Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | LOPES DA MOTA | ||
Descritores: | CONDENAÇÃO CONCURSO DE INFRAÇÕES CÚMULO JURÍDICO ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS CULPA PREVENÇÃO GERAL PREVENÇÃO ESPECIAL PENA ÚNICA MEDIDA CONCRETA DA PENA | ||
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Data do Acordão: | 10/25/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
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Sumário : | I – Pretendendo ver reduzida a pena única de 7 anos de prisão, recorre a arguida do acórdão do tribunal coletivo da 1.ª instância que lhe aplicou penas de 1 ano e 4 meses de prisão, 1 ano e 6 meses de prisão, 1 ano e 8 meses de prisão e 4 anos e 4 meses de prisão pela prática de 174 crimes de abuso sexual de crianças, simples e agravados. II - Nos termos do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, que estabelece as regras da punição do concurso de crimes (artigo 30.º, n.º 1), o agente é condenado numa única pena, para cuja determinação, seguindo-se os critérios da culpa e da prevenção (artigo 71.º), são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (critério especial do n.º 1 do artigo 77.º, in fine). III – Seguindo os critérios da culpa e da prevenção, o acórdão recorrido considerou detalhadamente, quanto a cada um dos crimes, as circunstâncias relacionadas com o grau de ilicitude do facto, ou seja, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos, a intensidade do dolo, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, as condições pessoais da recorrente e a sua situação económica, a conduta anterior e posterior ao facto (notando a não interiorização do desvalor das condutas adotadas, nem o evidenciar de arrependimento). IV – Na aplicação do critério especial do n.º 2 do artigo 77.º do CP – consideração, no seu conjunto, dos factos praticados e da personalidade da arguida, exprimindo tendência para a sua prática, com deficiente perceção do desvalor da sua conduta –, o tribunal recorrido conferiu particular atenção à identidade de bens jurídicos violados e à pluralidade de vítimas visadas, ao período temporal em que os factos foram praticados e ao «que isso reflete da personalidade (desvaliosa) da arguida», bem como da «intensidade da sua vontade delitiva», não se mostrando que a ponderação de todos estes fatores tenha ocorrido em violação deste critério. V – Tendo em conta a moldura abstrata da pena aplicável aos crimes em concurso – de 4 anos e 4 meses a 25 anos prisão –, não se identifica fundamento que possa constituir motivo para concluir que a pena única aplicada, de 7 anos de prisão, se encontra fixada em violação dos critérios de adequação e proporcionalidade, legalmente impostos, na consideração das necessidades de proteção dos bens jurídicos e de reintegração que a sua aplicação visa realizar, pelo que se conclui pela improcedência do recurso. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça: I. Relatório 1. AA, arguida, com a identificação dos autos, interpõe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do tribunal coletivo do Juízo Central Criminal de..., J... .., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, que a condenou nas seguintes penas, pela prática, em concurso, de: - Um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1 do Código Penal [facto ocorrido em julho de 2018, relativo a BB], na pena de um ano e quatro meses de prisão. - Dois crimes de abuso sexual de criança, agravados, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. b) do Código Penal [facto ocorrido entre julho de 2018 e setembro de 2018, relativos a BB], na pena de um ano e seis meses de prisão, por cada um dos crimes praticados. - Seis crimes de abuso sexual de criança, agravados, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. b) do Código Penal na versão introduzida pela Lei n.º 103/2015, de 24.08 [factos ocorridos entre julho de 2018 e abril de 2020, relativos a CC], na pena de um ano e oito meses de prisão, por cada um dos crimes praticados, absolvendo-a dos demais imputados. - Vinte e cinco crimes de abuso sexual de criança, agravados, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, al. b) do Código Penal, na versão introduzida pela Lei n.º 103/2015, de 24.08 [factos ocorridos entre setembro de 2018 e 21.12.2018, relativos a BB], na pena de quatro anos e quatro meses de prisão, por cada um dos crimes praticados, absolvendo-a dos demais imputados. - Cento e quarenta crimes de abuso sexual de menor dependente, agravados, p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 1 e artigo 177.º, nº1, al. b) do Código Penal, ambos na versão dada pela Lei n.º 113/2015, de 24.08 [factos praticados entre 22.12.2018 e 25.04.2020, relativamente a BB], na pena de um ano e oito meses de prisão, por cada um dos crimes praticados, absolvendo-a dos demais imputados. Realizado o cúmulo jurídico destas penas, vem a arguida condenada na pena única de sete anos de prisão. 2. Apresenta motivação de que extrai as seguintes conclusões: «a) Atendendo aos princípios gerais de direito e à tão visada reinserção social, afere-se como excessivamente gravosa e, acima de tudo, com o devido respeito, contraproducente a medida da pena aplicada à ora recorrente; b) Ao contrário do que julgaram os Meritíssimos Juízes a quo, na decisão ora recorrida, entende-se ser possível fazer-se o tal juízo de prognose favorável à reintegração social da Recorrente; c) Salvo o devido respeito, não foram levados em consideração os critérios enunciados no n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal; d) Nomeadamente no que diz respeito ao disposto nas alíneas c) e d); e) A própria condição pessoal do agente, é de molde a decidir-se por medida que contribua para a reintegração e não para a segregação, cumprindo-se assim o disposto no artigo 40.º do Código Penal; f) Cremos, pois, que tratando-se de uma cidadã perfeitamente integrada na comunidade, tendo em Portugal toda a sua vida estabilizada e organizada, possuindo meio familiar de suporte e não tendo quaisquer antecedentes criminais, permite-se aferir uma diminuição acentuada da necessidade da pena a impor à Recorrente; g) As circunstâncias e contornos que tomaram os crimes praticados pela Recorrente e descritos no douto acórdão, assim como as suas supra expostas condições pessoais e constantes dos autos, devem ser consideradas como tendo um relevo especial, impondo-se uma atenuação especial da pena, prevista nos artigos 72.º e 73.º do Código Penal. h) Deve ainda ser tido em conta, todo o contexto familiar onde a Recorrente se insere, nomeadamente, as condições frágeis de saúde da sua mãe; i) O relatório social realizado em sede dos presentes autos é claramente demonstrador do que ora se alega; j) Refira-se, igualmente, que desde que tomou consciência das suas atitudes procurou manter um comportamento exemplar, o que tem conseguido; k) A demonstração do que aqui se alega, é a postura da arguida em julgamento, em particular, a sua confissão livre e espontânea dos factos que lhe são imputados; l) O doseamento da pena arbitrado pelo Tribunal a quo denuncia, assim, uma nítida violação do princípio da proporcionalidade das penas; m) Pelo que deverão ser devidamente ponderados todos os factos e circunstâncias que deponham em seu favor, reduzindo-se a pena aplicada para um limite que permita a suspensão da sua execução; n) Por último, seguindo o expendido raciocínio, é forçoso colocar a hipótese de suspensão da pena, ao abrigo do artigo 50.º, n.º 1 do Código Penal, concluindo-se, como pugnamos, que a simples censura do facto realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, impedindo, consequentemente, que a recorrente volte a praticar actos criminosos; o) Ainda que essa suspensão implique a sujeição da recorrente a deveres (cfr. artigo 51.º do Código Penal), regras de conduta (cfr. artigo 52.º do Código Penal) ou regime de prova (cfr. artigo 53.º do Código Penal). Nestes termos e mais de direito aplicáveis, deverá revogar-se o acórdão recorrido, e consequentemente reduzir a pena para medida próxima dos limites mínimos, atentos os critérios enunciados nos artigos 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal, e sendo-lhe aplicada a figura da suspensão da execução da pena, nos termos e para os efeitos do artigo 50.º, igualmente, do Código Penal.» 3. O Senhor Procurador da República no tribunal recorrido apresentou resposta em que, defendendo a improcedência do recurso em matéria penal, conclui: «1.ª Em cúmulo jurídico, foi a Recorrente condenada em 7 anos de prisão, pela prática de 174 crimes de natureza sexual contra menores, número que, só por si, sempre desaconselharia a redução da pena para 5 anos, ou menos, como requerido. 2.ª No caso em apreço, os factos decorreram durante um período extenso, longo o suficiente para permitir a institucionalização ou estabilização da relação entre adulta e menor, a ponto de os crimes ascenderem a 174. 3.ª O tempo, a estabilização e o grande número de crimes revelam uma tendência ou errância existencial, e não uma mera pluriocasionalidade, pelo que a pena concreta, de 7 anos, foi até benevolente, aproximando-se muito mais da pena mínima abstracta e afastando-se substancialmente da pena máxima de 25 anos. 4.ª A comunidade, hoje, não tolera a criminalidade sexual contra menores ou a punibilidade com penas simbólicas, sendo tão intensas as necessidades preventivas gerais que afastam mesmo as respostas que poderiam ser suficientes ao nível da prevenção especial. 5.ª Como defendemos desde as alegações finais do julgamento, neste caso, mais importante do que a medida da pena é a sua efectividade. 6.ª Assim, todas as circunstâncias - que reconhecemos existirem - que atenuam as necessidades preventivas especiais, terão de ceder face às prementes e intoleráveis necessidades preventivas gerais. 7.ª O Ministério Público nunca pôs em crise os graves problemas de saúde da mãe da recorrente e nem a efectividade e importância da assistência diária prestada pela arguida, mas não podemos aceitar que tal circunstância obste à aplicação de uma pena efectiva. 8.ª Os custos, de ordem profissional e/ou familiar, que poderão advir, são próprios das penas. 9.ª A recorrente não alcançou pôr em crise a sólida fundamentação do acórdão, pelo que pugnamos pela sua manutenção, nos seus precisos termos.» 4. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitido parecer no sentido da improcedência do recurso, nos seguintes termos: «As questões a decidir, para o que este STJ se mostra competente face à pena única aplicada, são as seguintes: a medida da pena e a possibilidade de suspensão da sua execução, sendo que a recorrente não questionou as penas parcelares aplicadas relativamente a cada um dos crimes pelos quais foi condenada, com estas se conformando. Ora, nada há a censurar quanto à pena única fixada, sendo até a mesma bem próxima ao limite mínimo admissível (note-se que a pena mais gravosa ascende a 4 anos e 4 meses de prisão), muito distante do máximo de 25 anos. Máximo por imposição legal contida no art.º 77.º, n.º 2, do Código Penal, pois que a soma aritmética das penas aplicadas atinge os 345 anos e 4 meses de prisão… Tal como referido pelo Ministério Público na resposta ao recurso – resposta que aqui acompanhamos na íntegra, pouco mais havendo a dizer, atenta a muito correta análise ali efetuada da situação, da necessidade das penas e seu reflexo perante terceiros (especificamente no caso, na figura da mãe da arguida, atento o por esta invocado) – o espaço temporal em que a arguida praticou o elevado número de crimes pelos quais foi condenada não se compadece com um entendimento que aponte no sentido de uma mera pluriocasionalidade, antes se estando perante um tendência para a prática de ilícitos desta natureza, ilícitos perante os quais a sociedade mostra grande intolerância, não se satisfazendo com penas simbólicas, sendo muito intensas as necessidades de prevenção geral que se fazem sentir. E, cumpre referir, a própria arguida parece não ter interiorizado o desvalor e ilicitude da conduta, porquanto se mostra provado que não identifica o impacto negativo de tais condutas na pessoa da menor BB (pontos 52 a 54 da matéria de facto provada), não assumindo o facto de a sua figura de autoridade e de ascendência não permitir àquela reunir condições e maturidade para facultar um consentimento informado para uma relação de intimidade. A pena única encontrada respeitou os critérios legais do artigo 77.º, n.º 1 do Código Penal, não se mostrando possível a aplicação da suspensão da execução da pena (o que, atenta a falta de interiorização atrás referida, sempre importaria afastar-se por inexistência da indispensável prognose favorável que tem de estar na base da suspensão, nada fazendo prever que à arguida bastaria a ameaça de cumprimento da pena para se afastar da prática de novos ilícitos). Na escolha da pena o tribunal recorrido não incorreu na indicação de fatores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, ou na falta de indicação de fatores relevantes, nada apontando para o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação, único caso em que se justificaria a correção em sede de recurso, como referido no Acórdão deste STJ de 18.04.2002 (02P1082 – Relator – Cons. Simas Santos), nem se verifica que o tribunal recorrido haja, na escolha da pena (em cúmulo, mas também quanto às parcelares) violado regras da experiência ou quantificado aquela de forma desproporcionada (veja-se o Ac. deste STJ de 27.09.2006 – 06P3128 – Rel. Santos Cabral, com referências a Maurach e Zipp, Derecho Penal, § 63n.º m. 200, Figueiredo Dias, Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 197 e Simas Santos e Correia Ribeiro, Medida Concreta da Pena, Disparidades, pág.9). Não se verificando qualquer uma das hipóteses referidas, antes uma escolha, devidamente fundamentada, aplicada com justo critério, em obediências às necessidades de prevenção (“moldura de prevenção”, conforme Figueiredo Dias), nomeadamente de prevenção especial que se fazem sentir no caso da recorrente, nada há a corrigir. Termos em que se emite parecer no sentido da improcedência do recurso.» 5. Notificada do parecer do Ministério Público, nos termos e para os efeitos do artigo 417.º, n.º 2, do CPP, respondeu a arguida dizendo que «mantém tudo o que já alegou oportunamente em sede de conclusões formuladas na respetiva motivação de recurso, para as quais remete, discordando da posição sufragada pelo Digníssimo Procurador-Geral Adjunto.» 6. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso prosseguiu para julgamento em conferência – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP. Apreciando e decidindo: II. Fundamentação 7. Factos provados 7.1. O tribunal coletivo julgou provados os seguintes factos (transcrição): «1. BB (BB), nasceu em ... de ... de 2004 e é filha de DD e de EE. 2. CC (CC) nasceu em ... e é filho de EE (EE) e de FF. 3. BB e CC residiam juntamente com a sua mãe e com as irmãs, GG (GG), nascida em .../.../2008 e HH (HH), nascida a ........2008, na Rua....º, em ..., habitação para qual mudaram em data não concretamente apurada, mas não posterior ao ano de 2008. 4. A arguida AA é sobrinha de II, pai de HH, com quem EE manteve um relacionamento amoroso e residia na Rua ....º, em .... 5. Esta habitação era constituída por uma sala e dois quartos, sendo que um dos quartos pertencia à mãe da arguida, que com esta residia e o outro quarto era onde aquela pernoitava. 6. A arguida criou laços afectivos com EE, com BB e CC, tornando-se presença assídua e regular nas suas vidas. 7. A arguida começou a conviver com os filhos de EE, desde que esta foi viver para a morada acima referida. 8. Em data não concretamente apurada do mês de Julho do ano de 2018, quando BB tinha 13 anos de idade e a arguida 29 anos de idade, esta convidou aquela para passar uns dias em ..., na companhia da sua mãe, JJ e de uma sua amiga, KK. 9. Durante essas férias, no interior da casa onde se encontravam, BB disse à arguida que gostava dela e que já nutria por esta tais sentimentos amorosos desde os seus 11 anos de idade. 10. Encontrando-se ambas deitadas na cama, a arguida perguntou-lhe se a queria beijar dizendo que não havia problema em estarem juntas e namorarem, tendo então a arguida beijado a boca de BB. 11. Desde essa altura, a arguida referiu-lhe que poderiam namorar às escondidas dos familiares, dizendo-lhe que não haveria problema, sendo que tal relacionamento era do conhecimento de EE. 12. Após regressarem das aludidas férias, em data não concretamente apurada do mês de Julho de 2018, mas seguramente não posterior a 21 de Julho, como EE não tinha condições habitacionais nem económicas para prover o seu sustento, BB, CC, GG e HH foram residir para casa da arguida, ficando aos cuidados desta, que proveu ao respectivo sustento. 13. No interior da habitação da arguida, esta dormia na cama de casal que tinha colocada no seu quarto, na companhia de BB e GG, dormindo CC no chão deste quarto, em cima de um cobertor, junto à cama. 14. Durante o período de tempo que se mantiveram a residir com a arguida, o que o correu entre data não apurada de Julho de 2018 (não posterior a 21.07) e 25 de Abril de 2020 [BB], 28 de Abril de 2020 [CC e HH] e Março de 2020 [GG], aquela, dirigia-se a BB e dava-lhe beijos na boca e abraçava-a, o que ocorreu, pelo menos em duas ocasiões e, por vezes, na presença de CC e de GG. 15. Em data não concretamente apurada do mês de Setembro de 2018, no interior do quarto da habitação, a arguida começou a manter com BB outros actos de cariz sexual, despindo-a, acariciando-lhe com as mãos o corpo e a zona genital, colocando a língua nesta zona do seu corpo e introduzindo os seus dedos na vagina daquela. 16. Por seu turno, a arguida orientava BB, levando-a a acariciar a sua zona genital a colocar a sua boca nesta área e a introduzir os seus dedos na sua vagina. 17. A arguida dizia a BB que se tratava de uma relação amorosa entre ambas e que tais comportamentos eram normais. 18. Em algumas ocasiões, quando a arguida e BB pretendiam manter relações sexuais, aguardavam que CC adormecesse e pediam a GG que aguardasse na sala, até que a chamassem de volta para o quarto. 19. As ditas relações sexuais ocorriam da forma acima descrita, pelo menos, duas vezes por semana. 20. Noutras ocasiões, aguardavam que os CC e GG adormecessem e mantinham relações sexuais da forma já descrita, na presença destes. 21. Por vezes, a arguida dizia a BB que a sua mãe os tinha abandonado, dizendo-lhe ainda que se fosse presa, a sua mãe também ia e que iria para uma instituição. 22. A arguida ofereceu de presente a BB um telemóvel Iphone, de valor não apurado, o que não fez relativamente aos seus irmãos. 23. Em pelo menos duas ocasiões, no aludido período de tempo, a arguida dirigiu-se a CC e disse–lhe que “era um macaco, um cão”, 24. Em pelo menos duas ocasiões, no aludido período de tempo, a arguida tomou banho nua com BB e com CC. 25. Em pelo menos seis ocasiões, no aludido período de tempo, quando estava a vestir CC, a arguida apalpou e mexeu no pénis do mesmo. 26. A Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de ..., deliberou em 08 de Maio de 2020, pela revisão oficiosa da medida de Apoio Junto dos Pais, na pessoa da mãe com o apoio de AA e a sua substituição por medida de acolhimento residencial, quanto a BB, GG, CC e HH. 27. Após BB ter saído da residência da arguida, esta tentou algumas vezes contactar aquela através do “Instagram”. 28. A arguida tinha conhecimento de que BB, GG, CC e HH estavam entregues ao seu cuidado, atentas as dificuldades, além do mais financeiras, da família de origem. 29. A arguida tinha consciência de que à data dos factos supra descritos, que quis praticar, BB tinha 13 anos de idade e CC tinha, pelo menos, 7 anos. 30. A arguida actuou de forma deliberada, livre e consciente. 31. Sabia a arguida que os factos que praticou, com e sobre BB e CC prejudicavam o desenvolvimento da personalidade destes e tinham reflexos na esfera sexual dos mesmos. 32. A arguida sabia que com a actuação descrita em 23. ofendia psicologicamente CC, o que quis. 33. A arguida actuou de forma livre deliberada e conscientemente bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei Penal. Condições pessoais e antecedentes criminais da arguida: 34. AA, natural de Lisboa, é a única filha de um casal de condição socioeconómica modesta, sendo o pai, marceneiro e a mãe, empregada doméstica em casas particulares. 35. A dinâmica familiar era estruturada e securizante, sendo a arguida alvo do afecto e dos cuidados dos progenitores que dispunham de uma relação conjugal harmoniosa. 36. A arguido tem irmãos consanguíneos mais velhos, com quem mantinha poucos contactos. 37. A família vivia em bairro associado a problemáticas sociais e criminais. 38. No domínio escolar, obteve o 9.º ano, através da frequência do curso de estofador da …, num percurso pautado pelo desinteresse para as matérias lectivas e pelo absentismo, dado privilegiar a prática desportiva em detrimento dos estudos, tendo sido dos 18 aos 25 anos atleta em clubes desportivos de … . 39. Aos 16 anos, na condição de estudante-trabalhadora, desenvolveu actividades numa empresa de telecomunicações (…) e, após o abandono dos estudos, aos 18 anos, ingressou na vida profissional como operária fabril e, mais tarde, como empregada de … . 40. O falecimento do pai, no início da idade adulta, constituiu-se como um evento traumático, dada a relação privilegiada que mantinha com o ascendente, tendo à data beneficiado de acompanhamento psicoterapêutico (psiquiatria) com suporte psicofarmacológico. 41. No seio da intimidade, vivenciou atracção por uma colega da equipa de futebol, sentimento que a surpreendeu, por não serem abordados em casa ou em contexto escolar, temas relacionados com a educação sexual. 42. Aos vinte anos ter concretizado uma experiência homossexual com uma companheira do mesmo escalão etário com quem viveu cinco anos, concretamente até 2013, na casa materna. 43. A relação conjugal gratificante e economicamente capaz, fruto dos rendimentos do seu trabalho como empregada de …, da companheira como empregada de … num hotel e da reforma da mãe. 44. Pese embora, no início, no seio familiar, não beneficiasse de apoio na sua relação afectiva, esta acabou por ser aceite, embora na zona de residência fosse alvo de comentários depreciativos. 45. A ligação terminou sem registo de conflitos e perdurou a amizade entre ambas até ao presente. 46. Posteriormente, manteve outra relação de namoro, sem coabitação, que durou aproximadamente um ano. 47. À data dos factos em apreciação, a mãe dos menores facultava aproximadamente 20/30 euros mensais para o seu sustento, que a arguida complementava com os seus recursos económicos como empregada de … em espaços de Al - Alojamento Local e a pensão de reforma da sua mãe de aproximadamente 590 euros, o que exigia uma gestão económica parcimoniosa e o recurso ao apoio do Banco Alimentar Contra a Fome. 48. Com a habitação camarária suportava um encargo de 187 euros de renda. 49. Com o surgimento da pandemia covid 19, AA ficou desempregada e em dependência económica da sua mãe, condição que perdura no presente, com vários atrasos de pagamento de recibos de redes móveis e da renda do imóvel. 50. Encontra-se a envidar esforços para se reintegrar laboralmente. 51. A mãe da arguida sofre de patologias diversas. 52. AA expressa sentimentos de afecto por BB, transmitindo que manteve com a mesma uma relação de namoro significativa e consentida por ambas, com conhecimento da mãe da mesma, não tendo interiorizado a ilicitude da sua conduta. 53. De igual modo, não consegue identificar que a sua figura de autoridade e ascendência face à menor, associada à imaturidade decorrente da idade de BB, não lhe permitia reunir condições e maturidade para facultar um consentimento informado para uma relação de intimidade. 54. De igual modo, não identifica eventual impacto negativo da sua conduta de BB. 55. No presente, a arguida mantém uma relação de namoro com uma pessoa adulta que não é conhecedora deste seu envolvimento processual por ter vergonha em partilhar, face ao estigma das acusações que sobre ela impendem. 56. Não é identificado historial aditivo, para além de consumos etílicos em contexto recreativo. 57. A arguida não tem antecedentes criminais registados.» 7.2. Factos não provados «Com relevo para a decisão da causa, não se provou que: a) O facto referido em 3. tenha ocorrido em 2014, na sequência da relação amorosa de EE com II. b) O facto referido em 15. tenha ocorrido a partir de Agosto de 2018. c) O facto referido em 19. tenha ocorrido mais de duas vezes por semana. d) A arguida dissesse a BB que EE falava mal dos filhos. e) A arguida entregasse de presente a BB, quantias monetárias não concretamente apuradas. f) A arguida chamasse “bailarina” e “paneleiro” a CC e lhe desferisse murros e pontapés, quando entendia que este se tinha portado mal, ou colocava-o no interior do quarto virado para a parede de castigo, durante um dia inteiro, sem o deixar sair de tal compartimento. g) A arguida tomasse banho com GG. h) Quando a arguida tomava banho com CC, colocasse as suas mãos no pénis daquele e esfregasse esta zona do seu corpo, contra a sua vontade. i) Sem prejuízo do apurado em 25., em tais ocasiões, a arguida manipulasse o pénis de CC até lhe provocar uma erecção e que aquele se afastasse com o intuito que a arguida parasse tal comportamento. j) A arguida se tenha aproximado de CC, quando este dormiu na cama com a mesma e as suas irmãs e tenha colocado as suas mãos no interior do pijama que este envergava e friccionado o seu pénis. k) Os factos descritos em 25. tenham ocorrido em mais de seis ocasiões. l) A arguida tenha criado perfis falsos no “Instagram” para contactar BB e que insistisse para que reatassem o namoro. m) A arguida tenha agido com o propósito de causar receio pela sua integridade física, bem como provocar mal-estar físico a CC.» Âmbito e objeto do recurso 8. O recurso tem, pois, por objeto um acórdão proferido pelo tribunal coletivo que aplicou uma pena de prisão superior a 5 anos. Circunscreve-se ao reexame de matéria de direito (artigo 434.º do CPP), não vindo invocados vícios ou nulidades que podem constituir fundamento do recurso [artigo 432.º, n.º 1, al. c), na redação da Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro]. O âmbito do recurso, que delimita os poderes de cognição deste tribunal, define-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso, se for caso disso, em vista da boa decisão do recurso, de vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro), que não se verificam. 9. Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso, as questões colocadas à apreciação e decisão deste tribunal dizem respeito: (1) À medida da pena única, que a recorrente considera excessiva; e (2) À suspensão da execução da pena, no pressuposto da sua redução para medida não superior a 5 anos. 10. A determinação da medida da pena única, a partir das molduras penais das penas singulares aplicáveis aos crimes em concurso (artigo 30.º, n.º 1 do CP) – afastadas expressamente as figuras do denominado “crime de trato sucessivo” e do crime continuado (artigo 30.º, n.º 2, do CP) – e da moldura do cúmulo – definido pela pena mais elevada e pela soma das penas concretamente aplicadas (artigo 77.º, n.º 2, do CP) –, vem fundamentada nos seguintes termos: «Está a arguida acusada da prática de: i) Cinquenta e sete crimes de abuso sexual de crianças, p. e p., pelo artigo 171.º, n.º 1 e n.º 2, agravados, nos termos do disposto no artigo 177.º, n.º 1 alíneas b) e c) do Código Penal (BB, com 13 anos). ii) Duzentos e quarenta crimes de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável, p. e p. no artigo 172.º, n.º 1, alíneas a), b) e c) do Código Penal, agravados nos termos do disposto no artigo 177.º, n.º 1 alíneas b) do Código Penal (BB - com 14/15 anos - desde 01 de Janeiro de 2019 a 25 de Abril de 2020). - Duzentos e noventa e sete crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1 do Código Penal, agravados nos termos do disposto no artigo 177.º, n.º 1 alíneas b) e c) do Código Penal (CC - desde Agosto de 2018 a Abril de 2020). - Um crime de maus-tratos, p.p. no artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a) do Código Penal (CC). Antes de se proceder ao enquadramento jurídico das condutas praticadas pela arguida, e tendo presente, por um lado, a multiplicidade de actos que se apuraram, e por outro lado, o período temporal em que os mesmos ocorreram, importa antes de mais tomar posição quanto ao número de crimes que estarão efectivamente em causa. De facto, a consideração de que a conduta da arguida integra a prática de uma pluralidade de crimes, está longe de ser indiferente, desde logo, porquanto no período em referência – entre Setembro de 2018 e Abril de 2020 - ocorreram alterações legislativas com implicações no enquadramento jurídico a realizar. Assim, começa por dizer-se que se considera hoje - revendo posição anteriormente assumida – que não pode haver qualquer dúvida de que condutas como as descritas nos autos, deverão ser tratadas (…) como uma pluralidade de condutas.(…) Revertendo ao caso concreto, vê-se que cada um dos vários actos praticados pela arguida, constitui por si mesmo um facto autónomo, sem unidade temporal, o que é quanto basta para que não se possa entender como sendo um único o sentido global de ilicitude, mas antes, uma pluralidade de sentidos de ilícito, desde logo porque, em cada acto individualmente perpetrado, a vítima é renovadamente lesada. Sendo esta a única posição conforme ao princípio da legalidade, importa analisar individualmente as condutas perpetradas, à luz do regime jurídico vigente, à data da respectiva prática. Assim, temos: 1. Entre Julho de 2018 e 21.12.2018 – no período temporal em apreço, quando BB tinha 13 anos, a arguida manteve com a mesma os contactos de natureza sexual descritos em 10., 14., 15. e 16. 2. De 22.12.2018 a 25.04.2020 – no período temporal em apreço, quando BB tinha 14/15 anos, a arguida manteve com a mesma os contactos de natureza sexual descritos em 15. e 16. 3. No período entre Julho de 2018 e 28.04.2020, a arguida manteve com CC, em 6 ocasiões, os contactos descritos em 25. i) Do crime de abuso sexual de crianças, p. e p., pelo artigo 171.º, n.º 1 e n.º 2, agravados, nos termos do disposto no artigo 177.º, n.º 1 alíneas b) e c) do Código Penal (BB, com 13 anos e CC) À data dos factos relevantes para a apreciação do crime em apreço, dispunha o artigo 171.º do Código Penal: “1 - Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos. 2 - Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos. 3 - Quem: a) Importunar menor de 14 anos, praticando acto previsto no artigo 170.º; ou b) Actuar sobre menor de 14 anos, por meio de conversa, escrito, espectáculo ou objecto pornográficos; c) Aliciar menor de 14 anos a assistir a abusos sexuais ou a atividades sexuais; é punido com pena de prisão até três anos. 4 -Quem praticar os actos descritos no número anterior com intenção lucrativa é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos. 5 - A tentativa é punível.” (…) O tipo objectivo destes crimes consiste na prática consensual de acto sexual de relevo com criança (incluindo a cópula, o coito anal, o coito oral ou a introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou de objectos).(…) Acto sexual de relevo, para este efeito, é todo o acto que viole intensamente a liberdade de expressão sexual da vítima. No caso, importa distinguir: No que se refere ao beijo na boca ocorrido em Julho de 2018, quando BB e arguida se encontravam deitadas na cama, na sequência de uma declaração de interesse amoroso por parte de BB, trata-se, no entendimento do tribunal, de um acto sexual de relevo, na acepção supra referida, assumindo um significado directamente relacionado com a esfera da sexualidade (a este propósito, veja-se o Ac. do STJ de 12.01.2022, que se acompanha). O mesmo vale para o período de tempo que antecedeu Setembro de 2018, em que os contactos mantidos foram de idêntica natureza, no âmbito de uma designada relação de namoro e que se sabe terem ocorrido, seguramente, em pelo menos duas ocasiões, pelo que será esse o número de situações consideradas. De igual modo, os contactos mantidos com CC, com toque no pénis do mesmo, integram, indubitavelmente, a noção de “acto sexual de relevo” supra referida. Em todas as três situações analisadas, estão preenchidos os elementos objectivos do tipo do artigo 171.º, n.º 1 do Código Penal. No que tange às situações em que ocorrem os contactos descritos em 15. e 16., entre Setembro de 2018 e 21.12.2018, as mesmas integram a previsão do artigo 171.º, n.º 2 do Código Penal. Para analisar a agravação imputada a tais condutas, importa partir da versão do artigo 177.º, n.º 1 do Código Penal, na redacção dada pela Lei n.º 103/2015, de 24.08, vigente no aludido período temporal [excepto quanto aos factos praticados relativamente a CC, que poderão ter ocorrido até Abril de 2020], que dispunha que: “1 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima: a) For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente; ou b) Se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação. (…).” A alínea b) contempla, além do mais, situações de coabitação, em que o crime seja praticado com aproveitamento dessa relação, o que se verifica quanto aos factos ocorridos com BB e CC durante a coabitação, mas já não relativamente aos factos ocorridos durante o período de férias, situação que, entende-se não se reveste de estabilidade, para efeitos de integrar a previsão em referência. À data dos factos em apreciação, a redacção vigente do artigo 177.º, introduzida pela Lei n.º 103/2015, de 24.08, não contemplava a al. c) do n.º 1, introduzida pela Lei n.º 101/2019, de 06.09, que vem igualmente, imputada à arguida, versão que por não lhe ser mais favorável [acrescenta uma causa de agravação que teria aplicação no caso concreto], não será considerada [artigo 2.º, n.º 4 do Código Penal]. O mesmo vale para as situações ocorridas com CC: pese embora as mesmas possam ter ocorrido num período em que já se encontrava vigente a Lei n.º 101/2019, de 06.09, vê-se que as alterações introduzidas por tal lei não seriam mais favoráveis à arguida, pelo que se lhe aplicará o regime que lhe é mais favorável. Consigna-se que a alteração introduzida no artigo 177.º pela Lei n.º 40/2020, de 18/08, não tem aplicação no caso concreto. (…) (…), deverá a mesma ser condenada: - Pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1 do Código Penal1 [facto ocorrido em Julho de 2018, relativo a BB]; - Pela prática de dois crimes de abuso sexual de crianças, agravado, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 12 e 177.º, n.º 1, al. b) do Código Penal, na versão introduzida pela Lei n.º 103/2015, de 24.08 [factos ocorridos entre Julho de 2018 e Setembro de 2018, relativo a BB]; - Pela prática de seis crimes de abuso sexual de crianças, agravados, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. b) do Código Penal, na versão introduzida pela Lei n.º 103/2015, de 24.08 [factos ocorridos entre Julho de 2018 e Abril de 2020, relativos a CC]; - Pela prática de vinte e cinco crimes de abuso sexual de crianças3, agravados, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, al. b) do Código Penal, na versão introduzida pela Lei n.º 103/2015, de 24.08 [factos ocorridos entre Setembro de 2018 e 21.12.2018, relativos a BB]. ii) Do crime de abuso sexual de menores dependente, agravado, p. e p. pelo artigo172.º, n.º 1 e agravado em conjugação com o constante nos art.º 177º, n.º 1, al. b), ambos do Código Penal. Os factos em referência encontram-se situados entre o dia 22.12.2018 e 25.04.2020. De acordo com o artigo172.º do Código Penal, na redacção vigente em tal período temporal, dada pela Lei n.º 103/2015, de 24.08: “1 - Quem praticar ou levar a praticar acto descrito nos n.ºs 1 ou 2 do artigo anterior, relativamente a menor entre 14 e 18 anos que lhe tenha sido confiado para educação ou assistência, é punido com pena de prisão de um a oito anos. 2 - Quem praticar acto descrito nas alíneas do n.º 3 do artigo anterior, relativamente a menor compreendido no número anterior deste artigo e nas condições aí descritas, é punido com pena e prisão até um ano. 3 - Quem praticar os atos descritos no número anterior com intenção lucrativa é punido com pena de prisão até 5 anos. 4 - A tentativa é punível.” (…) O tipo objectivo consiste na prática consensual de acto sexual de relevo com menor (incluindo cópula, o coito anal, o coito oral e a introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos), de importunação sexual de menor ou de actuação sobre o menor por meio de conversa, escrito, espectáculo ou objecto pornográfico (…). A especialidade da incriminação do artigo 172.º reside na confiança do menor para educação ou assistência ao agente. Ou seja, a protecção penal dada no artigo 171.º aos menores de 14 anos é alargada pelo artigo 172.º aos menores entre os 14 e os 18 anos, quando entre o menor e o agente existir a dita relação especial que é aproveitada pelo agente para cometer o crime (ACTAS Código Penal/Figueiredo Dias, 1993: 263). (…) A confiança do menor pode resultar da lei, de decisão judicial, de contrato ou de relação de facto.(…) Dito de outro modo, o artigo 172.º inclui a confiança a pais, tutores, familiares, professores, educadores, médicos, enfermeiros, sacerdotes, assistente sociais e todas aquelas pessoas a quem o menor tenha sido entregue para educação ou assistência médica ou social (…). Por exemplo, comete o crime o agente que é treinador de natação do menor de 15 anos. (…) BB foi confiada à arguida para educação e assistência, sendo que a mesma se encontrava numa situação de dependência económica da mesma, tendo os factos sido praticados com aproveitamento de tal situação. Assim, as condutas em apreciação são directamente integráveis na previsão do tipo de ilícito do artigo172.º, n.º 1 do Código Penal, na versão dada pela Lei n.º 113/2015, de 24.08, agravado pelo artigo 177.º, n.º 1, al. b) do mesmo Código, na versão dada pela Lei n.º 113/2015, de 24.08. Não se tendo apurado qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, deverá a arguida ser condenada como autora de cento e quarenta4 crimes de abuso sexual de menores dependentes, agravados, p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 1 e artigo 177.º, nº1, al. b) do Código Penal, ambos na versão dada pela Lei n.º 113/2015, de 24.08 [factos praticados entre 22.12.2018 e 25.04.2020, relativamente a BB]. No mais que lhe vinha imputado, será a arguida absolvida, o que se decidirá. iii) Do crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152.º-A, n.º 1, al. a do Código Penal Dispõe o artigo 152.º-A, n.º1 do Código Penal: 1 - Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e: a) Lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente; b) A empregar em actividades perigosas, desumanas ou proibidas; ou c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. (…)” (…) Revertendo à factualidade em apreço, importa aqui considerar apenas a factualidade descrita em 24. uma vez que a demais factualidade susceptível de integrar o preceito em referência, já foi integrada no âmbito do crime de abuso sexual. Pese embora a rudeza do tratamento dirigido pela arguida a CC, em pelo menos duas ocasiões, considera-se que tais factos, por si só, não revestem a gravidade e intensidade pressuposta pelo tipo em referência, donde não se dever ter o crime por praticado, o que se decidirá. 5. Determinação e medida concreta da pena: A arguida será punida pela prática dos seguintes crimes: - um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1 do Código Penal [facto ocorrido em Julho de 2018, relativo a BB], com pena de um a oito anos de prisão; - dois crimes de abuso sexual de criança, agravados, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. b) do Código Penal [facto ocorrido entre Julho de 2018 e Setembro de 2018, relativo a BB], com pena de um ano e quatro meses a dez anos e oito meses de prisão; -seis crimes de abuso sexual de criança, agravados, p.e p. pelo artigo171.º, n.º 1 e177.º, n.º 1, al. b) do Código Penal na versão introduzida pela Lei n.º 103/2015, de 24.08 [factos ocorridos entre Julho de 2018 e Abril de 2020, relativos a CC], com pena de um ano e quatro meses a dez anos e oito meses de prisão; - vinte e cinco crimes de abuso sexual de criança, agravados, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, al. b) do Código Penal, na versão introduzida pela Lei n.º 103/2015, de 24.08 [factos ocorridos entre Setembro de 2018 e 21.12.2018, relativos a BB], com pena de quatro a treze anos e quatro meses de prisão; - cento e quarenta crimes de abuso sexual de menor dependente, agravados, p.e p. pelo artigo 172.º, n.º 1 e artigo 177.º, nº1, al. b) do Código Penal, ambos na versão dada pela Lei n.º 113/2015, de 24.08 [factos praticados entre 22.12.2018 e 25.04.2020, relativamente a BB], um ano e quatro meses a dez anos e oito meses de prisão. A pena concreta a aplicar será determinada, dentro da moldura referida, em função da culpa do agente enquanto limite máximo da punição, e ainda das exigências de prevenção, geral e especial, postas pelo caso em apreço – em cuja valoração se atenderá a todas as concretas circunstâncias que, no caso, não fazendo parte do tipo legal, deponham contra ou a favor do agente (artigo 71º n.º 2 do Código Penal). Assim, ponderar-se-á: - o grau de ilicitude do facto, ou seja, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente: No que tange ao crime de abuso sexual de crianças [facto ocorrido em Julho de 2018, relativo a BB], releva, essencialmente, o desvalor não demasiado intenso do facto perpetrado, mas também o facto de BB estar na situação, confiada à arguida; No que se refere aos crimes de abuso sexual de criança, agravados [factos ocorridos entre Julho de 2018 e Setembro de 2018, relativo a BB], releva, essencialmente, e para além dos factos já considerados pelo tipo legal e respectiva agravação, o desvalor não demasiado intenso dos actos perpetrados, bem como a situação de dependência económica em que a vítima se encontrava relativamente à arguida; Quanto aos seis crimes de abuso sexual de criança, agravados, [factos ocorridos entre Julho de 2018 e Abril de 2020, relativos a CC], releva, para além dos factos previstos pelo tipo legal e respectiva agravação, a situação de dependência económica em que a vítima se encontrava relativamente à arguida; No que tange aos vinte e cinco crimes de abuso sexual de criança, agravados [factos ocorridos entre Setembro de 2018 e 21.12.2018, relativos a BB] e aos cento e quarenta crimes de abuso sexual de menor dependente, agravados [factos praticados entre 22.12.2018 e 25.04.2020, relativamente a BB], para além dos factos já considerados pelo tipo legal e respectiva agravação, releva, essencialmente, a pluralidade de actos praticados em cada situação, bem como a situação de dependência económica em que a vítima se encontrava relativamente à arguida; Relativamente aos cento e quarenta crimes de abuso sexual de menores dependentes, agravados, p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 1 e artigo 177.º, nº1, al. b) do Código Penal, ambos na versão dada pela Lei n.º 113/2015, de 24.08 [factos praticados entre 22.12.2018 e 25.04.2020, relativamente a BB], para além dos factos já considerados pelo tipo legal e respectiva agravação, releva, essencialmente, a pluralidade de actos praticados em cada situação. O grau de violação dos deveres impostos é frontal em todas as situações. - a intensidade do dolo ou negligência [o dolo foi directo e intenso]; - os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram [a obtenção de satisfação sexual por parte da arguida]; - as condições pessoais do agente e a sua situação económica: [a arguida apresenta um contexto de vida normativo e normalizado nos demais aspectos da sua vida; tem um percurso laboral continuado, ainda que economicamente precário, encontrando-se desempregada à data do julgamento e dependente economicamente da mãe, com quem vive e a quem presta apoio]. e) a conduta anterior ao facto e posterior a este: [a arguida não tem antecedentes criminais registados; não interiorizou o desvalor das condutas adoptadas, nem evidenciou arrependimento pela respectiva prática]; f) a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena: nada de relevante se apurou a este propósito. Assim, tem-se por adequada a fixação das seguintes penas: - Pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1 do Código Penal [facto ocorrido em Julho de 2018, relativo a BB], a pena de um ano e quatro meses de prisão. - Pela prática de dois crimes de abuso sexual de criança, agravado, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º1, al. b) do Código Penal [facto ocorrido entre Julho de 2018 e Setembro de 2018, relativo a BB], a pena de um ano e seis meses de prisão, por cada um dos crimes praticados. - Pela prática de seis crimes de abuso sexual de criança, agravados, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1 e1 77.º, n.º 1, al. b) do Código Penal na versão introduzida pela Lei n.º103/2015, de 24.08 [factos ocorridos entre Julho de 2018 e Abril de 2020, relativos a CC], a pena de um ano e oito meses de prisão, por cada um dos crimes praticados. - Pela prática de vinte e cinco crimes de abuso sexual de criança, agravados, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, al. b) do Código Penal, na versão introduzida pela Lei n.º 103/2015, de 24.08 [factos ocorridos entre Setembrode2018 e21.12.2018, relativos a BB], a pena de quatro anos e quatro meses de prisão, por cada um dos crimes praticados. - Pela prática de cento e quarenta crimes de abuso sexual de menor dependente, agravados, p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 1 e artigo 177.º, nº1, al. b) do Código Penal, ambos na versão dada pela Lei n.º 113/2015, de 24.08 [factos praticados entre 22.12.2018 e 25.04.2020, relativamente a BB], a pena de um ano e oito meses de prisão, por cada um dos crimes praticados. 6. Concurso de crimes Vê-se que os crimes ora imputados à arguida se encontram numa relação de concurso para os efeitos do artigo 77.º, n.º 1 do Código Penal, importando assim proceder à realização do respectivo cúmulo. Face ao disposto no n.º 2 do citado artigo 77.º, a moldura penal determinada pelo presente concurso tem como limiar mínimo quatro anos e quatro meses de prisão e como limiar máximo, vinte e cinco anos de prisão. Como nos demais casos, a pena há-de corresponder à medida da culpa, a qual constitui a sua medida e o seu fundamento. Neste enfoque e atento o preceituado no artigo 77.º, n.º 1 do Código Penal, o Tribunal valorará na sua globalidade os factos que integram a conduta criminosa e a personalidade da arguida. Conforme ensina Figueiredo Dias, deverá obedecer ao critério geral consignado no artigo 71.º e ao critério especial previsto no artigo 77.º, n.º 1, ambos do Código Penal, “como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique”, relevando, na avaliação da personalidade – unitária – do agente, “sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radicada na personalidade”, sem esquecer o efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente, sendo que só no caso de tendência criminosa se deverá atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura da pena conjunta (in, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, págs. 290 a 292). Ponderando globalmente as circunstâncias atinentes aos crimes em causa (cfr. art. 77º n.º1, 2ª parte), monta especialmente, a identidade de bens jurídicos violados e pluralidade de vítimas visadas, o relevante período temporal em que os factos foram praticados, no que se refere a BB e o que isso reflecte da personalidade (desvaliosa) da arguida, bem como da intensidade da sua vontade delitiva. Pondera-se ainda a ausência de antecedentes criminais da arguida. Assim, reputa-se ajustada a fixação da pena única em sete anos de prisão.» 12. Considera a recorrente, em síntese, que, na determinação da medida da pena, o tribunal não ponderou devidamente as circunstâncias a que se referem as alíneas c) [“Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram”] e d) [“As condições pessoais do agente e a sua situação económica”] do n.º 2 do artigo 71.º do CP, pois que o “contexto familiar onde se insere, nomeadamente, as condições frágeis de saúde da sua mãe”, demonstrado no relatório social, o “comportamento exemplar” posterior ao crime, “desde que tomou consciência das suas atitudes”, e a “confissão livre e espontânea dos factos” devem levar a que a pena seja reduzida para “um limite que permita a suspensão da sua execução”, “impondo-se uma atenuação especial da pena, prevista nos artigos 72.º e 73.º do Código Penal”. 13. Nos termos do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, que estabelece as regras da punição do concurso de crimes (artigo 30.º, n.º 1), quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena, na qual são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. A pena única corresponde a uma pena resultante das penas aplicadas aos crimes em concurso segundo um princípio de cúmulo jurídico, seguindo-se o procedimento normal de determinação e escolha das penas, a partir das quais se obtém a moldura penal do concurso (pena aplicável), que tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas, não podendo ultrapassar 25 anos, e, como limite mínimo, a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal). Assim definida a moldura do concurso, deve o tribunal determinar a pena conjunta, seguindo os critérios da culpa e da prevenção (artigo 71.º do Código Penal) e o critério especial fixado na segunda parte do n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal – consideração, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, isto é, a personalidade do agente manifestada no facto, em que se incluem, designadamente, as condições económicas e sociais deste, reveladoras das necessidades de socialização, a sensibilidade à pena, a suscetibilidade de por ela ser influenciado e as qualidades da personalidade manifestadas no facto, nomeadamente a falta de preparação para manter uma conduta lícita. O substrato da medida da pena, devendo incluí-los, não pode, pois, bastar-se com os factos que constituem os elementos do tipo de ilícito ou do tipo de culpa, sendo necessário atender às circunstâncias que, deles não fazendo parte, possam depor a favor do agente ou contra ele, nos termos do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal (como se afirmou, entre outros, no acórdão de 27.09.2023, Proc. n.º 2822/21.0JABRG.S1, citando o acórdão de de 06.07.2022, Proc. n.º 571/19.8T8AVR.P1.S1, em www.dgsi.pt, e a jurisprudência nele mencionada). 14. Recordando jurisprudência constante deste Supremo Tribunal e o que se tem consignado em acórdãos anteriores, com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também, e especialmente, pelo seu conjunto, enquanto revelador da dimensão e gravidade global do seu comportamento. É o conjunto dos factos descritos na sentença que evidencia a gravidade do ilícito perpetrado (o “grande facto”), sendo decisiva, para a sua avaliação, a conexão e o tipo de conexão que se verifique entre os factos que constituem os tipos de crime em concurso. Há que atender ao conjunto de todos os factos e ao fio condutor presente na repetição criminosa, estabelecendo uma relação desses factos com a personalidade do agente, ter em conta a caracterização desta pela sua projeção nos crimes praticados, levando-se em consideração a natureza dos crimes e a verificação ou não de identidade dos bens jurídicos violados, tudo isto «tendo em vista descortinar e aferir se o conjunto dos factos praticados é a expressão de uma tendência criminosa, isto é, se significará já a expressão de algum pendor para uma “carreira”, ou se, diversamente, a repetição emergirá antes e apenas de fatores meramente ocasionais» [assim, os citados acórdãos de 27.09.2023 e de 06.07.2022 e jurisprudência nele citada, retomando-se o que se afirmou em anteriores acórdãos, nomeadamente nos acórdãos de 2.12.2012, Proc. 923/09.1T3SNT.L1.S1, e de 21.11.2018, ECLI:PT:STJ:2018:114.14.0JACBR. A.S1.73, citando-se, entre outros, os acórdãos de 06-02-2008 (Proc. n.º 4454/07), de 18.1.2012, Proc. 34/05.9PAVNG.S1 (Raul Borges), de 14.07.2016 e de 17.06.2015 (Proc. 4403/00.2TDLSB.S1) (Pires da Graça) e 488/11.4GALNH (Maia Costa), em www.dgsi.pt]. «Na avaliação da personalidade relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido a atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta». «A personalidade do agente – se bem que não a personalidade no seu todo, mas só a personalidade manifestada no facto», – «é um factor da mais elevada importância para a medida da pena e que para ela releva, tanto pela via da culpa como pela via da prevenção» (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, p. 291). 15. Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. Estabelece o n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente (manifestada no facto), relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, as indicadas no n.º 2 do mesmo preceito. Como se tem afirmado, este regime encontra os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual as restrições de direitos devem «limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos». A privação do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da Constituição), submete-se, desde a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito, de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva. A projeção destes princípios na determinação da pena justifica-se pela necessidade de proteção do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora violada, em conformidade com um critério de proporcionalidade entre a gravidade do facto praticado e gravidade da pena, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. A aplicação da pena exige que o agente do crime tenha agido com culpa, isto é, que deva ser censurado pela violação do dever de atuar de acordo com o direito e “pelas qualidades desvaliosas da personalidade que se exprimem no facto”, o que se requer como pressuposto e cujo grau se impõe como limite da pena (artigo 40.º, n.º 2). 16. Retomando o que se tem consignado em anteriores acórdãos, para a medida da gravidade da culpa há que considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto (n.º 2 do artigo 71.º), nomeadamente os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo – alínea a), 1.ª parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) – e os fatores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto). Para a determinação das necessidades de prevenção, há que atender às circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, dentro dos limites da culpa, reafirmando a manutenção da confiança comunitária na norma violada – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento, pelo agente, de novos crimes no futuro, e assim avaliar das suas necessidades de socialização. Incluem-se aqui as consequências não culposas do facto [alínea a), v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves], o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e), com destaque para os antecedentes criminais] e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente [circunstâncias das alíneas e) e f)] adquire particular relevo para determinação da medida concreta da pena em função das necessidades individuais e concretas de socialização, devendo evitar-se a dessocialização. É na presença e na consideração destes fatores que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, materializada na ação levada a efeito pelo arguido pela forma descrita nos factos provados, de modo a verificar-se se a pena aplicada respeita os mencionados critérios de adequação e proporcionalidade que devem pautar a sua aplicação (assim, por todos, o acórdão de 29.06.2023, Proc. 15/11.3PEALM.L5.S1, e jurisprudência e doutrina nela citadas, em www.dgsi.pt). O que obriga a que a determinação da medida da pena se deva alhear da motivação pressuposta pelo legislador na identificação dos bens jurídicos protegidos, na construção dos tipos legais de crime e no estabelecimento das molduras das penas legalmente fixadas, assim se assegurando o respeito pelo princípio da proibição da dupla valoração. 17. A pena é determinada «dentro dos limites definidos na lei» (artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal), que estabelece a moldura abstrata da pena correspondente aos tipos de crime praticados. É assim que a verificação da incriminação (ou da qualificação jurídica dos factos) traduz o primeiro momento das operações de individualização da pena. Vista a decisão recorrida, não se coloca qualquer questão de conhecimento oficioso que, a este respeito, deva ser resolvida. 18. Começando pela referência feita aos artigos 72.º e 73.º do CP – que respeita à atenuação especial da pena por circunstâncias que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena – é manifesta a improcedência de pretensão. Isto a porque, como se verá, não se demonstra existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena, nomeadamente (a) ter a recorrente atuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência, (b) ter sido a conduta determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida, (c) ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados ou (d) ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta. 19. Ao crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1 do Código Penal [facto ocorrido em julho de 2018, relativo a BB], com pena de um a oito anos de prisão, foi aplicada uma pena de 1 ano e 4 meses de prisão. A cada um dos dois crimes de abuso sexual de criança, agravados, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. b) do Código Penal [facto ocorrido entre julho de 2018 e setembro de 2018, relativo a BB], com pena de um ano e quatro meses a dez anos e oito meses de prisão, foi aplicada uma pena de 1 ano e 6 meses de prisão. A cada um dos seis crimes de abuso sexual de criança, agravados, p.e p. pelo artigo171.º, n.º 1 e177.º, n.º 1, al. b) do Código Penal na versão introduzida pela Lei n.º 103/2015, de 24.08 [factos ocorridos entre julho de 2018 e abril de 2020, relativos a CC], com pena de um ano e quatro meses a dez anos e oito meses de prisão, foi aplicada uma pena de 1 ano e 8 meses de prisão. A cada um dos vinte e cinco crimes de abuso sexual de criança, agravados, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, al. b) do Código Penal, na versão introduzida pela Lei n.º 103/2015, de 24.08 [factos ocorridos entre setembro de 2018 e 21.12.2018, relativos a BB], com pena de quatro a treze anos e quatro meses de prisão, foi aplicada a pena de 4 anos e 4 meses de prisão. A cada um dos cento e quarenta crimes de abuso sexual de menor dependente, agravados, p.e p. pelo artigo 172.º, n.º 1 e artigo 177.º, nº1, al. b) do Código Penal, ambos na versão dada pela Lei n.º 113/2015, de 24.08 [factos praticados entre 22.12.2018 e 25.04.2020, relativamente a BB], um ano e quatro meses a dez anos e oito meses de prisão, foi aplicada a pena de 1 ano e 8 meses de prisão. Ou seja, as penas que concorrem para a formação da pena única encontram-se, todas elas, fixadas em medida muito próxima do seu mínimo legal. 20. Seguindo o mencionado critério da culpa e da prevenção, o acórdão recorrido considerou detalhadamente, como se viu, quanto a cada um dos crimes, as circunstâncias relacionadas com o grau de ilicitude do facto, ou seja, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, as condições pessoais da recorrente (incluindo as invocadas no recurso) e a sua situação económica, a conduta anterior ao facto (ausência de antecedentes criminais) e posterior a este (notando a não interiorização do desvalor das condutas adotadas, nem o evidenciar de arrependimento). Não consta da fundamentação que a arguida tivesse confessado livre e espontaneamente os factos provados, embora daí se extraia a sua contribuição positiva na descoberta da verdade, por confissão ou admissão parciais, sendo que a esta, diferentemente do pretendido, não pode ser atribuído valor suficiente para justificar resultado diverso na ponderação conjunta de todas as circunstâncias relevantes. 21. Como resulta da fundamentação, o tribunal levou em consideração estas circunstâncias (supra, 11), as quais, como se referiu, adquirem densidade no processo de determinação da pena única, na sua relação com a personalidade manifestada no facto global (supra, 13). Na aplicação do critério especial do n.º 2 do artigo 77.º do CP – consideração, no seu conjunto, dos factos praticados, na sua gravidade, que, repetidos, constituem 174 crimes de abuso sexual, em diferentes modalidades, e da personalidade da arguida, exprimindo tendência para a sua prática, com deficiente perceção do desvalor da sua conduta –, o tribunal recorrido conferiu particular atenção «à identidade de bens jurídicos violados e à pluralidade de vítimas visadas, ao período temporal em que os factos foram praticados, no que se refere a BB» e «o que isso reflecte da personalidade (desvaliosa) da arguida», bem como da «intensidade da sua vontade delitiva». Não se mostrando que a ponderação de todos estes fatores tenha ocorrido em violação deste critério. 22. Assim, tendo em conta a moldura abstrata da pena aplicável aos crimes em concurso – de 4 anos e 4 meses a 25 anos prisão –, não se identifica fundamento que possa constituir motivo para concluir que a pena única aplicada, de 7 anos de prisão, se encontra fixada em violação dos critérios de adequação e proporcionalidade, legalmente impostos, na consideração das necessidades de proteção dos bens jurídicos e de reintegração que a sua aplicação visa realizar. Pelo que se conclui pela improcedência do recurso. Quanto a custas 23. Nos termos do disposto no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. A taxa de justiça é fixada entre 5 e 10 UC, tendo em conta a complexidade do recurso, de acordo com a tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais. III. Decisão 24. Pelo exposto, acorda-se na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso interposto pela arguida AA, mantendo-se a decisão recorrida. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC. Supremo Tribunal de Justiça, 25 de outubro de 2023 José Luís Lopes da Mota (juiz conselheiro relator) Maria Teresa Féria de Almeida (juíza conselheira adjunta) Sénio Manuel dos Reis Alves (juiz conselheiro adjunto) _______
1. 3A imputação desta forma delitiva corresponde a um minus face ao crime inicialmente imputado, pelo que a arguida pode exercer nesta parte a sua defesa, não sendo caso de aplicação do regime do art. 358º n.º1 e 3 do CPP [v. Ac. 72/05 do TC, disponível em www.tribunalconstitucional.pt]. 3. Considerando, em obediência ao princípio in dubio pro reo, que no mês de Setembro de 2018, apenas ocorrera um acto, por se desconhecer em que data, em concreto ocorrera o contacto [mas sendo seguro que pelo menos um ocorrera] e que até 21.12.2018 [véspera de BB perfazer 14 anos], tais contactos haviam ocorrido pelo menos 2 vezes por semana, como esclarecido pela arguida. 4. Considerou-se a prática de, pelo menos, dois crimes por semana, com base nas declarações da arguida, no período entre 22.12.2018 [em que BB perfez 14 anos] e 25.04.2020, em que deixou de viver com a arguida. |