamento emulativo, isto é, o que visa apenas prejudicar outrem; 2) sempre que de um comportamento derivem utilidades actuáveis pelo direito invocado, quando a essas utilidades se juntem (escusadas) desutilidades para outrem (já não cobertas pelo direito), há, nessa medida, abuso de direito; 3) É abusivo o comportamento que se diz exercício de um direito quando – não constituindo tal exercício, mesmo em abstracto uma vantagem objectiva –, se revela resultar dele, em concreto, apenas (ou sobretudo) uma desvantagem para terceiro.” [[16]/[17]]     
Refere ainda este autor que, embora sendo de opinião que o exercício de direitos potestativos (entre os quais o direito, legal ou convencional, de resolução dos contratos) são insindicáveis em termos de abuso de direito, não “descarta a hipótese de intervenção do principio da boa-fé, designadamente da proibição do venire contra factum proprium.” [[18]]   
Antes de nos adentrarmos na apreciação do objecto do recurso, importará tecer algumas considerações acerca da figura jurídica da troca ou escambo. [[19]

A troca surgiu, histórico-socialmente, decorrente das necessidades dos indivíduos, numa fase inicial da sua existência, e em que os bens adquiriam somente o valor-uso, de obterem bens que não possuíam, mas de que necessitavam para a sua subsistência. Sem um referente de valor de troca, mediado por um padrão pecuniário convencionado e que fosse aceite pela comunidade, os indivíduos, nas relações sociais que estabeleciam, comerciavam as suas necessidades por meio de uma troca directa dos bens, consistente em entregarem aqueles bens que possuíam em excesso e recebendo, em troca, aqueles de que necessitavam. [[20]]

A evolução das relações sociais e o incremento das necessidades, conduziram, numa primeira fase, ao estabelecimento de referentes institucionais e comumente aceites, convencionando-se, numa primeira etapa uma mercadoria-padrão e numa fase posterior a criação de um referente pecuniária traduzido numa moeda, que correspondia ao preço da coisa a adquirir.   

O Código Civil de 1867, no Título II, no apartado referente aos contratos em particular, dedicava à troca ou escambo, enquanto contrato nominado, três preceitos – cfr. artigos 1592.º a 1594.º.

O artigo 1592.º definia o escambo ou troca como «o contrato por que se dá uma coisa por outra, ou uma espécie de moeda por outra espécie dela», acrescentando o § único que «dando-se dinheiro por outra coisa, será de venda ou escambo, segundo o disposto nos artigos 1544.º e 1545.º».

O artigo 1545.º distinguia a compra e venda e a troca nos seguintes termos: «Se o preço da coisa consistir parte em dinheiro, e parte em outra coisa, o contrato será de venda, quando a parte em dinheiro for a maior das duas; e será de troca ou escambo, quando essa parte em dinheiro for a de menor valor.

§ único. Quando os valores das duas partes forem iguais, presumir-se-á que o contrato é de venda

O Código Civil vigente não contempla, na nomenclatura dos contratos nominados, o contrato de troca ou permuta, dando-lhe, no entanto, palco noutras sedes como, por exemplo, a propósito da troca de terrenos, no âmbito do emparcelamento dos prédios rústicos – cfr. artigo 1378.º do Código Civil – sendo, todavia, que noutras normações do ordenamento jurídico existem menções específicas a esta figura contratual – cfr. artigo 480.º do Código Comercial [[21]].

Não é assim nas normações estrangeiras, que incluem na nomenclatura referente aos contratos, normas específicas que definem e regulam a figura do contrato de troca ou escambo. [[22]] Como se depreende da leitura dos preceitos infra indicados, a troca consiste, essencialmente, numa perspectiva conceptual-estrutural, em uma obrigação de dar uma coisa para, em troca, receber outra (coisa).      

Sem rigor conceptual, poder-se-á recortar uma definição de troca, permuta ou escambo como sendo o contrato que tem por objecto a transferência recíproca da propriedade de coisas ou direitos entre os contraentes, excluindo, no acordo formado, a intervenção de quantias monetárias. [[23]]

Parametrizando este convénio, ou acordo de vontades, dir-se-ia que se trata de uma relação obrigacional, na medida em que injunge uma a obrigação, recíproca e concomitante, de entrega de uma coisa, adstrita a cada um dos contraentes – cfr. al. b) do art. 879.º do C.C. – e, ao mesmo tempo de feição real, dado que, através do acto da troca, cada um dos contraentes transfere para o outro a dominialidade de que cada um era detentor relativamente às coisas que são objecto do acto de troca ou permuta – cfr. artigos. 879.º, al. a) e 408.º, n.º 1 do C.C.. Adoptando cada um dos contraentes uma obrigação recíproca e como contrapartida uma da outra, estabelece-se entre os contraentes um sinalagma (genético) que perdurará na fase da concretização e cumprimento do pactuado.

Apesar de se tratar de um contrato não tipificado no ordenamento civilística, a obrigação constituída não pode deixar de ser considerada como onerosa, na medida em que ocorre um recíproco desapossamento do património na esfera patrimonial de cada um dos contraentes, o que, embora não se traduzindo num equivalente pecuniário ou monetário, não deixa de se reflectir no volume de bens que cada um passa a deter, o que faz com que lhe deva ser aplicado o disposto no artigo 939.º do Código Civil, quando prescreve que “as normas da compra e venda são aplicáveis aos outros contratos onerosos pelos quais se alienam bens ou se estabeleçam encargos sobre eles (…)”.

Consubstanciando o contrato de permuta um negócio (oneroso) translativo da propriedade que versa sobre coisas, classificadas de imóveis, a forma exigida para a validade do contrato é a prescrita no artigo 875.º do Código Civil. 
A questão colocada em tela de juízo, configura-se no sequente desígnio: determinar se tendo ocorrido uma troca, que versou sobre coisas imóveis, um dos contraentes pode invocar contra quem com ele realizou a permuta, o vício de falta de forma do contrato para obter a declaração de nulidade e, deste modo. a reversão ou retorno do bem (permutado) à sua esfera de dominialidade.     

Em nosso juízo, a questão, pese embora a admiração e respeito que nutrimos pelo Ilustre Conselheiro subscritor do acórdão em oposição com o acórdão recorrido, deve ser resolvida de acordo com o decidido no acórdão recorrido.

Antes, porém, importará tecer algumas considerações sobre a forma de expressar ou manifestar uma declaração de vontade, no âmbito do negócio jurídico. 

Os autores soem distinguir entre os meios juridicamente relevantes de alguém expressar a sua vontade – palavras, gestos ou a própria omissão de conduta – e o modo concreto que deve revestir a manifestação de vontade, para ser juridicamente atendível. A forma é o modo por que se exterioriza a vontade, “ou como diz Castro Mendes, “o aspecto exterior que a declaração assume, o modo por que a vontade se revela”. [[24]] Devendo a manifestação de vontade ser reproduzida por forma diversa da oralidade, pode a lei impor que ela seja reduzida a escrito, mediante formalidades que a lei prescreve, como por exemplo a redução em escritura pública das declarações que expressam a vontade de realização de um negócio jurídico.    

O princípio geral vigente – cfr. artigo 219.º do Código Civil – é o da consensualidade, que significará que “ a validade da declaração não depende, em princípio, da observância de formalidades determinadas”, decorrendo da economia hermenêutica deste princípio que a necessidade de observar “certo tipo de forma, como condição de validade do negócio, só existe quando a lei expressamente o determine – forma legal.” [[25]]   

Os autores explicam que a exigência da lei em prescrever a adopção de determinadas formalidades “pode advir de vários factores”. Razões de segurança e certeza na vida jurídica, de ponderação de fiscalização da legalidade e de asseguramento do prestigio da lei, no plano razão pública, e de “evitar às partes a desvantagem de praticarem actos que mais tarde não podem produzir os efeitos por elas pretendidos”, no plano da razão particular, surgem como factores relevantes a ter em conta no momento em escrutinar as valorações histórico-sociais a ter em consideração para a fixação deste elemento de segurança.

De um modo geral, nos negócios formais, as formalidades impostas pela lei consistem na sua redução a escrito, devendo a declaração das partes constar de documento, que pode revestir diversa natureza. O próprio legislador relaciona a ideia de negócio formal com a de negócio que deve constar de documento, como se vê, de modo flagrante, do art. 238.º do C. Civ.” [[26]]

A inobservância das formalidades ad substantiam implica ou importa um vício de forma que acarreta a nulidade do negócio jurídico – cfr. art. 220.º do Código Civil «a declaração nego­cial que careça de forma legalmente prescrita é nula (...)». [[27]]

Ao abordar a questão da possibilidade de paralisação da nulidade do contrato por recurso ao princípio da boa-fé, “nomeadamente por a sua invocação envolver um venire contra factum proprium”, o Prof. Carvalho Fernandes, defende, perante a controvérsia que a questão suscita deve ser objecto de ponderação, pois que “por um lado, são, em geral, de ordem pública as razões de terminantes da exigência de forma legal, o que aponta para a prevalência da nulidade do negócio. Por outro, o já assinalado cariz consensualista do sistema apontaria para um entendimento restritivo dos efeitos da exigência da forma legal, favorável à conservação do negócio jurídico e à tutela da confiança da contraparte”, para concluir que “em regra, é de dar preferência à segunda solução, mas apenas quando prevaleçam razões particularmente significativas. Fora disso, a exigência de forma legal revestindo, embora, carácter excepcional, quando imposta, tem de se entender ditada por razões superiores de interesse geral.” [[28]]

Para o Professor Manuel de Andrade [29]] após o levantamento de duas ou três situações, remata predicando, que “pode ser que ela não justifique a improcedência da arguição de nulidade, entendendo-se que as disposições legais sobre a forma dos negócios jurídicos devem ter aplicação indefetível, por imperiosas exigências de certeza jurídica. Mas levará sempre à necessidade de indemnizar a outra parte – ao menos pelo interesse negativo, isto é, em termos de a colocar na situação patrimonial em que ela estaria se de em todo não tivesse contratado. E tal interesse pode igualar praticamente o interesse positivo (situação em que a parte estaria se fosse válido o contrato. Pode mesmo excedê-lo, mas isso não será de atender, por razões óbvias)”. [30]]       

Esta questão da oposição da nulidade de um contrato com raiz na falta ou inobservância de forma, ou de acordo com a forma prescrita na lei, foi, igualmente, objecto de larga análise pelo Professor Vaz Serra, que se interroga “(…) se, por ex., a inobservância da forma legal foi provocada pelo locador, que le­vou o locatário a concluir o contrato confiando em promessas ou garantias por aquele da­das, e, depois, é o próprio causador da falta da forma quem pretende prevalecer-se dessa falta, procedendo de modo claramente iniquo e escandaloso, há nisso, segundo muitos, um abuso do direito, um venire contra factum proprium, que afasta a legitimidade da invo­cação da nulidade formal do contrato.” [31]]

Como se alcança das posições doutrinárias postas em confronto, a invocação de um vício de forma pode conduzir: ou, a uma posição mais drástica e taxante, que conduziria à paralisação do direito da parte que se procura prevalecer da invocação, desde que se comprove a intenção de obter vantagens ilegítimas à custa do contraente que celebrou o negócio convencido de que a forma era prescindível; ou uma posição, mais mitigada e condescendente, que advoga que, não sendo de não declarar a nulidade, com as consequências que dela advêm para a extinção relação contratual, sempre o invocador deveria ser obrigado a indemnizar, pelo interesse contratual negativo, a parte que, de boa-fé, confiou que o contrato ficaria perfeito com a simples consensualização dos ermos do trato contratual.       

Resulta das posições transcritas, prevalentemente a posição expressa pelo Professor Manuel de Andrade, que na aplicação do instituto de abuso de direito se deve, primacialmente, atender ao caso concreto, pois só o caso em concreto pode instruir e fornecer os elementos que podem fazer ponderar o julgador a aplicação do instituto. O caso concreto, que o Ilustre Mestre se refere, não pode deixar de atinar em primeira linha com o tipo de contrato, e dentro destes aqueles que exigem uma forma absoluta, por exemplo nos casos de direito de família, com o casamento e a perfilhação, com outros casos em que a forma, sendo exigível, não se reveste de uma compleição solene tão densa e canónica. Assim, por exemplo, nos contratos promessa, em que a lei foi evolucionando de situações de ausência de forma para uma prescrição de forma, a prenunciar uma mutabilidade que atina com as necessidades temporais e de segurança jurídica para uma das partes involucradas na relação contratual.   

Sendo a certeza e a segurança das relações contratuais o abside da razão legal para a prescrição da formalidades atinentes à declaração de vontade, a questão que deve colocar-se é se, no caso de um contrato de troca de partes do terreno, em que razões de mútua convivência e interesse das partes sobrelevam a razões formais, se deve, no caso de invocação de nulidade do contrato, por falta de forma, atender, de uma feição imprescindível e indefectível, à essa exigência para a perfeição do contrato. Vale dizer, de outro modo, se atendível a nulidade invocada, ou ao invés, em vista da menor densidade do tipo de contrato e das relações que ele conleva, deve essa nulidade ser paralisada pela excessividade da sanção e obstar a que a nulidade seja decretada por ferir a consciência jurídica, podendo “(…) servir plenamente com válvula de segurança para os casos de pressão violenta da nossa consciência jurídica contra a rígida estruturação das normas legais”, para usar as palavras de Manuel de Andrade.         

A troca ocorrida entre os recorrentes e o recorrido, parece resultar de uma situação de vizinhança e de boa convivência indutora de um relacionamento desprendido e liberto de preocupações formais, revelador de um estado em que, por razões que se prendem com os interesses que cada um prossegue, decidem concertar no escambo dos espaços de terreno que a cada um mais propinava. Em relações deste tipo, e com esta feição, o princípio do consensualismo na produção das declarações de vontade conformador de realização do negócio jurídico é a regra. As pessoas confiam e creem na boa-fé com que a contraparte se presta a congraçar no sinalagma em que se pretendem coenvolver, despreocupando-se de formalismo e consequências (jurídicas) que adviriam para a consecução dos fins em vista e futuros da sua inobservância.

Embora não resultando da matéria de facto provada qual dos contraentes terá promovido a troca e se algum quis que não fosse observada a forma que ela deveria ter assumido, o facto é que, no caso em apreço, e pelos contornos em que se recorta o negócio, resulta, com um mínimo de segurança, que o negócio terá sido efectuado para satisfação dos interesses momentâneos de cada um dos contraentes e que só uma dissidência ocorrida com o filho dos recorrentes terá provocado a reivindicação do espaço (de terreno) permutado. Note-se, aliás, que a nulidade não é invocada na causa de pedir – cfr. fls. 3 a 8 – só tendo surgido como fonte de geração de direitos (negativos) na réplica. Sem que de tal circunstância se possam extrair consequências, não pode deixar de se ter presente que os demandantes pretenderam numa primeira linha de fundamentação do direito que pretendiam ver reconhecido – o direito de propriedade sobre um determinado espaço de terreno – foi a usucapião e só posteriormente á contestação – e com a alegação do escambo – é que esgrimiram a nulidade do eventual negócio que tivesse versado sobre o terreno e que tivesse na sua raiz a permuta de um terreno do demandado com o espaço de terreno reivindicado.

Com este quadro geral, entendemos que a regra da consensualidade na formação do negócio jurídico deve prevalecer, impondo-se assim ao princípio da vinculação formal, por forma a impedir que a alegabilidade do vício de forma possa vir a beneficiar um dos sujeitos da relação jurídica, precisamente por invocação da falta de forma para lograr a nulidade do negócio.

A alegabilidade do vício de forma por um dos sujeitos que esteve envolvido no negócio não obsta, neste caso, a que a consensualidade na formação do negócio deva suplantar a exigência de uma formalidade prescrita por lei, impedindo, desta forma, que se gere um benefício a favor de quem coonestou na prática da falta legal e seja usado contra quem usou de boa-fé na realização de um negócio que, devendo ser consagrado em escritura pública, decorre de relações de sã convivência e boa-fé.         

Adir-se-á, em ende, que estamos perante um contrato atípico, cuja forma só é exigida, por compressão reflexiva. A forma, no caso da troca, só é exigida por se tratar de um contrato que deve ser qualificado como oneroso a que devem ser aplicadas as regras do contrato de compra e venda.

Esta circunstância – exigência de escritura pública, por se tratar de um contrato oneroso – devendo ser, legalmente, observada não inculca o mesmo rigor que para os demais contratos tipificados, ou nominados, para que a lei exige, de forma taxativa, a forma escrita.

Desta incipiência classificativa (típico-contratual), digamos assim, resulta, em nosso juízo, uma merma de exigência formal, que redunda numa displicência de peremptoriedade de formalismos, a justificar a aplicação do instituto do abuso de direito, em situações em que um dos sujeitos pretenda obter a nulidade do contrato por carência de observância de formalismo para a declaração contratual.               

Pelas expostas razões, a revista deverá improceder.

 

III. DECISÃO.

Na defluência do exposto, acordam os juízes que constituem este colectivo, na 1.ª secção, do Supremo Tribunal de Justiça, em;

- Negar a revista;

- Custas pelo recorrente.

 Lisboa, 24 Março de 2015

  Gabriel Catarino – Relator)

  Maria Clara Sottomayor

  Sebastião Póvoas

_________________
[1] Cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Janeiro de 2002, relatado pelo Conselheiro Miranda Gusmão.
[2] Cfr. Ac. de 20-09-2011, in www.stj.pt
[3] Extraída de “La Buona Fede e L’ Abuso del Diritto. Principii, fattispecie e cauistica”, de Gianluca Falco, Giuffrè Editore, Milano, 2010, pág. 4 e 6.
[4] Cfr. Gianluca Falco, op. loc. cit. pág. 20 (Cassação de 13 de abril de 1999, in Foro It., 1999, 12,I,358.
[5] Vetorri, in “Il diritto dei contratti fra Constituzione, códice civile e códice di settore”, in Riv. Trim. Dir, proc. civ., 2008,3, 751, citado em Gianluca Falco, op. loc. cit. pág. 21 e 22. “Questa operazione vaIutativa compiuta daI giudice di merito nell’ applicare clausole generali non sfugge ad una verifica in sede di giudizio di legittimità, Sotto iI profilo della correttezza dei metodo seguito nell’ applicazione della clausola generale, proprio perché l’ operatività, in concreto di norme di tale tipo deve rispettare criteri e principii desumibili dall’ordinamento general (a cominciare dai principi costituzionali) e dalla disciplina particolare in cui la concreta fattispecie si colloca.
Lo stesso giudice di legittimità, (cui spetta, quindi, iI giudizio sulle opzioni di valori dei giudice dii merito), e, d’altra parte, anche giudice della logjcità delle decisioni” dello stesso (art. 360 n. 5 c.p.c.), in quanto anche ancorata a standards che possono definirsi sociali: per esser la stessa società iI punto di riferimento paramétrico dei processo lógico; ne consegue che iI controllo esercitato dalla Suprema corte, ai sensi dell’art. 360, n. 3, c.p.c., comprenderà non solo l’erronea interpretazione, e dunque iI fraintendimento, del significato del concetto indeterminato o elástico, ma anche l’erronea applicazione dello stesso com riferimento ai caso di specie e, dunque, l’erronea. sussunzione della fatlispecie materiale concreta nella fattlspecie legale astratta delineata dal legislatore com l’utilizzazione di quel concetto.”
[6] Gianluca Falco, in op. loc. cit. pág. 23. “Qggi, l’abuso deI diritto viene, dunque, individuate nel comportamento di un soggetto che esercita i diritti che gli derivano dana legge o dal contratto per realizzare uno scopo diverso da qüello cui questi diritti sono preordinati: la figura concerne, cioè, le ipotesi nelle quali un comportamento, che formalente integra gli estremi dell’ esercizio del diritto soggettivo, deve ritenersi illecito sulla base di alcuni criteri di valutazione.”
[7] No direito português e com interesse veja-se o que a propósito foi escrito por Rui Alarcão, in “Direito das Obrigações”, Coimbra 1983 (texto elaborado por Sousa Ribeiro, Sinde Monteiro, Almeno e Sá e J.C. Proença) com base nas lições do citado Professor ao 3.º ano Jurídico, se escreveu que: “O princípio da boa fé significa que todos devem guardar “fidelidade” à palavra dada e não frustrar ou abusar daquela confiança que constitui a base imprescindível das relações humanas, sendo, pois, mister que procedam tal como deve esperar-se que o faça qualquer pessoa que participe honesta e correctamente no tráfico jurídico, no quadro de uma vinculação jurídica especial.” - pág. 110. (Veja-se ainda neste autor a distinção entre boa-fé objectiva e subjectiva - págs. 107-109)  
[8] Gianluca Falco, in op. loc. cit. pág. 381. Na sentença (cassação) de 18 de Setembro de 2009, definiram-se os elementos constitutivos do abuso de direito pela forma seguinte:”1) a titularidade de um direito atribuído a um sujeito;2) a possibilidade que o concreto exercício do referido direito possa ser efectuado segundo uma pluralidade de modalidade não rigidamente predeterminada; 3) a circunstância que tal exercício concreto, ainda que se formalmente respeitador da moldura atributiva do referido direito, seja desenvolvido segundo uma modalidade censurável com respeito a um critério de valoração jurídico ou extra jurídico; 4) a circunstância que, devido a uma tal modalidade de exercício, se verifique uma desproporção injustificada entre o beneficio do titular do direito e o sacrifício daquele que è constrito à contraparte”. 
[9] Mota Pinto, Paulo, in “Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo”, Vol., Coimbra Editora, 2008, pag. 485.
[10] Op. loc. cit. pag. 485 que cita Orlando de Carvalho in “Teoria Geral do Direito Civil”, 1981, págs. 45.
[11] Cfr. A este propósito o acórdão deste supremo Tribunal de 16-12-2010, relatado pelo Conselheiro Alves Velho onde se escreveu a propósito do instituto do abuso de direito: “O instituto do abuso de direito, como princípio geral moderador dominante na globalidade do sistema jurídico, apresenta-se como verdadeira «válvula de segurança» vocacionada para impedir ou paralisar situações de grave injustiça que o próprio legislador preveniria se as tivesse previsto, de tal forma que se reveste, ele mesmo, de uma forma de antijuridicidade cujas consequências devem ser as mesmas de qualquer acto ilícito.

Quando tal sucede, isto é, quando o direito que se exerce não passa de uma aparência de direito, desligado da satisfação dos interesses de que é instrumento, e se traduz «na negação de interesses sensíveis de outrem» (COUTINHO DE ABREU, “Do Abuso de Direito”, pp. 43), então haverá que afastar as normas que formalmente concedem ou legitimam o poder exercido.

No caso, a norma a afastar será, como do anteriormente expendido resulta, a do citado n.º 2 do art. 1137º C. Civil, que defere aos Réus a faculdade de, a todo o tempo, denunciarem a relação de comodato.

Importa, pois, determinar se os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes saem ofendidos, designadamente de forma clamorosa, face às concepções ético-jurídicas dominantes, pois que é no âmbito da conduta tida por contrária à boa-fé que há-de emergir o “venire”.

A boa-fé, como princípio normativo de actuação – que é o conceito em que aqui releva (art. 762º-2 CCiv.) -, encerra o entendimento de que as pessoas devem ter um comportamento honesto, leal, diligente, zeloso, tudo em termos de não frustrar o fim prosseguido pelo contrato e defraudar os legítimos interesses ou expectativa da outra parte.

Circunscrevendo mais o problema, dir-se-á que se trata de saber se a conduta passada dos Réus, servindo de referência à conduta actual e sob valoração negativa, deslegitima esta última, ofendendo de tal modo aqueles valores que o direito de denúncia deve ter-se como perdido ou precludido. Como pressupostos da imputação da consequência jurídica do venire contra factum proprium, o Prof. Baptista Machado (“Obra Dispersa, I, 416) enuncia: - (i) uma situação objectiva de confiança (uma conduta que possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação ao desenvolvimento futuro de certa situação); - (ii) investimento na confiança e irreversibilidade desse investimento (que o facto gerador da confiança se apresente como o determinante, em termos de causalidade, a influenciar as decisões da contraparte); - (iii) boa-fé da contraparte que confiou (a confiança da contraparte só merecerá protecção jurídica quando esta esteja de boa fé e tenha agido com cuidado e precauções usuais no tráfico jurídico)

No caso, não estando, em boa verdade, em apreciação uma declaração dos Réus no sentido de actuarem de determinada forma ou uma manifestação de intenção de não praticar certo acto agindo depois em termos contrários ao declarado ou manifestado, só em sentido amplo se estará perante a figura do “venire” (cfr. MENEZES CORDEIRO, “A Boa Fé no Direito Civil”, II, 742 e ss).

Aqui estar-se-á, crê-se, mais próximo da subespécie denominada “supressio”, quando admitida, pois que a invocada conduta contraditória assenta apenas no longo período em que os RR. não reclamaram a retirada da urna e franquearam a entrada no jazigo aos AA., que dispunham da respectiva chave.
Assim, não tendo os RR. posto termo à situação iniciada com o empréstimo do gavetão durante 25 anos, o exercício do seu direito de lhe pôr termo decorrido tão longo lapso de tempo contrariaria as regras da boa fé, pelo que não poderia mais sê-lo, ficando precludido.
Mas, também, a propósito desta figura, quando autonomizada em relação ao “venire”, se exigem requisitos ou condições para além do decurso do tempo, bem próximas das acima enunciadas. Assim: - (i) o titular deve comportar-se como se não tivesse o direito ou não mais quisesse exercê-lo; - (ii) deve haver previsão ou investimento na confiança (a contraparte deve confiar em que o direito não mais será feito valer); - (iii) Deve ocorrer uma desvantagem injusta (o exercício do direito acarretaria, para a contraparte, uma desvantagem iníqua) – ac. STJ, de 19/10/2000, CJ VIII-III-82).
[12] Gianluca Falco, op. loc. cit. pág. 387.
[13] Cfr. Manuel de Andrade, in “Teoria Geral das Obrigações”, pág. 63-63 “Há abuso do direito quando o direito, legitimo (razoável) em princípio, é exercido, em determinado caso, de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante; e a consequência é a de o titular do direito ser tratado como se não tivesse tal direito ou a de contra ele se admitir um direito de indemnização baseado em facto ilícito extracontratual.” No mesmo sentido Vaz Serra, in “Abuso do Direito”, BMJ, n.º 85, pág, 253.    
[14] Cfr. Antunes Varela, João, in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, Almedina, 6.ª ed., pág. 516
[15] Cfr. J.M. Coutinho de Abreu, Do abuso de Direito – ensaio de um critério em direito civil e nas deliberações sociais, Almedina, Coimbra, 1983, p.43-44.
[16] Cfr. J.M. Coutinho de Abreu, op. loc. cit. p.44-45.
[17] Defende este autor que o artigo 334.º do Código Civil quando se refere ao excesso manifesto dos limites impostos pelo fim económico do direito, se refere ao princípio da boa-fé que não se confundindo com o abuso do abuso de direito partilha com ele vários espaços. O princípio da boa-fé significa que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto e leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros. – Cfr. Baptista Machado, “Tutela da Confiança e venire contra factum proprium”, Obra Dispersa, p. 850 e ss.       
[18] Cfr. J.M. Coutinho de Abreu, op. loc. cit. p. 73 (nota 150).
[19] Escambo é uma troca que não envolve uma "moeda" ou seja, não envolve dinheiro, simplesmente é algo ou um serviço que alguém possui ou presta e quer trocar por um bem ou um serviço de outrem.
[20] Cfr. Cunha Gonçalves, in Dos Contratos em Especial, 1953, pág. 293.

[21] O Código Comercial sinaliza e recorta a figura da troca, para efeitos mercantis, nos seguintes termos;  «O escambo ou troca será mercantil nos mesmos casos em que o é a compra e venda, e regular-se-á pelas mesmas regras estabelecidas para esta, em tudo quanto forem aplicáveis às circunstâncias ou condições daquele contrato».
[22] O Côde Civil, prevê, no Capítulo VII: De l´echange, que a troca é um contrato pelo qual as partes “se donnent respectivement une chose pour autre” – cfr. artigo 1702.º, prescrevendo que “toutes les autres règles prescrites pour le contrat de vente s’appliquent d’ailleurs à l’échange” – cfr. artigo 1707.º. Do mesmo passo o Código Civil espanhol, em termos muito similares ao preceituado no Côde Civil, no Título V: de la permuta, define a permuta como sendo o contrato “pelo qual uno de los contraentes se obliga a dar una cosa para recibir outra” – cfr. artigo 1538.º, dedicando os mesmos quatro artigos que o Code Civil, remete, no artigo 1541.º “en todo lo que se hallle especialmente determinado en este título, la permuta se regirá por las disposiciones concernientes a la venta”. De notar que tanto no Côde Civil como no Código Civil espanhol, este contrato se encontra sistematizado em posição imediatamente precedente ao contrato de arrendamento.
[23] Cfr. Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, 3.ª edição, pág. 165 e Cunha Gonçalves, in Tratado de Direito Civil, Vol. VIII, pág. 628, que cita o seguinte exemplo: «A operação em que uma pessoa dá títulos de crédito e outra um prédio é de troca..., e embora os títulos possam ser rapidamente reduzidos a dinheiro eles não são dinheiro, não representam preço».
[24] Cfr. Luís Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, Fontes, Conteúdo e Garantia da Relação Jurídica, 3.ª edição, Universidade Católica Editora, 233- 249. 
[25] Cfr. Luís Carvalho Fernandes, op. loc. cit. pág. 236.
[26]A adopção da forma escrita permite não só apurar com mais facilidade se certo negócio foi ou não praticado, mas ainda qual o seu conteúdo. Também razões de ponderação podem justificar uma maior exigência de formalidades. Na verdade, e tomando o que se passa, por exemplo, na outorga de uma escritura pública, a necessidade de preparar o acto, de comparecer perante o notário, de ouvir ler e explicar o seu conteúdo, para só no final de todas estas formalidades o assinar (art. 50.°, n.ºs 1 e 2, do C.Not.), levam de certo as partes a pensar bem no acto que vão praticar ou, pelo menos, dão-lhes tempo e condições para o fazerem.” – cfr. Luís Carvalho Fernandes, op. loc. cit. pág. 239.
[27]O preceito em análise estabelece, como regime geral, e sem distinções, neste plano, a nulidade como valor negativo do vício de formal. Significa isto que o legislador entendeu desnecessário atender ao grau de desconfor­midade existente entre a forma legal e a forma adoptada pelas partes. Assim, um negócio de compra e venda de um prédio urbano, se não for observada a forma legal, para a lei, é sempre nulo, sendo indiferente que seja celebrado por documento escrito ou por simples declaração verbal. – Cfr. Luís Carvalho Fernandes, in op. loc. cit. p. 244. Oliveira Ascensão, de acordo com este autor, estima que “(…) duvi­dosa a correcção da solução legal, ao estabelecer a nulidade como conse­quência da violação de formalidades legais ad substantiam. No seu entender, havendo vício de forma, não há aparência do negócio e, como tal, o negócio devia ser tido inexistente. Sustenta, de seguida, que o regime do art. 1259.º, n.º 1, do C. Civ., ao declarar não titulada a posse emergente de negócio ferido de vício formal, constitui a afloração de uma solução mais adequada à inexistência (…).” – pág. 245.
[28] Cfr. Luís Carvalho Fernandes, op. loc. cit. p. 246.
[29] Cfr. Manuel de Andrade, “Sobre a Validade da Cláusulas de Liquidação de Partes Sociais pelo Último Balanço”, Revista de Legislação e Jurisprudência, Anos 86.º e 87.º, N.º 3040 e 3041, págs. 307 (n.º 3041:º) que defende que: “Essa doutrina geral (do abuso de direito) torna-se imprescindível em qualquer sistema jurídico, para obstar a que determinações abstractas da lei – incluindo as que sancionam estipulações negociais – possam ser eficazmente invocadas até mesmo quando isso levaria, na espécie, a injustiças clamorosas que o próprio legislador não hesitaria em repudiar, se as tivesse vislumbrado. (…) Quanto a demarcar, com a possível nitidez, as hipóteses em que a mesma doutrina deva ter intervenção, o critério que perfilho pode enunciar-se nestes termos: serão, regra geral, todas aquelas hipóteses em que a invocação e a aplicação de um preceito de lei resultaria, no caso concreto, intoleravelmente ofensiva do nosso ordenamento sentido ético-jurídico, embora lealmente se aceitando como boa e valiosa para o comum dos casos. Esse escândalo para o nosso sentido ético-jurídico pode requerer ou não requererá uma intenção malévola ou algum outro género de culpa por parte de quem pretende valer-se da respectiva norma. Em muitos casos – talvez até na grande maioria – será requerido esse elemento de dolo ou culpa. Mas não tem de ser sempre assim. Tudo depende de vário condicionalismo de cada espécie, e particularmente da transcendência dos valores em jogo. Decisivo será apenas, em último termo, que intervenha no caso aquela forte reacção de censura por parte da nossa consciência jurídica. Esta directiva geral é a que está em concordância com a razão de ser da teoria do direito. Só entendida nestes largos termos é que a teoria em questão pode servir plenamente com válvula de segurança para os casos de pressão violenta da nossa consciência jurídica contra a rígida estruturação das normas legais – correspondendo a uma necessidade que se vem fazendo sentir desde o direito romano (exceptio doli generalis, proibição dos actos ad aemulationem, etc).”               
[30] Manuel de Andrade, “Sobre a Validade da Cláusulas de Liquidação de Partes Sociais pelo Último Balanço”, Revista de Legislação e Jurisprudência, Anos 86.º e 87.º, N.º 3040 e 3041, págs. 308 (n.º 3041:º)

[31] Cfr. Revista de Legislação e Jurisprudência, Anos 109.º e 115.º, págs. 30-31 e 214-216, respectivamente, refere este Professor que: “Num tal caso, declarada a nulidade do con­trato, tem o contraente lesado o direito de re­clamar indemnização ao outro (Cód. Civil, art. 227.°); mas não deverá poder opor-se à declaração de nulidade do contrato? Este problema tem sido versado por vá­rias vezes entre nós.

M. DE ANDRADE inclina-se (não ca­tegoricamente embora) para a solução afir­mativa: assim, por ex., se a nulidade formal do contrato é arguida pelo contraente que a provocou ou levou dolosamente o outro a não formalizar o contrato, ou procedeu de modo a criar nesse outro contraente a convic­ção de que a nulidade não seria invocada.

Pela nossa parte, escrevemos: «E esta solução parece ser realmente a preferível, desde que a finalidade da disposição legal respeitante à forma o não exclua, quer dizer, desde que esta se não destine a um fim de segurança ou certeza jurídica inconciliável com a eficácia da declaração não formalizada.

«Se, por ex., a lei exigir que a fiança seja prestada por escrito, com o intuito de pre­caver o fiador contra a falta de ponderação da gravidade desse acta, não se afigura existir razão para, no caso de abuso do di­reito por parte do fiador, se haver como nula a fiança prestada verbalmente...

«Se, diversamente, a forma tinha em vista um objectivo inconciliável com a eficácia da declaração desprovida dela, poderia a nuli­dade ser invocada mesmo por quem come­teu abuso do direito, mas teria essa pessoa a obrigação de indemnizar a outra parte.

«É o que se dará, por ex., com o con­trato de compra e venda de bens imobiliá­rios, para o qual a lei exige escritura pú­blica..., não só para assegurar a ponderação das partes, mas para outros fins e, entre eles, a segurança e certeza acerca da situação da propriedade imobiliária. Portanto, ainda que haja abuso do direito (v. g., o compra­dor convenceu dolosamente o vendedor de que não era necessário recorrer a uma escri­tura pública), o contrato será nulo, mas o autor do abuso será obrigado a indemnizar a parte contrária».

Ultimamente, todavia, referimos que o próprio LARENZ, que, a princípio, se opu­nha à possibilidade de ser rejeitada a in­vocação da nulidade formal de um negócio jurídico quando constitua abuso do direito, faz agora concessões a essa doutrina, es­crevendo: «No caso de contratos obriga­cionais, parece, pelo contrário, ser menos objectável considerar como válida, sob determinados pressupostos, uma obrigação contraída sem forma, ainda que a lei tenha prescrito para ela uma forma, dado que aqui' nem o interesse público, nem interes­ses de terceiros, exigem incondicionada­mente a observância da forma. Um afas­tamento da imposição de forma é, de facto, justificado quando aquele que recusa o cum­primento de uma promessa alegando a inob­servância da forma tinha impedido dolos a­mente a observância da forma. O princípio de que ninguém deve poder tirar da sua própria conduta dolos a uma vantagem jurí­dica tem aqui precedência sobre o princípio da forma...».”