Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1027/19.4PBEVR.E1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: HELENA MONIZ
Descritores: RECURSO PENAL
CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
PODERES DO MINISTÉRIO PÚBLICO
ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO
COVID-19
ESTABELECIMENTO PRISIONAL
SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE
TELECONFERÊNCIA
FALTA
ARGUIDO
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
DECLARAÇÕES DO ARGUIDO
LEI APLICÁVEL
LEI PROCESSUAL
ADIAMENTO
NULIDADE INSANÁVEL
DIREITO DE DEFESA
Data do Acordão: 11/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGAMENTO ANULADO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - Decorre dos elementos dos autos que, tendo havido uma notícia do crime contra desconhecidos [e portanto não estando preenchida a condição de obrigatoriedade de constituição do arguido prevista no art. 58.º, n.º 1, al. a), do CPP] e tendo sido os interrogatórios realizados a ambos os arguidos numa fase inicial, ainda antes de o órgão de polícia criminal ter considerado a existência de fundadas suspeitas sobre os dois intervenientes [e, portanto, não estando, naquela altura, preenchida a condição prevista no art. 58.º, n.º 1, al. d), do CPP], não houve até à acusação (do aqui arguido) relativamente ao outro suspeito nenhuma situação que determinasse a constituição obrigatória de arguido.
II - O arquivamento implícito verificado, ainda que não permita saber quais as razões desta decisão pelo MP, constitui o exercício dos poderes concedidos ao MP na fase de inquérito.
III - Sabendo que a obrigatoriedade de interrogatório ao arguido pretende assegurar o direito de defesa antes do encerramento do inquérito pelo MP e permite que o arguido saiba de antemão quais os factos que lhe são imputados evitando-se “acusações surpresa”, nenhuma destas situações ocorria que justificasse a constituição como arguido do outro interveniente, dado que não iria ser deduzida acusação contra ele.
IV - A atividade do MP poderia ter sido sindicada através da intervenção hierárquica ou através da abertura da instrução, mas ninguém com competência para suscitar uma destas vias o fez; pelo que ficou fechada a perseguição criminal pelos factos julgados nos autos em atenção ao princípio da consunção.
V - A não acusação ou um arquivamento ainda que implícito dos factos que, segundo outros sujeitos processuais, seriam bastantes para a prolação de uma acusação (contra o outro suspeito) constitui uma eventual errada leitura ou qualificação dos indícios cujo controlo judicial deveria ter sido suscitado em devido tempo e por quem tinha legitimidade.
VI - A partir da leitura da ata verifica-se não que o arguido estivesse doente, mas sim que estaria em isolamento profilático por ter tido um contacto de risco com reclusos portadores de infeção (COVID-19) provocada pelo coronavírus SARS-COV-2 que se encontravam no mesmo bloco do Estabelecimento Prisional, sendo que este isolamento é determinado pelas Autoridades de Saúde; no presente caso o arguido apresentou-se à chamada do juiz através dos meios que lhe foram disponibilizados para tanto, pelo que não poderemos considerar estarmos perante uma falta; tendo em conta que as regras processuais penais determinam a obrigatoriedade da sua presença física, o arguido manifestou expressamente esse desejo, não só quando lhe foi concedida a palavra, como anteriormente através do seu mandatário
VII - Não estamos no caso dos presentes autos perante nenhuma das circunstâncias previstas no CPP que permitem a realização da audiência sem a presença do arguido, pelo que neste caso era obrigatória a sua presença.
VIII – Com o o art. 6.º-A, da Lei n.º 1-A/2020 (aditado pelo art. 2.º, da Lei n.º 16/2020) a regra passou a ser, novamente, a presença física dos arguidos na audiência, e mesmo que seja admitida a utilização de meios de comunicação à distância [nos termos do art. 6.º-A, n.º 2, al. b)], tal não pode ocorrer aquando da prestação de declarações do arguido ou de depoimento das testemunhas, salvo acordo dos sujeitos processuais.
IX - Na sessão de 21-10-2020 o arguido não prestou declarações porque, disse-o expressamente, queria-o fazer fisicamente, porém houve lugar não só à apresentação do objeto do processo como também à obtenção de depoimentos do ofendido e de uma testemunha.
X - Na sessão de 09-12-2020 o arguido não esteve novamente presente, tendo a Meritíssima Juíza proferido despacho considerando não ser possível a continuação da audiência — este despacho por si só demonstra a necessidade de o arguido estar presente no decurso da audiência.
XI - Acresce referir que nos termos do art. 14.º, n.os 1 e 2, do Decreto- Lei n.º 10-A/2020, de 13-03 (alterado pelo art. 4.º, da Lei n.º 16/2020, de 29-05, e em vigor a partir de 03-06-2020, ou seja, já em vigor aquando da primeira sessão da audiência de discussão e julgamento) se determinava o justo impedimento dos que se encontravam em isolamento profilático permitindo o adiamento das diligências nestas situações.
XII - Sabendo que as normas processuais penais dão ao arguido o direito a prestar declarações em qualquer momento da audiência, necessariamente se impõe que esteja sempre presente (em todas as sessões) para, querendo, poder prestar declarações; sendo assim, atento o disposto nos arts. 332.º, n.º 1 e 119.º, al. c), ambos do CPP, estamos perante uma nulidade insanável que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento.
XIII - O direito de defesa do arguido, na parte em que lhe concede a prerrogativa de “ser assistido por defensor (...) e, quando detido, comunicar, mesmo em privado” [art. 61.º, n.º 1, al. f), do CPP] com o defensor, foi desproporcionalmente limitada nos presentes autos o arguido encontrava-se em isolamento profilático e, por isso, foi impedido de ser contactado pelos seus mandatários.
XIV - O despacho que decidiu a invalidade e concedeu a possibilidade de uma videoconferência entre o mandatário e o arguido por um período de 15 minutos foi também objeto de recurso para o tribunal da Relação; sendo assim, e porque se trata de um recurso de uma decisão prolatada num despacho do qual se recorreu para o tribunal da Relação e esta decidiu, nesta parte a decisão do tribunal da Relação é irrecorrível, por força do disposto nos arts. 432.º, n.º 1, al. b) e 400.º, n.º 1, al. c), do CPP.
Decisão Texto Integral:




Proc. n.º 1027/19.4PBEVR.E1.S1

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I

Relatório

1. Nos presentes autos de processo comum, com intervenção do tribunal coletivo, mediante acórdão proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca …… (Juízo Central Civil e Criminal, Juiz …), de 07.01.2021, o arguido AA foi condenado pela prática:

«- um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p.p., pelos Artsº 131, 132 nsº 1 e 2 als. d) e e), 22, 23 e 71 nº 1 al.s a) e b), todos do C. Penal, na pena de 11 (onze) anos de prisão;

- um crime de furto qualificado, p.p., pelos Artsº 203 nº 1 e 204 nº 1 al. d), ambos do C. Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;

Em cúmulo jurídico destas penas, na pena única de 12 (doze) anos de prisão.»

Foi ainda condenado ao pagamento, a título de indemnização civil “a pagar ao demandante BB:

- as quantias de € 4.760,00 (quatro mil setecentos e sessenta euros) e € 30.000,00 (trinta mil euros), a título, respectivamente, de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescidas de juros de mora à taxa supletiva legal de 4 %, desde, respectivamente, a notificação do pedido e o trânsito em julgado da condenação e até efectivo e integral pagamento;

- Uma indemnização a título de danos futuros respeitante ao uso de medicação e consultas para acompanhamento clínico, cujo montante, que não poderá exceder os € 10.000,00 (dez mil euros), se relegou para incidente de liquidação de sentença, nos termos do Artº 609 nsº 1 e 2 do CPP, quantia que, a apurar, será acrescida de juros de mora à taxa supletiva legal de 4 %, devidos desde a notificação do demandando nessa sede e até efectivo e integral pagamento.”

2. Inconformado, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação ….. que, por acórdão de 08.06.2021, decidiu “negar provimento ao recurso e em consequência, manter, na íntegra, o acórdão recorrido”.

3. Inconformado, o arguido recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça, tendo apresentado as seguintes conclusões:

«1. O presente recurso vem interposto do douto acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação …., o qual decidiu negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e em consequência manter na íntegra o acórdão recorrido.

2. Ora, o arguido não se conforma, nem se pode conformar com o douto acórdão proferido em função de diversas circunstâncias que passaremos a elencar, pela ordem em que foram apreciadas no mesmo:

3. A exclusão de CC da investigação não encontra qualquer justificação de facto ou de direito, foi uma opção do Ministério Público.

4. Tal, para além de grave, é violador de todas as garantias constitucionais de defesa admissíveis num Estado de direito democrático.

5. O inquérito decorreu inquinado, correndo apenas contra um dos intervenientes com base na denúncia do outro, que a título de prémio vê não realizada qualquer diligência de prova que possa levar ao apuramento da sua responsabilidade.

6. Sendo certo que a indiciação de o crime ter sido cometido por dois sujeitos e não apenas por um, impunha ao Ministério Público a obrigatoriedade de constituir arguidos os dois suspeitos e realizar os actos de inquérito relativamente aos dois, sem prejuízo de mais tarde poder acusar ou não os mesmos, de acordo com a prova recolhida.

7. Porém, assim não aconteceu, omitindo o Ministério Público acto obrigatório (constituição de arguido de CC...) imposto por lei.

8. Conjugando o artigo 272 n.º 1, o art.º 119 al. d) e o artigo 120 n.º 2, todos do CPP se conclui que a falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada, considerada como suspeita da prática de um crime, constitui uma nulidade.

9. Nulidade insuprível nos termos do disposto no artigo 119.º, alínea d) do Código de Processo Penal, da qual devem ser retiradas todas as consequências legais previstas.

10. Na verdade, o acórdão recorrido classifica este facto como «sendo, naturalmente, uma opção criticável» afastando porém que essa circunstância possa configurar a alegada nulidade.

11. Contrariamente, entende a defesa do Recorrente que a atuação do Ministério Publico (ao não constituir CC como arguido) não é apenas «uma opção criticável», é, sobretudo, uma omissão de uma obrigação prevista na lei, que redundou numa ilegalidade e que pôs em causa todo o processo e condicionou o seu desfecho.

12. Tal acto é obrigatório por força do artigo 272º do CPP.

13. A actuação do Ministério Público é livre, desde que salvaguardados os actos de prática obrigatória e as exigências decorrentes do princípio da legalidade.

14. Pelo que, deve ser declarada procedente a nulidade insanável, cfr. art.° 119°, alínea d) do C.P.Penal, com as consequências legais dai decorrentes.

15. Se assim não entender o Douto Tribunal para o qual se Recorre, sem prescindir, e por mero dever de patrocínio, sempre ainda se dirá que,

16. Temos por assente que Portugal é um Estado de Direito Democrático e que garante ao cidadão sujeito como arguido a um procedimento criminal o direito a exercer a respetiva defesa no âmbito desse processo, nos termos definidos nos artigos 20.º n.º 2 e 32.º, n.º 3 da C:R.P..

17. Tal direito é depois consubstanciado no artigo 61.º do Código de Processo Penal, onde se estabelece que o arguido goza em especial do direito de (al. f)) ser assistido por defensor em todos os actos processuais em que participar e, quando detido, comunicar, mesmo em privado com ele.

18. Nesse âmbito é ao arguido e ao seu mandatário que incumbe estabelecer o calendário das comunicações de preparação da respetiva defesa, não existindo nem podendo existir da parte do Tribunal qualquer limitação a essa liberdade, a qual é de tal forma amplamente estabelecida que, nem mesmo privado de liberdade, como sucede neste processo, pode ser vedado o contacto presencial entre o Arguido e o seu mandatário.

19. Ora, o Tribunal recorrido, à semelhança do que havia feito o tribunal de 1.ª instância, contorna a questão recordando que passaram 3 meses desde a acusação até ao julgamento e que não é o facto de o arguido estar em isolamento 11 dias antes da data designada para o julgamento que impedia a defesa de preparar a defesa para o julgamento em causa.

20. Porém, o exercício da defesa, nomeadamente no que toca a um dos seus momentos essenciais, que é a reunião anterior ao depoimento do próprio arguido no processo em que está a ser acusado, não tem qualquer limitação temporal estabelecida na lei e decorre do senso comum que tal reunião ocorra escassos dias antes do julgamento e não com um, dois, ou mesmo três meses de antecedência em relação ao referido julgamento.

21. Apesar disso, a defesa teve mesmo o cuidado de, antecipadamente, mais concretamente no dia 15/10/2021 com o requerimento entrado com a ref.ª citius ……. informar o Tribunal das dificuldades que enfrentava quer nos contactos com aquele estabelecimento prisional, quer no agendamento de reunião com o arguido.

22. Perante isto, como já se referiu, imputar à defesa o ónus de prever um impedimento totalmente inesperado e com esse fundamento decidir como decidiu o Tribunal de 1.ª instância numa 1.ª fase e, agora, o Tribunal da Relação …… no acórdão de que se recorre, é totalmente violador dos mais básicos direitos do exercício da defesa.

23. Tal interpretação, de que o arguido deverá reunir presencialmente com o seu mandatário não quando for por eles entendido conveniente, mas em qualquer momento anterior desde que fosse possível tal ter acontecido, não encontra qualquer suporte na lei.

24. Pelo contrário, consubstancia uma clara violação dos direitos mais básicos e essenciais de defesa de um arguido, que tem o direito constitucionalmente previsto a uma defesa efetiva e justa.

25. Sendo que os 15 minutos por videoconferência concedidos à defesa para reunir, já no decurso da audiência de julgamento, não passam de uma simulação do direito efectivo, que com ele não pode ser confundido.

26. Pelo que a decisão proferida pelo Tribunal da Relação, nos termos em que o foi, configura um inaceitável afastamento de Direitos constitucionais e bem assim de Direitos Humanos, sendo totalmente inaceitável num Estado de Direito democrático.

27. O Direito a um julgamento justo não pode ser um mero princípio sem reflexos na interpretação da Lei, afastando-se o mesmo ao primeiro confronto com a necessidade de imprimir celeridade processual, como claramente aconteceu neste caso.

28. Impõe-se agora a coragem de reverter essa decisão, conformando-a com o disposto na lei e garantindo ao arguido o julgamento justo a que tem direito, com o reconhecimento da ilegalidade do despacho proferido pelo Tribunal de 1.ª Instância, por violação do estatuado no artigo 61.º n.º 1, alínea f) do código de Processo Penal, em conformidade com o disposto nos artigos 20.º e 32.º da Constituição da Republica Portuguesa e no artigo 11.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, declarando-se em consequência a nulidade de todos os actos subsequentes, o que se pede.

29. De igual forma é incompreensível a decisão do Tribunal da Relação ……, no que concerne à nulidade decorrente da realização de parte da audiência de discussão e julgamento sem a presença física do arguido.

30. O Venerando Tribunal recorrido assume como verdadeiras todas as premissas do alegado pelo recorrente, mas conclui em sentido diverso, afirmando poder ser realizado o que começa por dizer estar vedado ao tribunal nos termos da Lei!

31. Afirma e bem que a regra do CPP é a presença física do arguido na audiência de julgamento.

32. Como afirma que no momento em que ocorreu a diligência já não estava em vigor a redacção do artigo 7.º da Lei 1-A/2020 que criou medidas excepcionais e temporárias nomeadamente através da prática de actos processuais através de meios de comunicação à distância.

33. Porém, perante esta dupla premissa que em nosso entender impunha como decisão lógica, a impossibilidade de a diligência de audiência de julgamento ter de ocorrer com a presença física do arguido, o acórdão recorrido conclui… “que o julgamento ocorreu com a presença do arguido, ainda que não fisicamente.” (sublinhado no original)

34. Ora a conclusão é exactamente a oposta da premissa inicialmente expressa.

35. Equiparar a presença do arguido através de meios telemáticos à presença física exigiria, no mínimo, a existência de Lei que desse abrigo a essa equiparação.

36. Não pode, salvo o devido respeito, o Tribunal ser original nem criativo, nomeadamente criando figuras paralelas de origem semântica, quanto às regras de julgamento, as quais estão perfeitamente definidas em sede do código de Processo Penal e de tal forma protegidas que a sua violação implica a nulidade insanável nos termos do artº.119º al. c) do CPP -, nulidade essa que expressamente e atempadamente se invocou.

37. Estipula o artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa sob a epígrafe “Garantias do Processo criminal”, mais concretamente no seu n.º 6 que “A lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento.”

38. Ora, não existindo previsão legal que permitisse ao Tribunal fazer intervir o arguido através de meios de comunicação à distância, tendo este manifestado a sua oposição ao início do julgamento sem ser garantida a sua presença, além de nula a decisão proferida pelo Tribunal viola de forma grosseira os mais elementares direitos de defesa do arguido estabelecidos com garantia constitucional.

39. À cautela sempre se dirá que será inconstitucional a interpretação da norma constante do artigo 332.º n.º 1 do Código de Processo penal sobre a obrigatoriedade da presença do arguido na audiência, no sentido de essa presença poder ser assegurada através de videoconferência, quando não existe norma legal que preveja essa possibilidade, por violação do artigo 32.º n.º 6 da constituição da República Portuguesa.

40. Acresce que:

41. Em sede de recurso o ora recorrente imputou diversos vícios ao acórdão, nomeadamente a ausência de exame crítico, indicando a violação de normas jurídicas e bem assim a existência de prova no processo que interpretada de forma correcta impunha decisão diferente daquela a que chegou o Tribunal de 1.ª instância.

42. Porém, de forma totalmente redutora o Tribunal agora recorrido refere que “...as considerações genéricas que, a tal propósito, enuncia, mais não são do que divergências no que respeita à forma como o tribunal recorrido valorou a prova produzida e que se traduzem, por isso, em bom rigor, na invocação de um erro de julgamento...

43. Entende o ora recorrente que existiu omissão de pronúncia pelo douto Tribunal da Relação …… quanto aos vícios imputados pelo Recorrente ao Acórdão de primeira instância.

44. A omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa.

45. O recorrente alegou além do mais a insuficiência no exame crítico da prova, questão que não se confunde com erro de julgamento, mas que o Tribunal da Relação ….. não apreciou.

46. A noção de exame crítico, apresenta-se como uma categoria complexa em que são salientes espaços prudenciais, fora do âmbito de aplicação próprio das questões de direito.

47. Importa neste exame que se indiquem os elementos que, em razão das regras de experiência ou critérios lógicos, constituem o substrato lógico racional que conduziu à convicção probatória.

48. É necessário que um acórdão seja claro quanto ao iter lógico trilhado, para chegar a uma certa conclusão, apresentando-se então este como uma «peça coerente», fundada e à margem de um arbítrio discricionário.

49. Em face do exposto, entende o Recorrente que existiu omissão de pronúncia, devendo em consequência esse Supremo Tribunal de Justiça, reenviar o processo ao Tribunal da Relação para reapreciação do ponto concreto “falta de exame critico da prova”.

50.Mesmo que assim não se entendesse:

51. Quanto ao crime de crime de homicídio qualificado na forma tentada, não só viola o Acórdão da 1.ª instância o dever de fundamentação e de exame crítico da prova, mas também faz uso de uma incorreta qualificação jurídica.

52. Apesar do Tribunal a quo dar como provados factos que consubstanciam “actos de execução” e o facto que realizam o “dolo” do crime de homicídio, para haver punição não basta acrescentar ao facto que “o que não logrou alcançar por motivos alheios à sua vontade”. Cfr. facto 20 da matéria provada, também presente na motivação.

53. Porque esta afirmação “o que não logrou alcançar por motivos alheios à sua vontade” é estritamente conclusiva.

54. A vontade de matar tem de ser retirada de outros factos que têm de estar especificados na acusação, demonstrados no julgamento, e descritos finalmente nos factos provados do acórdão.

55. Todavia, o Tribunal lançando mão de um puro juízo conclusivo, sem atender a prova que já tinha sido feita, decide condenar AA pela prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132º, nºs. 1 e 2, alíneas d) e e), 22.º, 23.º e 73.º n.º 1 als. a) e b) do Código Penal e que culminou na aplicação da pena de 11 (onze) anos de prisão;

56. Para além do Recorrente entender que não está aqui em causa um crime de homicídio na forma tentada, mas, na pior das hipóteses e em tese, um crime de ofensas à integridade física, uma vez que nunca existiu intenção de pôr termo a vida de quem quer que fosse,

57. Também discorda da qualificação do mesmo por recurso ao artigo 132º, nºs. 1 e 2, este nas alíneas d) e e) todos do Código penal e, discorda com o mesmo fundamento já anteriormente alegado…

58. As circunstâncias descritas no artigo 132.º do CP95 não são de funcionamento automático, pelo que só podem ser compreendidas como elementos da culpa exigindo-se, por isso, que, no caso concreto, elas exprimam uma especial perversidade ou censurabilidade do agente. A especial censurabilidade ou perversidade tem de ser demonstrado na situação em concreto, através de uma análise das circunstâncias do caso (cfr. «Actas, Parte Especial», 1979, págs. 21 e 22; Ac. do STJ datado de 12/07/89, B.M.J. n. º 389, pág. 310).

59. Assim, impõe-se alterar a qualificação do crime efetuada no acórdão proferido em sede de 1.ª instância, com todas as consequências legais.

60. Por fim, arguido não se pode igualmente conformar com a decisão do Tribunal da Relação …… quanto à questão da aplicação do regime especial para jovens.

61. Como é reconhecido no acórdão em recurso existindo o requisito formal da idade do arguido, que tinha 20 anos à data dos factos, impunha-se a ponderação da aplicação do regime especial para jovens.

62. Nomeadamente quanto ao requisito material do referido regime, ou seja, da existência de sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do condenado,

63. Ora sucede que, salvo o devido respeito, o acórdão recorrido acaba por afastar a aplicabilidade desse regime com fundamento em duas questões não atendíveis nessa necessária ponderação, pelo que errada é a conclusão da sua não aplicabilidade.

64. Atende o acórdão na apreciação da aplicabilidade deste regime a referências constantes de relatórios e informações enviados a um Processo Tutelar Educativo de que o arguido foi alvo.

65. Ora, tal matéria não se encontra provada, nem pode ser no entender da defesa atendida na forma como decorre do douto acórdão recorrido.

66. Basta a leitura dos pontos 80 a 83 da matéria de facto dada como provada no acórdão da 1.ª instância e reproduzidos no acórdão de que agora se recorre, para que o que se provou não foram os factos ali descritos, mas sim a circunstância de “No processo tutelar...” constarem relatórios e informações com determinada factualidade.

67. Não podemos deixar de manifestar a nossa mais profunda estupefação para a circunstância de não só o Tribunal de recurso não ter atendido nem considerado minimamente os fundamentos de recurso apresentadas quanto a esta matéria, como vai mesmo mais além da decisão original e considera estes factos diretamente como atendíveis, como se fossem factos provados após serem objecto de prova.

68. Ora, o Tribunal de 1.ª instância introduziu estes factos na matéria provada na estrita medida em que constam do processo tutelar educativo e não como factos ocorridos e sujeitos ao contraditório e objecto de prova.

69. Sendo que, em fase de recurso e perante a mera circunstância de o Tribunal de 1.ª instância ter atendido a esses pseudo-antecedentes disciplinares, para efeitos de apreciação da aplicabilidade do regime especial para jovens, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação vai ainda mais longe e afirma mesmo que “o arguido já havia sido sancionado disciplinarmente...” imputando-lhe factos inatendíveis como sejam agressões a Colegas, indo ao pormenor da classificação da violência ocorrida em tais agressões, quando nada desta matéria foi nem podia ser objecto nem deste, nem de qualquer outro processo judicial.

70. Da mesma forma refere depois o acórdão agora recorrido que “o arguido não mostrou arrependimento relativamente aos factos em apreço nos autos, imputando a terceiros os factos por si praticados, mantendo assim postura já assumida anteriormente em contexto escolar, o que significa que o acompanhamento psiquiátrico de que beneficiou no contexto de promoção e protecção e tutelar educativo não surtiu efeito no sentido de conduzir o jovem para uma vida conforme ao Direito”

71. Ora se temos de admitir que a falta de manifestação de arrependimento (com a qual não concordamos em absoluto) pode e deve ser valorada, a consideração “ mantendo assim postura já assumida anteriormente em contexto escolar, o que significa que o acompanhamento psiquiátrico de que beneficiou no contexto de promoção e protecção e tutelar educativo não surtiu efeito no sentido de conduzir o jovem para uma vida conforme ao Direito” revela-se inadmissível em face do que já antes se expôs quanto à possibilidade de o Tribunal valorar matéria que não foi objecto de prova nem neste, nem em qualquer outro processo judicial.

72. O Tribunal da Relação valora factos e circunstâncias que não podia valorar, na medida em que a simples circunstância de constarem de relatórios e informações juntas a um processo tutelar educativo não permitem ao Tribunal aferir se as mesmas ocorreram ou não, sendo que, se o Tribunal as pretendia valorar, teria de ter sido outra a formulação dos factos supervenientes à acusação, sendo que, se assim fosse, a alteração ocorrida já não configuraria uma mera alteração não substancial dos factos constantes da acusação, mas antes uma alteração substancial.

73. Serão de atender:

- O apoio familiar de que o arguido beneficia

- O facto de ter tido actividade desportiva, incluindo incursões na selecção nacional

- O desempenho de actividade profissional, com perspectiva de regressar à mesma

- A inexistência de antecentes criminais.

74. Ora, estas circunstâncias, denotam bem que o arguido não é um caso perdido de exclusão social, o arguido tem possibilidades de ser socialmente reintegrado, como decorre bem das suas circunstâncias de vida, acima referidas.

75. Saliente-se que, os actos criminais praticados nada têm a ver com qualquer modo de vida do arguido, pelo que não entendemos onde o Tribunal recorrido sustenta a visão negativa que tem quanto ao futuro da integração do arguido, de tal forma negativa que permite mesmo concluir a inexistência de qualquer vantagem na aplicação do regime especial para jovens.

76. Sendo que se impõe realizar uma nova ponderação sem atender aos referidos antecedentes, por nunca terem sido os mesmos objecto de apreciação judicial, fosse em que processo fosse.

77. Termos em que, nestes e nos mais de direito que V.ªs Ex.ªs doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente e em consequência:

a) Ser declarado nulo o Julgamento por verificação de falta de inquérito, em conformidade com o disposto no artigo 119.º alínea d) do Código de Processo Penal.

b) Ser declarado nulo o Julgamento por violação dos direitos do arguido a livremente conferenciar quando entender com o seu Advogado e dessa forma preparar a defesa, irregularidade expressa e tempestivamente invocada de acordo com o disposto no artigo 61.º, n.º 1, alínea f) e 123.º do Código de Processo Penal.

c) Ser declarado nulo o Julgamento por violação dos direitos do arguido a estar presente em audiência de discussão e julgamento, em conformidade com o disposto no artigo 119.º alínea c) do Código de Processo Penal.

d) Ser julgada a omissão de pronúncia do acórdão recorrido e em consequência reenviado o processo ao Tribunal da Relação para reapreciação das questões relativas à insuficiência no exame crítico das provas, nos termos do n.º 1 do artigo 379 e n.º 2 do artigo 374 do Código de processo penal.

e) Ser alterada a qualificação jurídica dos factos provados, com as consequências legais

f) Determinar a aplicação o regime especial para jovens, por se verificarem quer os requisitos formais, quer os requisitos materiais da sua aplicabilidade.»

4. O recurso foi admitido por despacho de 20.07.2021.

5. No Tribunal da Relação …., o Senhor Procurador-Geral Adjunto respondeu ao recurso interposto pelo arguido, concluindo que o recurso deve ser “julgado manifestamente improcedente”.

6. Subidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta, usando a faculdade prevista no n.º 1 do art. 416.º, do CPP, e pronunciando-se pela “improcedência do recurso” entende, em súmula apertada, que:

- “o recurso não pode ter a abrangência pretendida pelo recorrente”, desde logo na parte em que impugna a decisão da matéria de facto;

- além disto, o recorrente suscita a nulidade do acórdão recorrido tendo, porém, sido analisadas, pelo Tribunal da Relação, as questões colocadas, sem que se possa concluir ter havido omissão de pronúncia;

- considera ainda que a decisão recorrida “não está inquinada por qualquer um dos vícios previstos no art. 410, n.º 2, do CPP”;

- por fim, entende que a qualificação dos factos está correta, assim como se mostram adequadas as penas aplicadas.

7. Notificado o arguido nos termos do art. 417.º, n.º 2, do CPP, veio apresentar resposta alegando, em súmula apertada, que:

- não pretende recorrer impugnando a matéria de facto, mas recorre apresentando diversas questões de direito: “nulidade insanável por falta de inquérito”, “nulidade por violação do direito do arguido a um julgamento justo e ao pleno exercício da sua defesa”, existência de “diversos vícios ao acórdão, nomeadamente a ausência de exame crítico, indicando a violação de normas jurídicas e bem assim a existência de prova no processo que interpretada de forma correcta impunha decisão diferente aquela a que chegou o Tribunal de 1.ª instância”, omissão de pronúncia do acórdão recorrido e por isso, segundo o recorrente, deveria decidir-se no sentido de “reenviar o processo ao Tribunal da Relação para reapreciação do ponto concreto “falta de exame critico da prova””, e errada qualificação jurídica dos factos;

-  entende que o seu direito à defesa foi não só violado, porque não foi possível uma reunião entre o defensor do arguido e o arguido antes da audiência de julgamento, não tendo sido bastante a reunião de 15 minutos (por videoconferência) concedida pelo juiz de 1.ª instância durante o julgamento, mas também porque o arguido não autorizou a realização  da audiência por videoconferência numa altura em que já não estava em vigor a o art. 7.º, da Lei n.º 1-A/2020, pelo que entende ser inconstitucional (por violação do art. 32.º, da CRP) a interpretação do art. 332.º, n.º 1, do CPP, como admitindo a realização da audiência por videoconferência quando não exista norma legal que permita a realização naqueles termos;

- defende que deveria ter sido ponderada a aplicação do regime especial para jovens delinquentes, e que o Tribunal não poderia ter decidido com base em valoração de factos e circunstâncias que, segundo o arguido, não podia valorar.

8. Colhidos os vistos, e não tendo sido requerida a audiência de discussão e julgamento, o processo foi presente à conferência para decisão.

II

Fundamentação

A. Matéria de facto provada

1. Matéria de facto dada como provada:

«1. Na noite de 21 para 22 de Dezembro de 2019, pelas 22H00, em ……, AA encontrou-se com CC.

2. Depois de terem estado em alguns estabelecimentos de diversão nocturna, pela 01H00, AA telefonou para BB e pediu a este que se deslocasse a …… e o transportasse a ele e a CC para ……...

3. Então, BB ao volante do veículo ligeiro de passageiros de marca “…….”, modelo “……”, de matrícula ...-...-IA, deslocou-se a ……, local onde AA e CC entraram para o referido veículo.

4. Após, BB, AA e CC dirigiram-se para …...

5. Já em ….., BB imobilizou o mencionado veículo junto da Travessa …….

6. Após, apeados, BB, AA e CC dirigiram-se para o estabelecimento de diversão nocturna “……”, sito no Páteo ……., em ……, onde entraram às 03H15 e permaneceram até às 06H49.

7. Depois de saírem do referido estabelecimento, AA e BB travaram uma discussão verbal, pois o arguido pretendia conduzir o veículo de matrícula ...-...-IA até …….

8. Nas imediações da Travessa ......, o arguido disse ao BB “nós vamos só ali cheirar”.

9. Chegados à Travessa ......, estando o arguido irritado por BB não o deixar conduzir o mencionado veículo de matrícula ...-...-IA no caminho de regresso para ……, por modo não concretamente apurado, BB caiu ao chão.

10. De imediato, AA aproximou-se de BB e, exercendo força muscular, desferiu diversos pontapés na cabeça e cara do mesmo, que também pisou repetidamente.

11. Então, CC disse, em voz alta, “Preto pára, o que é que estás a fazer? Vais matar o rapaz”.

12. Depois de verificar que BB se encontrava inanimado e a sangrar da cara AA parou de desferir pontapés e de pisar a cara e a cabeça do mesmo e começou a caminhar na direcção do veículo de matrícula ...-...-IA, tendo dito a CC “anda se não acontece-te o mesmo”.

13. Após, aproveitando-se do facto de BB se encontrar prostrado no chão, inanimado e a esvair-se em sangue, AA decidiu fazer seus o referido veículo de matrícula ...-...-IA e o cartão multibanco de que aquele era dono.

14. Na concretização do plano que delineou, AA aproximou-se de BB, que permanecia prostrado no chão, inanimado e a esvair-se em sangue, e retirou de um dos bolsos do casaco do mesmo as chaves do veículo de matrícula ...-...-IA e o cartão multibanco, objectos que fez seus.

15. Acto contínuo, exercendo força muscular, AA pisou, por duas vezes, a cara e cabeça de BB.

16. Então, CC disse a AA “pára já preto”.

17. De seguida, AA dirigiu-se para o veículo de matrícula ...-...-IA e abandonou o local, fazendo-se transportar no mesmo.

18. Em consequência directa e necessária da descrita conduta de AA, BB sofreu de traumatismo crânio-encefálico occipital e parietal bilateral com afundamento de estruturas ósseas, traumatismo maxilofacial com assimetrias da parede orbitária, sobretudo direita, ferida supraciliar direita e do pavilhão auricular direito, suturadas, fracturas dos ossos próprios do nariz, múltiplos focos de contusão torácicos e abdominais, tendo sido assistido de urgência no Hospital do …., em ….., e helitransportado para o Hospital ……., em ….., onde ficou internado com má evolução neurológica na Unidade de Cuidados Intensivos com entubação e ventilação invasiva, com traqueostomia, de dores físicas e de mal-estar psicológico, lesões que determinaram 177 dias de doença, com afectação da capacidade para o trabalho em geral e para o trabalho profissional.

19. Mais sofreu de cicatrizes supraciliar direita e do pavilhão auricular direito, estado pós traumatismo crânio-encefálico com alteração do controlo motor global de predomínio direito com movimentos activos contra gravidade, vencendo parcialmente a resistência, com perturbação neuro cognitiva major por lesão cerebral traumática com perturbação do comportamento e perturbação neurolinguística, lesões de carácter permanente, que limitam a capacidade para o trabalho, a capacidade intelectual e de linguagem.

20. Ao actuar do modo descrito, irritado por não o deixarem conduzir um veículo, exercendo força muscular e desferindo diversos pontapés na cabeça e cara de BB, que também pisou por diversas vezes, AA agiu com o propósito de retirar a vida ao mesmo e de lhe causar grande sofrimento físico e psíquico enquanto o fazia, o que não logrou alcançar por motivos alheios à sua vontade.

21. AA agiu com o propósito concretizado de fazer seus o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ...-...-IA e o cartão multibanco de que BB era dono, aproveitando-se de o mesmo se encontrar prostrado no chão, inanimado e a esvair-se em sangue.

22. AA agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas.

Mais se provou que:

23. No dia 19 de Fevereiro de 2020 o demandante deu entrada no Centro Paroquial de ….., para efectuar terapêutica de reabilitação, de onde saiu em dia não concretamente apurado do mês de Abril.

24. O demandante deu entrada no Centro de Reabilitação de ….., Centro de Medicina de Reabilitação do …… no mês de Maio de 2020.

25. Desde o dia 27.05.2020 que o demandante se encontra internado no Centro Hospitalar Universitário do ….., recebendo tratamento, devido à alteração do seu status funcional do nível cognitivo comportamental, fala, controlo motor e postura global, em consequência ao politraumatismo com trauma cranioencefálico grave (GCS6 no local).

26. O demandante tem perturbações neurocognitivas por lesão cerebral traumática com perturbação do comportamento (status emocional), o que torna o seu comportamento tendencialmente apático e lentificado.

27. O demandante apresenta perturbação neurolinguística com características de afasia e disartria com alteração da prosódia de grau 4.

28. Devido às limitações a nível de coordenação motora e de memória, o demandante necessita de supervisão, até para efectuar as tarefas diárias de higiene pessoal, estando dependente dos cuidados de terceiros.

29. No Centro Hospitalar foi feito treino relativo à actividade laboral do demandante (….), tendo o mesmo revelado, devido às suas limitações a nível de coordenação motora e de memória, não ser capaz de desenvolver esta actividade.

30. O demandante necessita de tomar medicação auxiliar à sua cognição e ao seu comportamento/humor.

31. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido o demandante sofreu dores, devido à agressão e posteriormente devido aos tratamentos a que foi sujeito e dos quais dependiam a sua vida, tendo sido entubado, algaliado, alimentado por sonda, o que se verificou até pelo menos 19.02.2020.

32. Desde 09.01.2020 e pelo menos durante quatro meses o demandante usou fraldas.

33. Até 19.02.2020 o demandante teve infecções urinárias, tendo sentido desconforto incómodo e dores.

34. Até 19.02.2020 o demandante esteve acamado sofrendo dores.

35. O demandante apresentou score de 6 na escala de Coma de Glasgow (GCS) no local dos factos, oscilando entre 6-8 aquando do internamento na Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital …….

36. Quando foi encontrado por mero acaso o demandante estava incapaz de se comunicar verbalmente devido ao referido de 10. a 15..

37. Na sequência do referido de 10. a 15. o demandante estava incapaz de pedir auxílio.

38. Antes do referido de 10. a 15. o demandante era uma pessoa bem disposta e alegre, que gostava de sair com os amigos e com um plano de vida pessoal e profissional.

39. Actualmente o demandante não reconhece amigos e conhecidos que faziam parte da sua vida.

40. O demandante tem apenas memória de curto prazo.

41. Devido ao referido em 18. e 19., o demandante fala devagar, não se consegue explicar e tem um andar desengonçado.

42. O demandante nasceu em Julho de 1991.

43. O demandante ficou “marcado” fisicamente com uma cicatriz na sobrancelha direita.

44. Foi emitido em nome do demandante “certificado de incapacidade temporária para o trabalho” por doença entre 29.06 e 28.07.2020.

45. O demandante trabalhava num hotel, como ….. – 2.ª -, auferindo o vencimento de €680,00.

46. Desde o referido de 1. a 22. até à cessação do contrato de trabalho do demandante decorreram 7 meses, durante os quais, em virtude do referido em de 1. a 37., 39. a 41. e 44., o demandando não auferiu o vencimento referido em 45..

47. Em virtude do referido em 19., não foi possível o demandante manter o contrato de trabalho em que investiu.

48. O demandante terá necessidade de continuar a recorrer ao uso de medicação e de recorrer a consultas para acompanhamento clínico.

Mais se provou que:

49. CC, BB e o arguido beberam álcool durante o período que se encontravam no bar “……” e BB consumiu drogas, de natureza não concretamente apurada.

50. AA não conduziu o veículo de BB.

51. Foi CC que conduziu sempre o veículo de BB.

52. AA chegou ao café “….” perto do Chafariz …. em ….. pelas 7h17 minutos.

53. Após o referido em 52. AA e CC foram no veículo de BB.

54. AA pediu para parar na bomba de gasolina  …., ao que CC concordou.

55. Às 8h01 CC ligou a DD, seu amigo que reside em …...

56. Na sequência do referido em 55., CC dirigiu-se para ….. até casa de DD.

57. DD não é amigo de AA, apenas conhecido, mas é amigo de CC.

58. DD levou AA e CC até ……..

59. CC, com a ajuda de DD, deixou o veículo de BB em …… à beira de uma estrada.

60. O veículo de matrícula ...-...-IA foi adquirido em 2018 pelo valor de €800,00.

Mais se provou que:

61. AA é o mais velho dos dois filhos do casal progenitor.

62. De outros relacionamentos do pai, tem três irmãos, um mais velho e dois mais novos.

63. Os pais separaram-se quando o arguido tinha cerca de 14 anos de idade, tendo o arguido e o irmão germano permanecido a cargo da mãe.

64. A separação dos progenitores parece ter tido um forte impacto no jovem que teve dificuldade em se adaptar à nova realidade familiar.

65. AA manteve convívio regular com o pai.

66. O pai do arguido era mais permissivo e desculpabilizante, desautorizando a mãe, o que não terá contribuído para uma interiorização adequada de regras e valores ajustados.

67. AA frequentou o ensino em idade normativa, tendo registado algumas dificuldades de adaptação, sofrendo duas retenções no quinto ano.

68. O arguido alterou o seu comportamento a partir de 2015 e concluiu o 9º ano do 3º ciclo do ensino básico, através da frequência de um curso vocacional “……”, tendo posteriormente concluído o 12º ano de escolaridade.

69. Frequentou posteriormente um curso profissional …….

70. AA jogou …… dos quatro aos 17 anos de idade, tendo integrado várias equipas e participado em várias competições, integrando também a seleção.

71. O percurso profissional do arguido teve início após ter concluído a formação ….., tendo trabalhado com uma empresa  ……, prestando serviços em vários locais.

72. Anteriormente à prisão preventiva, AA integrava o agregado familiar da mãe, composto por esta e pelo irmão mais novo, de 14 anos de idade, estudante.

73. A família reside em casa pertencente à avó materna do arguido, sem despesas associadas, sendo a situação económica da família equilibrada.

74. Anteriormente à prisão preventiva o arguido executava trabalhos na …… com o pai.

75. Em contexto prisional, a nível comportamental o arguido foi alvo de uma participação disciplinar em 12/09/2020, em fase de averiguações a 04.11.2020.

76. Em contexto prisional, a nível ocupacional, o arguido executou algumas tarefas como ajudante de faxina no pavilhão.

77. O arguido está inscrito para frequentar uma formação profissional modular de pedreiros.

78. O arguido recebe visitas e contactos regulares da mãe, do pai e da avó materna, os quais manifestam disponibilidade para o apoiarem quer na atual situação, quer quando for restituído à liberdade.

79. Como projeto futuro, o arguido pretende voltar a integrar o agregado familiar materno e inserir-se profissionalmente, junto do pai, na ….., ponderando ainda a possibilidade de prosseguir a sua formação académica.

80. O arguido foi visado no processo tutelar educativo que correu termos no DIAP – Secção  …. sob o n.º 52/14……, ao qual foi junto relatório subscrito pelo Director do Agrupamento de Escolas ……, EE, em 13.11.2014 do qual ademais resulta: “O menor supracitado frequenta a turma F do curso vocacional do 2.º ciclo, na Escola Básica …. em ……. No ano letivo transato o AA apresentou alguns comportamentos de agressividade tendo sido aplicadas medidas disciplinares, corretivas e sancionatórias, devido a questões a colegas e pequenos furtos os comportamentos atrás referidos agravaram-se desde o início do presente ano letivo, manifestando o AA um comportamento desajustado ao espaço escolar, pautado pelo uso frequente da violência verbal e física para com todos os elementos da comunidade escolar (seus pares, auxiliares de educação, professores e diretor), comportamento este, agravado pelo não reconhecimento dos seus atos, reincidência de comportamentos e não reconhecimento autoridade a professores e demais profissionais da comunidade escolar. Este caso foi relatado à representante da educação da CPCJ, numa reunião que decorreu este ano na sede do agrupamento de escolas, tendo ficado acordado que o aluno iria ser sinalizado para a Comissão de proteção de crianças e jovens tendo esta decisão sido comunicada à encarregada de educação. (…) Nas aulas, o AA não demonstra interesse pelos conteúdos e aprendizagens recusa trabalhar, tendo já acontecido sair da sala por iniciativa própria e sem dar explicações aos professores. No presente ano lectivo, pelo motivo de agressão a outro colega, em sala de aula, e desrespeito à autoridade do professor, foi-lhe aplicada uma medida correctiva, de acordo com a alínea C), ponto 2 do artigo 26.º da Lei 51/2012 de 5 de Dezembro que não cumpriu. Fora das aulas, nos espaços comuns, tem demostrado comportamentos de agressividade e indisciplina, colocando em risco a integridade física de qualquer elemento da comunidade escolar, os quais conduziram a participações por parte dos colegas e assistentes operacionais. Devido ao facto de o aluno não ter cumprido os Deveres do Aluno previstos nas alíneas d), e), f), g), i), k), l) e o), do artigo 10.º, da Lei 51/2012 de 5 de Setembro, foi aberto, no presente ano lectivo, um Procedimento disciplinar tendo sido aplicado ao aluno a medida disciplinar sancionatória de seis dias de suspensão, prevista na alínea c) do ponto 2) do artigo 28.º da supracitada lei e cumulativamente, a medida disciplinar correctiva de mudança de turma (…). No âmbito da medida disciplinar sancionatória, atrás referida, o aluno tinha de cumprir um plano de actividades pedagógicas (…) No dia 27 de outubro, a encarregada de educação compareceu na escola para conhecer o resultado do procedimento disciplinar. De salientar que o menor recusou conhecer o anteriormente referido, respectivo plano de actividades e os objectivos a alcançar, saindo da sala sem modos, sem autorização, desrespeitando a subdirectora da escola, na presença da encarregada de educação. Posteriormente, as técnicas de Serviço Social e de Psicologia tentaram falar com o aluno tendo esta abandonado a escola, sem autorização. No dia seguinte pela manhã dirigiu-se ao Gabinete de Apoio ao Aluno e à Família, manifestando vontade de conhecer o plano e de o cumprir. No dia 29 de Outubro iniciou o cumprimento da medida (…) Com a finalidade de visar a sua integração escolar e comunitária, o aluno foi acompanhado pelo serviço de psicologia e orientação vocacional (SPO) desta escola, no ano lectivo anterior, porém, deixou de frequentar após 4 sessões, por sua iniciativa. O aluno é acompanhado atualmente em consultas de psicologia no centro de saúde …, segundo informação veiculada pela encarregada de educação. O aluno foi também acompanhado pelo gabinete de apoio ao aluno e a família, onde foram abordadas temáticas sobre relacionamento interpessoal, comportamentos sociais competentes e responsabilidade, ano lectivo anterior e no presente ano letivo. Mostrou-se pouco colaborativo, chegando a abandonar uma sessão dia 24 outubro do presente ano. Tendo em conta as estratégias utilizadas pela escola, com resultados infrutíferos dada a permanente recusa do menor face às mesmas e ao cumprimento de qualquer orientação, no que se refere a aquisição de competências sociais e relacionais, os técnicos que acompanharam aluno, assim como direção da escola e docentes estão preocupados com instabilidade emocional e reincidência constante dos comportamentos valor que estão a colocar em risco a sua formação, educação e desenvolvimento. (…)”.

81. No processo tutelar referido resulta ainda junta informação escolar datada de (…) 2015, pelo Director do Agrupamento de Escolas  …., EE, da qual ademais resulta “(…) Serve o presente documento propósito de informar que, (…) foi aplicado o AA, n.º 9, do curso vocacional 2.º ciclo, a medida disciplinar sancionatória oito dias suspensão (…), após o exercício dos direitos de audiência de defesa do aluno e encarregado de educação e que a medida foi cumprida (…). A aplicação da medida disciplinar acima referida deveu-se ao facto de o aluno ter incumprido com os deveres do aluno (…) nomeadamente: d) tratar com respeito e correção qualquer membro da comunidade educativa, g) contribuir para a harmonia da convivência escolar e para a integração de todos alunos, i) respeitar a integridade física e psicológica de todos os membros da comunidade educativa, não praticando quaisquer atos, designadamente violentos, independentemente do local ou dos meios utilizados, que atentem contra integridade física, moral ou patrimonial dos professores, pessoal não docente e alunos, o) conhecer e cumprir o Estatuto do Aluno e Ética escolar e o regulamento interno do agrupamento. Na ponderação da proposta de decisão final foram consideradas como circunstâncias atenuantes o facto de o aluno ter admitido autoria dos atos pelos quais estava imputado. Como circunstâncias agravantes os antecedentes do aluno relativamente a infrações disciplinares e sua reincidência ao longo do seu percurso escolar, muitas delas, marcadas por comportamentos agressivos que na ocorrência que deu origem ao presente procedimento disciplinar evidenciaram uma violência desmesurada que determinou que o aluno agredido tivesse de ser transportado ao centro de saúde para ser observado e tratado. De referir que o aluno não mostrou arrependimento da natureza ilícita da sua conduta. (…)”.

82. No processo tutelar referido resulta ainda junta informação escolar datada de 02.12.2015, pelo Director do Agrupamento de Escolas ….., EE, da qual ademais resulta “(…) Serve o presente documento o propósito de informar que o aluno AA, que frequenta o curso vocacional de 2.º Ciclo, turma F, n.º 9, foi suspenso preventivamente, no dia 1 dezembro 2015 até a conclusão do procedimento disciplinar (…) A suspensão preventiva foi motivada por três agressões a um colega, em dois dias consecutivos, considerando a reincidência de comportamentos violentos por parte do AA, colocam em causa o normal funcionamento das atividades escolares, a segurança etranquilidade no espaço escolar e salvaguardando o normal decurso do procedimento disciplinar. (…).”.

83. No procedimento referido foi proferido em 03.11.2016 despacho do qual, ademais, resulta: “(…) Declaro encerrado o inquérito (…). Os presentes autos tiveram início na participação policial contra o menor AA, porquanto este eventualmente teria praticado factos, susceptíveis de consubstanciar a prática, em abstrato, do crime de furto simples, do crime de dano e do crime de injúria (…).

Estes crimes não puníveis com pena superior a 3 anos de prisão.

Hoje o menor cumpre, no âmbito do processo de promoção e protecção n.º 68/15….. medida de apoio junto da mãe.

Do último relatório elaborado pela Segurança Social, conclui-se que atualmente, o menor com 17 anos de idade, frequenta estabelecimento de ensino em curso vocacional de 3.º ciclo, que o ambiente familiar do jovem sofreu significativas alterações e que este adotou uma postura de respeito pelas regras parentais impostas. Efectua acompanhamento psiquiátrico que aceita.

Pelo exposto, face à sua postura, atitude e relacionamento, conclui a Segurança Social, que o mesmo não precisa de educação para o direito, pois essas necessidades foram colmatadas pela integração social, escolar e familiar.

(…)

Com esta acção, e apesar, de os valores de convivência em sociedade terem sido desrespeitados, não haverá, aqui, necessidade de aplicação de uma medida educativa que reponha, na consciência dos menores, o respeito pelos valores jurídicos que regem a sociedade portuguesa e que garantem, por parte de todos, a observação das normas vigentes.

Os menores são responsáveis e entendem o alcance das suas acções tendo, durante o inquérito, sido ouvidos no edifício do Tribunal, funcionando, desde logo, como uma chamada de atenção para o carácter reprovável das suas condutas. Assim, face ao exposto, à moldura penal dos factos, determino o arquivamento do presente inquérito tutelar educativo (…).”.

84. Em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido perante o juiz de instrução, após confrontado com as imagens de videovigilância, o arguido declarou ao juiz de instrução ter mentido ao Tribunal relativamente à versão por si inicialmente relatada dos factos.

85. Em julgamento o arguido imputou a CC a prática das agressões a BB e bem assim os actos relativos aos bens referidos em 14..

86. O arguido não tem antecedentes criminais.»

2. Matéria de facto dada como não provada:

«a) Foi o arguido quem iniciou a discussão referida em 7..

b) Aquando do referido em 9. AA desferiu, de modo não determinado, uma pancada na cabeça do mesmo.

c) A queda referida em 9. aconteceu na sequência do referido em b).

d) BB também estava a sangrar do ouvido direito aquando do referido em 14..

e) O demandante saiu no dia 20. do lugar referido em 23..

f) O referido em 24. ocorreu no dia 20..

g) O demandante sofreu uma diminuição da sua acuidade visual.

h) O demandante sofreu forte abalo psicológico devido ao referido em 36..

i) Aquando do referido em 37. o demandante estava desorientado e sofreu a angústia de não conseguir comunicar a sua identidade e da sua família.

j) O referido em 33. e 34. perdurou após a data ali referida e até 22.04.2020.

k) O coma referido em 35. foi induzido.

l) O demandante vive apreensivo e triste por ter perdido a memória a longo e médio prazo.

m) O demandante vive sem ânimo em relação ao seu futuro.

n) Além do referido em 29., o demandante não consegue desempenhar qualquer outro tipo de actividade profissional.

o) O demandante sofre grande angústia, em relação ao seu futuro, pois tem medo de não ser capaz de prover o seu sustento, o que foi sempre o seu maior orgulho, ser um jovem activo profissionalmente.

p) A memória referida em 40. é de 3 – 4 minutos.

q) O referido em 41. provoca vergonha no demandante e inibe-o de conviver socialmente, o que o deixa em profunda tristeza e desânimo constante, pois não se sente capaz de vir a constituir família, o que almejava.

r) O referido em 43. impede o demandante de esquecer que foi vítima de graves agressões e que esteve entre a vida e a morte, tendo sofrido abalo psicológico do qual ainda se ressente.

s) Na actividade referida em 45. o demandante auferia o valor diário de €2,83.

t) O demandante tinha a ambição de vir a progredir na sua área profissional, almejando subir de categoria profissional, o que se mostra impossível, face ao referido em 18. e 19..

u) Em virtude do referido de 1. a 22. o demandante jamais esquecerá.

v) Foi CC quem estabeleceu o contacto telefónico com BB referido em 2..

w) AA e BB não tinham uma relação prévia de amizade, eram apenas conhecidos, a amizade existia apenas entre CC e BB.

x) Existiu uma discussão entre CC e BB porquanto aquele queria sair  ….. para ir para ….. para um bar de nome …….

y) BB recusou o referido em x) ser tarde e ser muito longe.

z) Na sequência do referido em y), CC começou insistentemente a dizer que, se não iam para ….. então iam para um bar de alterne sito em ….., ao que BB também recusou.

aa) O desentendimento que existiu foi sempre provocado por CC em relação a BB e porque este queria ir para casa e recusava ir para mais bares conforme queria aquele.

bb) Foi CC quem dirigiu a BB a expressão referida em 8..

cc) Acto contínuo ao referido em bb) BB empurrou CC para o deixasse, CC respondeu com um encontrão e começaram os dois a briga, tendo BB dado um passo para trás, e caído pelas escadas da Travessa .......

dd) Na sequência do referido em cc), CC desceu as escadas e nesse momento continuaram a briga, sendo que BB nessa sequência caiu ao chão e aí continuou a ser agredido por CC.

ee) Na sequência do referido de bb) a dd) AA, vendo o que acontecida, desceu as escadas e afastou ambos, sendo que BB já se encontrava no chão a sangrar.

ff) Foi CC que agrediu fisicamente BB e não AA.

gg) Sendo na sequência do referido de bb) a ff) que BB ficou inanimado.

hh) Vendo o referido em gg), AA assustado começou a descer a pé a Travessa ......, afastando-se do local.

ii) Na sequência do referido em hh), ainda na Travessa ......, mas já perto do cruzamento com a rua ……, olhou para cima e viu CC a retirar objectos dos bolsos de BB.

jj) Na sequência do referido em ii), AA continuou e seguiu a pé pela Travessa ......, Rua ….. e voltou em direcção ao largo  ….. (onde encontrou um indivíduo de nome FF que trabalha no bar “….” em …… e com ele falou), seguindo a pé até chegar ao café “….” perto  …….

kk) Após o referido em 52. chegou CC, tendo este dito ao arguido para se irem embora.

ll) Na sequência do referido em kk), como não tinha maneira de regressar, AA foi com CC para …...

mm) CC fez acreditar a AA que tinha ajudado BB a ter assistência médica e que por isso regressavam no carro de BB.

nn) O referido em 54. ocorreu às 8h00.

oo) O referido em 55. ocorreu quando AA estava a comprar tabaco.

pp) AA entrou no veículo após o referido em 55..

qq) Aquando do referido em 55., CC agiu conforme plano previamente delineado com DD sem intervenção de AA.

rr) No caminho para o destino referido em 56. CC não apresentava qualquer tipo de constrangimento sobre o que se tinha passado.

ss) AA fez um vídeo de CC a conduzir, que não apagou e que se encontra ainda na memória do cartão do seu telemóvel.

tt) No vídeo referido em ss) vê-se o estado de espírito “animado” e muito pouco preocupado de CC.

uu) Aquando do referido de 55. a 58. CC contou a DD o que se tinha passado em ….. e foi este quem indicou que o melhor era desfazerem-se do veículo.

vv) CC deu origem ao referido de 1. a 22., foi quem sempre quis sair  …… para se dirigir a outro bar, quem agrediu BB, quem lhe retirou os pertences, quem engendrou um plano para culpar AA.

ww) Foi sempre durante toda a noite CC que desenvolveu esforços para que a situação fosse escondida, foi ele que cometeu os actos de agressão, que tirou os pertences de BB, que fez seu o carro e que agiu como referido em 55. a 58. por forma a que o amigo DD o ajudasse a encobrir os vestígios do veículo, não foi AA.

xx) O arguido não se orgulha de não ter diligenciado pela chamada das autoridades aquando da agressão de CC a BB.

yy) Tão pouco se conforma o arguido com o facto de não ter contrariado CC no plano que este delineou de regresso a …… no veículo de BB.

zz) A imaturidade, decorrente da idade do arguido, cumulada com as circunstâncias em que os factos ocorreram e a crença que BB não teria ficado no estado em que ficou por causa das ofensas à integridade física levaram a não agir como esperado.»

           

B. Matéria de direito

1. A partir das conclusões do recurso interposto, as questões colocadas são as seguintes:

a)  nulidade insanável por falta de inquérito contra CC;

b) nulidade por violação do direito a um julgamento justo e por violação do seu direito de defesa (nos termos do art. 61.º, n.º 1, al. f), do CPP e arts. 20.ºe 32.º, da CRP) por ter sido vedada a possibilidade de reunião entre o arguido e o defensor antes da audiência de discussão e julgamento;

c) nulidade insanável [nos termos do art. 119.º, al. c), do CPP] decorrente da realização da audiência de discussão e julgamento sem a presença física do arguido (sabendo que o art. 7.º, n.º 1, da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03 já não estava em vigor); alega ainda a inconstitucionalidade, por violação do disposto no art. 32.º, n.º 6, da CRP,  da interpretação do art. 332.º, n.º 1, do CPP, no sentido de que a norma que determina a obrigatoriedade da presença do arguido na audiência não se encontra violada quando a sua presença possa ser assegurada através de videoconferência, apesar de não existir norma legal bastante a permitir uma participação naqueles moldes;

d)  nulidade do acórdão por omissão de pronúncia relativamente a questões que suscitou perante o Tribunal da Relação e que não obtiveram qualquer apreciação por aquele Tribunal; entende que, para além do erro de julgamento que alegou, recorreu também alegando três outras questões (sobre as quais o Tribunal não se pronunciou): nulidade do acórdão de 1.ª instância, nos termos dos arts. 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, ambos do CPP, por falta de exame crítico das provas, contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, nos termos do art. 410.º, n.º 2, al. b), do CPP, e violação do princípio do in dubio pro reo e erro na apreciação da prova, nos termos do art. 410.º, n.º 2, al. C), do CPP;

e) errada qualificação jurídica dos factos: não só os factos provados não permitem considerar que estamos perante uma tentativa (pois considera que o facto provado 20 constitui um facto conclusivo, na esteira do defendido pelo Tribunal da Relação de Évora de 12.07.2018, no proc. n.º 208/17.0PBEVR.E1 in www.dgsi.pt), como considera não estarem preenchidos os pressupostos de aplicação do art. 132.º, als. d) e e), do CP;

f) inaplicabilidade do regime penal para jovens adultos com base em factos que entende como não tendo sido provados, porque resultam de relatórios realizados no âmbito de um processo tutelar educativo, tanto mais que as informações cedidas pelo Diretor da Escola ao tempo em que o arguido a frequentava serão declarações sobre factos relativamente aos quais teve um conhecimento indireto, dado que não terá presenciado os factos, pelo que se trata de depoimento indireto não sendo possível a valoração das suas declarações e, consequentemente, não podem servir de fundamento para a não aplicação do regime especial referido; acresce que os factos constantes de tais relatórios produzidos no âmbito do processo tutelar educativo são supervenientes à acusação, pelo que a alteração ocorrida constitui uma alteração substancial dos factos; por fim, considera que a não aplicação do regime especial se deveu a uma valoração dos antecedentes disciplinares como se fossem antecedentes criminais.

2.1.  O arguido invoca a nulidade insanável do inquérito, por força do art. 119.º, n.º 1, al. b), do CPP; por considerar que houve falta de promoção processual quanto ao outro suspeito (CC), dado que entende que os factos dos autos foram praticados por ambos; alega ainda que assim também teria sido entendido, numa fase inicial da investigação, e apenas o Ministério Público o não entendeu deste modo, pelo que não determinou a prossecução do procedimento criminal contra o outro suspeito.

Vejamos.

Compulsados os elementos dos autos, verificamos que no Relatório de Inspeção Judiciária, de 24.12.2019, a fls. 98/verso, se afirma expressamente que “não restam dúvidas de que os suspeitos da autoria dos crimes em investigação são AA e CC” (respetivamente o arguido aqui recorrente e o outro suspeito). E mais tarde, no Relatório Intercalar da Polícia Judiciária, de 02.01.2020, a fls. 193, refere-se expressamente que a conduta de ambos o suspeito, contra o ofendido, subsume-se numa tentativa de crime de homicídio e na consumação de um crime de roubo, por força do disposto nos arts. 22.º, n.º 1, e n.º 2, al. b), 23.º, n.º 1, 131.º e 210.º, n.ºs 1 e 2, al. a) e b), todos do Código Penal (CP); este relatório termina com a sugestão de emissão de mandados de busca e apreensão e mandados de detenção a ambos os suspeitos.

E no documento final do Senhor Coordenador de Investigação Criminal (de 02.01.2020, a fls. 198 e ss) conclui-se existirem “fortíssimos indícios” de ambos os suspeitos quanto à prática de ambos os crimes referidos (fls. 198/verso e 199; pese embora comece por descrever as agressões como tendo sido praticadas por AA, acaba, a fls. 198/verso, por referir que este arguido “contou com a colaboração de CC”), sugerindo, igualmente, a emissão de mandados de detenção para ambos os suspeitos.

Ora, devemos desde já aqui salientar que “a fundada suspeita não obriga à constituição imediata como arguido”[1], pelo que o facto de o órgão de polícia criminal ter considerado que havia suspeitas quanto ao outro interveniente, não determina por si só que devesse ter sido constituído arguido. Todavia, esta constituição já é obrigatória quando, em momento posterior, for deduzida acusação (cf. art. 57.º, n.º 1, do CPP). Além disto, é obrigatória a constituição de arguido, nos termos do art. 58.º, do CPP, quando correndo inquérito contra pessoa determinada esta prestar declarações perante autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal.

Todavia, deve salientar-se que, nestes autos, os procedimentos iniciais da investigação no órgão de polícia criminal decorreram contra desconhecidos; num momento inicial conhecia-se o ofendido, mas não se conheciam os suspeitos. E logo nesta fase inicial  aqueles que vieram mais tarde a ser identificados como suspeitos prestaram declarações — prestaram declarações perante o órgão de polícia criminal a 24.12.2019, ou seja, cerca de 2 dias após os acontecimentos (cf. fls. 121 e ss e 124 e ss); porém, nesta altura ainda não existiam elementos nos autos que referissem que havia, relativamente àqueles “suspeita fundada da prática de crime”[2]  [art. 58.º, n.º 1, al. a), do CPP]; como já se referiu, no início, quando o inquérito foi aberto, este foi aberto contra desconhecidos, como facilmente se comprova pelo auto de notícia ou pela capa do inquérito na Polícia Judiciária (fls. 20 e 60), ou no relatório realizado pelo órgão de polícia criminal a 22.12.2019 (fls. 21 e ss, em particular, fl. 22).

Além disto, quando foram interrogados ambos os suspeitos, ambos foram interrogados na qualidade de testemunha — quer AA que é interrogado a 24.12.2019 como testemunha (cf. fls. 121 e ss, em particular, fl. 122), quer CC que é interrogado no mesmo dia como testemunha (cf. fls. 124 e ss, em particular fl. 125) —, assim se evidenciando não haver um comportamento distinto, por parte do órgão de polícia criminal, relativamente a ambos os suspeitos.

Decorre, pois, dos elementos dos autos que, tendo havido uma notícia do crime contra desconhecidos [e portanto não estando preenchida a condição de obrigatoriedade de constituição do arguido prevista no art. 58.º, n.º 1, al. a), do CPP] e tendo sido os interrogatórios realizados a ambos os arguidos numa fase inicial, ainda antes de o órgão de polícia criminal ter considerado a existência de fundadas suspeitas sobre os dois intervenientes (e, portanto, não estando, naquela altura, preenchida a condição prevista no art. 58.º, n.º 1, al. d), do CPP], não houve até à acusação (do aqui arguido) relativamente ao outro suspeito (e porque não houve qualquer aplicação de medida de coação ou detenção ao outro suspeito que não o aqui arguido[3] — as outras duas situações previstas no art. 58.º, n.º 1, do CPP) nenhuma situação que determinasse a constituição obrigatória de arguido, e sabendo, além disto, que, por si só, a suspeita fundada não determina a imediata constituição como arguido.

Havendo fundada suspeita, o que não aconteceu no início, mas apenas quando os relatórios do órgão de polícia criminal assim o afirmaram (somente a 02.01.2020, mais de 10 dias depois dos factos), apenas se deve constituir o suspeito como arguido quando, devendo prestar declarações como arguido, seja possível notificá-lo antes do exercício da ação penal (cf. art. 272.º, n.º 1, do CPP). Todavia, o momento em que deve ser realizado tal interrogatório encontra‑se nas margens de discricionariedade técnica do Ministério Público[4] e, “na fase de inquérito, a pessoa contra quem o MP pretende exercer a ação penal deve ser constituída como arguido antes de ser proferido despacho de acusação sempre que for possível proceder à respetiva notificação” (idem). Ora, compulsado o processo, verifica-se apenas foi interrogado como arguido apenas aquele contra quem o Ministério Público exerceu a ação penal.

De facto, se a 10.01.2020 o Ministério Público (Procuradoria da República da Comarca  ….., DIAP, 1.ª secção ……) afirmou expressamente que

Nos autos entende-se que apenas se encontra fortemente indiciada a prática, por CC, de um crime de omissão de auxílio, previsto e punido pelo artigo 200.º, n.º 1, do Código Penal” (p. 1 do referido despacho)

e considerou que relativamente ao arguido AA se encontra “fortemente indiciada” a prática, em concurso real, de um crime de homicídio qualificado na forma tentada (nos termos dos arts. 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, al.s d) e e) e arts. 22.º, 23.º, e 73.º, todos do CP) e de um crime de furto qualificado (nos termos dos arts. 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1 al. d), ambos do CP),

quando apresenta a acusação o entendimento é outro, dado que apenas acusou um dos suspeitos.

Ora, de tudo isto necessariamente teremos de concluir que, num momento inicial, o Ministério Público continuou a dirigir a investigação contra ambos os suspeitos, pese embora, a final, tenha concluído de forma diferente na acusação. E sendo assim não podemos dizer que foi deliberadamente violado o princípio da legalidade da promoção processual, dado que apenas no final da fase de inquérito o Ministério Público teve outro entendimento.

Na verdade, aquando da acusação (a 14.07.2020), sem que haja qualquer referência ao arguido CC, apenas se imputa uma tentativa de um crime de homicídio qualificado (nos termos dos arts. 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, als. d) e e) e 22.º, 23.º e 73.º, todos do CP) e de um crime de furto qualificado (nos termos dos arts. 203.º e 204.º, n.º 1, ambos do CP) ao arguido AA. Verifica-se, pois, que relativamente ao suspeito CC o Ministério Publico, dono da ação penal, profere um despacho de arquivamento implícito.

“Com efeito, se, como julgamos, o inquérito se configura como a fase processual de “descoberta” — e, até mesmo, de eventual resolução — do conflito penal, então, enquanto fase de investigação por excelência, é aí que deveríamos aplicar as regras do efeito consumptivo — a decisão final do MP de acusar ou arquivar implica a presunção de que existiu uma investigação exaustiva, pelo que qualquer decisão final do MP precludirá qualquer conhecimento posterior quanto a aspectos que deviam ter sido conhecidos (no sentido de investigados) pelo MP, podendo, assim, existir uma espécie de arquivamento implícito quanto a todos aqueles factos que, não acusados, estejam lógica e naturalisticamente associados aos factos sujeitos a investigação e que se encontram expressamente valorados na decisão final do MP”[5].

O arquivamento implícito verificado, ainda que não permita saber quais as razões desta decisão pelo Ministério Público, constitui o exercício dos poderes concedidos ao Ministério Público nesta fase do processo. Até porque nunca o suspeito que não foi constituído arguido prestou declarações perante autoridade judiciária, tendo apenas prestado declarações numa fase embrionária da investigação (perante órgão de polícia criminal) quando dois dias antes os autos tinham sido abertos contra desconhecidos. Não existindo, pois, elementos nos autos que nos permitam concluir que houve uma abstenção indevida de procedimento criminal.

 Tendo em conta aquele arquivamento implícito, e em harmonia com o disposto no art. 272.º, n.º 1, do CPP, o Ministério Público apenas interrogou o único suspeito como arguido relativamente ao qual apresentou acusação (o arguido AA foi sujeito a interrogatório de arguido detido a 23.01.2020, tendo ficado a aguardar o decurso do processo em prisão preventiva desde essa data) e relativamente ao qual o Ministério Público promoveu a aplicação de medida de coação (cf. despacho de 23.01.2021); quanto ao outro suspeito, não o interrogou como arguido, pois não pretendia exercer a ação penal, tal como se comprovou pela acusação que formulou. E não pretendendo exercer a ação penal, não se vislumbra que estivéssemos perante uma daquelas situações que justificam esta obrigatoriedade de constituição de arguido antes da prolação da acusação.

Sabendo que a obrigatoriedade de interrogatório ao arguido pretende assegurar o direito de defesa antes do encerramento do inquérito pelo Ministério Público e permite que o arguido saiba de antemão quais os factos que lhe são imputados evitando-se “acusações surpresa”[6], nenhuma destas situações ocorria que justificasse a constituição como arguido do outro interveniente, dado que não iria ser deduzida acusação contra ele.

Acresce que "não se encontra consagrada uma prescrição legal que obrigue ao imediato interrogatório da pessoa determinada contra quem corre o inquérito”[7]. Não se trata, pois, de um procedimento automático, mas pressupõe “um juízo do MP sobre a existência de fundada suspeita legitimadora da eventualidade do visado poder ser visado pelo exercício da ação penal”[8]. E, acentuamos, trata-se de um juízo do Ministério Público, o único titular do inquérito e não do órgão de polícia criminal.

Significa isto que foi violado o disposto no art. 119.º, n.º 1, al. b), do CPP?

Não nos parece.

Na realidade, “não existe obstáculo legal ao arquivamento (…) sem prévia constituição como arguido, atenta a natureza teleologicamente vinculada do inquérito como atividade”[9], podendo a decisão final do inquérito ser impugnada pelas vias legalmente previstas se para tanto o interessado tiver legitimidade para o efeito.

Quando há arquivamento do inquérito, podemos impugnar esta decisão por uma de duas vias: ou nos termos do art. 278.º, do CPP, se suscita uma intervenção hierárquica, ou se requer a abertura de instrução, nos termos do art. 287.º, do CPP.

A intervenção hierárquica, nos termos do dispositivo referido, pode ser suscitada por iniciativa do imediato superior hierárquico do Ministério Público, ou a requerimento “do assistente ou do denunciante com a faculdade de se constituir assistente” (cf. art. 278.º, n.º 1, do CPP) — o que nos permite desde já dizer que o arguido AA não poderia, mesmo que logo se tivesse apercebido deste arquivamento implícito, suscitar esta intervenção hierárquica, uma vez que não é o assistente nem o denunciante com a faculdade de se constituir assistente.

E, nos termos do art. 287.º, do CPP, quanto aos factos pelos quais não foi deduzida qualquer acusação, os factos supostamente praticados pelo suspeito CC e relativamente aos quais entende o arguido que deveria ter havido acusação, também este arguido (AA) não poderia requerer a abertura de instrução. Isto porque, nos termos daquele normativo, o arguido apenas pode requerer a abertura de instrução relativamente aos factos pelos quais o Ministério Público tenha deduzido acusação [art. 287.º, n.º 1, al. a), do CPP] — ora se o Ministério Público não deduziu acusação quanto aos factos praticados pelo suspeito CC, nem mesmo este pode requerer a abertura de instrução (porque contra ele não foi deduzida qualquer acusação). Apenas poderia o assistente requerer a abertura de instrução quanto aos factos pelos quais não foi deduzida acusação, ou seja, os factos que supostamente teriam sido praticados pelo suspeito.

E ainda que se considere que, tendo havido acusação relativamente ao arguido AA pelos factos dos autos e sendo estes os mesmos em que teria colaborado o suspeito, o arguido AA poderia ter requerido abertura de instrução, então o que agora vem a ser alegado deveria ter sido alegado naquela ocasião, ou seja, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação — art. 287.º, n.º 1, do CPP. Porém, não nos parece que tal pudesse ser requerido por este arguido — tendo havido um arquivamento quanto aos factos supostamente praticados pelo suspeito, o arguido não poderia requerer a abertura de instrução, uma vez que em caso de não acusação, ou seja, em caso de arquivamento, apenas o assistente tem esta faculdade.

Mas, poderá o juiz alguma vez corrigir a atuação do Ministério Público na fase de inquérito, dado que a acusação ou não acusação constitui uma competência do titular da ação penal e do titular da fase de inquérito?

Não nos parece.

Na verdade, o nosso processo penal é constitucionalmente consagrado com um processo penal baseado no princípio da acusação, ou seja, a entidade que investiga e acusa é diferente da entidade que julga. E em cumprimento deste princípio, a eventual sindicância da acusação pelo magistrado judicial apenas ocorre quando haja uma instrução requerida por quem legalmente o possa fazer.

A partir do momento em que a instrução não foi requerida, o juiz está vinculado aos factos pelos quais o ou os arguidos forem acusados. Aliás, o objeto do processo é delimitado pela acusação (podendo eventualmente ser alargado ou modificado pelo despacho de pronúncia quando tenha ocorrido a instrução).

Significa assim que nunca a atividade do Ministério Público poderia ser sindicada?

A atividade do Ministério Público poderia ter sido sindicada através da intervenção hierárquica ou através da abertura da instrução, mas ninguém com competência para suscitar uma destas vias o fez. Pelo que ficou fechada a perseguição criminal pelos factos julgados nos autos em atenção ao princípio da consunção. Apenas por meio de um recurso de revisão (se algum dos pressupostos do disposto no art. 449.º, do CPP, estiver preenchido) poderá haver alguma modificação da decisão penal quanto àquele suspeito.

Por fim, cumpre esclarecer que, ainda que pudéssemos concluir, por absurdo, que o suspeito CC deveria ter sido constituído arguido e interrogado, certo é que a falta de interrogatório de arguido (e note-se que o suspeito em causa nunca foi constituído arguido) constitui uma nulidade dependente de arguição[10]; nulidade esta que deveria ter sido arguida pelo interessado, o único com legitimidade, ou seja, no caso o suspeito que afinal não foi constituído arguido e, portanto, não viu qualquer ação penal a correr contra ele, não tendo, pois, qualquer interesse em a arguir. E ainda que, por absurdo, pudéssemos considerar que o arguido AA agora recorrente poderia ter arguido tal nulidade, não o tendo feito em tempo, encontra-se sanada (ou seja, no prazo legal após a notificação da acusação, onde expressamente pode constatar que os factos apenas a ele são imputados).

Por fim, não estamos também perante uma nulidade insanável nos termos do art. 119.º, al. b), do CPP, uma vez que “o âmbito de aplicação desta norma esgota-se nesta hipótese paradigmática — prossecução processual sem prévia acusação do MP (…) ou, sendo caso disso, do assistente, não incluindo (…) os casos em que o MP erradamente não deduz acusação, proferindo um arquivamento expresso (arquiva em vez de acusar) ou implícito (acusa mas omite outros crimes (…)). Nestes casos, de errada leitura dos indícios recolhidos ou da sua integral qualificação jurídica, o controlo judicial deverá ser suscitado pelo assistente (art. 287/1/b), sob pena de, não o fazendo, se operar — nessa parte — a consunção da ação penal (…): apesar de tudo, o MP acabou por exercer a ação penal. Aliás, o que está em causa não é, sequer, um erro no rito processual suscetível de gerar invalidade, mas um erro de apreciação dos indícios ou da sua qualificação jurídica. Ele pode/deve ser impugnado, mas não é causa de invalidade”[11]. Assim sendo, a não acusação ou um arquivamento ainda que implícito dos factos que, segundo outros sujeitos processuais, seriam bastantes para a prolação de uma acusação (contra o outro suspeito) constitui uma eventual errada leitura ou qualificação dos indícios cujo controlo judicial deveria ter sido suscitado em devido tempo e por quem tinha legitimidade, quando o não foi. Não estamos, pois, perante uma ausência de ação penal, mas perante uma decisão (arquivamento implícito) que não foi devidamente sindicada em devido tempo.

Pelo que, improcede nesta parte o recurso interposto.

2.2. O recorrente alega ainda nulidade por violação do direito a um julgamento justo e violação do seu direito de defesa (nos termos do art. 61.º, n.º 1, al. f), do CPP e arts. 20.º e 32.º, da CRP) por ter sido vedada a possibilidade de reunião entre o arguido e o defensor antes da audiência de discussão e julgamento e por ter sido realizada a audiência sem a presença física do arguido quando este se opôs expressamente.

2.2.1. Comecemos por analisar a validade (ou não) do julgamento realizado.

Compulsados os autos, verifica-se que o julgamento se iniciou no dia 21.10.2021 (tendo sido depois realizadas outras sessões). Na ata daquela primeira sessão, consta o seguinte:

«(...) PRESENTES:

Arguido: AA, presente através de videoconferência a partir do EP  ….., onde se encontra preso preventivamente

(...)

De seguida, a Mm.ª Juíza Presidente perguntou aos presentes se estavam de acordo quanto à presença do arguido por meio de videoconferência, tendo todos assentido, com excepção do arguido, cujo Ilustre Mandatário pediu a palavra e sendo-lha concedida pela Mm.ª Juíza, pelo mesmo foi dito:

"O arguido viu-se confrontado com o isolamento profilático em junção da infecção de outros reclusos do mesmo bloco do estabelecimento prisional, situação que o impede de comparecer pessoalmente ao julgamento que hoje se inicia.

Em função das mesmas circunstâncias não pôde o arguido reunir de forma presencial com os seus mandatários antes da audiência de julgamento, sendo impossível preparar o mesmo em contactos telefónicos com o limite máximo de 5 minutos.

Acresce que sem o referido contacto entre arguido e advogado nem sequer é possível conferenciar sobre o meio de prova já requerido de acesso ao telemóvel do arguido, meio de prova cuja realização condiciona o questionário das restantes testemunhas, em particular da testemunha CC.

Assim, sendo a circunstância da impossibilidade de comparência pessoal do arguido um facto involuntário, para o qual o arguido em nada contribuiu, sendo a realização do julgamento do arguido na sua ausência um acto que só pode acontecer por iniciativa do Tribunal em virtude de ausência do arguido ou por iniciativa e consentimento do próprio arguido, circunstâncias que não se verificam e encontrando-se limitada a defesa - ainda que por factos alheios ao Tribunal - de comunicar directamente e em privado com o arguido, requer-se o adiamento da presente diligência, por impossibilidade legal da sua realização, implicando a audiência por via telemática a nulidade dos actos praticados - ao abrigo do disposto no artº. 119º al. c) do CPP -, nulidade que expressamente se invoca.

No que concerne à inquirição das testemunhas sem que a defesa tenha contactado o arguido de forma privada, a invalidade dos actos subsequentes e a irregularidade que também se invoca, ao abrigo do disposto no artº. 61º, nº 1 al. f) e 123.º do CPP."

*

Usando da palavra o Digno Magistrado do MºPº, disse:

"Afigurando-se ao MºPº que estão reunidas as condições técnicas para a realização do julgamento, uma vez que o arguido não estando presente fisicamente como constitui regra no âmbito do CPP, pode acompanhar o julgamento e presenciar todos os actos aqui praticados, à distância, através dos meios disponibilizados pelo Tribunal e pelo estabelecimento prisional onde se encontra. Pelo que, a ser realizado o julgamento nestas condições, não têm aplicação as normas referentes à ausência do arguido.

Pelo que se afigura que não ocorre a nulidade suscitada.

No que tange à alegada circunstância de o arguido não ter podido conferenciar com o seu ilustre defensor em virtude de nos últimos tempos se encontrar confinado, afigura-se ao MºPº que se trata de uma circunstância relevante que não pode deixar de ser ponderada pelo Tribunal, confiando o MºPº que V.Exªs. ponderarão e tomarão uma decisão justa."

Pela ilustre mandatária do demandante foi dito nada ter a opor às posições tomadas

pelos restantes intervenientes processuais.

-

De imediato, a Mm.ª Juíza determinou a interrupção dos trabalhos por breves 5mn a

fim de o colectivo deliberar.

-

Regressados todos os intervenientes à sala de audiências,

De seguida a Mmª. Juiz proferiu o seguinte:

DESPACHO

" Não obstante as razões invocadas pela defesa com vista a obstar ao início da audiência de julgamento não se vê que as mesmas colham, pelas seguintes ordens de razões:

Compulsados os autos constata-se que o arguido tem mandatário constituído desde o dia 22-01-2020, conforme procuração junta aos autos a fls. 369;

Verifica-se ainda que tal mandato foi substabelecido aos ilustres mandatários ora presentes, por instrumento de 27-02-2020 que consta de fls.521.

Já depois disso foi deduzida a acusação, conforme despacho de 14-07-2020, constante de fls.647 a 652, sendo que a mesma foi já notificada aos actuais mandatários e bem assim, toda a demais tramitação subsequente, designadamente, o despacho de recebimento da acusação e PIC, sendo já os ilustres mandatários com substabelecimento que apresentaram a contestação atravessada nos autos em 06-10-2020, sendo que aí o arguido traz aos autos a sua versão do sucedido.

Entendemos, por isso, que já então e, desde pelo menos o momento em que foram substabelecidos, os ilustres mandatários tiveram a possibilidade de conferenciar com o seu constituinte e preparar a defesa. Tanto assim que já na contestação solicitam o meio de prova e que se prende com o video, alegadamente, constante da memória do telemóvel apreendido nos autos.

Não se vê, por isso, que a circunstância de o arguido se encontrar em isolamento profilático nos últimos dias, possa de alguma forma coartar o direito de defesa ou dos ilustres mandatários conferenciarem com o seu constituinte, sendo certo que se assim o pretenderem e entenderem, o Tribunal permitirá que os mesmos possam fazê-lo em momento anterior ao inicio da diligência, concedendo para o efeito cerca de um quarto de hora, aproveitando os meios técnicos e a presença do arguido por meio de vídeo chamada, aproveitando ainda a circunstância, desde logo, para solicitarem ao arguido, assim o entendendo e querendo, o PIN de desbloqueio do telemóvel por forma a que possa ser apreciado o seu requerimento de prova.

Não se vê, por isso, que a circunstância do arguido estar presente através de meio de comunicação à distância constitua qualquer impedimento ao início da presente audiência de julgamento, cujo início, por isso, se determina."

-

Dada a palavra ao Il. mandatário do arguido, pelo mesmo foi dito que pretendia prevalecer-se dos 15 mn a que se refere o despacho anterior para conferenciar com o seu constituinte, através dos meios de comunicação à distância disponibilizados pelo Tribunal.

(...)

*

Imediatamente a seguir, pela Mm.ª Juíza Presidente foi declarada aberta a audiência.

Após ter feito uma exposição sucinta sobre o objeto do processo, nos termos do art.º 339.º do C.P.P., o Mmª) Juiz Presidente deu a palavra ao Digno Magistrado do M.º Público e aos ilustre(s) mandatário(s) presente(s), para cada um deles indicar, se assim o desejarem, sumariamente, os factos que se propõem provar, não tendo nenhum deles usado dessa prerrogativa.

Em seguida, a Mmª Juiz Presidente advertiu o arguido de que é obrigado a responder com verdade às perguntas sobre a sua identidade, sob pena de poder incorrer em responsabilidade criminal e informou-o de que tem o direito de prestar declarações em qualquer momento da audiência desde que elas se refiram ao objeto do processo, sem que no entanto a tal seja obrigado e sem que o seu silêncio o possa desfavorecer – art.ºs 342º e 343º, n.º 1, ambos do C. P. Penal, passando de imediato à produção de prova:

ARGUIDO

AA, ….., filho de GG e de HH, solteiro, nascido em 14-06-1999, natural do concelho  …., freguesia d….. [….], residente na …., em …., actualmente detido no EP …...

Pelo arguido foi dito que prescinde da leitura da acusação e que não deseja prestar declarações, nas circunstâncias em que se encontra, ou seja, através de videoconferência, pretendendo fazê-lo presencialmente.

A identificação do arguido foi gravada e encontra-se disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignado-se que o seu início ocorreu pelas 15 horas e 40 minutos e o seu termo pelas 15 horas e 44 minutos.

(...)».

E a audiência prosseguiu no mesmo dia e em outros.

Vejamos.

Nos termos do art. 61.º, n.º 1, al. a), do CPP, o arguido goza do direito de “estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito”, sendo que, em audiência de discussão e julgamento, nos termos do art. 332.º, n.º 1, do CPP, “é obrigatória a presença do arguido na audiência, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 333.º e nos n.ºs 1 e 2 do art. 334.º” — isto é, nos casos de “falta (..) do arguido notificado para a audiência”, e nos casos de “ausência do arguido”.

Ora, os casos abarcados pelo disposto no art. 334.º, n.º 1, do CPP, referem-se às situações em que o arguido falta porque não pode ser notificado ou porque faltou injustificadamente, o que não é o caso. Já no n.º 2 do mesmo dispositivo estão previstas as situações em que o arguido está impossibilitado de comparecer designadamente por doença grave — ora, a partir da leitura da ata verifica-se não que o arguido estivesse doente, mas sim que estaria em isolamento profilático por ter tido um contacto de risco com reclusos portadores de infeção (COVID-19) provocada pelo coronavírus SARS-COV-2 que se encontravam no mesmo bloco do Estabelecimento Prisional, sendo que este isolamento é determinado pelas Autoridades de Saúde. Mas, ainda que estivesse doente, seria o arguido que tinha a possibilidade de “requerer ou consentir que a audiência tenha lugar na sua ausência”, o que não aconteceu.

Assim sendo, não está verificada nenhuma das condições previstas nos n.ºs 1 e 2 do art. 334.º, do CPP, que permitira a realização da audiência sem a presença obrigatória do arguido.

Mas, também nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art. 333.º, do CPP, haverá situações em que a audiência se poderá realizar sem a presença do arguido — são estes os casos em que, faltando o arguido, o juiz efetua as diligências necessárias para a sua comparência. Ora, no presente caso o arguido apresentou-se à chamada do juiz através dos meios que lhe foram disponibilizados para tanto, pelo que não poderemos considerar estarmos perante uma falta. Porém, tendo em conta que as regras processuais penais determinam a obrigatoriedade da sua presença física, o arguido manifestou expressamente esse desejo, não só quando lhe foi concedida a palavra, como anteriormente através do seu mandatário. Mas também, não se podendo considerar que houve falta do arguido, não é aplicável o disposto na 2.ª parte do art. 333.º, n.º 1, do CPP — caso em que se permite que o juiz (depois de todos os esforços no sentido de fazer comparecer o arguido perante o Tribunal) não adie a audiência quando considere que não é “absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material” a presença do arguido desde o início da audiência. Ou seja, é pressuposto da possibilidade de o juiz manter a audiência a ocorrência de falta do arguido, o que não sucedeu. Acresce referir que, não se podendo considerar que houve falta do arguido, também não se tem que questionar se esta falta teve como causa os impedimentos enunciados no art. 117.º, n.ºs 2 a 4, do CPP.

Para concluir, não estamos no caso dos presentes autos perante nenhuma das circunstâncias previstas no CPP que permitem a realização da audiência sem a presença do arguido. Pelo que, neste caso era obrigatória a presença do arguido. Na verdade, esta imposição constitui não só uma salvaguarda do direito de defesa do arguido, mas também do contraditório e da possibilidade de o arguido poder prestar declarações em qualquer momento da audiência[12] (cf. art. 343.º, n.º 1, do CPP). Além disto, “a presença do arguido na audiência de discussão e julgamento não é (...) tão só imposta por exigência de um direito de defesa corolário do princípio do contraditório e, portanto, por um mero interesse do arguido; impõe-na, antes, a própria causa pública”[13].

Poder-se-á perguntar: mas estando assegurada a participação do arguido na audiência através do sistema de videoconferência, não será o bastante?

Em primeiro lugar, deve salientar-se que as normas processuais penais nasceram num momento em que o uso dos novos meios de comunicação à distância não estavam vulgarizados e massificados, pelo que se deve interpretar aquelas normas como referindo-se à presença física em tribunal do arguido aquando da audiência de discussão e julgamento. E mesmo uma interpretação atualista nos impõe o mesmo entendimento. Isto porque, no âmbito da pandemia provocada pela COVID que se viveu (vive?) desde março de 2019, o legislador sentiu necessidade de criar regras próprias para obviar aos inconvenientes comunitários que uma completa paralisação da justiça provocaria na sociedade e, em particular, nos arguidos privados da liberdade. E para tanto foi publicada a Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, que veio estabelecer regras próprias, nomeadamente, em matéria de audiência de discussão e julgamento nos casos de processos urgentes, ou seja, nos processos onde a realização dos atos processuais não está restrita aos dias úteis, como os atos processuais relativos a arguidos presos, como era o presente caso (cf. art. 103.º, n.º 1 e 2, do CPP).

Ora, nos termos do art. 7.º, da Lei n.º 1-A/ 2020, que esteve em vigor até à sua revogação pelo art. 8.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio (que entrou em vigor quinto dia seguinte ao da sua publicação — art. 10.º), determinava-se que

7 - Os processos urgentes continuam a ser tramitados, sem suspensão ou interrupção de prazos, atos ou diligências, observando-se quanto a estes o seguinte: a) Nas diligências que requeiram a presença física das partes, dos seus mandatários ou de outros intervenientes processuais, a prática de quaisquer atos processuais e procedimentais realiza-se através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente[14]/[15].

Porém, com a entrada em vigor da Lei n.º 16/2020 em junho de 2020, deixou de vigorar esta norma que expressamente foi revogada.

Em sua substituição foi aditada (pelo art. 2.º da Lei n.º 16/2020) o art. 6.º-A, à Lei n.º 1-A/2020[16], segundo o qual

«1 - No decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, as diligências a realizar no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal regem-se pelo regime excecional e transitório previsto no presente artigo.

2 - As audiências de discussão e julgamento, bem como outras diligências que importem inquirição de testemunhas, realizam-se:

a) Presencialmente e com a observância do limite máximo de pessoas e demais regras de segurança, de higiene e sanitárias definidas pela Direção-Geral da Saúde (DGS); ou

b) Através de meios de comunicação à distância adequados, nomeadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente, quando não puderem ser feitas nos termos da alínea anterior e se for possível e adequado, designadamente se não causar prejuízo aos fins da realização da justiça, embora a prestação de declarações do arguido ou de depoimento das testemunhas ou de parte deva sempre ser feita num tribunal, salvo acordo das partes em sentido contrário ou verificando-se uma das situações referidas no n.º 4. [[17]/[18]]

4 - Em qualquer das diligências previstas nos n.º 2 e 3, as partes, os seus mandatários ou outros intervenientes processuais que, comprovadamente, sejam maiores de 70 anos, imunodeprimidos ou portadores de doença crónica que, de acordo com as orientações da autoridade de saúde, devam ser considerados de risco, não têm obrigatoriedade de se deslocar a um tribunal, devendo, em caso de efetivação do direito de não deslocação, a respetiva inquirição ou acompanhamento da diligência realizar-se através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente, a partir do seu domicílio legal ou profissional.[[19]]

5 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, é garantida ao arguido a presença no debate instrutório e na sessão de julgamento quando tiver lugar a prestação de declarações do arguido ou coarguido e o depoimento de testemunhas(sublinhados nossos).

Com esta norma, a regra passou a ser, novamente, a presença física dos arguidos na audiência, e mesmo que seja admitida a utilização de meios de comunicação à distância [nos termos do art. 6.º-A, n.º 2, al. b)], tal não pode ocorrer aquando da prestação de declarações do arguido ou de depoimento das testemunhas, salvo acordo dos sujeitos processuais. Ora, não foi o que ocorreu: não só o arguido não pôde estar presente, como não aceitou a realização por videoconferência.

Na sessão de 21.10.2020 o arguido não prestou declarações porque, disse-o expressamente, queria-o fazer fisicamente. Mas, além disto, a audiência prosseguiu com inquirição do demandante/ofendido, com o depoimento de uma testemunha arrolada pelo Ministério Público.

Porém, na sessão de 05.11.2020, o arguido já esteve presente, prestou declarações e foi mesmo confrontado com as declarações que havia prestado aquando do 1.º interrogatório judicial de arguido detido; neste dia não foram interrogadas testemunhas. Nas sessões seguintes (a 12 e 19 de novembro e a 2 e 16 de dezembro — nesta última foi declarada finda a produção de prova e foram proferidas as alegações orais) apenas se refere que o arguido esteve presente. Mas, na sessão de 9 de dezembro o arguido não esteve novamente presente, tendo a Meritíssima Juíza proferido o seguinte despacho:

«Uma vez que o arguido AA não se encontra na presente audiência por facto que não lhe é imputável, atenta a informação prestada pelo Estabelecimento Prisional  ….., e face aos condicionalismos de que o Tribunal foi agora informado, não se vê ser possível a continuação da presente audiência e considerando bem assim que se encontra agendada para as 16:30 horas, do dia de hoje, a continuação da audiência de discussão e julgamento nos autos de Processo Comum Colectivo no 5/14……, transfere-se a continuação da presente audiência para o próximo dia 16 de Dezembro de 2020, pelas 09:45 horas (data aprazada com a anuência de todos os intervenientes).»

Este despacho por si só demonstra a necessidade de o arguido estar presente no decurso da audiência.

Para além disto, o facto de o arguido ter estado presente em outra sessão de julgamento e ter prestado declarações, não colmata a lacuna resultante da primeira audiência onde, tendo havido declarações do ofendido e de testemunhas, não esteve presente; ou seja, ainda que possamos dizer que o arguido assistiu, resta a dúvida em saber se, na verdade, o direito a prestar declarações a qualquer momento poderia ter sido exercido quando expressamente disse que não prestava declarações naqueles termos. O direito a prestar declarações em qualquer momento da audiência foi limitado durante toda aquela sessão.

Acresce referir que este último despacho referido se encontra em linha com o determinado no art. 14.º, n.ºs 1 e 2[20], do Decreto- Lei n.º 10-A/2020, de 13.03 (alterado pelo art. 4.º da Lei n.º 16/2020, de 29.05, e em vigor a partir de 03.06.2020, ou seja, já em vigor aquando da primeira sessão da audiência de discussão e julgamento) e que expressamente determinava o justo impedimento dos que se encontravam em isolamento profilático permitindo o adiamento das diligências nestas situações (ou fundamento de justificação de não comparecimento, porém seria necessário que o arguido não tivesse estado presente, ou seja, tivesse faltado, caso em que o seu isolamento profilático era fundamento bastante para o justo impedimento; porém, no presente caso, o arguido queria estar presente fisicamente, pelo que apenas se impunha o adiamento das diligências, maxime da audiência de  julgamento, dado que a lei no art. 6.º-A, já citado, afirmava expressamente que as audiências de discussão e julgamento, onde fossem prestadas declarações do arguido ou depoimentos de testemunhas, deviam ser realizadas presencialmente).

O arguido esteve também presente na última sessão do dia 08.01.2021 onde, nomeadamente, se procedeu à comunicação de uma alteração não substancial dos factos e à leitura do acórdão.

De tudo o exposto verificamos que o arguido esteve presente nas sessões seguintes à primeira onde realmente apenas assistiu aos trabalhos por videoconferência. E naquela sessão de outubro de 2020 houve lugar não só à apresentação do objeto do processo como também à obtenção de depoimentos do ofendido e de uma testemunha.

Ora, o Código de Processo Penal é claro quanto à obrigatoriedade da presença física do arguido, sem que na altura fossem aplicáveis as regras excecionais que surgiram por força da pandemia; até porque estas mesmas regras haviam sido modificadas no sentido de reforçar a necessidade de presença física do arguido na audiência de discussão e julgamento quando haja depoimentos de testemunhas[21] (cf. art. 6.º-A, n.º 5 da Lei n.º 1-A/2020, na redação à época). E por isso, já depois da entrada em vigor deste art. 6.º-A, o legislador permitiu, de forma clara, o adiamento de diligências em casos de isolamento profilático (cf. art. 14.º, do Dec-Lei n.º 10-A/2020, transcrito supra). E não se diga que, permitindo o art. 6.º-A a realização da audiência presencialmente ou com o recurso a meios de comunicação à distância, embora tenham as declarações dos arguidos e das testemunhas ser realizadas presencialmente, se está a admitir que a única sessão em que o arguido teria que estar fisicamente no Tribunal seria aquela em que prestaria declarações. Na verdade, sabendo que as normas processuais penais dão ao arguido o direito a prestar declarações em qualquer momento da audiência, necessariamente se impõe que esteja sempre presente (em todas as sessões) para, querendo, poder prestar declarações.

Sendo assim, atento o disposto no art. 332.º, n.º 1 e 119.º, al. c), ambos do CPP, estamos perante uma nulidade insanável que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento, com os efeitos decorrentes do disposto no art. 122.º, do CPP.

2.2.2. Adicionalmente, cumpre ainda referir que o direito de defesa do arguido, na parte em que lhe concede a prerrogativa de “ser assistido por defensor (...) e, quando detido, comunicar, mesmo em privado” [art. 61.º, n.º 1, al. f), do CPP] com o defensor, foi desproporcionalmente limitada nos presentes autos.

O arguido encontrava-se em isolamento profilático e, por isso, foi impedido de ser contactado pelos seus mandatários. Este isolamento mantinha-se ainda na primeira sessão do julgamento, e por isso o mandatário, em ata (cf. ata de 21.10.2020), arguiu a invalidade.  Todavia, a Meritíssima Juíza (pese embora o Magistrado do Ministério Público tenha referido expressamente que “No que tange à alegada circunstância de o arguido não ter podido conferenciar com o seu ilustre defensor em virtude de nos últimos tempos se encontrar confinado, afigura-se ao MºPº que se trata de uma circunstância relevante que não pode deixar de ser ponderada pelo Tribunal, confiando o MºPº que V.Exªs. ponderarão e tomarão uma decisão justa.” — cf. ata citada) considerou que, estando os mandatários constituídos desde fevereiro de 2020 e tendo o arguido apresentado contestação, “a circunstância de o arguido se encontrar em isolamento profilático nos últimos dias, possa de alguma forma coartar o direito de defesa ou dos ilustres mandatários conferenciarem com o seu constituinte, sendo certo que se assim o pretenderem e entenderem, o Tribunal permitirá que os mesmos possam fazê-lo em momento anterior ao inicio da diligência, concedendo para o efeito cerca de um quarto de hora, aproveitando os meios técnicos e a presença do arguido por meio de video chamada” (cf. ata citada supra). E neste seguimento o mandatário usou os 15 minutos concedidos para conferenciar por videochamada com o arguido. Ainda que pudéssemos dizer que, de algum modo, se tal contacto foi realizado numa sala reservada [quer do lado do Ilustre Mandatário, quer do lado do arguido, para que assim se mantenha a comunicação em privado, tal com se impõe no art. 61.º, n.º 1, al. f), do CPP] a limitação do direito concedido ao arguido foi minorada, não se pode concluir que esta faculdade por si só tenha salvaguardado aquele direito. Na verdade, num caso em que está em causa a eventualidade de uma condenação por um crime, e por um crime grave, uma mera conversa de 15 minutos para preparar o julgamento onde intervieram diversas testemunhas não parece ser suficiente.

Porém, o despacho que decidiu a invalidade e concedeu a possibilidade de uma videoconferência entre o mandatário e o arguido por um período de 15 minutos foi também objeto de recurso para o Tribunal da Relação. Sendo assim, e porque se trata de um recurso de uma decisão prolatada num despacho do qual se recorreu para o Tribunal da Relação e esta decidiu (considerando improcedente o recurso — cf. p. 45-47 do ac. recorrido), nesta parte a decisão do Tribunal da Relação é irrecorrível, por força do disposto nos arts432.º, n.º 1 al., b e 400.º, n.º 1, al. c), do CPP.

Pelo exposto fica prejudicado o conhecimento das restantes questões.

III

Conclusão

Nos termos acima expostos, acordam, em conferência na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em declarar oficiosamente a nulidade prevista no art. 119.º, al. c), do CPP, determinando a repetição de todos os atos a partir da abertura da audiência.

Não são devidas custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 11 de novembro de 2021

Os Juízes Conselheiros,

     

Helena MoniZ (Relatora)                                   

Eduardo Loureiro

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[1] Paulo Dá Mesquita, art. 58.º/ 10, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal tomo I, Coimbra: Almedina, 2019, p. 625; coisa diferente é quando exista fundada suspeita e haja prestação de declarações por parte daquele em relação ao qual haja aquela suspeição fundada.
[2] No sentido de que quando são prestadas declarações em processo penal se impõe a constituição como arguido quando já exista fundada suspeita da prática do crime por aquele que presta depoimento — Paulo Dá Mesquita, art. 272.º/ § 18, tomo III, p. 984-985.
[3] O aqui recorrente foi sujeito a interrogatório de arguido detido a 23.01.2020, e onde lhe foi aplicada a medida de coação de termo de identidade e residência e a de prisão preventiva.
[4] cf. Paulo Dá Mesquita citando acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, art. 58.º/ 110, pp. 626, supra citado.
[5] Damião da Cunha, Ne bis in idem e exercício da acção penal, Que futuro para o Direito Processual Penal?, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 553 e ss, em particular, p. 571.
[6] Assim Paulo Dá Mesquita, art. 272.º, § 6, Comentário… cit. supra, tomo III; Coimbra: Almedina, 2021, p. 979.
[7] Paulo Dá Mesquita, ob. cit supra, art. 272.º/ § 15, p. 983.
[8] Paulo Dá Mesquita, ob. cit supra, art. 272.º/ § 7, p. 979.
[9] Paulo Dá Mesquita, ob. e loc cit, art. 272.º/ § 9, p. 980.
[10] Cf. acórdão de fixação de jurisprudência n.º AFJ n.º 1/2006, de 23.11.2005; em sentido idêntico, Paulo Dá Mesquita, art. 272.º/ § 20, ob. cit., p. 985.
[11] Conde Correia, art. 119.º/ § 24, Comentário Judiciário… cit supra, Tomo I, p. 1233; já assim antes o mesmo autor defendeu que “A indicação dos factos tem que ser exaustiva, tem de esgotar o objecto do processo. Como refere Marques Ferreira, por força dos princípios da indivisibilidade e da consunção, «não será objecto do processo só o que consta do despacho de acusação… mas antes tudo o que, para além do factualismo versado naquele despacho, lá devesse constar e não consta». (…) Se [uma determinada] qualificação/factos não forem incluídos na acusação jamais podem ser depois considerados. No fundo, a omissão dessa qualificação ou desses factos acaba por corresponder a uma espécie de arquivamento implícito. Os direitos de defesa do arguido não podem ser prejudicados pelo simples facto de o Ministério Público não ter investigado camo devia ou, apesar de ter investigado, não ter considerado no devido momento (acusação) os factos que apurou” — Questões práticas relativas ao arquivamento e à acusação e à sua impugnação, Porto: Publicações Universidade Católica, 2007, p. 114-115.
[12] Em sentido idêntico, cf. Figueiredo Dias/Nuno Brandão, Sujeitos processuais penais: o arguido e o defensor, Coimbra: 2020, p. 34 (disponível aqui: https://apps.uc.pt/mypage/files/nbrandao/2226); já antes em sentido similar, referindo-se ao direito de presença Figueiredo Dias considerou “quer-se, com ele [o direito de presença], dar ao arguido a mais ampla possibilidade de tomar posição, a todo o momento sobre o material que possa ser feito valer processualmente contra si” — Direito Processual Penal, Coimbra: Coimbra Editora, 1974, p. 432, itálico nosso; cf. também, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª ed., Lisboa: UCP, 2011, art. 343.º/ § 2, p. 885 (admitindo até a possibilidade, excecional, de interrupção de um depoimento para uso da palavra pelo arguido).
[13] Eduardo Correia, Breves reflexões sobre a necessidade de reforma do Código de Processo Penal, relativamente a réus presentes, ausentes e contumazes, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 110 (1977-1978), p. 100, igualmente citado em Conde Correia, Comentário Judiciário.... cit., tomo I, art. 119/ § 34, p. 1236.
[14] Este dispositivo aplicava-se igualmente aos casos de julgamento de presos, quer por força das regras processuais penais que entende como processos urgentes aqueles em que há arguidos presos, quer por força do n.º 8, al. c) do mesmo dispositivo citado em texto [“8 - Consideram-se também urgentes, para o efeito referido no número anterior: (...) C) (...) julgamentos de arguidos presos.”].
[15] No seguimento desta legislação o CSM apresentou a divulgação n.º 81/2020, de 20.03.2020, nos seguintes termos: “Considerando: (...) 6) A Lei nº. 1-A/2020, de 19/03/2020, estabelece medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID- 19, cujo artigo 7.º regula prazos e diligências processuais, no âmbito dos processos e procedimentos, que corram termos, entre outros, nos tribunais judiciais, que haverá que ter em consideração; o CSM adopta as seguintes medidas excepcionais de gestão: (...) 1 - Nos Tribunais Judiciais de 1a Instância deverão ser realizados os actos processuais e diligências nos quais estejam em causa direitos fundamentais, sem prejuízo da possibilidade de realização do demais serviço a cargo dos Srs. Juízes (as) que possa ser assegurado remotamente, tais como: (...) d) - Diligências/julgamentos de arguidos detidos ou presos, em respeito pelas recomendações das autoridades de saúde, ou indispensáveis a garantir a liberdade das pessoas, ali se incluindo o julgamento de arguidos privados da liberdade e mediante um juízo de proporcionalidade que tenha em linha de conta o tempo de privação da liberdade, os prazos de duração da medida de coacção aplicada e as necessidades de segurança sanitária; (...) 2. Sem prejuízo das situações em que a audição presencial de pessoas ou a produção de meios de prova se revele essencial para a descoberta da verdade material ou a justa composição do litígio, todas essas diligências deverão ser asseguradas, preferencialmente por videoconferência, videochamada ou outro meio de comunicação à distância, pelos respectivos Senhores Juízes titulares ou, em caso de impedimento, de acordo com as regras inerentes às substituições legais em vigor em cada comarca.” (In https://www.csm.org.pt/wp-content/uploads/2020/03/Div.-81-2020-Estado-de-Emerg%C3%AAncia.pdf). Trata-se, no entanto, de regulamentação válida enquanto se mantinha em vigor, nomeadamente, o disposto no art. 7.º, da Lei n.º 1-A/20020, ao qual expressamente se refere.
[16] Este dispositivo vigorou até à sua revogação pela Lei n.º 4-B/2021, de 01.02 (que o revogou expressamente no art. 3.º), que entrou em vigor a 02.02.2021; todavia o art. 6.º-A introduzido pela Lei n.º 16/2020 estava em vigor aquando das diversas sessões do julgamento realizado nestes autos.
[17] Este dispositivo é claro no sentido de admissibilidade da realização de audiências de discussão e julgamento ainda que haja prestação de declarações pelo arguido ou de depoimentos de testemunhas nos casos em que haja “acordo das partes”, ou seja, acordo dos sujeitos processuais envolvidos, o que não foi o caso.
[18] O n.º 3 deste dispositivo («Nas demais diligências que requeiram a presença física das partes, dos seus mandatários ou de outros intervenientes processuais, a prática de quaisquer outros atos processuais e procedimentais realiza-se: a) Através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente; ou b) Presencialmente, quando não puderem ser feitas nos termos da alínea anterior, e com a observância do limite máximo de pessoas e demais regras de segurança, higiene e sanitárias definidas pela DGS.»)  admitia que outras diligências pudessem ser realizadas através de meios de comunicação à distância, mas refere-se às “demais diligências”, ou seja, outras diligências que não as contempladas no anterior n.º 2 onde expressamente são referidas as audiências de discussão e julgamento.
[19] No âmbito desta disposição poder-se-ia, numa certa interpretação, integrar o preso sujeito a isolamento profilático, porém o que a norma permite é que as pessoas aqui referidas possam não ser obrigadas a estar presencialmente em Tribunal podendo assistir às diligências por meios de comunicação à distância; todavia, não é o caso do arguido destes autos, que expressamente refere que quer ir fisicamente ao Tribunal. Não podendo ir no dia marcado havia que adiar a audiência para um momento em que o pudesse fazer.
[20] «1 - A declaração emitida por autoridade de saúde a favor de sujeito processual, parte, seus representantes ou mandatários, que ateste a necessidade de um período de isolamento destes por eventual risco de contágio do COVID-19 considera-se, para todos os efeitos, fundamento para a alegação do justo impedimento à prática de atos processuais e procedimentais que devam ser praticados presencialmente no âmbito de processos, procedimentos, atos e diligências que corram os seus termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios, cartórios notariais, conservatórias, serviços e entidades administrativas, no âmbito de procedimentos contraordenacionais, respetivos atos e diligências e no âmbito de procedimentos, atos e diligências regulados pelo Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, e demais legislação administrativa. 2 - A declaração referida no número anterior constitui, igualmente, fundamento de justificação de não comparecimento em qualquer diligência processual ou procedimental, bem como do seu adiamento, no âmbito dos processos e procedimentos referidos no número anterior.»
[21] Em sentido idêntico, José Joaquim Fernandes Oliveira Martins, (De novo) a Lei n.º 1-A/2020 — uma terceira leitura (talvez final?), Julgar Online, maio de 2020, p. 18:
Isto é (...), se o arguido assim o quiser e independentemente da forma como estiver a ser realizado o debate instrutório ou o julgamento (presencial, total ou parcialmente à distância) nos termos dos “números anteriores”, o arguido poderá estar presente fisicamente no tribunal onde se realizam estas duas diligências processuais (debate instrutório e audiência de julgamento ou sua sessão, dado que são as duas diligências mais importantes da fase de instrução e da fase de julgamento e com as quais terminam essas duas fases processuais), quando o mesmo ou outro coarguido prestarem declarações ou forem inquiridas testemunhas.
Como se alcança, face aos interesses em causa nos processos criminais, o legislador pretende que o arguido possa, se assim o entender, ser ouvido presencialmente nestas diligências ou estar presente no próprio tribunal quando forem prestadas outras declarações/testemunhos, podendo mais facilmente contraditá-las e comunicar até com o seu defensor para se defender das mesmas ou ser ouvido presencialmente se assim o quiser.” (in  http://julgar.pt/wp-content/uploads/2020/05/20200529-JULGAR-De-novo-a-Lei-1-A2020-uma-terceira-leitura-talvez-final-José-Joaquim-Martins-v2.pdf; cf. também p. 26, onde expressamente se refere que quanto à “Prestação de declarações do arguido, depoimento/declarações de parte ou depoimento de testemunhas”, estas devem ser presencialmente, a não ser que haja acordo dos sujeitos processuais para a sua prestação de outro modo).