Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1668/12.0TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO
ERRO JUDICIÁRIO
ERRO GROSSEIRO
REVOGAÇÃO
DECISÃO
PRESSUPOSTOS
OBJETOS DECLARADOS PERDIDOS A FAVOR DO ESTADO
Data do Acordão: 10/23/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO / FUNÇÃO JURISDICIONAL / ERRO GROSSEIRO /DECLARAÇÃO DE PERDA DE BENS A FAVOR DO ESTADO
Doutrina: - Guilherme da Fonseca, «A responsabilidade Civil por Danos Decorrentes do Exercício da Função Jurisdicional», Julgar, Maio-Agosto 2008, pág. 55;
- Maria José Rangel Mesquita, «Âmbito e pressupostos da Responsabilidade Civil do Estado pelo Exercício da Função jurisdicional», Revista CEJ, 1.º Semestre, 2009, n.º 11, pág. 279;
- Cardoso da Costa, «Sobre o Novo Regime da Responsabilidade do Estado por actos da Função Judicial», in “Estudos de Homenagem ao Prof. Manuel Henriques Mesquita”, 2009, Coimbra Editora, págs. 509, 512, 514;
- Manuel Afonso Vaz e Catarina Santos Botelho, «Comentário às Disposições Introdutórias da Lei 67/2007, de 31-12, in “Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil do Estado e demais entidades Públicas», Univ. Católica, pág. 52;
- Jorge Miranda e Rui Medeiros, «Constituição da República Portuguesa Anotada», tomo I, 2005, 213;
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, «Constituição da República Portuguesa Anotada», vol. I, 4.ª ed., pág. 425;
- Paula Costa e Silva, «A ideia de Estado de Direito e a Responsabilidade do Estado por Erro judiciário», in “O Direito”, 142 (2010), I, 71;
- João Aveiro Pereira, «A responsabilidade Civil por actos jurisdicionais», Coimbra Editora, 2001, págs. 208 e ss.;
- Manuel de Andrade, «Teoria Geral da Relação Jurídica», 1974, 2, 239;
- Lebre de Freitas, «Código de Processo Civil Anotado», vol. 3, 2.ª ed., pág. 13/14.
Legislação Nacional: CRP: ARTS. 17.º, 18.º, 22, 27.º, N.º 5, 29.º, N.º 6, 30.º, 117.º, 202.º, 203.º, 216.º,
DECRETO LEI 48 051 DE 21-11-1967;
LEI 67/2007, DE 31-12: ARTS. 6.º E 13.º;
CC: ART. 12.º;
CÓDIGO PENAL: ART. 111.º, N.ºS 1 E 2;
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL: ARTS. 118.º, N.º 2,123.º, 178.º, N.º 7,225.º, 226.º,401.º, N.º 1, AL. D), 449.º, 450.º, 462.º.
Jurisprudência Nacional: AC. STJ 08-09-2009, PROC. N.º 368/09.3YFLSB;
AC. STJ 19-06-2006, REVISTA 1091/08;
AC. STJ 3-12-2006, REVISTA 9180/07.3TBBRG.G1.S1;
AC. STJ 20-10-2005, PROC. N.º 05B2490;
AC. STJ 12-06-2003, PROC. N.º 03B4170;
AC. STJ 29-06-2005, PROC. N.º 05A1094;
AC. STJ 08-09-2009, PROC. N.º 368/09.3YFLSB;
AC. STJ 31-03-2004, PROC. N.º 51/04;
AC. STJ 15-02-2007, REVISTA N.º 4565/06;
AC. STJ 22-03-2011, REVISTA 5715/04TVLSB.L1.S1;
AC. STJ 08-11-2007, PROC. N.º 1469/02.4JFLSB;
AUJ 14/96, 07-11-1996; DR I S-A, 275, DE 27-11-96;
AC. TC 90/84, 30-07-84, PROC. 82/83
AC. TC 282/86, DR I S, 11-11-86;
AC. TC 284/89, DR II S, 22-06-1989;
AC. TC 288/94, DR II S, 17-06-1994;
AC. TC 41/95, DR II S, 27-04-1995.
Sumário :
I - No âmbito do erro judiciário o art. 13.º da Lei 67/2007, de 31-12, prevê duas situações: (i) a decisão jurisdicional manifestamente inconstitucional ou ilegal; (ii) a decisão jurisdicional manifestamente injustificada por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.

II - Não obstante a Lei n.º 67/2007, de 31-12, só se aplicar a factos geradores de responsabilidade civil ocorridos depois de 30-01-2008 – sendo que o pretenso facto ilícito nos presentes autos remonta a 24-05-2007 – nada obsta a que na densificação e aplicação directa do art. 22.º da CRP nos socorramos dos novos conceitos da Lei n.º 67/2007.

III - A necessidade de prévia revogação da decisão danosa – prevista agora no art. 13.º da Lei n.º 67/2007 – só se compadece com a via processual adequada para o efeito: o recurso.

IV - Tal entendimento é o único que se compagina com a natureza da função judicial, com a organização hierárquica dos tribunais e com o instituto do caso julgado.

V - Não integra o objecto da acção indemnizatória, emergente de responsabilidade extracontratual do Estado, a apreciação e eventual alteração do já decidido com trânsito em julgado no processo em que, a decisão posta em causa, foi proferida.

VI - Seja à luz do art. 13.º, n.º 2, da Lei n.º 67/2007, seja por aplicação directa do art. 22.º da CRP, a revogação da decisão danosa, pela via do recurso, constitui um pressuposto indispensável à procedência da acção.

VII - O erro de direito, para fundamentar a obrigação de indemnizar, terá de ser «escandaloso, crasso, supino, procedente de culpa grave do errante», sendo que só o erro que conduza a uma decisão aberrante e reveladora de uma actuação dolosa ou gravemente negligente é susceptível de ser qualificada como inquinada de «erro grosseiro».

VIII - Fundamental numa declaração de perda de bens a favor do Estado é que essa declaração tenha um mínimo de fundamento e que essa fundamentação radique na relação de causalidade existente entre o crime e os objectos.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I - Relatório

AA demandou, 22 de Agosto de 2012, o ESTADO PORTUGUÊS, nas Varas Cíveis de Lisboa com fundamento em responsabilidade civil extracontratual do Estado no âmbito da sua função jurisdicional, pedindo que fosse revogada a sentença proferida no processo n.° 1469/02.4JFLB, que correu termos na 5.a Vara Criminal de Lisboa, relativamente ao segmento que decretou a perda a favor do Estado de bens imóveis de que é proprietário, condenando este a restituir-lhos.

Para o caso de não ser assim entendido, pediu que o réu Estado fosse condenado a indemniza-lo pelo prejuízo sofrido num valor não inferior a 1.475.000,00€, acrescido de juros à taxa legal desde a citação até integral pagamento.

Alegou, essencialmente, que ocorreu erro grosseiro na aplicação do direito no âmbito do processo judicial n.° 1469/02.4JFLSB, que correu termos na 5.a Vara Criminal de Lisboa.

Com efeito, o A. era proprietário de todos os imóveis declarados perdidos num processo-crime em que não foi arguido e a que foi alheio, sem que os mesmos tivessem sido utilizados para a prática do crime ali julgado e sem que os imóveis tivessem sido adquiridos após a prática dos factos ilícitos, conhecendo o A. a sua proveniência.

Mais alegou que nunca foi notificado da decisão e que a confissão do ali arguido, não pode ser considerada bastante para desapropriar alguém alheio à confissão e aos factos que a motivaram, sendo que os imóveis foram adquiridos pelo A. fora do período temporal referido naquela confissão, facto comprovável pelos Juízes da causa que tinham nos autos certidão do imóvel.


O réu contestou, pugnando pela improcedência da acção.

Foi proferida decisão, que julgou a acção improcedente e absolveu o réu Estado Português do pedido.


O autor apelou para o Tribunal da Relação de Lisboa, que confirmou o julgado por douto Acórdão de 29 de Outubro de 2013.


De novo inconformado, interpôs o autor o presente recurso de revista, admitido como revista excepcional pela formação a que alude o nº 3 do artigo 672º do novo Código de Processo Civil.

 

Da alegação do recorrente relevam, em resumo, as seguintes conclusões:

          «1º. Caso se entenda ser aplicável in casu a Lei 67/2007, o que se admite em mera tese, importa interpretar a lei de forma a melhor garantir a possibilidade de ser assegurado aos particulares que se forem vítimas de uma decisão flagrantemente violadora dos seus direitos, que a possibilidade do Estado responder por tal dano está verdadeiramente garantida.

2º. Na verdade, a lei a ser interpretada literalmente levaria a concluir antes de mais uma obrigação de interpor recurso pelo particular vítima de uma decisão proferida por um tribunal em manifesto erro grosseiro na aplicação do direito.

3º. O que é uma total inversão do Direito, uma vez que o exercício de um direito, é exactamente isso, um direito e não uma obrigação.

4º. A lei entende-se nos casos em que tendo havido recurso da decisão, o qual apreciou a questão, e a manteve, então fará sentido defender-se que não poderá haver responsabilização do Estado, uma vez que houve já uma reanálise da questão por outros julgadores, que tiveram o mesmo entendimento do julgador anterior.

5º. Agora se não houve, ou não pode haver recurso, entender-se que o Estado deixará de responder pelos actos ilícitos que praticou, parecer ser um entendimento violador da Lei Fundamental.

6º. Há casos em que as decisões não são susceptíveis de recurso.

7º. Ora, nesses casos, não pode estar vedada ao particular a possibilidade de exigir a responsabilização do Estado se estiver em causa uma decisão que, de forma manifesta e grosseira erra na aplicação do direito, a qual tenha causado um dano no particular.

8º. O mesmo sucedendo nos casos em que tendo havido recurso, o mesmo não apreciou a questão, conforme sucedeu nos presentes autos, uma vez que este

Respeitável Tribunal a propósito do recurso interposto pelo arguido relativamente aos bens perdidos a favor do Estado, não apreciou o mesmo, por considerar que o arguido não sendo proprietário dos mesmos, não tinha interesse Ilegitimidade para recorrer quanto a tal matéria.

9.º Assim, no caso vertente houve recurso da decisão, mas o mesmo não apreciou a questão, não a revogando, nem defendendo a sua conformidade com a Lei.

10.º Acresce que, o ora Recorrente lesado com a decisão proferida que declarou os seus bens perdidos a favor do Estado, num processo onde nunca interveio seja a que título for, nunca tendo sido ouvido e nunca tendo sido notificado da decisão.

11.º Ou seja, o legislador ao optar por termo "deve" em lugar de "tem que" ou qualquer outro termo que nos remeta para uma obrigatoriedade, pretendeu limitar essa necessidade de prévia revogação da decisão às situações em que tal é possível.

12.º Sob pena de que entendimento diverso seria manifestamente inconstitucional por violação do artigo 20º da CRP.

13º. E, não corresponder ao espírito na Lei que era exactamente consagrar a responsabilidade do Estado pelos erros cometidos.

14.º Resultou provado, pois não foi, nem podia ser, contestado pelo Ministério Publico, que o Recorrente era proprietário dos imóveis in casu, que tal era do conhecimento do Tribunal e que o Recorrente nunca foi ouvido no processo, não era parte do mesmo e que nunca foi notificado da decisão proferida.

15º. Ora neste tipo de casos, como no caso de decisões proferidas em processos que não admitem recurso, designadamente pelo valor da causa, a exigência da prévia revogação da decisão proferida não é aplicável.

16.º Não estando vedada aos cidadãos a possibilidade de exigirem a responsabilização do Estado quanto ocorre um erro grosseiro e grave, que mais grave se torna, exactamente nos casos em que os cidadãos não o podem sindicar em recurso.

17.º Conforme refere a Dra Maria José Rangel Mesquita, num estudo publicado sobre a responsabilidade pelo exercício da função jurisdicional "É duvidoso que a efectivação de um direito constitucionalmente previsto - e concretizado pelo Regime aprovado pela Lei nº 67/2007 - possa ficar dependente de um requisito que a Constituição, ao consagrar aquele princípio, não prevê." (Vide a responsabilidade pelo exercício da função jurisdicional: âmbito e pressupostos, de Maria José Rangel de Mesquita, pg. 18;in http://www.icjp.pt.sites/defaultlfiles/media/608-898.pdf)

18.º lnterpretar o referido artigo 13º nº 2 do DL 67/2007 no sentido de ser sempre necessário existir prévia revogação da decisão danosa seria uma clara violação do artigo 22º da CRP e do artigo 2º nº 2 do CPC.

19.º É manifesto que a decisão proferida no âmbito do processo 1469/02.4 JFLSB:

a) ao basear-se na confissão do arguido, quando dos autos resultavam elementos que infirmavam tal confissão – designadamente a data de aquisição dos bens.

b) ao não ouvir o Recorrente, proprietários os bens, a tal propósito, e

c) ao nunca notificar o Recorrente da decisão proferida.

20º. Errou de forma grosseira e clamorosa.

21.º O Recorrente viu os seus imóveis serem declarados perdidos a favor do Estado no âmbito do processo nº 1469/02.4 JFLSB que correu termos na 5ª Vara Criminal de Lisboa, (Cfr. Doc. 5 da PI).

22.ºA verdade é que os imóveis cujo perdimento a favor do Estado se declarou nos referidos autos eram à data dos factos e no momento em que o perdimento foi decretado propriedade do Recorrente e não daquele que era arguido no referido processo.

23.º O que configura uma clara violação dos direitos do Recorrente, designadamente dos consagrados nos artigos 20º e 62º da Constituição da República Portuguesa.

24.º Na decisão proferida no âmbito do processo nº 1469/02.4 JFLSB que correu os seus termos na 5ª Vara Criminal de Lisboa o Estado Julgador errou no direito aplicável de forma grosseira, evidente e crassa.

25.º Por via directa da decisão proferida foi causado prejuízo patrimonial ao Recorrente que se vê assim privado dos seus imóveis.

26.º Assim sendo, uma vez que o Estado julgador, com culpa, violou o direito do Autor fica, nos termos do disposto nos artigos 22º e 29º nº 6 da CRP obrigado a indemnizá-lo pelos danos sofridos.

27.º Tendo em consideração que o dano é a privação dos imóveis e respectivos rendimentos a indemnização deverá ser a reconstituição da situação, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.

28º. O Tribunal não legitimou uma situação injusta existente, o Tribunal foi ele próprio o agente causador da violação do Direito de propriedade do Recorrente.

29.º Motivo pelo qual se deverá considerar que a necessária prévia revogação da decisão, prevista no artigo 13 nº 2 da Lei 67/2007 de 31 de Dezembro (caso se considere ser tal normativo aplicável nos presentes autos, o que se admite em mera tese) apenas respeita aos casos em que tendo havido recurso da decisão em análise, o qual apreciando a mesma questão, alegadamente violadora do direito de particulares, a revogou.

Nestes termos e nos melhores de direito que Vossas Excelências mui douta- mente suprirão, julgando procedente o presente recurso, revogando-se a Sentença recorrida e ordenando a remessa dos autos para realização de julgamento.»

           

O Ministério Público, nas contra-alegações, defendeu a manutenção do julgado.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


II. Fundamentos:

De facto:

As Instâncias tiveram por assente a seguinte matéria de facto:

1. Mediante acórdão proferido em 24 de maio de 2007, no âmbito do processo comum n.º 1469/02.4 JFBLSB da 9.° vara criminal de Lisboa, 2ª secção, depois redistribuído à 5.a vara criminal de Lisboa, junto a fls. 32 e ss. dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, foram declarados perdidos a favor do Estado os seguintes imóveis: - r/c esquerdo do prédio urbano sito na Herdade … ou …, lote …, no Pinhal Novo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o n.° … da freguesia do Pinhal Novo; - r/c dto. do prédio urbano sito na Herdade … ou …, lote … no Pinhal Novo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o n.° …; - 1." andar direito, do lote da Rua …, no Pinhal Novo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela como fracção «G» do prédio urbano …; - imóvel sito na Rua …, n.°s …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santarém sob o n.° …;

2. Os imóveis supra descritos estavam à data da prolação do acórdão registados em nome do aqui Autor;

3. O Acórdão referido em (1) já transitou em julgado;

4. O arguido nos autos supra referidos, BB, recorreu do acórdão supra referido, nomeadamente, da parte da decisão que declarou perdidos a favor do Estado os supra referidos imóveis, declarando que os mesmos não eram de sua pertença, nem à data dos factos nem no momento em que a perda foi determinada, mas sim pertença de terceiros;

5. No acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça datado de 8 de Novembro de 2007, escreveu-se: «Perdimento dos bens a favor do Estado. Vem dizer o arguido que, ao decretar a perda a favor do Estado de bens pertencentes a terceiros, sem a menor prova de que os mesmos tenham concorrido, de forma censurável para a sua utilização e mesmo perante a total ausência de fundamentação, em qualquer outro caso, o douto acórdão violou o disposto no n.º 1 do art. 110.º, no n.°2 a contrario do mesmo artigo e no n.º 4 do art. 97.°do mesmo Código (conclusão IV). A pág. 7 da sua motivação (n.°37) sustenta o recorrente que os bens apreendidos não lhe pertencem, nem à data dos factos, nem no momento em que a perda foi decretada. Nessa óptica, não tem o recorrente legitimidade para impugnar a decisão de perdimento, pois que a decisão não foi proferida contra ele e, nos termos do disposto no art. 401.º, n.º 1 al. b), o arguido só dessas decisões pode recorrer. (...) De todo o modo, está provado que o arguido "entre Janeiro de 1998 a Dezembro de 1999, despendeu o dinheiro de que se apropriou nas circunstâncias acima referidas na aquisição dos imóveis descritos no art. 497.º e que foram apreendidos (n.° 508.º da matéria de facto). Facto, aliás, confessado pelo recorrente. Ora, dispõe o art. 109.°,n.° 1 do C. penal que são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos ilícitos típicos. E o art. 111.º do mesmo diploma que toda a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, para eles ou para outrem, é perdida a favor do Estado (n.º 1) e que são também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa fé, as coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido directamente adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie (n.° 2). E foi exactamente nesses termos que o acórdão recorrido decidiu (...) Não mereceria, assim, nesta parte, qualquer censura a decisão recorrida. (...)».

6. No acórdão da 9.ª Vara Criminal consignou-se: Provados os seguintes factos:

«26.º - dado que o arguido AA[1] tinha conhecimento dos procedimentos da ADSE atrás referidos, em data não concretamente apurada, mas pelo menos durante o ano de 1997, decidiu actuar, de forma organizada, reiterada e planeada, com o objectivo de obter proventos económicos à custa da ADSE, proventos esses a que sabia não ter direito.

495.º - No dia 18.03.2004 foram apreendidos nos locais abaixo identificados os seguintes objectos:

1. Instalações do Lar …, sito na Rua …, … A/B em Santarém (...)

497.º Foram apreendidos os imóveis de seguida identificados:

i. imóvel correspondente ao R/c do prédio urbano sito na Herdade … ou …, Lt …, no Pinhal Novo (...) Fracção A, (...) registado em nome de AA;

ii. imóvel correspondente ao R/c do prédio do prédio urbano sito na Herdade … ou …, Lt …, no Pinhal Novo (...) Fracção B., (...) registado em nome de AA;

iii. imóvel correspondente ao R/c do Lt. 1, da Rua … no Pinhal Novo, (...) fracção A (...) registado em nome de CC.

iv. imóvel correspondente ao R/c do Lt. 1, da Rua … no Pinhal Novo (...) fracção B (...) registado em nome de AA.

 v. imóvel correspondente ao 1." Andar Dt, da Rua … no Pinhal Novo (...) fracção G (...) registado em nome de AA.

vi. imóvel sito na Rua … n."…-A e …-B, (...) registado em nome de AA.

499.º - O arguido AA agiu livre, deliberada e conscientemente. 503.º- O arguido actuou com a intenção de induzir em erro a ADSE e, de por meio de tal artifício, a levar a entregar-lhe, a título de comparticipações de consultas e realização de exames e de tratamentos de fisioterapia que nunca existiram, as quantias monetárias supra referidas a que sabia não ter direito.

504.° - Propósito esse que se concretizou.

506.º - Com a sua actuação o arguido, causou à ADSE, pelo menos o prejuízo de 3.921.198,00€ (três milhões novecentos e vinte e um mil cento e noventa e oito euros), quantia que esta entregou a título de comparticipação dos modelos 14 de consultas e das prescrições de exames e tratamentos que lhe foram remetidas.

507.º - O dinheiro obtido foi gasto pelo arguido AA em seu proveito próprio.

508.º - Entre Janeiro de 1998 a Dezembro de 1999, despendeu o dinheiro de que se apropriou nas circunstâncias acima referidas na aquisição dos imóveis descritos no art. 497º e que foram apreendidos.

510.º O arguido AA confessou integralmente e sem reservas os factos que lhe são imputados.

Fundamentação da matéria de facto:

O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade apurada com base na confissão integral e sem reservas do arguido conjugada com a prova documental junta aos autos, constituída por cerca de 400 apensos e com as regras da experiência comum. (....)

 Prova documental: Processo Principal: (...) 1933 a 1972,1979 a 1981, (...) apenso 49,fls. 1 a 107 (...)».

7. De fls. 1933 a 1940 do Processo Principal[2], consta o teor da descrição predial n.° … do prédio urbano na Herdade … ou …, lote .., Pinhal Novo, fracções A e B, Ap … - Aquisição a favor de AA, solteiro, menor (...) por compra a Soc. DD, Ldª, (...) abrange 2 fracções. Av.l - Ap … - Usufruto a extinguir no todo à morte do último que sobreviver - a favor de BB e mulher (...) por compra a Soc. DD, Ldª (...) abrange 2 fracções. Av.l - Ap….- Cancelada

7.1. A fls. 89 e seguintes do Apenso 49 consta escritura de compra e venda celebrada no dia 17 de agosto de 1998, em que Soc. DD, Ldª, vende a BB e mulher, por si e na qualidade de representantes legais do seu filho menor AA, respectivamente, aos primeiros o usufruto simultâneo e sucessivo das fracções A e B, e ao segundo a nua propriedade das mesmas fracções.

8. De fls. 1961 a 1969 do Processo Principal, consta o teor da descrição predial n.° …, 1º andar direito, do lote da Rua …, no Pinhal Novo, fracção G, Ap. … - Aquisição - a favor de AA, solteiro, menor (...) por compra a EE, Construções, Ldª. Av.l —Ap. … - Usufruto a favor de BB e mulher (...) a extinguir no todo à morte do último que sobreviver -por compra a EE, Construções, Ldª. Av.l - Ap…. - Cancelada.

8.1. A fls. 84 e seguintes do Apenso 49 consta escritura de compra e venda celebrada no dia 10 de Dezembro de 1999, em que EE, Construções, Ldª, vende a BB e mulher, por si e na qualidade de representantes legais do seu filho menor AA, respectivamente, aos primeiros o usufruto simultâneo e sucessivo da fracção G, 1.° andar direito, e ao segundo a nua propriedade da mesma fracção.

9. De fls. 1979 a 1981 do Processo Principal, consta o teor da descrição predial … de Santarém, prédio urbano na Rua …, n.° ..-A e …-B, Ap. … - Aquisição a favor de AA, solteiro, menor, (...) por doação. Of. Ap … - Usufruto a extinguir, no todo, à morte do último que sobreviver — a favor de BB e mulher (...) por reserva na doação. Ap…. - Usufruto - a favor de FF (...) por doação.

9.1. A fls. 55 e seguintes do Apenso 49 consta a escritura de 23 de Outubro do 2002 pela qual BB e mulher, como proprietários do prédio urbano, destinado a ocupação de Lar de 3ª idade, na Rua …, n.° …-A e …-B, por conta da quota disponível e com reserva de usufruto simultâneo e sucessivo a seu favor, fazem a doação do citado imóvel a seu filho AA.

10. A fls. 29 e seguintes do Apenso 49 consta a escritura de 13 de Março de 2003, pela qual FF, na qualidade de procurador de BB e mulher, em nome dos seus representados renuncia ao usufruto que incide nas fracções: G do prédio sito na Rua …, Pinhal Novo; A e B, do prédio urbano sito na Herdade do …ou …, Lote …, Pinhal Novo.

11. No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Fevereiro de 2010 consignou-se: «AA, FF e CC vieram interpor recurso extraordinário de revisão de sentença do acórdão proferido no âmbito do processo comum colectivo n.º 1469-02.4JFLSB pela 9.ª Vara Criminal em 24/05/2007 e confirmado por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8/11/2007. (...) Terminam pedindo que se dê provimento ao recurso, declarando-se a sentença nula na parte em que declara a perda a favor do Estado dos imóveis da (alegada) propriedade dos recorrentes (...) decidindo, (...) acordam na (5.a) Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar, por falta de legitimidade, o recurso extraordinário de revisão interposto (...)».

12. No despacho proferido em 26 de Março de 2010, no processo 1469/02.4JFLSB, consignou-se: «(...) e salvo o devido respeito entendemos não haver lugar a qualquer notificação do acórdão destes autos aos ora requerentes[3]. Por um lado o acórdão já transitou em julgado e, por outro, os requerentes já há muito que tomaram conhecimento do mesmo, conforme se alcança do processo de revisão do acórdão que, oportunamente, interpuseram, pelo que não poderão, em nosso entender e salvo melhor opinião, nesta fase do processo, fazer valer os seus alegados direitos pela via penal. (...) indefere-se o requerido a fls. 12454 e, consequentemente, não se ordena a notificação do acórdão aos ora requerentes (...)

13. No Acórdão da Relação de Lisboa de 17 de Novembro de 2010 foi julgado improcedente o recurso interposto por AA, FF e CC, do despacho antecedente que indeferiu o pedido de notificação, consignando-se: (...) em 6 de Outubro de 2009, com o recebimento da certidão[4] (...) tomaram conhecimento da decisão de perdimento em causa. (...) Quer isto dizer que os recorrentes não podem agora reclamar uma notificação para conhecimento de uma decisão que já conhecem desde 6 de Outubro de 2009. (...) Os recorrentes decidiram-se pelo recurso extraordinário de revisão que o STJ rejeitou (...) Assim é forçoso concluir (...) que do erro que constituiu essa opção, revelado pelo citado acórdão do STJ, os recorrentes só de si se podem queixar. Porque, por via dessa opção, permitiram que a decisão de perdimento no processo penal ganhasse a estabilidade de verdadeiro caso julgado (...).»

14. O Autor nasceu no dia 19 de Janeiro de 1988.


De direito:

Balizado o objecto recurso pelas conclusões da alegação do autor, ora recorrente, e não se colocando qualquer questão de conhecimento oficioso, importa apreciar as seguintes questões:

         -responsabilidade do Estado por actos jurisdicionais: regime legal aplicável.

          - necessidade, ou não, de prévia revogação da decisão danosa.

         - erro judiciário grosseiro: declaração de perda de bens de terceiro a favor do Estado em processo-crime a que aquele foi alheio e para cujos termos não foi notificado.

-inconstitucionalidade da interpretação normativa que considera necessária a prévia revogação da decisão danosa.


1. A responsabilidade civil do Estado por danos causados no exercício da sua actividade no âmbito da gestão privada teve consagração legal expressa no Código Civil de 1966 (artigo 501º).

No tocante à responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas no domínio dos actos de gestão pública, foi o Decreto-Lei nº 48051, de 21 de Novembro de 1967, que veio estabelecer o seu regime geral.

Este diploma não previa a responsabilidade do Estado pelo exercício da função jurisdicional e a responsabilidade político-legislativa, limitando-se à responsabilidade derivada do exercício da função administrativa.

Só a Constituição de 1976 consagrou um princípio geral de responsabilidade do Estado e demais entidades públicas no artigo 22º ao dispor que “o Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária, com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício, de que resulte a violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”.

De forma inovatória a Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, veio consagrar, pela primeira vez, ao nível infra-constitucional o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, contemplando a responsabilidade civil do Estado por facto resultante da função legislativa e jurisdicional, posto que o DL nº 48 051, de 21 de Dezembro de 1969 - que aquela Lei veio revogar e substituir -, apenas se dirigia à Administração Pública.

A Lei nº 67/2007, que passou a contemplar, de uma forma global e unitária, a responsabilidade civil extracontratual do Estado decorrente do exercício das suas diversas funções, incluindo, como se disse, a função jurisdicional, prevê, concretamente, no artigo 13º a responsabilidade por erro judiciário, responsabilizando civilmente o Estado pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro. Ressalva, porém, o regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade regulados, respectivamente, nos artigos 449º e 462º e 225º, 226º do Código de Processo Penal, relativas à indemnização por privação da liberdade injustificada ou ilegal e à condenação injusta, concretizadoras do estabelecido nos artigos 27º nº 5 e 29º nº 6 da Constituição.

Nesse artigo 13º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas são consagradas, como se vê, duas situações distintas no âmbito do erro judiciário. A decisão jurisdicional manifestamente inconstitucional ou ilegal, por um lado, e a decisão jurisdicional manifestamente injustificada por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto, por outro (Cons. Guilherme da Fonseca, «A Responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional», Julgar, 5, Maio-Agosto 2008, pág. 55, e Prof. Maria José Rangel de Mesquita, «Âmbito e pressupostos da responsabilidade civil do Estado pelo exercício da função jurisdicional», Revista do CEJ, 1º semestre 2009, nº 11, pág. 279).

Em qualquer dos casos, só nas situações de erro grave ou, porventura, muito grave do ponto de vista da percepção do direito ou dos factos exigível ao decisor jurisdicional pode ocorrer responsabilidade por erro judiciário, desde que a decisão produza um qualquer dano ao interessado, uma vez que só quando tal percepção contrarie, manifestamente, o sentido normativo autêntico da Constituição ou da lei, ou se traduza numa análise grosseiramente errada dos factos poderá ter lugar aquela responsabilidade (Conselheiro Cardoso da Costa, «Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado por actos da função judicial, in Estudos em Homenagem ao Prof. Manuel Henriques Mesquita, 2009, Coimbra Editora, pág. 509).

No caso vertente, o acórdão recorrido na subsunção jurídica que faz dos factos ao direito convoca a Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, para a resolução da questão concretamente colocada, nomeadamente, o aludido artigo 13º.

Sucede que, de acordo com o disposto no artigo 6º desta Lei, a mesma entrou em vigor no dia 30 de Janeiro de 2008, trigésimo dia após a data da sua publicação. Não contendo disposições transitórias que regulem a sua aplicação no tempo, haverá que recorrer às normas de aplicação da lei no tempo, em particular, ao estabelecido no nº 1 do artigo 12º do Código Civil, segundo o qual, na falta de disposição em contrário, a lei só se aplica a factos futuros, isto é, a factos que se produziram após a sua entrada em vigor.

Assim, observando este princípio geral de que a lei nova só rege para o futuro, presumindo-se ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que se destina a regular, conclui-se que a Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, só se aplica aos factos geradores de responsabilidade civil ocorridos depois de 30 de Janeiro de 2008.

Daqui deriva que, fundando o autor o direito à indemnização que exercita através desta acção na responsabilidade do Estado por acto da função jurisdicional alegadamente consubstanciado na decisão que declarou perdidos a favor do Estado bens de que era proprietário, em violação ostensiva e grosseira do seu direito de propriedade, inserta no acórdão proferido pela 9ª Vara Criminal de Lisboa, em 24 de Maio de 2007, transitado em julgado, está em causa nestes autos a imputação de facto ilícito anterior à entrada em vigor da Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro.

Logo, não tem a mesma aplicação ao caso sub judice, sendo de aplicar o regime anterior (neste sentido Acórdão deste Supremo Tribunal de 08.09.2009, Proc.368/09.3YFLSB, acessível em www.dgsi.pt, e Profs. Manuel Afonso Vaz e Catarina Santos Botelho, «Comentário às disposições introdutórias da Lei 67/2007, de 31-12», in Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, Universidade Católica Editora, pág. 52).

Esse regime legal anterior não será o contido no Decreto-Lei nº 48051, de 21 de Novembro de 1967, dirigido apenas aos casos de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas no domínio dos actos de gestão pública, sem abranger os actos derivados do exercício da função jurisdicional. O que não significa que as situações integráveis na área da responsabilidade civil do Estado por actos da função jurisdicional ficassem sem tutela jurídica.

A formulação ampla do artigo 22º da Constituição gerou corrente interpretativa maioritária ao nível doutrinário no sentido de nele estar também contida a responsabilidade emergente das funções política, legislativa e jurisdicional. A referência aos «titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes» conjugada com a previsão de outros normativos constitucionais, como o relativo à responsabilidade civil dos titulares de cargos políticos pelas acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções (artigo 117º nº 1) e à responsabilidade dos juízes, embora circunscrita aos casos excepcionais consignados na lei (artigo 216º nº 2), aponta no sentido de que o segmento da expressão «titulares dos seus órgãos» abarca a função jurisdicional exercida pelos juízes, titulares dos órgãos de soberania Tribunais (artigo 202º nº 1 da Constituição).

Na doutrina desenhou-se também o entendimento de que o direito fundamental à reparação dos danos causados ilícita e culposamente pelo Estado e demais entidades públicas a que alude aquele preceito constitucional se apresenta como um direito fundamental de natureza análoga aos direitos liberdades e garantias, um direito-garantia com conteúdo constitucionalmente determinado que beneficia do princípio da aplicabilidade directa contido no nº 1 do artigo 18º, ex vi, do artigo 17º da Lei Fundamental, sendo, por isso, admissível a sua directa invocação pelos particulares numa situação de inércia do legislador ordinário (cfr. neste sentido Profs. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra Editora, 2005, pág. 213, Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, vol. I, 4ª ed., pág. 425, e Profs. Manuel Afonso Vaz e Catarina Santos Botelho, Loc. cit, págs. 39 a 41).

A circunstância de se tratar de uma norma constitucional directamente aplicável, não afastava, contudo, a intervenção do legislador ordinário na densificação dos pressupostos da obrigação de indemnizar e do regime da responsabilidade, nomeadamente nos campos da ilicitude e da culpa, como veio a suceder com a Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, (Profs. Jorge Miranda e Rui Medeiros, loc cit.).

Na jurisprudência, havia quem entendesse que as normas constitucionais, prevendo indemnização no âmbito da jurisdição penal significavam, a contrario, que não existiam outras situações de responsabilidade por factos decorrentes da função jurisdicional; que o artigo 22º da Constituição não se aplica aos tribunais, mas mesmo que se aplicasse, faltava-lhe a necessária norma concretizadora para tornar exequível a sua aplicação, dada a restrição do DL nº 48 051 a actos da Administração Pública (neste sentido os Acórdãos deste Supremo Tribunal de 19.06.2006 e de 03.12.2006, proferidos nas Revistas nº 1091/08 e no Proc. 9180/07.3TBBRG.G1.S1, respectivamente, e, bem assim, a declaração de voto do Conselheiro Salvador da Costa no Acórdão de 20.10.2005, proferido no Proc. 05B2490 (acessíveis em www.dgsi.pt/jstj).

A jurisprudência maioritária vem seguindo a doutrina da aplicabilidade directa do artigo 22º da Constituição à função jurisdicional, na medida em que consagra um direito fundamental à reparação dos danos causados ilícita e culposamente pelo Estado-Juiz, que abarca, para além dos casos previstos nos artigos 27º nº 5 e 29º nº 6 daquele diploma, casos de grave violação da lei por dolo ou negligência grosseira (neste sentido os Acórdãos, também deste Supremo Tribunal, de 12.06.2003, 29.06.2005, 08.09.2009, 03.12.2009, proferidos nos Processos: 03B4170, 05A1064, 368/09.3YFLSB E 9180/07.3TBBRG.G1.S1, respectivamente, todos disponíveis em www.dgsi.pt/jstj), doutrina que se acolhe, tendo-se por bem seguir o já citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.09.2009 na consideração de que deveremos socorrer-nos dos novos conceitos da Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, na densificação e aplicação directa do artigo 22º da Constituição, tendo presente que este normativo constitucional carece de ser complementado com os princípios gerais inerentes à responsabilidade civil e sem perder de vista a especificidade envolvidas nas questões da ilicitude e da culpa no domínio da responsabilidade por actos do exercício da função jurisdicional, na qual convergem, como garantia da imparcialidade dos juízes, os princípios da não responsabilização dos juízes pelas decisões que proferem e da independência dos tribunais (artigos 216 nº 2 e 203º da Constituição).


2. O actual Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 21 de Dezembro, consagra no nº 2 do seu artigo 13º a necessidade de prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente como requisito ou pressuposto específico da acção de indemnização.

E a questão que de imediato se coloca é a de saber se a revogação tem de operar pela via processualmente adequada para o efeito, isto é, o recurso ou se pode ser objecto de acção autónoma.

    Abordando esta questão em artigo publicado já na vigência do actual Regime, o Prof. Cardoso da Costa («Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado por actos da função judicial», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel Henrique Mesquita, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. I, 2009, pág.512), escreveu que o instrumento para superar e corrigir a incorrecção das decisões judiciais – vale por dizer, «o erro judiciário» - há-de ser primacialmente o do «recurso» (e «reclamação), não o instituto da responsabilidade civil do Estado. É uma razão dogmático-institucional, ligada à própria natureza da função judicial, que impõe a condição estabelecida pelo nº 2 do artigo 13º - e exclui que a ocorrência e o eventual relevo do erro judiciário possam ser aferidos directamente, e sem mais, em sede de responsabilidade e pelo tribunal competente para o apuramento desta.  

A decisão revogatória há-de ser definitiva e provir de um tribunal hierarquicamente superior, pois, como afirma a Prof. Paula Costa e Silva, seria anómalo que a acção de indemnização fosse um meio de tal modo autónomo de impugnação que uma decisão, eventualmente proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, viesse a ser controlada pela primeira instância (A ideia de Estado de direito e a responsabilidade do Estado por erro judiciário, in O Direito 142º (2010), I, pág. 71).

Já no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 90/84, de 30.07.1984, proferido no Proc. nº 82/83, se questionou se a apreciação da legalidade material (ou constitucionalidade) de uma decisão judicial para meros efeitos indemnizatórios não deveria fazer-se noutra sede, que não a do recurso ou recursos de que a mesma decisão poderia ser objecto, considerando-se que uma  tal solução seria um ilogismo institucional, traduzindo-se na subversão do princípio da divisão dos poderes, enquanto também aplicável à organização judiciária, pois permitiria a ulterior desautorização de uma decisão consolidada na ordem jurídica - por não ter sido impugnada ou, como quer que seja, apreciada pela competente instância de recurso -, doutrina que outros acórdãos do mesmo Tribunal perfilharam. 

E, a propósito do possível paralelismo com a situação prevista no artigo 7º do DL nº 48 051, escreveu-se no mesmo Acórdão que diferentemente de um órgão ou agente administrativo que faz aplicação de uma norma legal, um órgão judicial «diz o direito» - “o direito do caso” -, e a sua declaração é plenamente válida se e enquanto não for revogada, em sede de recurso, por um tribunal superior.

De harmonia com este entendimento (sufragado pelo Desembargador João Aveiro Pereira, A Responsabilidade Civil por Actos Jurisdicionais, Coimbra Editora, 2001, págs. 208 e ss.), já anteriormente à Lei nº 67/2007 se defendia ser exigível a prévia revogação da decisão judicial imbuída de erro para que o acto judicial se considerasse ilícito e susceptível de fundar a acção indemnizatória.

E tal entendimento, que se tem por certo, é, efectivamente, o que se compagina com a natureza da função judicial, com a organização hierárquica dos tribunais constitucionalmente consagrada (artigo 210º da Constituição) e, bem assim, com o instituto do caso julgado, o qual, por razões de segurança e certeza jurídica, confere força definitiva à decisão transitada em julgado, tornando-a vinculativa na ordem jurídica.

Não se integra no objecto da acção indemnizatória apreciar e, eventualmente, alterar o já decidido, com trânsito em julgado, no processo em que a decisão posta em causa foi proferida.

Seja à luz do artigo 13º nº 2 da Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, seja do regime legal anterior decorrente da aplicação directa do artigo 22º da Constituição, a revogação definitiva da decisão danosa pela via do recurso constitui um pré-requisito, um pressuposto indispensável à procedência da acção indemnizatória.

Não se fundando o pedido indemnizatório na anterior revogação da decisão a que se imputa erro judiciário em geral, faltará (mais do que de um pressuposto processual específico) uma condição da acção de indemnização, pois que sem a prova da prévia revogação da decisão danosa não pode ter-se por verificada a ilicitude, o que determinará a improcedência da acção.

Tal ocorrerá, igualmente, ainda que a decisão danosa não seja passível de recurso ou, consentindo-o, não venha a ser revogada por um tribunal superior. Nestes casos, em que a decisão se mantém porque é irrecorrível ou o tribunal, em via de recurso, a confirma definitivamente, não pode ter-se por verificado o «erro judiciário». Nas palavras do Prof. Cardoso da Costa “Onde não caiba ou não seja viável qualquer destes instrumentos processuais (recurso, reclamação ou reforma), ficará também precludida a possibilidade da acção de responsabilidade – mas essa é uma consequência que não haverá de estranhar-se, pois que necessariamente derivada de uma condição a que a mesma acção não pode deixar de estar sujeita” (Loc. cit. Pág. 514).


3. Não obstante a falta de revogação prévia da decisão danosa impedir, como se viu, a procedência da presente acção de indemnização por falta de uma pressuposto indispensável para o recorrente accionar com êxito o Estado com base em responsabilidade civil extracontratual, apreciar-se-á, ainda que sumariamente, o alegado erro grosseiro.

No caso dos autos, imputa-se o erro judiciário à decisão que declarou a perda a favor do Estado de bens propriedade do recorrente, terceiro, que não o arguido no respectivo processo-crime.

O eventual erro cometido seria um erro de direito: declarar perdidos a favor do Estado bens cuja propriedade – segundo os factos apurados – pertencia a um terceiro (filho do arguido) e não a este.

No domínio da responsabilidade extracontratual do Estado anterior à Lei n.º 67/2007 admitia-se já que tanto o erro de facto, como o erro de direito poderiam dar origem a responsabilidade do Estado.

Atenta a natureza e dificuldade inerente à actividade judicial, a generalidade dos ordenamentos jurídicos aceitam a responsabilidade por erro de direito, mas exigem, concomitantemente, uma natural qualificação (erro grosseiro ou manifesto) e intensidade (claro e indiscutível, ou causador de graves e especiais prejuízos) do mesmo, subjectivado como mínimo com negligência grosseira.

Na expressão do Prof. Manuel de Andrade o erro terá de ser «escandaloso, crasso, supino, que procede de culpa grave do errante» (in Teoria Geral da Relação Jurídica, 1974, 2.º, 239).

Só o erro que conduza a uma decisão arbitrária ou aberrante, assente em premissas que contradigam ou deturpem a verdade fáctica ou que na subsunção ao direito revelem desconhecimento manifesto ou crassa incompreensão do regime legal aplicável, revelador de uma actuação dolosa ou gravemente negligente que se reflecte na decisão de mérito, é relevante e susceptível de qualificar-se como grosseiro e integrar essa vertente do erro judiciário (cfr. neste sentido os Acórdãos deste Supremo Tribunal de 31.03.2004, Revista nº 51/04, 29.06.2005, Revista nº 1064/05, 15.02.2007, Revista nº 4565/06, e 22.03.2011, Revista nº 5715/04.1TVLSB.L1.S1).

Com relevo para esta questão do eventual erro judiciário importa considerar os seguintes factos:

-No processo comum colectivo 1469/02.4JFBLSB, que correu termos na 5.ª Vara Criminal de Lisboa, foi proferido acórdão a 24 de Maio de 2007, no qual foram declarados perdidos a favor do Estado uma série de imóveis;

-Arguido no referido processo era BB.

-O arguido recorreu do referido acórdão, tendo o STJ, por acórdão datado de 8 de Novembro de 2007, confirmado a decisão recorrida.

-Entre Janeiro de 1998 a Dezembro de 1999 o arguido despendeu o dinheiro de que se apropriou (nas circunstâncias constantes do acórdão condenatório proferido) na aquisição dos imóveis que foram apreendidos e declarados perdidos a favor do Estado.

-Do teor da descrição predial n.º 1521 do prédio urbano na Herdade do … ou …, lote …, Pinhal Novo, Fracções A e B, Ap. …, consta aquisição a favor de AA, solteiro, menor (autor nos presentes autos) por compra a Soc. DD, Ldª.

-Da escritura de compra e venda celebrada no dia 17-08-1998 consta que a Soc. DD, Ldª vende a BB (arguido no processo crime) e mulher, por si e na qualidade de representantes legais do seu filho menor AA, respectivamente, aos primeiros o usufruto simultâneo e sucessivo das fracções A e B e ao segundo a nua propriedade das mesmas fracções.

-Do teor da descrição predial n.º …, 1.º andar direito do lote da Rua …, no Pinhal Novo, fracção G, Ap. …, consta a aquisição a favor de AA, solteiro, menor, por compra a EE, Lda.

-Da escritura de compra e venda celebrada no dia 10 de Dezembro de 1999 consta que EE, Lda. vende a BB e mulher, por si e na qualidade de representantes legais do seu filho menor AA, respectivamente, aos primeiros o usufruto simultâneo e sucessivo da fracção G e ao segundo a nua propriedade da mesma. Relativamente a essa mesma fracção encontra-se inscrito usufruto a favor de BB e mulher, a extinguir no todo à morte do último que sobreviver – Ap. ….

-Do teor da descrição predial … de Santarém, referente ao prédio urbano sito na Rua …., n.ºs …-A e …-B, Ap. … consta a aquisição a favor de AA, solteiro, menor, por doação com usufruto a favor de BB e mulher por reserva na doação.

-Da escritura de 23 de Outubro de 2002 consta que BB e mulher, como proprietários do prédio urbano destinado a ocupação de Lar da 3.ª idade, na Rua …, n.º …-A e …-B, por conta da quota disponível e com reserva de usufruto simultâneo e sucessivo, doaram o citado imóvel a seu filho AA.

-O autor – filho do arguido – nasceu no dia 19 de Janeiro de 1988.

Desta facticidade resulta que sobre os referidos imóveis se encontrava inscrito usufruto a favor do ali arguido e mulher – compradores por si e em representação do autor, na altura da compra menor –  e inscrita a nua propriedade a favor do autor e ora recorrente, seu filho, quando o acórdão criminal os declarou perdidos a favor do Estado.

Podiam neste caso ser declarados tais imóveis perdidos a favor do Estado, como foram por decisão da 1.ª instância, decisão a que o Supremo Tribunal de Justiça, apesar de não a conhecer directamente, se referiu, afirmando: «Não mereceria, nesta parte, qualquer censura…»)?

Dispõe o artigo 111.º do Código Penal que toda a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, para eles ou para outrem, é perdida a favor do Estado (n.º 1) e que são também declarados perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa fé, as coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido directamente adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie (n.º 2).

O artigo 30º n.º 4 da Constituição proíbe que a privação de direitos seja uma simples consequência da condenação por infracções de qualquer tipo (neste sentido AC. TC n.º 282/86, DR, I S, 11.11.1986; Ac. TC n.º 284/89, DR, II S, 22.06.1989;Ac. TC n.º 288/94, DR II S, 17.06.1994 e Ac. TC n.º 41/95, DR, II S, 27.04.1995.

Embora a propósito de outra pena acessória, que não o perdimento de bens a favor do Estado, este Supremo Tribunal de Justiça defendeu no seu Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 14/96, de 07.11.1996, DR, I S-A, n.º 275, 27.11.1996, que a pena de expulsão não podia ser decretada automaticamente, devendo ser fundamentada e justificada.

Conforme doutrina do Acórdão deste Supremo Tribunal de 28.05.2008, Proc. 08P583, (in www.dgsi.pt), as considerações tecidas nesse acórdão uniformizador são de aplicar à declaração de perda a favor do estado dos instrumenta celeris quer sejam encarados como pena acessória, efeito penal da condenação, espécie de medida de segurança, medida especial ou censura adicional.

Fundamental é que essa declaração de perda a favor do Estado tenha um mínimo de fundamentação e que essa fundamentação radique na relação de causalidade existente entre o crime e o(s) objecto(s).

No caso dos autos, o arguido, pai do aqui autor e ora recorrente, foi condenado pela prática de um crime de burla qualificada, sendo ofendida a ADSE, apropriando-se de cerca de € 3.000.000.

Com o produto da sua actividade ilícita adquiriu para si e para sua mulher o usufruto vitalício e sucessivo dos imóveis referenciados e para o autor, seu filho e então menor, a titularidade da nua propriedade.

Neste contexto factual o autor não era, nem podia ser, à data considerado terceiro de boa fé, uma vez que, não tendo capacidade de exercício, foi representado nos acto de aquisição dos imóveis pelo seu pai (artigo 124º do Código Civil), o qual actuou em nome próprio e em representação do próprio autor. E o seu pai, enquanto seu representante, não ignorava que adquiria os imóveis com o dinheiro ilicitamente obtido.

Está estabelecido, assim, o nexo de causalidade necessário para que os bens em causa fossem declarados perdidos a favor do Estado, não se configurando a existência de erro, muito menos grosseiro, ostensivo ou palmar.

Acresce que o recorrente, sentindo-se lesado com tal decisão judicial, poderia ter interposto recurso da mesma ao abrigo do disposto no artigo 401º nº 1 do Código de Processo Penal, segundo o qual «Têm legitimidade para recorrer (…) d) aqueles que tiverem sido condenados ao pagamento de quaisquer importâncias (…), ou tiverem a defender um direito afectado pela decisão

Ora, bastaria ao autor juntar certidão da Conservatória de Registo Predial correspondente, alegando que era proprietário dos prédios declarados perdidos a favor do Estado para que ficasse legitimado a recorrer. Não o fez ou fazendo-o optou por um meio processual que não era o adequado: recurso extraordinário de revisão, que acabou por ser rejeitado.

Com efeito, se ao autor faltava legitimidade para intentar recurso extraordinário de revisão, nos termos elencados pelo artigo 450.º do Código de Processo Penal, já o mesmo não acontecia quanto ao recurso ordinário, estando a sua legitimidade assegurada pelo citado art. 401.º, n.º 1, al. d), do mesmo diploma.

Não é correcta, por isso mesmo, a afirmação de que, no caso em apreço, ao ora recorrente estava vedado submeter à reponderação de tribunal superior a decisão alegadamente danosa, facultando-lhe a lei processual penal o acesso, pela via do recurso ordinário, à sua prévia revogação, sendo caso disso.

Aliás, o Acórdão deste Supremo Tribunal de 11.02.2010, que apreciou o recurso extraordinário de revisão do acórdão condenatório proferido no âmbito do processo comum colectivo nº 1469/02.4JFLSB, no qual foram declarados perdidos a favor dos Estado os imóveis em causa, este confirmado por Acórdão, também do Supremo Tribunal de Justiça, de 08.11.2007, sem embargo de julgar o autor, aqui recorrente, e demais requerentes partes ilegítimas, afirmou-o, consignando: «De qualquer forma os recorrentes alegam que os imóveis declarados perdidos a favor do Estado eram e são da sua propriedade e não do arguido e, nessa medida, foram afectados pela decisão em direitos seus. Por outro lado, alegam não terem sido notificados da decisão, só tendo tido conhecimento dela por mero acaso.

A serem verídicos estes pressupostos, os recorrentes podem fazer valer esses seus direitos. Só que não através deste tipo de recurso. O Código Penal e o de Processo Penal prevêem essa possibilidade (art. 110.º do CP e art. 401.º, n.º 1, al. d), do CPP».

Mas a verdade é que, apesar de o ora recorrente não ter interposto recurso da decisão em que foi declarado o perdimento dos imóveis a favor do Estado, o acórdão deste Supremo Tribunal de 08.11.2007 apreciou em concreto essa questão, suscitada pelo pai do recorrente, arguido no processo, com fundamento em que aqueles bens eram de terceiro, como se extrai da seguinte passagem:

«De todo o modo, está provado que o arguido "entre Janeiro de 1998 a Dezembro de 1999, despendeu o dinheiro de que se apropriou nas circunstâncias acima referidas na aquisição dos imóveis descritos no art. 497.º e que foram apreendidos (n.° 508 da matéria de facto). Facto, aliás, confessado pelo recorrente. Ora, dispõe o art. 109.°,n.° 1 do C. penal que são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos ilícitos típicos. E o art. 111." do mesmo diploma que toda a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, para eles ou para outrem, é perdida a favor do Estado (n." 1) e que são também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa fé, as coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido directamente adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie (n.°2). E foi exactamente nesses termos que o acórdão recorrido decidiu (...) Não mereceria, assim, nesta parte, qualquer censura a decisão recorrida. (...)».


4. No contexto descrito perde sentido a invocada inconstitucionalidade da interpretação normativa no sentido de considerar obrigatória a prévia revogação da decisão danosa, mesmo quando não seja passível de recurso, ou, consentindo-o, não vier a ser revogada por tribunal superior, por violação do disposto nos artigos 20º e 22º da Constituição.

Não obstante a falta de esforço argumentativo do recorrente no sentido de demonstrar a inconstitucionalidade que suscitou, dir-se-á que, traduzindo-se, embora, numa limitação do direito à indemnização, não se trata de um condicionamento desproporcionado, excessivo ou intolerável desse direito.

O mencionado Acórdão do Tribunal Constitucional nº 90/84, proferido no domínio da legislação aplicável ao caso em apreço, não considerou aquela interpretação inconstitucional.

A jurisprudência constitucional tem reiteradamente sustentado que o legislador ordinário goza, no processo civil, de uma ampla margem de liberdade na conformação e na regulação do acesso em matéria de recursos, podendo restringir a sua admissibilidade de forma não arbitrária (neste sentido Prof. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol 3º, 2ª ed., 2008, págs. 13 e 14).

E, não se questionando que, enquanto direito fundamental, o direito geral à protecção jurídica, abarcando vários direitos, como o acesso ao direito e aos tribunais, deverá ser facultado em termos que permitam uma tutela efectiva, também neste campo o legislador dispõe de larga margem de liberdade na sua conformação na lei ordinária.

Como quer que seja, no caso vertente, não se está perante qualquer das situações que o recorrente apelida de inconstitucionais.

Por um lado, a decisão alegadamente danosa foi proferida no âmbito de um processo-crime, facultando o artigo 401º do Código de Processo Penal recurso ordinário ao recorrente.

Também a invocada falta de audição do recorrente no processo-crime em que foi proferida a alegada decisão danosa não colhe. Por um lado, no circunstancialismo fáctico referido não pode ser considerado terceiro de boa fé e, por outro, a eventual preterição da notificação a que alude o artigo 178º nº 7 do Código de Processo Penal consubstanciaria uma irregularidade que, por não ter sido arguida, se encontra sanada (artigos 118º nº 2, 178º nº 7 e 123º do citado código).

De todo o modo, esta questão, concretamente suscitada pelo recorrente no aludido processo-crime, foi tratada em sede de recurso no acórdão da Relação de Lisboa, de 17.11.2010, o qual considerou que aquele tomou conhecimento do perdimento dos bens judicialmente declarado, pelo menos, em 6 de Outubro de 2009, tendo optado pelo recurso extraordinário de revisão, em vez do recurso ordinário da decisão danosa. Se com tal opção perdeu o direito de interpor o recurso ordinário sibi imputet.

Esta omissão de notificação jamais configuraria, porém, erro grosseiro.


III. Nesta conformidade, acorda-se no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista.


Custas pelo recorrente.




Lisboa, 23 de Outubro de 2014



Fernanda Isabel Pereira - Relatora

Pires da Rosa

Maria dos Prazeres Beleza

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[1] O arguido nesses autos é BB.

[2] Processo Comum nº 1469/02.4JFLSB

[3] AA, FF e CC.

[4] Certidão da sentença (...) e do respectivo trânsito em julgado, para efeitos de instrução de recurso de revisão.