Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
19/15.7T9AGN.P1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: SÉNIO ALVES
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
VÍCIOS DO ART.º 410 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
REJEIÇÃO PARCIAL
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL
EXTORSÃO
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES AGRAVADO
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 12/02/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITO EM JULGADO
Sumário :
I - A reapreciação da matéria de facto, seja em termos amplos (erro-julgamento) seja no âmbito dos vícios do artigo 410.º do CPP (erro-vício), não pode servir de fundamento ao recurso interposto para o STJ.

II - Perante uma actuação que se prolongou por um período de 1 ano e 4 meses, envolvendo vários reclusos a quem o arguido, no interior do estabelecimento prisional, vendeu não só haxixe como, também, heroína, uma droga considerada “dura”, movimentando mais de 10.000 euros nesse período, carece de qualquer fundamento legal pretender a qualificação jurídica desses factos como um crime de tráfico de menor gravidade.

III - Bem pelo contrário: o modo de execução do crime, a diversidade de consumidores servidos pelo recorrente, o tipo de droga transacionada e o período de tempo em que teve lugar a sua conduta evidenciam, de forma clara e manifesta, a perturbação do processo de ressocialização dos reclusos e o grave transtorno da ordem e organização das cadeias que o tráfico comporta que são, ao cabo e ao resto, as razões que presidem à agravação do tipo legal de crime a que se procede na al. h) do art. 24.º do DL n.º 15/93, de 22-01.

Decisão Texto Integral:

            Acordam, neste Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção:


 I. No Proc. nº 19/15.... do Juízo central criminal de ..., J..., o arguido AA foi julgado e aí condenado:

- pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos art.ºs 21.º e 24.º, al. h), do Decreto Lei 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 10 (dez) anos de prisão;

- pela prática, em autoria material e na forma consumada, de dois crimes de extorsão, p. e p. pelo art.º 223º, n.º 1, do Código Penal, nas penas individuais de 2 (dois) anos de prisão;

- em cúmulo jurídico dessas penas parcelares, na pena única de 11 (onze) anos e 6 (seis) meses de prisão.

 Inconformado, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação ... que, por acórdão datado de 10 de Fevereiro de 2021, negou provimento a esse recurso e a um outro, intercalar, que com aquele subiu para apreciação.

 Mais uma vez inconformado, recorreu o arguido para este Supremo Tribunal de Justiça, pedindo a repetição do julgamento, a revogação do acórdão recorrido ou redução da pena única para medida não superior a 5 anos de prisão e extraindo da sua motivação as seguintes conclusões (transcritas):

«1. É nulo o acórdão por omissão de pronúncia no recurso do acórdão final na matéria relativa às interrupções da audiência de julgamento, porque não ponderou sobre toda a factualidade aduzida no recurso do acórdão final, mas apenas na matéria factual do recurso interlocutório.

2. Quedando-se apenas pela constatação de uma única interrupção por mais de 30 dias quando na realidade o julgamento foi interrompido várias vezes por períodos que ultrapassaram os 4 e os 5 meses em fase de produção de prova.

3. Assentando a sua decisão apenas na alteração da lei adjetiva em 2015 do art. 328º nº 6.

4. Mas não fundamentando de forma rigorosa e que garanta a segurança jurídica, assim desprotegendo o arguido nas garantias de defesa.

5. Errou ainda de forma notória na apreciação da prova que acolheu nos escassos factos provados proferindo uma decisão que arrasta a nulidade do acórdão derivada desse vício.

6. Pois a prova assenta unicamente em 3 testemunhos de reclusos interessados no seu próprio benefício, os quais são convocados em todos os processos que derivaram deste mesmo e ali se aprestam a produzir novas afirmações de tráfico cometido por outros ex companheiros e guardas prisionais como é conhecido.

7. Funcionando como verdadeiros agentes provocadores ao serviço dos seus próprios interesses que mais não são do que delações premiadas sem base legal.

8. Através da credibilização de depoimentos nebulosos, impossíveis de concretizar e invenções vagas e genéricas que nada provam, destinados a forçar a prova sem assento factual concreto e mensurável no tempo, nos preços e nas quantidades, aferidos às alegadas transferências bancárias para uma conta titulada por terceiro que teve a ver com a coarguida BB absolvida.

1. Errou ainda por contradição insanável entre o conjunto dos factos provados e aqueles concretos que deu como não provados.

2. Conferindo a este acórdão e à sua fundamentação um aro de confusão e de ininteligibilidade intrínseca que não se coadunam do ponto de vista técnico com uma decisão judicial, rigorosa e transparente.

3. Da mesma forma quanto aos dois crimes de extorsão, rigorosamente decididos como cometidos pelo arguido sem assento probatório.

4. Errou, finalmente na qualificação jurídica quanto ao tráfico de estupefacientes, porque, perante a factualidade que deu como provada, em concreto, os escassos factos deveriam e convocam o crime de tráfico de menor gravidade.

5. Que não justifica uma pena superior a 3 ou 4 anos de prisão efetiva por prática dentro do EP, o que só em tese se admite e nunca a pena exorbitante de 10 anos de prisão.

6. Da mesma forma errou na pena única desproporcionada de 11 anos e 6 meses de prisão.

7. Feriu desse modo os arts. 328º; 374º nº 2; 379º nº 1, als. a) e c) 410º nºs 1, 2, als. a), b) e c) e 3 do CPP; arts. 21; 24º al. h) e 25º do DL 15/93 de 22.01; arts. 70 e 71º do C. Penal; arts. 20º nºs 4 e 5 e 32º nº 2 in fine da Constituição da República Portuguesa; e art. 6º nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

8. Devendo o julgamento ser repetido nos termos sobreditos ou acórdão revogado ou, em alternativa ser a pena única fortemente diminuída para não mais de 5 anos de prisão».


 Respondeu o Exmº Procurador-Geral da República junto do Tribunal da Relação ..., pugnando pela rejeição do recurso ou pelo seu não provimento, com os seguintes fundamentos (transcritos):

«Por acórdão de 10/02/2021, proferido por este Tribunal da Relação ..., foi decidido:

Face ao exposto, os juízes da ... Secção Criminal do Tribunal da Relação .... acordam em negar provimento aos recursos (intercalar e do acórdão) interpostos pelo arguido.

No acórdão recorrido, proferido em 1ª instância tinha-se decidido, para além do mais, condenar o arguido:

A) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos art.ºs 21.º e 24.º, al. h), do Decreto Lei 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 10 (dez) anos de prisão;

B) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de dois crimes de extorsão, p. e p. pelo art.º 223º, n.º 1, do Código Penal, nas penas individuais de 2 (dois) anos de prisão;

C) Em cúmulo jurídico, decide-se aplicar ao arguido AA, pela prática dos crimes referidos em A) e B), a pena única de 11 (onze) anos e 6 (seis) meses de prisão;

O arguido não se conformou com tal decisão, dela veio interpor recurso concluindo a motivação pela seguinte forma:

1. É nulo o acórdão por omissão de pronúncia no recurso do acórdão final na matéria relativa às interrupções da audiência de julgamento, porque não ponderou sobre toda a factualidade aduzida no recurso do acórdão final, mas apenas na matéria factual do recurso interlocutório

2. Quedando-se apenas pela constatação de uma única interrupção por mais de 30 dias quando na realidade o julgamento foi interrompido várias vezes por períodos que ultrapassaram os 4 e os 5 meses em fase de produção de prova.

3. Assentando a sua decisão apenas na alteração da lei adjetiva em 2015 do art. 328º nº 6.

4. Mas não fundamentando de forma rigorosa e que garanta a segurança jurídica, assim desprotegendo o arguido nas garantias de defesa.

5. Errou ainda de forma notória na apreciação da prova que acolheu nos escassos factos provados proferindo uma decisão que arrasta a nulidade do acórdão derivada desse vício.

6. Pois a prova assenta unicamente em 3 testemunhos de reclusos interessados no seu próprio benefício, os quais são convocados em todos os processos que derivaram deste mesmo e ali se aprestam a produzir novas afirmações de tráfico cometido por outros ex companheiros e guardas prisionais como é conhecido.

7. Funcionando como verdadeiros agentes provocadores ao serviço dos seus próprios interesses que mais não são do que delações premiadas sem base legal.

8. Através da credibilização de depoimentos nebulosos, impossíveis de concretizar e invenções vagas e genéricas que nada provam, destinados a forçar a prova sem assento factual concreto e mensurável no tempo, nos preços e nas quantidades, aferidos às alegadas transferências bancárias para uma conta titulada por terceiro que teve a ver com a coarguida BB absolvida.

1. Errou ainda por contradição insanável entre o conjunto dos factos provados e aqueles concretos que deu como não provados.

2. Conferindo a este acórdão e à sua fundamentação um aro de confusão e de ininteligibilidade intrínseca que não se coadunam do ponto de vista técnico com uma decisão judicial, rigorosa e transparente.

3. Da mesma forma quanto aos dois crimes de extorsão, rigorosamente decididos como cometidos pelo arguido sem assento probatório.

4. Errou, finalmente na qualificação jurídica quanto ao tráfico de estupefacientes, porque, perante a factualidade que deu como provada, em concreto, os escassos factos deveriam e convocam o crime de tráfico de menor gravidade.

5. Que não justifica uma pena superior a 3 ou 4 anos de prisão efetiva por prática dentro do EP, o que só em tese se admite e nunca a pena exorbitante de 10 anos de prisão.

6. Da mesma forma errou na pena única desproporcionada de 11 anos e 6 meses de prisão.

7. Feriu desse modo os arts. 328º; 374º nº 2; 379º nº 1, als. a) e c) 410º nºs 1, 2, als. a), b) e c) e 3 do CPP; arts. 21; 24º al. h) e 25º do DL 15/93 de 22.01; arts. 70 e 71º do C. Penal; arts. 20º nºs 4 e 5 e 32º nº 2 in fine da Constituição da República Portuguesa; e art. 6º nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

8. Devendo o julgamento ser repetido nos termos sobreditos ou acórdão revogado ou, em alternativa ser a pena única fortemente diminuída para não mais de 5 anos de prisão.

No recurso da decisão proferida em 1ª instância já o arguido manifestava as mesmas pretensões concluindo a motivação pela seguinte forma:

1. É nulo o acórdão por erro na aplicação do direito ao reconhecer que, o julgamento esteve interrompido por mais de 30 dias na fase de produção de prova e ainda assim assumir como certeza jurídica que a prova anteriormente produzida não perdeu a eficácia probatória.

2. Assentando a sua decisão apenas na alteração da lei adjetiva em 2015 do art. 328º nº 6.

3. Não fundamentando de forma rigorosa e que garanta a segurança jurídica, assim desprotegendo o arguido nas garantias de defesa.

4. Está o acórdão ferido de ilegalidade porque o tribunal aplicou efetivamente uma interpretação inconstitucional do art. 328º nº 6 do CPP como podendo o julgamento na fase de produção de prova ser interrompido por mais de 30 dias que fere os artigos 20º nºs 4 e 5 e 32º nº 2 in fine conjugados da Constituição da república Portuguesa.

5. E o art. 6º nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

6. Feriu desse modo o art. 328º nº 6 do CPP; e os arts. 20º nºs 4 e 5 e 32º nº 2 da CRP; e art. 6º nº 1 da CEDH.

7. Errou ainda de forma notória na apreciação da prova que acolheu nos escassos factos provados proferindo uma decisão que arrasta a nulidade do acórdão derivada desse vício.

8. Pois na verdade, a prova assenta unicamente 3 testemunhos de reclusos interessados no seu próprio benefício, os quais são convocados em todos os processos que derivaram deste mesmo e ali se aprestam a produzir novas afirmações de tráfico cometido por outros ex companheiros e guardas prisionais como é conhecido.

9. Através da credibilização ilegal de depoimentos nebulosos, não concretizáveis e invenções vagas e genéricas que nada provam, destinados unicamente a forçar uma prova sem assento factual concreto e mensurável no tempo, nos preços e nas quantidades, aferidos ás alegadas transferências bancárias para uma conta titulada por terceiro que nada tem ou teve a ver com a coarguida BB agora absolvida.

10. Errou ainda por contradição insanável entre o conjunto dos factos provados e aqueles concretos que deu como não provados.

11. Conferindo a este acórdão e à sua fundamentação um aro de confusão e de ininteligibilidade intrínseca que não se coadunam do ponto de vista técnico com uma decisão judicial, rigorosa e transparente.

12. Da mesma forma quanto aos dois crimes de extorsão, rigorosamente decididos como cometidos pelo arguido sem qualquer prova factual séria que mais não seja do que atoardas e presunções sem valor.

13. Errou, finalmente o acórdão na qualificação jurídica quanto ao tráfico de estupefacientes, porque, perante a factualidade que deu como provada, em concreto, os escassos factos deveriam e convocam o crime de tráfico de menos gravidade.

14. Que não justificaria uma pena superior a 2 anos de prisão efetiva por prática dentro do EP, o que só em tese se admite.

15. Da mesma forma errou na medida exorbitante e injustificada da pena de 10 anos de prisão pelo cometimento do crime de tráfico de estupefacientes.

16. Feriu desse modo os arts. 328º; 374º nº 2; 379º nº 1, als. a) e c), 410º nºs 1, 2, als. a), b) e c) e 3 e 412º do CPP; arts. 21; 24º al. h) e 25º do DL 15/93 de 22.01; arts. 70 e 71º do C. Penal; arts. 20º nºs 4 e 5 e 32º nº 2 in fine da Constituição da República Portuguesa; e art. 6º nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

17. Devendo o julgamento ser repetido nos termos sobreditos ou acórdão revogado e o arguido absolvido.

18. O arguido mantém interesse no recurso interlocutório atempadamente introduzido.

Nas suas conclusões o recorrente começa por referir:

1. É nulo o acórdão por omissão de pronúncia no recurso do acórdão final na matéria relativa às interrupções da audiência de julgamento, porque não ponderou sobre toda a factualidade aduzida no recurso do acórdão final, mas apenas na matéria factual do recurso interlocutório

2. Quedando-se apenas pela constatação de uma única interrupção por mais de 30 dias quando na realidade o julgamento foi interrompido várias vezes por períodos que ultrapassaram os 4 e os 5 meses em fase de produção de prova.

3. Assentando a sua decisão apenas na alteração da lei adjetiva em 2015 do art. 328º nº 6.

Não cremos que o acórdão padeça da nulidade – omissão de pronúncia - referida pelo recorrente e isto porque contrariamente ao concluído pelo arguido o acórdão do Tribunal da Relação apreciou a matéria relativa às interrupções da audiência de julgamento, no âmbito do recurso intercalar e do recuso final.

Vejamos o que referido no acórdão recorrido sobre esta matéria:

Cotejando a anterior e actual redacção do n.º 6 do artigo 328º CPP, constatamos que deixou de estar prevista a sanção de ineficácia da prova anteriormente produzida. Contudo, a actual lei exige que, quando não for possível retomar a audiência, no prazo de 30 dias, por impedimento do tribunal ou dos defensores, fique a constar da acta o “respectivo motivo”. Este segundo segmento do n.º 6 do art. 328º do CPP admite assim implicitamente que o julgamento possa ser validamente retomado, mesmo depois de ultrapassado o prazo de 30 dias, desde que haja motivo para tal. Com efeito, quando a lei estabelece expressamente que se consigne em acta o motivo – impedimento – justificativo da impossibilidade de se retomarem os trabalhos dentro daquele prazo, está implicitamente a admitir que tal possa ocorrer.

Note-se que a Lei nº. 27/2015, de 14/4, aditou ao Cód. Proc. Penal o art. 328º-A que, no seu n.º 3 refere o seguinte:

“ (…)

3 - Sendo temporária a impossibilidade, interrompe-se a audiência pelo tempo indispensável, a não ser que as circunstâncias aconselhem a substituição do juiz impossibilitado, o que é decidido, em despacho fundamentado, pelo juiz que deva presidir à continuação da audiência.

(…) ”

Do disposto neste n.º 3 do art. 328-A do CPP decorre que a impossibilidade temporária do juiz implica a interrupção “da audiência pelo tempo indispensável” ou, face às circunstâncias do caso, a sua “substituição”. A actual lei não exige assim que a audiência só possa ser interrompida por um período inferior a 30 dias, pois prevê expressamente a possibilidade de se ultrapassar tal prazo, desde que haja motivo justificativo. Deste modo, julgamos que a impossibilidade temporária do juiz, por um período superior a 30 dias, é claramente um motivo, legalmente previsto, justificativo da impossibilidade de se retomar a audiência dentro desse período. Tal significa que, ocorrendo uma impossibilidade temporária do juiz e não tendo sido proferido despacho determinando a sua substituição, é legalmente permitida a interrupção da audiência por tempo superior a 30 dias, sem que a prova anteriormente produzida seja ineficaz.

Julgamos assim que a decisão intercalar recorrida decidiu bem, ao entender que no actual domínio legislativo a impossibilidade temporária do juiz, por período superior a 30 dias, não torna ineficaz a prova anteriormente produzida.

Alega todavia o arguido que esta interpretação do art. 328º, 6 do CPP, acolhida na decisão recorrida, é inconstitucional, por ofensa dos artigos 20º nºs 4 e 5 e 32º nº 2 in fine da Constituição da República Portuguesa e art. 6º nº 1 da Convenção Europeia do Direitos do Homem. No entanto, a alegada inconstitucionalidade da norma aplicada não vem minimamente concretizada. Com efeito, o arguido apenas refere (neste aspecto) o seguinte: “Assentando a sua decisão apenas na alteração da lei adjetiva em 2015 do art. 328º nº 6. Não fundamentando de forma rigorosa e que garanta a segurança jurídica, assim desprotegendo o arguido nas garantias de defesa.”

Como é bom de ver, este tipo de argumentação não concretiza o sentido da norma que desprotege o arguido nas garantias de defesa. O que está em causa é a interpretação de uma norma sobre a continuidade da audiência. A norma aplicada pelo Tribunal recorrido foi a norma actualmente em vigor, ou seja, o artigo 328º,n.º 6 do CPP na sua actual redacção. Ora, a actual redacção permite que, em casos justificados, a audiência seja interrompida por um período superior a 30 dias. A CRP não impõe, como garantia de defesa do arguido, a impossibilidade de interrupção da audiência por período superior a 30 dias. Deste modo, o legislador ordinário pode, no âmbito das suas atribuições, determinar a forma como deve decorrer a audiência de julgamento. Foi o legislador ordinário quem determinou que a audiência deve decorrer sem interrupções superiores a 30 dias (art. 328º, 6CC), mas foi também o legislador ordinário quem previu, desde logo, a possibilidade de tal prazo ser ultrapassado, em casos justificados. O regime legal é portanto também o de permitir que, em casos justificados devidamente consignados na respectiva acta, a audiência seja interrompida por períodos superiores a 30 dias. Ou seja, quer o regime regra, quer o regime excepcional são ambos infra -constitucionais (estabelecidos pelo legislador ordinário), pelo que a definição das excepções ao regime regra está, como é evidente, no âmbito da competência do legislador ordinário. Quer isto dizer que o regime do art. 328º, 6 do CPP não viola qualquer princípio constitucional, desde logo porque a CRP não impõe uma continuidade da audiência sem interrupções superiores a 30 dias e, muito menos, que este prazo não possa ser ultrapassado em casos devidamente justificados.

Finalmente importa apenas sublinhar que tal configura, a nosso ver, um processo equitativo e justo. Na verdade, o regime em causa (concretamente aplicado nos autos) permite que, em casos devidamente justificados, a audiência de julgamento seja interrompida, designadamente por impossibilidade temporária do juiz, por um período superior a 30 dias. Tal ocorrerá, todavia, depois de um juízo de ponderação, onde serão tomados em conta os valores em jogo, tais como a necessidade da concentração/imediação e o aproveitamento da prova já prestada em audiência. Esta ponderação tem que ser justificada, permitindo que o seu acerto seja controlado pelo tribunal de recurso. Deste modo, o regime previsto na lei ordinária (CPP), tal como foi delineado nos art. 386º e 386º-A CPP, assegura simultaneamente (i) as garantias de defesa do arguido; (ii) a celeridade processual, evitando a repetição da produção da prova já realizada, quando a mesma se encontre gravada e (iii) a plenitude da assistência dos juízes no julgamento da matéria de facto, perante os imponderáveis da realidade.

Dai que também não se mostre violado o art. 20º, da CRP e 6º da CEDH. Em suma, a inconstitucionalidade suscitada pelo arguido não tem qualquer fundamento, uma vez que o regime previsto é suficientemente flexível para assegurar as garantias de defesa do arguido, num processo equitativo justo e, no caso concreto, foi aplicado em decisão devidamente fundamentada na lei actualmente em vigor.

2.2.2. Recurso da decisão final (acórdão)

Relativamente ao acórdão final, o arguido suscita várias questões: (i) nulidade, por ter atendido a prova produzida antes da interrupção da audiência por período superior a 30 dias (conclusões 1 a 6);

….

Vejamos cada um destes aspectos.

(i) Nulidade do acórdão por ter atendido a prova produzida antes da interrupção da audiência, por período superior a 30 dias (conclusões 1 a 6).

Relativamente a este ponto nada há a dizer, uma vez que a questão foi apreciada no recurso intercalar, nos termos acima expostos, pelo que não se verifica a arguida nulidade.

Como se vê da transcrição agora feita, o acórdão recorrido na abordagem ao recurso do acórdão final, conheceu da matéria relativa às interrupções da audiência, fazendo a remissão para o que foi decidido no recurso intercalar e isto porque esta questão já havia sido tratada quando se conheceu desse recurso intercalar.

A nulidade por omissão de pronúncia somente se verifica quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (al. c) do n.º 1 do art. 379.°), no caso tal não se verifica, como acabamos de referir.

As restantes questões levantas no recurso são essencialmente estas:

- Erro notório na apreciação da prova, por assentar apenas em 3 testemunhos de reclusos interessados;

- Contradição insanável entre o conjunto de factos provados e os que deu como não provados;

- Inexistência de prova para os dois crimes de extorsão;

- Qualificação jurídica dos factos e medida da pena.

Todas estas questões foram correcta e fundamentadamente tratadas no acórdão, merecendo a nossa adesão sendo certo que o contido no acórdão, só por si, responde á motivação de recurso.

Por fim, dir-se-á:

Como facilmente se constata pela comparação das conclusões feitas no recurso do acórdão da 1ª instância e das formuladas no presente recurso, acima transcritas, o recorrente não fez mais que repetir as questões levantadas perante o Tribunal da Relação

Esta repetição traduz uma desconsideração pela decisão do Tribunal da Relação e deverá ser entendida como falta de fundamentação o que deverá levar à rejeição do recurso.

Em anotação ao artigo 412º do Código Processo Penal Comentado escreve o Senhor Juiz Conselheiro Pereira Madeira:

Entender-se-á certamente que, sendo a motivação o alicerce de todo o procedimento de recurso, convirá que esta peça seja criativa, original e assente nas circunstâncias concretas daquele processo e daquele recurso e não de outro. É, pois, processualmente descabido repetir ipsis verbis no recurso para o Supremo apenas e só a fundamentação com que foi entendido atacar a decisão da 1ª instância. Por muito que os problemas permaneçam idênticos num e noutro caso, não é seguramente o caso do tratamento dado pelo tribunal de recurso àquelas questões. Nalguns casos, a mera repetição porque descabida, pode ocasionar mesmo a ausência de fundamentação, com as consequências inerentes (cfr. artigo 414º, nº 2). E mesmo quando se mantenha em discussão exactamente as mesmas questões, não pode ter-se como actuação elegante, por banda do recorrente, a desconsideração ostensiva da decisão de um tribunal superior entretanto proferida. Importará, ao menos, um esforço por banda daquele no sentido de rebater os concretos argumentos ali produzido, pois é isso que se trata num recurso para o Supremo e não já, do ataque pura e simples á decisão de 1ª instância. A posição comodista do recorrente que se limita a fazer a repetição, não terá sempre como consequência o não conhecimento do recurso, pois é claro que as questões em discussão num e noutro caso poderão manter-se idênticas. Mas, o esforço adequado, a evitar-se-á, por um lado, o perigo extremo do não conhecimento do recurso, e, por outro, quando aquela sanção não tenha lugar, que o tribunal ad quem venha a assimilar deficientemente o objecto do recurso, com inevitável prejuízo para o conhecimento de recurso, isto é, para o recorrente.

A este respeito veja-se, Acórdão desse Supremo Tribunal de Justiça de 14-12-2006 proferido no âmbito do Proc. n.º 4541/06 - 5.ª Secção:

I - Está vedado ao STJ o conhecimento de questão nova em recurso - que incide sobre o acórdão da Relação -, pois o recurso para aquele Tribunal é um meio de corrigir o que foi decidido pelo Tribunal da Relação e, não, um processo de obter decisões novas. II - Tendo o recorrente, ao invés de especificar os fundamentos do recurso interposto para este Supremo Tribunal - como lhe impunha o disposto no art. 412.°, n.º 1, do CPP -, copiado a fundamentação apresentada no recurso para a Relação, e não esgrimindo qualquer fundamento (novo) para alicerçar a sua discordância com o ali decidido, assim confundindo - exactamente - a motivação do recurso agora interposto para o Supremo Tribunal com a que apresentou perante o Tribunal de 2.ª instância, significa isso, que não existe fundamentação relevante, pelo que o recurso assim interposto para o STJ deverá ser rejeitado nos termos dos arts. 412.º, n.º 1, 414.°, n.º 2, e 420.° do CPP. III - Pode mesmo aqui falar-se em verdadeira carência de motivação e objecto, pois que a decisão verdadeiramente impugnada é, afinal, a da 1.ª instância, e a impugnação a ela se dirige. IV - Não se argumente, em sentido contrário, que os fundamentos são aqueles que já apresentou no recurso para a Relação: tendo esta decidido da causa, é ilegítima a reedição do mesmo tipo de fundamentação para o Supremo Tribunal, não só porque são distintos os poderes de cognição de um e de outro dos tribunais (arts. 428.° e 434.° do CPP), como também porque versando o recurso para a Relação matéria de facto, como in casu aconteceu, a discussão sobre tal ponto está encerrada, por o Supremo Tribunal, em princípio, só conhecer de direito. V - É, enfim, necessário que o recurso para o STJ interposto de acórdão da Relação, verse a questão suscitada pelo acórdão por esta proferido, ou pelo menos, a ela submetida em recurso prévio da decisão de 1.ª instância, e não, a reedição pura e simples dos fundamentos invocados no que foi interposto da decisão da 1.ª instância, como se o acórdão da Relação não existisse, como se a Relação não tivesse mediado com a decisão recorrida.

Por este motivo, cremos, como já acima referimos, que a falta de fundamentação poderá levar á rejeição do recurso.

Por todo o exposto, cremos que o recurso deve ser julgado improcedente ou até rejeitado e consequentemente haverá manter a decisão recorrida».


II. Neste Supremo Tribunal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, onde pugna pela rejeição do recurso no que diz respeito aos crimes de extorsão, ao alegado vício elencado no artº 410º, nº 2, al. b) do CPP e à alegada nulidade da decisão. por omissão de pronúncia, bem como pelo não provimento do recurso, no restante:

«(…)

1.1.

Inconformado com a decisão, o arguido dela traz recurso ao STJ. Como se colhe das conclusões formuladas, nelas elenca as seguintes questões:

• Nulidade da decisão por omissão de pronúncia (validade da prova);

• Erro de julgamento na apreciação da credibilidade da testemunha;

• Contradição insanável entre os factos provados e os não provados;

• Erro de julgamento quanto às penas de dois anos de prisão, para cada crime de extorsão;

• Erro na qualificação jurídica do crime de tráfico de estupefacientes;

• Erro na medida das penas parcelares e única.

2.

O MP na Relação, na sua resposta refutou tais reparos ao acórdão sub judicio, concluindo pela improcedência do recurso.

3.

DA QUESTÃO PRÉVIA

3.1.

Como se vem de dizer, o arguido vem condenado pela prática de dois crimes de extorsão, p. e p. pelo artº 223º, nº 1, do CP na pena de dois (02) anos de prisão, por cada um. Nos termos do art.º 400º, n º 1, alínea f), do CPP, tal segmento do recurso não se mostra admissível. Tal irrecorribilidade, como é jurisprudência do STJ, implica que face a tal juízo decisório, as questões relativas aos ilícitos, abrangidos, não possam ser reexaminadas pelo STJ (doutro modo, aliás, a irrecorribilidade não teria verdadeiro conteúdo).

Temos, pois, que o segmento do recurso que visa o reexame das referidas penas parcelares, deve ser rejeitado, nos termos dos artigos 414º, n º 2, alínea b) e 400º, n º 1, alínea e), do CPP.

3.1.2.

Como bem salienta o MP na Relação, na sua reposta e ressalta claramente do confronto da motivação do recurso dirigido à Relação, com a apresentada neste, logo se verifica que esta mais não é que uma reedição da primeira, ignorando, assim que a decisão recorrida, é o acórdão da Relação .... e não o acórdão da 1ª instância. Sejam quais forem as conclusões que se queiram ou possam tirar desta realidade, a verdade é que o recorrente, como acima salientamos, invoca, de novo o erro-vício previsto no art.º 410º, n º 2, al. b) do CPP. Não se detendo, por aqui, refere a existência de erro de julgamento na apreciação da credibilidade das testemunhas. Ou seja, em concordância com o exarado sob o ponto 48 da sua motivação, em que afirma:

«Não podendo colher a tese estafada de que a este STJ não compete analisar matéria de facto

(…)»

O recorrente continua a persistir em questioná-la.

Contudo, o regime de recursos do nosso processo penal bem como a vasta jurisprudência, na matéria, do Supremo Tribunal de Justiça, não vogam ao sabor dos estados de alma dos recorrentes. O recurso para o STJ, é circunscrito ao reexame exclusivo da matéria de direito, como recurso de «revista» que é. Como o recorrente, bem sabe, é à Relação que compete apreciar os erros-vícios da sentença / acórdão, desde que os mesmos, nos termos do n º 2, do art.º 410º resultem da decisão recorrida a se ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso a qualquer elemento externo. De resto é consabido, que o STJ não conhece de tais vícios, a pedido do recorrente, o que seria manifestamente contraditório com a competência da Relação para os apreciar, a não ser, quando, usando dos seus poderes de cognição ex officio nos restritos e excepcionais casos em que entende ser tal absolutamente necessário, para proferir a decisão de mérito, sendo que nesses casos, dada a natureza do recurso, reenvia a decisão para o tribunal recorrido. Se assim é, nestes casos de revista ampliada, a fortiori o é, também, no caso de qualquer pretensão atinente à decisão proferida sobre a matéria de facto - CPP 412º, n º s 3 e 4. Razões, pelas quais, tal segmento recursivo, por irrecorrível, deve ser rejeitado-ut CPP 420º, n º 1, al. b) e 414º n º 2.

3.1.3.

Quanto à invocada nulidade por omissão de pronúncia, para além inexistir de todo (tratada, de resto) no acórdão, logo a seguir ao recurso intercalar, também se nos afigura não ser dela admissível recurso. Com efeito, é questão que já se encontra decidida no segmento decisório do acórdão que apreciou e decidiu o recurso intercalar.

Daí que deva ser considerado, tal segmento do recurso, como não admissível, decorrendo daí a sua rejeição-CPP 420º, n º 1, b), e 414º, n º 2.

3.1.4.

Do crime do tráfico agravado de estupefacientes e da medida da correspectiva pena parcelar:

Continuando a insistir em considerações, de todo irrelevantes, quanto à matéria de facto assente, neste caso relativamente ao crime em epígrafe, pretende o recorrente convencer que os factos devem ser qualificados, no art.º 25º, do DL n º 15 / 93, de 22 Janeiro: tráfico de menor gravidade.

A jurisprudência do STJ, vem reafirmando que a qualificativa da alínea h) do art.º 24º, do DL nº 15 / 93, de 22 Janeiro, não opera automaticamente, impondo-se uma ponderação global dos factos, que passa pela aferição do meio utilizado para a introdução das substâncias no estabelecimento prisional, a quantidade e qualidade destas, o facto de o recorrente se encontrar em cumprimento de pena, entre outras.

Da matéria de facto provada, verifica-se que o recorrente estando recluso Estabelecimento Prisional de ..., no período compreendido entre os meses de Janeiro de 2014 e Maio de 2015, logrou a introdução no mesmo, de heroína e haxixe, que vendia a outros reclusos, que pagavam os estupefacientes, em maços de tabaco e / ou dinheiro que era depositado numa conta da CGD, pertencente à arguida BB. Fez ameaças a vários dos reclusos a quem vendera estupefacientes, extensivos às suas famílias no sentido de obter o depósito das quantias em dívida, na conta supra-referida. O recorrente já havia sido condenado:

[1] «i) Nos autos de proc. comum colectivo n.º 329/01.... do Juízo Central Criminal - Juiz ...- de ..., Tribunal Judicial da Comarca de ..., por acórdão de 17.01.2005, transitado em julgado em 14.02.2005, pela prática, em … .12.2001, de um crime de tráfico de estupefacientes, 9 anos de prisão, entretanto declarada extinta em 11.07.2016, após a concessão de liberdade condicional, em 31.12.2007, ter sido revogada por decisão de 23.11.2012, com trânsito em 01.02.2013; ii) Nos autos de proc. comum colectivo n.º 51/09.... do ...º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de ....., por acórdão de 03.10.2011, transitado em julgado em 06.08.2012, pela prática, em … .10.2010, de um crime de detenção de arma proibida; em 19.01.2009, de dois crimes de sequestro; em … .10.2020, de um crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade; em … .01.2009, de dois crimes de roubo qualificado, na pena única e 9 anos de prisão».

No sumário do acórdão de 12-10-2016, tirado no proc. n º 15/13.9PEBJA.E1. S1-3ª Secção/ Manuel Augusto Matos, diz-se:

I - Na valoração global da factualidade, tendo em atenção as circunstâncias em que os factos foram praticados - o meio utilizado para a introdução da droga no EP, a quantidade e qualidade do produto estupefaciente, destacando-se aqui a detenção de heroína, a circunstância de o arguido se encontrar em cumprimento de pena, precisamente pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes - não se observa que a ilicitude do facto seja consideravelmente diminuída, improcedendo a pretensão do arguido na integração dos factos no tráfico de menor gravidade.

II - A circunstância de a infracção ter sido cometida em EP, prevista na al. h) do art.º 24.º do DL 15/93, não produz efeito qualificativo automático, antes exigindo a sua interpretação teleológica, por forma a verificar se a concreta modalidade da acção, a concreta infracção justifica o especial agravamento da punição querida pelo legislador.

III - As razões e necessidades de prevenção geral positiva ou de integração são muito elevadas no quadro do crime de tráfico de estupefacientes. Elevado é também o grau da ilicitude dos factos, tendo em conta as circunstâncias em que o arguido praticou o crime, sublinhando-se o objectivo que se propôs de introduzir o produto estupefaciente no EP onde regressava após o gozo de uma licença de saída que lhe fora concedida. Actuou com dolo directo e possui antecedentes criminais pela prática de crimes da mesma natureza, encontrando-se à data dos factos em cumprimento de pena de prisão (...)».

Numa ponderação da facticidade assente, resulta uma imagem global do facto, que revela um grau elevado de ilicitude, nos antípodas da existência de uma diminuição considerável da mesma, de cuja verificação in concreto depende a perfectibilização do crime de tráfico de menor gravidade. Aliás, mesmo no plano teórico, um crime qualificado em razão da ilicitude poder ser considerado de menor gravidade, seria uma verdadeira contraditio in terminis.

Dos factos provados, verifica-se que o recorrente durante mais de um ano, não se coibiu de disseminar estupefacientes pelos reclusos do EP..., assim pondo em causa a saúde de um conjunto significativo daqueles, justamente o que a circunstância qualificativa pretende evitar. Neste conspecto, não se estando perante uma transacção esporádica, ou de um caso de detenção de uma pequena quantidade de estupefaciente, ainda que no meio prisional, a qualificação jurídico-penal que se mostra feita pelas instâncias, no quadro dos artigos 21º, n º 1 e 24º, não nos merece reparo.

3.1.5.

Mutatis mutandis o mesmo se diga quanto quer à pena parcelar -cuja moldura penal «abstracta vai de 5 a 15 anos de prisão- sendo que ponderada a culpa, as necessidades, muito elevadas, quer de prevenção especial, como é patente, quer de prevenção geral, a conduta pregressa do recorrente, em que nada mostra ter aprendido com as condenações que vem sofrendo, a sua falta de interiorização da sua conduta e perspectivas laborais, sendo fixada no seu ponto médio, se nos afigura como adequada.

No atinente à pena única, sendo a moldura do concurso, entre 10 e 14 anos de prisão, no quadro que se vem, sinteticamente de desenhar, a sua fixação em 11 anos e 6 meses de prisão, não viola o princípio da proporcionalidade, necessidade e adequação, devendo assim ser mantida.

Somos assim de parecer:

• O recurso atinente aos dois crimes de extorsão, p. e p. pelo art.º 223º, n º 1, do CP, por inadmissível, nos termos do art.º 400º, n º 1, alínea f), do CPP, deve ser rejeitado -ut artigos 420º, n º 1, al. b) e 414º, n º 2, do CPP;

• O segmento do recurso, referente ao erro-vício previsto no art.°410°, n 2, alínea b) do CPP e a fortiori qualquer questão atinente à matéria de facto, por irrecorríveis, deve ser rejeitado-ut CPP 420°, n ° 1, ai. b) e 414°n °2;

• A invocada «nulidade» da sentença por omissão de pronúncia, por ser questão já decidida no recurso interlocutório, não deve ser apreciada, impondo-se a sua rejeição- CPP 420º, n º 1, al. b) e 414º, n º 2;

• A qualificação jurídico-penal que se mostra feita pelas instâncias, do crime de tráfico de substâncias estupefacientes, no quadro dos artigos 21º e 24º, do DL: n º 15 / 93, de 22 de Janeiro, mostra-se conforma à lei aplicável;

• As operações de determinação, quer da medida da pena parcelar (tráfico agravado) quer da medida da pena única, mostram-se conformes aos critérios legais que as enformam, não pondo em causa os princípios da proporcionalidade, adequação e necessidade, improcedendo, assim, o recurso».


Cumprido o disposto no artº 417º, nº 2 do CPP, não se registou qualquer resposta.


III. Colhidos os vistos, cumpre decidir, em conferência.

 São as conclusões extraídas pelo recorrente da sua motivação que delimitam o âmbito do recurso - artº 412º, nº 1 do CPP.


No essencial, são as seguintes as questões suscitadas pelo recorrente:

A) Nulidade do acórdão recorrido, por omissão de pronúncia;

B) Erro notório na apreciação da prova;

C) Contradição insanável entre os factos provados e não provados;

  D) Inexistência de prova relativa aos dois crimes de extorsão.

E) Qualificação jurídica dos factos: tráfico de estupefacientes agravado/ tráfico de menor gravidade;

F) O quantum das penas – parcelares e única – aplicadas.


  IV. Mostra-se assente a seguinte matéria de facto:

1. Desde data não concretamente apurada mas, pelo menos, no período compreendido entre Janeiro de 2014 e Maio de 2015, o arguido AA dedicou-se à venda de produto estupefaciente no Estabelecimento Prisional de ..., sito em ..., área desta comarca. (facto 1 da acusação)

2. No referido período o arguido cumpria pena de prisão naquele estabelecimento prisional e concomitantemente vendia produto estupefaciente, que obtinha de forma não concretamente apurada, a outros reclusos, designadamente heroína e haxixe. (facto 2 da acusação)

3. Como contrapartida pela venda de estupefaciente, o arguido recebia maços de tabaco e dinheiro que lhe era entregue através de depósitos em numerário ou por transferência bancária para a conta de depósitos à ordem n.º .....900 da Caixa Geral de Depósitos titulada pela arguida BB. (facto 3 da acusação)

4. Os pagamentos eram feitos quer pelos próprios reclusos (por aqueles que beneficiavam de saídas precárias do estabelecimento prisional) quer por seus familiares ou conhecidos, a sua solicitação, sendo as quantias depositadas com um valor em cêntimos (01; 02; 03) de forma a identificar a pessoa por quem ou a mando de quem é feito o pagamento. (facto 4 da acusação)

Sucede porém que,

5. Quando os reclusos/consumidores não procediam ao pagamento voluntario da droga que compravam ao arguido AA eram alvo de intimidação quer por parte do arguido quer por parte de outros reclusos a seu mando que não só proferiam ameaças contra a vida e contra a integridade física dos reclusos/devedores como chegavam mesmo a atemorizar os seus familiares para os quais telefonavam exigindo o pagamento de quantias em dinheiro. (facto 5 da acusação)

6. No período compreendido entre Janeiro de 2014 e Setembro de 2015 na conta titulada pela arguida BB, proveniente da venda de estupefaciente desenvolvida pelo arguido AA no interior do E.P de ..., foi creditada a quantia global de € 10.031,62 (€ 2.966,34 através de transferências bancárias e € 7.065,28 através de depósitos em numerário). (facto 6 da acusação)

7. Nesse mesmo período a referida conta registou movimentos devedores no montante global de € 10.034,39 (levantamentos, transferências e compras) sendo que cerca de 98,9 % do total foram levantamentos efectuados ao balcão. (facto 7 da acusação)

Com efeito,

8. Em datas não concretamente apuradas, mas no período referido em 1. o arguido AA vendeu produto estupefaciente a reclusos que cumpriam ou ainda cumprem pena no Estabelecimento Prisional de ..., designadamente: (facto 8 da acusação)

9. Em diversas ocasiões, o arguido vendeu produto estupefaciente, designadamente heroína, ao recluso CC, o qual efectuava os pagamentos por depósito ou transferência bancária, através da sua mãe DD, pagando uma média que variava entre, pelo menos, 50/60€ por semana. (facto 12 da acusação)

10. Com o fito de obter o pagamento da droga que vendia ao recluso CC, o arguido AA, por si ou por intermédio de outros reclusos a seu mando, em datas não concretamente apuradas, mas anteriores às transferências bancárias efectuadas, proferiram várias ameaças de morte ao recluso CC caso este não pagasse os valores em dívida. (facto 12-A, aditado)

11. Tais ameaças foram verbalizadas em alguns telefonemas feitos a DD, mãe de CC, que por temer pela vida e integridade física do seu filho, procedeu aos depósitos de quantias nas contas indicadas pelo arguido, designadamente na conta titulada pela arguida BB. (facto 12-B aditado)

12. O arguido vendeu produto estupefaciente, designadamente heroína, ao recluso EE que pagava ao arguido através de transferência bancária efectuada pela sua irmã, FF, o que sucedeu pelo menos em …/01/2015 de 10,00 €. (facto 13 da acusação)

13. Com o fito de obter o pagamento da droga que vendia ao recluso EE, o arguido AA, por si ou por intermédio de outros reclusos a seu mando, em datas não concretamente apuradas, mas anteriores às transferências bancárias efectuadas, proferiram várias ameaças de morte ao recluso EE caso este não pagasse os valores em dívida. (facto 13-A aditado)

14. Tais ameaças foram verbalizadas em alguns telefonemas feitos a FF, irmã de EE, que por temer pela vida e integridade física do seu irmão, procedeu aos depósitos de quantias nas contas indicadas pelo arguido, designadamente na conta titulada pela arguida BB. (facto 13-B aditado)

15. O arguido vendeu produto estupefaciente, designadamente haxixe, a GG, recluso no estabelecimento prisional, sendo os pagamentos efectuados pela companheira deste, HH, tendo pelo menos realizado dois depósitos na conta titulada pela arguida BB, a saber, um em …/01/2015 de 20,08 € e o outro em … .02.2015, de 20,00 €. (facto 15 da acusação)

16. O arguido vendeu produto estupefaciente, designadamente heroína e haxixe, a II, recluso no estabelecimento prisional, que pagou ao arguido através de transferências bancárias realizadas pelos seus familiares para as contas indicadas pelo arguido, o que sucedeu pelo menos em …/04/2015, no valor de € 10,00, na conta titulada pela arguida BB. (facto 22 da acusação)

17. O arguido AA vendeu tabaco a JJ, que cumpriu pena de prisão no Estabelecimento Prisional de ... de 2012 a 2016, companheiro da testemunha LL, e que realizou, a pedido daquele, pelo menos, nove depósitos na conta titulada pela arguida BB, a saber, em …./01/2015 de 20,00 €; em …/01/2015, de 20,00€; em …/01/2015, de 20,00€; em …/2/2015, de 50,00€; em …/2/2015, de 50,00€; em …/03/2015, de 40,00€; em …/3/2016, de 15,00€; em …/3/2015, de 20,00€; em …/3/2015, de 40,00€. (facto 9 da acusação)

18. Também a mãe de JJ, MM efectuou oito (8) transferências para a conta titulada pela arguida BB, designadamente em …/02/2015 de 40,00 €; em …./04/2015, de 50,00 €; em …/04/2015, de 25,00; …/04/2015, de 40,00 €; em …/04/2015, de 50,00 €; em …/04/2015, de 60,00 €; em …/05/2015, de 65,00 €; em …/05/2015, de 60,00 € (facto 10 da acusação)

19. O recluso NN efectuou pagamentos ao arguido através da sua mãe OO o que sucedeu pelo menos em …/01/2015, através de dois depósitos de € 60,00, na conta titulada pela arguida BB. (facto 14 da acusação)

20. O recluso PP procedeu a depósitos na conta titulada pela arguida BB, feitos pela sua mãe, QQ, o que sucedeu pelo menos em … .12.2014, no montante de € 40,00, em … .01.2015, no montante de € 40,00 e em … .01.2015, no montante de € 75,00. (facto 17 da acusação)

21. QQ, no dia … .02.2015, denunciou ao Ministério Público que o seu filho PP se encontrava a cumprir pena de prisão no E.P de ... e, desde há cerca de dois anos, começou a transmitir-lhe que era ameaçado de morte naquele EP, por outros reclusos, caso não recebessem regularmente quantias monetárias depositadas em contas bancárias cujo NIB era entregue ao seu filho, as quais se destinavam a pagar a droga que o seu filho consumia naquele EP. Acrescentou que durante as conversas telefónicas chegou a ouvir, por outra pessoa, as expressões “vai pagar caro” e “mais um dia e vai pagar a dobrar”. Acrescentou ainda que temia pelo seu filho e por isso efectuou dezenas de depósitos bancários. (facto 20 da acusação)

22. O arguido vendeu “tabaco” a RR, recluso no estabelecimento prisional, que efectuou os pagamentos ao arguido através da sua irmã, SS, que realizou pelo menos dois depósitos na conta titulada pela arguida BB, a saber, um em …/04/2015 de 10,01 € o outro em …/05/2015, de 35,00 €. (facto 21 da acusação)

Acresce que,

23. No dia … .06.2018, pelas 11:20 horas, efectuou-se uma busca ao domicílio da arguida BB, sita na Rua..., ..., ..., onde foi encontrado e apreendido no quarto da visada, no interior da sua carteira pessoal uma caderneta da Caixa Geral de Depósitos relativa à conta .......900, “tendo como único titular BB e data de emissão de … .12.2017 e bem assim movimentos registados entre … .03.2015 e … .06.2015 e … .12.2017 e … .03.2018”. (facto 23 da acusação)

24. Ao agir da forma descrita o arguido AA agiu com a intenção concretizada de vender produto estupefaciente a outros reclusos do estabelecimento prisional a troca de dinheiro e outros bens, com o fito de satisfazer as suas despesas e necessidades pessoais, aproveitando-se das debilidades dos outros reclusos designadamente da circunstância de serem consumidores de estupefacientes há muitos anos. (facto 24 da acusação)

25. Conhecia as características do produto estupefaciente que vendia e sabia que a sua detenção e transmissão a qualquer título lhe estava vedada e é punida por lei. (facto 25 da acusação)

26. Sabia ainda o arguido AA que ao proferir ameaças de morte aos reclusos que lhe deviam dinheiro e aos seus familiares, gerava neles o receio fundado de que tais ameaças se concretizassem, constrangendo-os dessa forma a efectuar o depósitos e/ou transferências nas contas por si indicadas. (facto 26 da acusação)

27. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei penal. (facto 27 da acusação)

Mais se provou, relativamente aos antecedentes criminais, que:

29. O arguido AA já foi condenado:

i) nos autos de proc. comum colectivo n.º 329/01.... do Juízo Central Criminal – Juiz ...- de ..., Tribunal Judicial da Comarca de ..., por acórdão de 17.01.2005, transitada em julgado em 14.02.2005, pela prática, em … .12.2001, de um crime de tráfico de estupefacientes, 9 anos de prisão, entretanto declarada extinta em 11.07.2016, após a concessão de liberdade condicional, em 31.12.2007, ter sido revogada por decisão de 23.11.2012, com trânsito em 01.02.2013;

ii) nos autos de proc. comum colectivo n.º 51/09.... do ...º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de ....., por acórdão de 03.10.2011, transitado em julgado em 06.08.2012, pela prática, em … .10.2010, de um crime de detenção de arma proibida; em … .01.2009, de dois crimes de sequestro; em … .10.2020, de um crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade; em … .01.2009, de dois crimes de roubo qualificado, na pena única e 9 anos de prisão.

30. A arguida BB não tem antecedentes criminais.

Provou-se ainda, relativamente às condições socioeconómicas, que:

31. AA nasceu em ...., para onde o pai (nacionalidade portuguesa) emigrou e constituiu família com uma cidadã ...... O seu processo desenvolvimental decorreu aparentemente de forma normativa, sem referências a anomalias, naquele país, junto dos pais e dos quatro irmãos. O agregado familiar era caracterizado por uma dinâmica relacional equilibrada e assente em valores normativos. A situação económica era modesta, mas equilibrada, fruto do trabalho dos progenitores - o pai ... e a mãe ....

32. Em 1989, quando este tinha cerca de 17 anos de idade, veio com a família para Portugal, onde continuou o seu percurso escolar, mas por pouco tempo, pois optou por iniciar desempenho de actividade laboral.

33. Aos 25 anos de idade estabeleceu uma relação com uma cidadã .... e decorridos dois anos, foram viver para ..., inicialmente em ... e mais tarde em ..., mantendo deslocações frequentes a Portugal no exercício da actividade de ....

34. Neste contexto, teve o seu primeiro contacto com o sistema de justiça penal, tendo a companheira como co-arguida num processo em que AA foi condenado na pena de 9 anos de prisão, situação que despoletou a ruptura da relação. AA esteve preso de …-02-2002 a …-12-2007, data em que foi colocado em liberdade condicional cujo termo ocorreria em 01-02-2011. A então companheira esteve presa no E.P. ... em 2002, tendo saído em Liberdade Condicional no meio da sua pena.

35. Durante o período de liberdade condicional reintegrou o agregado de origem, constituído pela mãe e alguns dos seus irmãos, com residência em ..., teve apoio familiar e teve inserção laboral.

36. Em 2008, estabeleceu uma relação com TT com quem foi viver para uma casa cedida pelo pai desta. O casal teve um descendente em Janeiro de 2009. Já no decorrer de 2019 este relacionamento terminou.

37. Apesar de um percurso aparentemente estável, em que o condenado vinha a colaborar com os serviços de reinserção social, nesse mesmo ano reincidiu na prática criminal, tendo sido detido em …-10-2010, à ordem do processo 51/09...., pela prática de vários crimes, pelos quais foi condenado na pena única de 9 anos de prisão e foi-lhe revogada a liberdade condicional.

Durante a reclusão, tem recebido o apoio da progenitora que se revela disponível para o continuar a apoiar.

38. AA encontra-se preso desde …-10-2010 em cumprimento sucessivo da pena de 9 anos de prisão e da remanescente de 3 anos, 1 mês e 1 dia de prisão decorrente da revogação de liberdade condicional.

39. À data dos factos subjacentes ao presente processo, o arguido encontrava-se detido no Estabelecimento Prisional de ..., onde, segundo refere, após incidente com elemento do corpo da Guarda Prisional, foi transferido para o Estabelecimento Prisional de ... (… .02.14). De acordo com a sua narrativa, por considerar estar a ser alvo de ameaças e extorsões naquele estabelecimento, solicitou transferência para o estabelecimento Prisional de ..., para onde foi em Julho de 2015, negando qualquer envolvimento nos factos descritos.

40. No E.P. de ... para onde foi em …-07-2015, tem apresentado uma gradual adequação comportamental às normas e regras instituídas, averbando dois registos disciplinares nesse Estabelecimento, sendo o último referente a Julho de 2018, em que, pela posse de 10 cápsulas de Omeprazol foi punido com 10 dias de proibição de utilização do Fundo de Uso Pessoal.

Tem revelado interesse por adquirir competências e ocupar o tempo de reclusão de forma útil, e assim frequentou o Programa de cariz reabilitador “Plano de Prevenção e Contingência” e foi integrado na escola, para frequentar as aulas do 12.º ano de escolaridade, que não concluiu. Ainda quando estudava, em horário extra-escolar, vinha a desempenhar funções de ....., que abandonou por alegadamente não concordar com o que lhe era exigido, desempenhando depois actividade enquanto ... desde … de Julho de 2018. Em … de Outubro de 2018 integrou Curso de ..... Tem vindo a transmitir ter sentido crítico relativamente à sua conduta criminal que justifica com o facto de se ter deixado envolver com pessoas ligadas ao “mundo do crime”.

41. Durante a presente reclusão, tem vindo a registar um percurso prisional positivo, com comportamento consentâneo com as regras e tem-se revelado empenhado na aquisição competências. Assume uma atitude crítica face à sua conduta criminal, que se propõe inverter para o seu próprio benefício e da sua família, principalmente, do filho de 9 anos de idade. No exterior, dispõe de apoio familiar da progenitora, bem como de uma eventual colocação laboral.

42. BB é o terceiro elemento dos seis descendentes do casal parental, tendo o seu processo desenvolvimental sido pautado pela precariedade das condições materiais de subsistência do seu agregado e pela disfuncionalidade da dinâmica familiar, atenta a dependência etílica de ambos os progenitores. Não obstante a afectividade que é atribuída aos pais, em relação à prole, apresentavam acentuadas lacunas ao nível das responsabilidades parentais, facto que conduziu à intervenção da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens com posterior institucionalização em organização de protecção de todos os descendentes.

43. O seu percurso escolar registou desmotivação tendo concluído o 6º ano de escolaridade. Frequentou ainda Cursos de Educação e Formação na área de ...., ..... e ..... sem que tenha concluído qualquer das formações.

44. Aos 17 anos de idade saiu da instituição onde se encontrava e reinseriu o agregado familiar da mãe, uma vez que entretanto ocorreu a separação dos pais, persistindo contudo, a problemática etílica da mãe e as dificuldades desta no que concerne à organização e gestão do seu quotidiano e da família.

45. Aos 18 anos de idade foi mãe da sua filha UU, actualmente com 9 anos de idade, tendo vivido em união de facto com o pai da mesma até aos 21 anos de idade. Após a ruptura da relação de conjugalidade a criança foi institucionalizada na sequência de défices de competências parentais então apresentados pela arguida que simultaneamente se iniciou no consumo de heroína e cocaína. Mais tarde UU foi entregue à guarda judicial do pai, cujo agregado actualmente integra. Decorrido 1 ano iniciou o tratamento com terapêutica ….., conseguindo a abstinência daquele tipo de estupefacientes e continuando a consumir canabinnóides sendo que e em Janeiro de 2012 emigra, juntamente com o seu anterior companheiro, para a ....

46. Como experiência profissional, BB trabalhou como ..., ... e de ..., sendo dominante a experiência neste ramo mas sempre sem qualquer tipo de contrato de trabalho. Enquanto na ... desenvolveu actividade laboral de modo irregular - apresentou o desconhecimento da língua como obstáculo -, dedicando-se às tarefas domésticas.

47. A arguida atribui à relação de conjugalidade acentuada conflitualidade, referindo ter sido vítima de maus-tratos pela pessoa do companheiro.

48. Em Novembro de 2017, em consequência de doença que vitimou companheiro, regressou ao país de origem sendo internada no Hospital de ….. em …-11-2017 com um “quadro psicótico e alterações de comportamento…”(sic)

49. À data dos factos, BB refere que vivia na ….. juntamente com o companheiro, subsistindo do vencimento do mesmo.

50. Actualmente integra o grupo familiar de origem, constituído pela mãe, de 49 anos de idade, viúva, ……, pela própria arguida e por um irmão, VV, de 20 anos de idade, com o 6º ano de escolaridade e a laborar como .... A interacção familiar é descrita como equilibrada e uma comunicação positiva entre todos os elementos da família, com registo de coesão entre os irmãos e mãe, para o que também contribui o facto desta se manter abstinente de bebidas etílicas há dois anos. O agregado reside em habitação arrendada, andar tipologia 3, com condições de conforto consideradas pelos seus habitantes como adequadas. Economicamente a constelação familiar subsiste da pensão de que a mãe a usufrui, no valor de 450.00€, atento o perecimento do cônjuge, com a contribuição do descendente VV, elemento do agregado profissionalmente activo e com o suporte pecuniário do namorado de BB. Usufrui de igual modo do apoio de um dos descendentes mais velhos, nomeadamente na aquisição de géneros alimentícios, quando necessário, atento os custos com a renda da habitação, no valor de 250.00€.

51. BB engravidou, tendo como projecto viver em comum com o actual namorado, com quem estabelece um relacionamento assente na reciprocidade afectiva. No que concerne aos seus problemas de saúde, a arguida é clinicamente acompanhada sendo referida a adesão ao tratamento prescrito. A arguida gere o seu quotidiano na convivialidade com a família e namorado.

52. No meio social de residência, não são atribuídos à arguida comportamentos dissonantes com o quadro legal.

53. Embora reconhecendo, num posicionamento abstracto, o conteúdo ilícito da factualidade descrita, a arguida desvincula-se da natureza da mesma e expressa os constrangimentos daí decorrentes nomeadamente a nível pessoal e familiar, pela apreensão que a presente situação jurídica origina, afirmando ausência anterior de problemas com o aparelho judicial.


  E mostram-se não provados os seguintes factos:

a) O arguido AA era vulgarmente conhecido pela alcunha de “II” (facto da acusação).

b) A arguida BB anuiu na utilização da sua conta de depósitos à ordem n.º .....900 da Caixa Geral de Depósitos pelo arguido para receber os pagamentos referidos. (facto 3 da acusação)

c) Ao disponibilizar a sua conta de depósitos a ordem para nela receber o dinheiro proveniente das vendas de droga realizadas pelo arguido AA no interior do estabelecimento prisional, a arguida BB prestou auxílio material relevante à actividade desenvolvida pelo arguido. (facto 26 da acusação)

d) A arguida sabia qual a proveniência do dinheiro e fazia-o chegar ao arguido. (facto 27 da acusação)

e) A arguida BB agiu livre, voluntária e conscientemente bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei penal. (facto 28 da acusação)

f) No referido período o arguido AA vendia, a outros reclusos, cocaína e ainda substâncias anabolizantes. (facto 2 da acusação)

g) Os depósitos e transferências bancárias elencados em 17 e 18 da factualidade dada como provada destinaram-se ao pagamento de produto estupefaciente. (facto 9 e 10 da acusação)

h) Alguns destes pagamentos foram efectuados em virtude de este ter sido ameaçado de morte quer pelo arguido quer por outros reclusos a seu mando. (facto 11 da acusação)

i) O arguido vendeu produto estupefaciente, designadamente haxixe, ao recluso NN (facto 14 da acusação)

j) O arguido vendeu produto estupefaciente a XX, recluso no Estabelecimento Prisional de ..., designadamente heroína, solicitando aos seus familiares que efectuassem os pagamentos através de transferências bancárias para a conta indicada pelo arguido AA. (facto 16 da acusação)

k) O arguido vendeu produto estupefaciente ao recluso PP (facto 17 da acusação)

l) Com o fito de obter o pagamento da droga que vendia ao recluso PP o arguido AA, por si ou por intermédio de outros reclusos a seu mando, em datas não concretamente apuradas proferiram várias ameaças de morte ao recluso PP caso este não pagasse os valores em dívida. (facto 18 da acusação)

m) Tais ameaças foram verbalizadas em alguns telefonemas feitos a QQ, mãe de PP, que por temer pela vida e integridade física do seu filho, procedeu aos depósitos de quantias nas contas indicadas pelo arguido, designadamente na conta titulada pela arguida BB. (facto 19 da acusação)

n) O recluso PP acabou por ser transferido para outra ala do Estabelecimento Prisional de .... (facto 20 da acusação)

o) O arguido vendeu produto estupefaciente a RR. (facto 21 da acusação)

p) Os arguidos não se conhecem entre si. (da contestação)


V. E decidindo:


A) Nulidade do acórdão recorrido, por omissão de pronúncia:

  Entende o recorrente que o acórdão recorrido é nulo, por omissão de pronúncia – artº 379º, nº 1, al. c) do CPP.

Dispõe-se no dispositivo legal referido que é nula a sentença “quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

A omissão de pronúncia, como é sabido, constitui um vício da decisão que se verifica quando o tribunal se não pronuncia sobre questões cujo conhecimento a lei lhe imponha, sejam as mesmas de conhecimento oficioso ou sejam suscitadas pelos sujeitos processuais.

Porém, como vem sendo entendimento uniforme deste Supremo Tribunal de Justiça, “a falta de pronúncia que determina a existência de vício da decisão incide sobre as questões e não sobre os motivos ou argumentos invocados pelos sujeitos processuais, ou seja, a omissão resulta da falta de pronúncia sobre as questões que cabe ao tribunal conhecer e não da falta de pronúncia sobre os motivos ou as razões que os sujeitos processuais alegam em sustentação das questões que submetem à apreciação do tribunal, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte em defesa da sua pretensão. Por isso, como defende este Supremo Tribunal, apenas a total falta de pronúncia sobre as questões levantadas pelas partes ou que sejam de conhecimento oficioso constitui omissão de pronúncia e, mesmo assim, desde que a decisão de tais questões não esteja prejudicada pela solução dada a outra ou outras” – Ac. STJ de 26/10/2016, Proc. 122/10.OTACBC.GI-A.S1 [2].

  Entende o recorrente que o acórdão recorrido enferma de nulidade por omissão de pronúncia porquanto, no que concerne às interrupções da audiência por períodos superiores a 30 dias, não se pronunciou sobre essa questão, suscitada no recurso do acórdão final, mas apenas sobre a matéria factual do recurso interposto de despacho interlocutório. Ter-se-á quedado, assim, “apenas pela constatação de uma única interrupção por mais de 30 dias quando na realidade o julgamento foi interrompido várias vezes por períodos que ultrapassaram os 4 e os 5 meses em fase de produção de prova”.

Ora, como bem salienta o Exmº Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação ..., na resposta que ofereceu ao recurso, a questão – saber se a audiência de julgamento pode ser interrompida por período superior a 30 dias – foi abordada no acórdão recorrido, em termos que, aliás, se nos afiguram inequívocos.

  Recordemos que o arguido havia interposto recurso de uma decisão proferida antes do acórdão final, sob requerimento seu.

   Tal despacho tinha o seguinte teor:

«(…)

Vieram os arguidos AA e BB arguir a nulidade da prova produzida nos autos, porquanto a audiência de julgamento se encontra interrompida há mais de 30 dias (ref. ....).

O MP promoveu se indeferisse o requerido, dado que a alteração legislativa introduzida no art. 328º, nº6 do CPP, pela Lei 27/2015, de 14/4, visou inequivocamente a eliminação da cominação da perda de eficácia da prova caso seja ultrapassado o prazo de 30 dias.

Apreciando.

Como decorre do despacho proferido a 22-5-2019 (ref. ...), por motivo súbito de saúde, a Mmª Juiz que preside ao julgamento dos presentes autos não se encontra ao serviço desde o dia …de Maio de 2019, no contexto de uma incapacidade temporária. Neste momento a ausência da Exma. Colega está prevista até ao dia … de Julho de 2019, desconhecendo-se se tal incapacidade se prolongará.

O julgamento dos presentes autos encontra-se em curso, tendo-se já produzido prova em sede de audiência, que se encontra interrompida, sem data para a continuação.

Como é sabido, “A audiência é contínua, decorrendo sem qualquer interrupção ou adiamento até ao seu encerramento.” (art.º 328.º, n.º 1, do CPP), sem prejuízo das interrupções legalmente previstas, entre outras, no n.º 2 do mesmo preceito.

Ademais, decorre do princípio da plenitude da assistência dos juízes, que “Só podem intervir na sentença os juízes que tenham assistido a todos os actos de instrução e discussão praticados na audiência de julgamento, salvo o disposto nos números seguintes.” (art.º 328.º-A, n.º 1, do CPP).

Estabelece o art.º 328.º-A, n.º 3, do CPP, que “Sendo temporária a impossibilidade, interrompe-se a audiência pelo tempo indispensável, a não ser que as circunstâncias aconselhem a substituição do juiz impossibilitado, o que é decidido em despacho fundamentado pelo juiz que deva presidir à continuação da audiência.”

O preceito em causa (art.º 328.º-A) foi aditado pela Lei n.º 27/2015, de 14 de Abril, que introduziu um regime de excepção no domínio da plenitude da assistência dos juízes, clarificando que o regime de substituição apenas respeita a juízes-adjuntos do Tribunal Colectivo, que a decisão de substituição do juiz impossibilitado compete ao juiz que deva presidir à continuação da audiência, prevendo expressamente que a audiência prossegue com o juiz substituto mesmo que o juiz substituído regresse ao serviço, e prevalecendo a regra do aproveitamento dos actos processuais praticados (art.º 328.º-A, n.ºs 2, 3, 4 e 6, do CPP).

Da exposição de motivos da Lei n.º 27/2015, de 14 de Abril, extraem-se dois argumentos em prol da consagrada flexibilização do princípio da plenitude da assistência do juiz: por um lado, a colegialidade do órgão que decide esbate as dificuldades inerentes à não imediação da prova por parte do juiz substituto, e por outro, a gravação da audiência de julgamento permite ao juiz substituto tomar conhecimento da prova produzida numa aproximação à imediação e oralidade dos demais juízes que integram o colectivo. Ademais, não sendo o aproveitamento dos actos já praticados uma regra absoluta, o que salvaguarda circunstâncias específicas em que haja necessidade da sua repetição, alcança-se a agilização na realização da justiça e a economia processual sem contender com os princípios conformadores do direito processual penal e com as garantias de todos os seus intervenientes.

Neste conspecto, foi alterada a redacção do art. 328º do CPP, deixando de se prever qualquer cominação para os casos de impossibilidade de retomar a audiência no prazo de 30 dias.

Em face do exposto, indefere-se a invocada nulidade da prova até então produzida em audiência de julgamento.

(…)”

Ora, em apreciação do recurso interposto deste despacho, consta do acórdão recorrido:

«No domínio da anterior legislação, o Supremo Tribunal de Justiça, proferiu o Acórdão para Fixação de Jurisprudência nº 11/2008, DR, I Série de 11-12-2008, cujo sumário era do seguinte teor: “Nos termos do artigo 328.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, o adiamento da audiência de julgamento por prazo superior a 30 dias implica a perda de eficácia da prova produzida com sujeição ao princípio da imediação. Tal perda de eficácia ocorre independentemente da existência de documentação a que alude o artigo 363.º do mesmo diploma.”

No momento em que foi proferido o citado Acórdão para Fixação de Jurisprudência, o artigo 328º,n.º 6 do CPP (aqui em causa) tinha a seguinte redacção:

“ (…)

O adiamento não pode exceder 30 dias. Se não for possível retomar a audiência neste prazo, perde eficácia a produção de prova já realizada.

(…) ”.

Actualmente, isto é, após a entrada em vigor da Lei n.º 27/2015, de 15 de Abril, o referido preceito legal passou a ter a seguinte redacção:

“ (…)

6 - O adiamento não pode exceder 30 dias. Se não for possível retomar a audiência neste prazo, por impedimento do tribunal ou por impedimento dos defensores constituídos em consequência de outro serviço judicial já marcado de natureza urgente e com prioridade sobre a audiência em curso, deve o respetivo motivo ficar consignado em ata, identificando-se expressamente a diligência e o processo a que respeita.

(…) ”.

Cotejando a anterior e actual redacção do n.º 6 do artigo 328º CPP, constatamos que deixou de estar prevista a sanção de ineficácia da prova anteriormente produzida. Contudo, a actual lei exige que, quando não for possível retomar a audiência, no prazo de 30 dias, por impedimento do tribunal ou dos defensores, fique a constar da acta o “respectivo motivo”. Este segundo segmento do n.º 6 do art. 328º do CPP admite assim implicitamente que o julgamento possa ser validamente retomado, mesmo depois de ultrapassado o prazo de 30 dias, desde que haja motivo para tal. Com efeito, quando a lei estabelece expressamente que se consigne em acta o motivo – impedimento – justificativo da impossibilidade de se retomarem os trabalhos dentro daquele prazo, está implicitamente a admitir que tal possa ocorrer.

Note-se que a Lei nº. 27/2015, de 14/4, aditou ao Cód. Proc. Penal o art. 328º-A que, no seu n.º 3 refere o seguinte:

“ (…)

3 - Sendo temporária a impossibilidade, interrompe-se a audiência pelo tempo indispensável, a não ser que as circunstâncias aconselhem a substituição do juiz impossibilitado, o que é decidido, em despacho fundamentado, pelo juiz que deva presidir à continuação da audiência.

(…) ”

Do disposto neste n.º 3 do art. 328-A do CPP decorre que a impossibilidade temporária do juiz implica a interrupção “da audiência pelo tempo indispensável” ou, face às circunstâncias do caso, a sua “substituição”. A actual lei não exige assim que a audiência só possa ser interrompida por um período inferior a 30 dias, pois prevê expressamente a possibilidade de se ultrapassar tal prazo, desde que haja motivo justificativo. Deste modo, julgamos que a impossibilidade temporária do juiz, por um período superior a 30 dias, é claramente um motivo, legalmente previsto, justificativo da impossibilidade de se retomar a audiência dentro desse período. Tal significa que, ocorrendo uma impossibilidade temporária do juiz e não tendo sido proferido despacho determinando a sua substituição, é legalmente permitida a interrupção da audiência por tempo superior a 30 dias, sem que a prova anteriormente produzida seja ineficaz.

Julgamos assim que a decisão intercalar recorrida decidiu bem, ao entender que no actual domínio legislativo a impossibilidade temporária do juiz, por período superior a 30 dias, não torna ineficaz a prova anteriormente produzida.

Alega todavia o arguido que esta interpretação do art. 328º, 6 do CPP, acolhida na decisão recorrida, é inconstitucional, por ofensa dos artigos 20º nºs 4 e 5 e 32º nº 2 in fine da Constituição da República Portuguesa e art. 6º nº 1 da Convenção Europeia do Direitos do Homem. No entanto, a alegada inconstitucionalidade da norma aplicada não vem minimamente concretizada. Com efeito, o arguido apenas refere (neste aspecto) o seguinte: “Assentando a sua decisão apenas na alteração da lei adjetiva em 2015 do art. 328º nº 6. Não fundamentando de forma rigorosa e que garanta a segurança jurídica, assim desprotegendo o arguido nas garantias de defesa.”

Como é bom de ver, este tipo de argumentação não concretiza o sentido da norma que desprotege o arguido nas garantias de defesa. O que está em causa é a interpretação de uma norma sobre a continuidade da audiência. A norma aplicada pelo Tribunal recorrido foi a norma actualmente em vigor, ou seja, o artigo 328º,n.º 6 do CPP na sua actual redacção. Ora, a actual redacção permite que, em casos justificados, a audiência seja interrompida por um período superior a 30 dias. A CRP não impõe, como garantia de defesa do arguido, a impossibilidade de interrupção da audiência por período superior a 30 dias. Deste modo, o legislador ordinário pode, no âmbito das suas atribuições, determinar a forma como deve decorrer a audiência de julgamento. Foi o legislador ordinário quem determinou que a audiência deve decorrer sem interrupções superiores a 30 dias (art. 328º, 6CC), mas foi também o legislador ordinário quem previu, desde logo, a possibilidade de tal prazo ser ultrapassado, em casos justificados. O regime legal é portanto também o de permitir que, em casos justificados devidamente consignados na respectiva acta, a audiência seja interrompida por períodos superiores a 30 dias. Ou seja, quer o regime regra, quer o regime excepcional são ambos infra -constitucionais (estabelecidos pelo legislador ordinário), pelo que a definição das excepções ao regime regra está, como é evidente, no âmbito da competência do legislador ordinário. Quer isto dizer que o regime do art. 328º, 6 do CPP não viola qualquer princípio constitucional, desde logo porque a CRP não impõe uma continuidade da audiência sem interrupções superiores a 30 dias e, muito menos, que este prazo não possa ser ultrapassado em casos devidamente justificados.

Finalmente importa apenas sublinhar que tal configura, a nosso ver, um processo equitativo e justo. Na verdade, o regime em causa (concretamente aplicado nos autos) permite que, em casos devidamente justificados, a audiência de julgamento seja interrompida, designadamente por impossibilidade temporária do juiz, por um período superior a 30 dias. Tal ocorrerá, todavia, depois de um juízo de ponderação, onde serão tomados em conta os valores em jogo, tais como a necessidade da concentração/imediação e o aproveitamento da prova já prestada em audiência. Esta ponderação tem que ser justificada, permitindo que o seu acerto seja controlado pelo tribunal de recurso. Deste modo, o regime previsto na lei ordinária (CPP), tal como foi delineado nos art. 386º e 386º-A CPP, assegura simultaneamente (i) as garantias de defesa do arguido; (ii) a celeridade processual, evitando a repetição da produção da prova já realizada, quando a mesma se encontre gravada e (iii) a plenitude da assistência dos juízes no julgamento da matéria de facto, perante os imponderáveis da realidade. Dai que também não se mostre violado o art. 20º, da CRP e 6º da CEDH.

Em suma, a inconstitucionalidade suscitada pelo arguido não tem qualquer fundamento, uma vez que o regime previsto é suficientemente flexível para assegurar as garantias de defesa do arguido, num processo equitativo justo e, no caso concreto, foi aplicado em decisão devidamente fundamentada na lei actualmente em vigor».

  Após, em apreciação das questões suscitadas no recurso interposto do acórdão final, assim se escreveu no acórdão recorrido:

«(i) Nulidade do acórdão por ter atendido a prova produzida antes da interrupção da audiência, por período superior a 30 dias (conclusões 1 a 6).

Relativamente a este ponto nada há a dizer, uma vez que a questão foi apreciada no recurso intercalar, nos termos acima expostos, pelo que não se verifica a arguida nulidade».

A questão – consistente em saber se a interrupção da audiência por período superior a 30 dias conduz à nulidade da prova entretanto produzida, como pretendia o recorrente – foi, como se vê, apreciada de forma cuidada e pormenorizada no acórdão recorrido. Independentemente de ter havido uma ou mais interrupções por período(s) superior(es) a 30 dias, a questão permanecia a mesma: saber se tal ou tais interrupções determinavam a nulidade da prova entretanto produzida.

   E sobre isso emitiu o tribunal a quo a pertinente pronúncia sendo, por isso, manifesto que o acórdão recorrido não enferma da nulidade que lhe vem apontada.

   Improcede, pois, esta pretensão do recorrente.

           

B) Erro notório na apreciação da prova; e

C) Contradição insanável entre os factos provados e não provados.


  Estatui-se no artº 434º do CPP que “sem prejuízo do disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 410º, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito”.

Como este Supremo Tribunal vem entendendo, de forma uniforme, actualmente, «quem pretenda impugnar um acórdão final do tribunal colectivo, de duas uma: - se visar exclusivamente o reexame da matéria de direito (art. 432.º d), dirige o recurso directamente ao Supremo Tribunal de Justiça; - ou, se não visar exclusivamente o reexame da matéria de direito, dirige-o, “de facto e de direito”, à Relação, caso em que da decisão desta, se não for «irrecorrível nos termos do art. 400.º», poderá depois recorrer para o STJ (art.º 432.º b). Só que, nesta hipótese, o recurso - agora, puramente, de revista - terá que visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida (a da Relação) em matéria de direito (com exclusão, por isso, dos eventuais vícios, processuais ou de facto, do julgamento de 1.ª instância), embora se admita que, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto ostensivamente insuficiente, fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias detectadas por iniciativa do Supremo para além do que tenha de aceitar-se já decidido definitivamente pela Relação, em último recurso, aquele se abstenha de conhecer do fundo da causa e ordene o reenvio nos termos processualmente estabelecidos. E é só aqui - com este âmbito restrito - que o Supremo Tribunal de Justiça pode ter de avaliar da subsistência dos aludidos vícios da matéria de facto, o que significa que está fora do âmbito legal do recurso a reedição dos vícios apontados à decisão de facto da 1.ª instância, em tudo o que foi objecto de conhecimento pela Relação» - Ac. STJ de 10/7/2003, rel. Cons. Pereira Madeira, www.dgsi.pt (subl. nosso).

Com efeito, «a partir de 01-01-99, na sequência da reforma do CPP, operada pela Lei 59/98, de 25-08, deixou de ser possível interpor recurso para o STJ com fundamento na verificação dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP. A partir de então, o STJ conhece oficiosamente desses vícios quando, num recurso restrito exclusivamente à matéria de direito, constate que, por força da inquinação da decisão recorrida por algum deles, não possa conhecer de direito sob o prisma das várias soluções jurídicas que se apresentam como plausíveis, devendo sempre o conhecimento oficioso ser encarado como excepcional, surgindo como último remédio contra tais vícios. A crítica ao julgamento da matéria de facto, a expressão de divergência do recorrente relativamente ao acervo fáctico que foi fixado e ao modo como o foi, ou seja, as considerações por si tecidas, quanto à análise, avaliação, ponderação e valoração das provas feitas pelo tribunal são, de todo, irrelevantes, pois ressalvada a hipótese de prova vinculada, o STJ não pode considerá-las, sob pena de estar a invadir o campo da apreciação da matéria de facto» - Ac. STJ de 20/10/2011, Proc. 36/06.8GAPSR.S1, 3ª sec. (subl. nosso) [3] .

 Por fim, e bem recentemente, o STJ revisitou esta questão no seu Ac. de 21/10/2020, Proc. 1551/19.9T9PRT.P1.S1, 3ª sec., mantendo o mesmo entendimento: «II – De acordo com o disposto no artigo 434.º do CPP, o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, sem prejuízo da possibilidade de este Tribunal conhecer oficiosamente dos vícios referidos no n.º 2 do artigo 410.º do mesmo Código. A discussão relativa à matéria de facto e ao modo como as instâncias decidiram quanto aos factos e sobre a valoração da prova produzida, feita pelo recorrente, está, como este Supremo Tribunal vem afirmando, excluída dos seus poderes de cognição, não podendo, pois, constituir objecto do recurso. V - O recorrente impugna perante o Supremo Tribunal de Justiça a decisão de facto da 2.ª instância, apontando-lhe o erro notório na apreciação da prova, vício contemplado no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP e violação do princípio in dubio pro reo e do princípio da livre apreciação da prova. VI – Ora, o STJ tem os seus poderes de cognição estrita e pontualmente fixados no artigo 434.º do CPP, limitados ao exclusivo reexame da matéria de direito, sendo-lhe defeso intrometer-se no reexame da matéria de facto, sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, n.os  2 e 3, do CPP, ou seja, sempre que, além do mais, ocorram os vícios previstos no n.º 2. VII - O recorrente, reeditando os fundamentos que invocou no recurso que interpôs para o Tribunal da Relação suscita o erro na fixação dos factos provados e dos factos não provados, invocando ao mesmo tempo o vício, enunciado no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, do erro notório na apreciação da prova. Ora, neste segmento do recurso que interpõe perante o STJ, o que o recorrente verdadeiramente pretende é impugnar a matéria de facto dado como assente pelo Tribunal da Relação, não aceitando a mesma e pretendendo a alteração da matéria de facto dada como provada. VIII - Na medida em que a reapreciação da matéria de facto, seja em termos amplos (erro-julgamento) seja no âmbito dos vícios do artigo 410.º do CPP (erro-vício), não pode servir de fundamento ao recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, impõe-se rejeitar, por inadmissível, nesta parte, o recurso interposto pelo arguido, nos termos conjugados dos artigos 420.º, n.º 2, alínea b), 414.º, n.º 2 e 434.º, todos do CPP» (subl. nosso).

     Posto isto:

Entende o recorrente que o acórdão recorrido enferma de erro notório na apreciação da prova, porquanto a prova produzida consistirá unicamente em 3 testemunhos prestados por “reclusos interessados no seu próprio benefício” (concl. 5ª a 8ª), de contradição insanável entre os factos provados e não provados (concl. 1ª e 2ª, na repetição da numeração) e que relativamente aos dois crimes de extorsão, os mesmos ter-se-ão considerado verificados sem qualquer assento probatório (concl. 3ª, na repetição da numeração).

Estas questões foram, todas elas, colocadas à apreciação do Tribunal da Relação ..., por ele decididas e, agora, novamente colocadas à apreciação deste Supremo Tribunal como se, de permeio, não tivesse sido proferido um acórdão por aquele tribunal superior, sendo certo que é esse – e não o proferido pelo tribunal de 1ª instância – que ora se apresenta à nossa apreciação.

    No acórdão recorrido assim se decidiu a este propósito:

«(ii) Erro notório na apreciação da prova, por assentar apenas em 3 testemunhos de reclusos interessados (conclusões 7 a 9).

Alega o arguido que a prova produzida assenta unicamente em 3 testemunhos interessados, prestados em seu próprio benefício, convocados em todos os processos que derivam deste e ali se aprestam a produzir novas afirmações de tráfico, cometidos por ex-companheiros detidos e guardas prisionais. Em suma, o arguido põe fundamentalmente em causa a credibilidade dada a estes testemunhos, que qualifica como “invenções vagas e genéricas que nada provam, destinados unicamente a forçar uma prova sem assento factual concreto e mensurável no tempo, nos preços e nas quantidades, aferidos às alegadas transferências bancárias que nada tem ou teve a ver com a co-arguida BB agora absolvida”.

Quanto a este ponto, o Tribunal formou efectivamente a sua convicção nos depoimentos de reclusos que, enquanto detidos no mesmo Estabelecimento Prisional de ... onde se encontrava o arguido/recorrente, descreveram as vezes que lhe compraram produto estupefaciente e o respectivo modo de pagamento, através de depósitos ou transferências bancárias para uma determinada conta bancária.

Neste sentido, o tribunal referiu concretamente a testemunha CC, o qual cumpriu pena no E.P juntamente com o arguido AA (recorrente), no período de 2010 a 2108, e referiu ter adquirido heroína ao arguido no interior do E.P, que era paga através de transferências bancárias ou depósito em dinheiro. O Tribunal considerou este depoimento corajoso, tendo merecido total credibilidade “pela forma espontânea, clara e vivenciada como foi prestado, embora notando-se algo receosa de futuras retaliações”. O depoimento desta testemunha foi corroborado pelo depoimento de sua mãe, quanto aos depósitos e sua frequência.

O Tribunal referiu ainda o depoimento da testemunha EE, o qual referiu ter adquirido heroína ao arguido AA (em média 5, 6 ou 7 pacotes por dia, sendo que o seu consumo diário ficava em € 25,00), no Estabelecimento Prisional de .... Esclareceu que o arguido AA lhe deu o número da conta em papel e a testemunha ligou à irmã e disse-lhe para transferir o dinheiro para essa conta. Este depoimento mereceu igualmente a credibilidade do Tribunal, “pela forma espontânea e clara como foi prestado, embora receosa de futuras retaliações”. Também a irmã do EE, FF, confirmou que fazia as transferências para contas bancárias que o seu irmão lhe dava.

Também a testemunha GG relatou ao Tribunal as compras de produto estupefaciente ao arguido AA, no interior do Estabelecimento Prisional de ..., cujo pagamento era feito do exterior através de transferência bancária para pagar droga ou tabaco do irmão.

A testemunha II - que esteve no E.P de ... de 2014 a 2018 - afirmou também ter comprado heroína ao arguido AA, consumindo 50 euros por semana. O pagamento era feito por transferência para um número que o AA lhe deu; a testemunha dava ao AA o nome da pessoa que fazia a transferência e colocava no valor da transferência mais uns cêntimos, conforme combinado.

Perante tal prova, isto é, (i) depoimentos prestados por quem adquiriu produto estupefaciente ao arguido, (ii) a existência das transferências bancárias para o respectivo pagamento (iii) e os depoimentos de quem fez as transferências e/ou depósitos bancários, a convicção formada pelo Tribunal é não só possível, como claramente plausível. Daí que o invocado erro notório na apreciação da prova não tenha a menor razão de ser.

(iii) Contradição insanável entre o conjunto de factos provados e os que deu como não provados (conclusões 10 a 12).

Alega ainda o arguido a existência de “contradição insanável entre o conjunto de factos provados e os que deu como não provados”. O arguido sintetiza a contradição entre os factos provados e não provados nos artigos 46 e 47 da motivação do recurso, do seguinte modo:

“ (…)

46. Porque os factos provados, são todos eles acompanhados das frases “Desde data não concretamente apurada”; “vendia produto estupefaciente, que obtinha de forma não concretamente apurada, a outros reclusos”; “Em datas não concretamente apuradas, mas no período referido em “1.” O arguido vendeu produto a reclusos …”; “Em diversas ocasiões o arguido vendeu … ao recluso CC …”; “o arguido, por si ou por intermédio de outros reclusos, a seu mando, em datas não concretamente apuradas proferiram várias ameaças”;” Tais ameaças foram verbalizadas em alguns telefonemas feitos a DD.”

47. Ao passo que em “factos não provados” o tribunal expôs numerosas contradições assentes e que ressaltam do próprio texto: “A arguida sabia qual a proveniência do dinheiro e fazia-o chegar ao arguido”; “No referido período o arguido AA vendia, a outros reclusos, cocaína e …”os depósitos e transferências elencados em 17 e 18 destinaram-se ao pagamento de produto estupefaciente”;” Alguns destes pagamentos foram efetuados em virtude de este ter sido ameaçado de morte pelo arguido quer por outros reclusos a seu mando;” e tantos outros factos relevantes dados como não provados, respeitantes aos mesmos reclusos.

48. Esta fundamentação, pelo modo como está vertida no acórdão é um verdadeiro non liquet processual no sentido literal do termo: confusão, ininteligibilidade.

(…)”

Como se vê, o arguido não contextualiza nem indica os concretos pontos de facto dados como provados e alíneas de factos dados como não provados que estão em contradição entre si. Alega genericamente a contradição, num aspecto em que tal concretização era fundamental, uma vez que não se provaram todos os factos da acusação. Deste modo, o facto de o acórdão ter dado como provado que o arguido vendeu produtos estupefacientes a algumas pessoas e não provado que vendeu a outras, não encerra qualquer contradição. Nada nos factos “não provados”, por exemplo, é contraditório com a situação dada como provada de que, em diversas ocasiões, o arguido vendeu estupefaciente ao recluso CC, dado que nos factos não provados apenas se deu como não provado que tivesse vendido aos reclusos referidos nas alíneas i (NN); j (XX), k (PP); o (RR).

A matéria de facto provada nos pontos 17 e 18 – cujas quantias aí referidas não se provou terem como destino o pagamento de produto estupefaciente - não é contraditória com os factos provados que dão como assente os depósitos das mesmas quantias para pagamento de tabaco. São realidades diferentes: uma é haver um depósito; outra é a sua finalidade. A falta de prova da finalidade, não é contraditória com a existência do depósito. Os pontos 17 e 18 dos factos provados reportam-se à venda de tabaco a JJ (ponto 17) e às transferências feitas pela sua mãe parta a conta ali indicada. Em suma, não estando provado que as quantias se destinavam a pagar produto estupefaciente, é coerente a falta de prova quanto a essa finalidade.

O facto não provado na al. h) – alguns destes pagamentos foram efectuados em virtude de este ter sido ameaçado de morte quer pelo arguido, quer por outros reclusos a seu mando” -refere-se apenas ao relacionamento entre o arguido e o recluso JJ. Daí que não seja fundamento para a alegação de contradição com os factos onde se deu como provado que houve ameaças de morte a outros arguidos – factos 10, 11, 13.

É assim claro que, também neste segmento, o arguido não tem razão.

iv) Inexistência de prova para os dois crimes de extorsão (conclusão 12).

Relativamente aos crimes de extorsão, alega o arguido que os mesmos foram “rigorosamente decididos como cometidos pelo arguido sem qualquer prova factual séria que mais não seja do que atoardas e presunções sem valor”.

É manifesta a falta de razão do arguido. Basta ler o conteúdo dos pontos 10, 11, 12, 13 e 14, para não se compreender a alegação do arguido. Estão ali dados como provados os elementos do tipo de crime por que o mesmo foi condenado (extorsão), relativamente aos reclusos CC e EE. A prova destes factos assenta no depoimento dos mesmos, prestado em audiência de julgamento. O recluso CC, por exemplo, referiu que chegaram a dar-lhe com um pau - o AA e o parceiro dele -, uma vez quando estava a falar à mãe. O EE também referiu que chegou a ser agredido (foi ao hospital, abriram-lhe um sobrolho, com murros e pontapés) e ameaçado (ameaçavam que lhe batiam se não pagasse) por dívidas de droga, por pessoas que andavam com o AA.

Os factos dados como provados estão assim claramente ancorados nos depoimentos daqueles que sofreram as sequelas (vítimas) do crime imputado ao arguido (extorsão). Não são “atoardas”, como diz o arguido; são crimes, como disse o Tribunal».

   Aqui chegados:

  As questões que o recorrente pretende reeditar foram já objecto de apreciação pelo Tribunal da Relação, sendo certo que, como deixámos exposto, a reapreciação da matéria de facto, seja em termos amplos (erro-julgamento) seja no âmbito dos vícios do artigo 410.º do CPP (erro-vício), não pode servir de fundamento ao recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, razão pela qual se impõe rejeitar, por inadmissível, nesta parte, o recurso interposto pelo arguido, nos termos conjugados dos artigos 420.º, n.º 2, alínea b), 414.º, n.º 2 e 434.º, todos do CPP.

  Uma última palavra, nesta matéria, para dizer que podendo o Supremo Tribunal de Justiça conhecer oficiosamente dos vícios elencados no artº 410º, nº 2 do CPP (e, em concreto, dos previstos nas als. b) e c) desse dispositivo), se concluir que por força da existência do mesmo não pode chegar a uma correcta solução de direito, não vemos que, no caso presente, tais vícios se verifiquem.

            Com efeito,

   O erro notório na apreciação da prova é o “que se verifica quando da leitura, por qualquer pessoa medianamente instruída, do texto da decisão recorrida ainda que em conjugação com as regras da experiência comum, for detectável qualquer situação contrária à lógica ou regras da experiência da vida” – Ac. STJ 2/2/2011 (rel. Cons. Pires da Graça), www.dgsi.pt.

     Para que o mesmo releve como fundamento do recurso, impõe o nº 2 do artº 410º do CPP que tal vício “resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum”.

  Desta limitação resulta que fica “desde logo vedada a consulta a outros elementos do processo nem é possível a consideração de quaisquer elementos que lhe sejam externos. É que o recurso tem por objecto a decisão recorrida e não a questão sobre que incidiu a decisão recorrida” - Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, 339 (no mesmo sentido, isto é, entendendo-se que o erro tem que resultar do texto da decisão recorrida, sem recurso a outros quaisquer elementos, ainda que constantes do processo, vai a generalidade da jurisprudência dos nossos tribunais superiores - cfr., por todos, os Acs. STJ de 2/2/2011 e de 23/9/2010 (rel. Maia Costa e Souto Moura respectivamente, www.dgsi.pt).

   De forma particularmente clara se expressou o STJ, no seu Ac. de 14/04/93, rel: Ferreira Vidigal, www.dgsi.pt: “para poder falar-se em erro notório na apreciação da prova refere-se que o colectivo, ao julgar a prova por si exibida, haja cometido um erro evidente, acessível ao observador comum e que o mesmo conste da própria decisão - e não já da motivação desta - por si só ou de acordo com as regras da experiência, não sendo admissível o recurso a elementos estranhos, ainda que constantes do próprio processo” (subl. nosso).

   Lida e relida a decisão recorrida (que, recorde-se, é a proferida pelo Tribunal da Relação ...) nela não se descortina qualquer erro evidente, ostensivo, impeditivo de uma correcta decisão da causa.

      De outro lado,

     O vício da contradição insanável da fundamentação ocorre quando se detectam “oposições factuais ou a existência de factos contraditórios na factualidade apurada” – Ac. STJ de 19/9/2007, www.dgsi.pt -, isto é, “quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões irredutíveis entre si e que não possam ser ultrapassadas ainda que com recorrência ao contexto da decisão no seu todo ou às regras de experiência comum” – Ac. STJ de 22/2/2007, www.dgsi.pt (ou, se preferirmos, “quando a sentença se encontra estruturada em factos ou motivos logicamente inconciliáveis, ou seja, do texto da decisão constam posições antagónicas que mutuamente se excluem, não podendo coexistir na mesma perspectiva lógica da decisão, tanto na coordenação dos factos e respectivas consequências, como nos pressupostos da solução de direito” – Ac. RP de 8/6/2011, www.dgsi.pt).

Como se refere no Ac. STJ de 23/9/2020, Proc. 6/18.3PEBJA.S1, 3ª sec., “verifica-se contradição insanável – a que não possa ser ultrapassada ainda que com recurso ao contexto da decisão no seu todo ou às regras da experiência comum – da fundamentação, quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios, e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão. Conforme se lê no acórdão deste Supremo Tribunal de 12-03-2015, proferido no processo n.º 418/11.3GAACB.C1.S1 - 3.ª Secção: «O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão verifica-se quando no texto da decisão constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspectiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respectivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito». (…) Apenas estamos perante uma contradição insanável entre os factos e a decisão quando no texto da decisão as posições sejam antagónicas ou inconciliáveis e não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspectiva de lógica interna da decisão, o que não é presente caso”.

  Mais uma vez: lida a decisão recorrida, não se alcança como é possível afirmar a existência de posições antagónicas ou inconciliáveis, impeditivas de uma correcta decisão da causa.

           

    D) Inexistência de prova relativa aos dois crimes de extorsão.

O arguido foi condenado, no Juízo central criminal de ..., J..., pela prática de dois crimes de extorsão, p.p. pelo art.º 223º, n.º 1, do Código Penal, nas penas parcelares de 2 (dois) anos de prisão, por cada um.

O Tribunal da Relação ..., em recurso interposto daquela decisão, confirmou o acórdão da 1ª instância.

 Assim sendo, não é admissível o recurso interposto do acórdão proferido por este último tribunal, por força do estatuído no artº 400º, nº 1, als. e) - condenação em pena de prisão não superior a 5 anos - e f) - dupla conforme, sendo a pena aplicada por cada um dos crimes de extorsão, inferior a 8 anos de prisão - do CPP.

 Este entendimento, é bom referi-lo, foi já considerado conforme à Constituição da República Portuguesa, entre outros, pelo Ac. TC 186/2013, de 4/4/2013, publicado no DR II série, de 9/5/2013, onde se decidiu: “Não julgar inconstitucional a norma constante da alínea f) do nº 1 do artº 400º do Código de Processo Penal, na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objecto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão”.

  Consequentemente, sendo recorrível o acórdão do Tribunal da Relação ... no que se refere à pena única aplicada ao arguido (e, naturalmente, no que se refere à pena parcelar aplicada pela prática do crime de tráfico de estupefacientes), não o é no que diz respeito às penas parcelares relativas aos dois crimes de extorsão.

   Aquela irrecorribilidade “é extensiva a toda a decisão, aí se incluindo as questões relativas a toda a actividade decisória que lhe subjaz e que conduziu à condenação, nela incluída a da fixação da matéria de facto” – Ac. STJ de 4/12/2019, Proc. 354/13.9IDAVR.P2.S1.

Na verdade, como vem sendo entendido por este Supremo Tribunal, “não é admissível recurso de acórdãos proferidos em recurso, pelas relações, que apliquem pena de prisão não superior a 5 anos (art. 400º, nº 1, e), do CPP). Para este efeito, este Supremo Tribunal vem entendendo uniformemente que a pena aplicada tanto é a pena parcelar, cominada para cada um dos crimes, como a pena única/conjunta, pelo que, aferindo-se a irrecorribilidade separadamente, por referência a cada uma destas situações, os segmentos dos acórdãos proferidos em recurso pelo tribunal da Relação, atinentes a crimes punidos com penas parcelares inferiores a 5 anos de prisão, são insuscetíveis de recurso para o STJ, nos termos do art. 432.º, n.º 1, b), do CPP. Irrecorribilidade que abrange, em geral, todas as questões processuais ou de substância que (quanto a tais crimes) tenham sido objeto da decisão, nomeadamente, os vícios indicados no art. 410.º, nº 2, do CPP, as nulidades das decisões (arts. 379.º e 425.º, n.º 4, do CPP) e aspetos relacionados com o julgamento dos mesmos crimes, aqui se incluindo as questões atinentes à apreciação da prova – v.g., as proibições de prova, o princípio da livre apreciação da prova e, enquanto expressão concreta do princípio da presunção de inocência, o in dubio pro reo –, à qualificação jurídica dos factos e com a determinação das penas parcelares (v.g. Acs. de 10-10-2018, Proc. n.º 144/09.3JABRG.G1.S1, 3.ª secção, de 26-09-2018, Proc. n.º 141/15.0GAANS.C1.S1, 5.ª Secção, de 16-05-2018, Proc. n.º 556/16.6PFCSC.L1.S1, 5.ª Secção, de 14-02-2018, Proc. n.º 2736/14.3TDPRT.P1.S1, 3.ª Secção, e de 07-02-2018, Proc. n.º 483/15.4GACSC.L1.S1, 3.ª secção)” – Ac. STJ de 4/7/2019, Proc. 461/17.9GABRR.L1.S1, 3ª sec. (subl. nosso).

 “Sendo um acórdão irrecorrível, no âmbito das penas parcelares, óbvio é que as questões que lhe subjazem, sejam elas de inconstitucionalidade, processuais ou substantivas, sejam interlocutórias, incidentais ou finais, quer referentes às ilicitudes, responsabilidade criminal ou medida das penas, enfim das questões referentes às razões de facto e direito da condenação em termos penais, não poderão também ser conhecidas pelo STJ” – Ac. STJ de 15/4/2015, Proc. 3/12.2PAMGR.C1S1, 3ª sec.; no mesmo sentido, o recente Ac. STJ de 21/10/2020, Proc. n.º 1551/19.9T9PRT.P1.S1 - 3.ª sec. (subl. nosso)  [4].

Em conclusão: impõe-se a rejeição do recurso, na parte relativa aos dois crimes de extorsão por cuja autoria o recorrente foi julgado e condenado, nos termos das disposições conjugadas dos artºs 400º, nº 1, als. e) e f), 432º, nº 1, al. b), 414º, nº 2 e 420º, nº 1, al. b), todos do CPP.


E) Qualificação jurídica dos factos: tráfico de estupefacientes agravado/ tráfico de menor gravidade.

    O tribunal a quo abordou desta forma tal temática:

«Sustenta o arguido que, mesmo aceitando a prova indicada no acórdão, “nunca o crime poderia preencher o tipo do art. 21º do DL 15/93, de 22/1, mas sim, quando muito, o crime de tráfico de menor gravidade”. Argumenta que não se verifica a agravante da al. h) – tráfico no interior de EP – pois não é raro que sejam encontradas pequenas porções de produtos estupefacientes em reclusos e tais factos apenas levaram a processos disciplinares e, no máximo, a condenações por tráfico de menor gravidade.

O acórdão recorrido entendeu que os factos dados como provados integravam a prática, pelo arguido, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos art.ºs 21.º e 24.º, al. h), do Decreto-lei 15/93, de 22 de Janeiro, e condenou-o na pena de 10 (dez) anos de prisão.

Nos termos do art. 24º, al. h) do Dec. Lei 15/93, de 22/1, as penas previstas no art. 21º e 22º são agravadas de um quarto no seu limite mínimo e máximo quando, entre outras circunstâncias ali referidas, “h) a infracção tiver sido cometida em (…) estabelecimento prisional (…)”. No presente caso, os múltiplos casos de venda de produtos estupefacientes ocorreram no interior de um estabelecimento prisional, pelo que, quanto a essa circunstância, a mesma é inquestionável. Mesmo que se admitisse que não bastava a prática da infração em estabelecimento prisional, para se preencher a qualificativa, e se pudesse afastar esta, em circunstâncias especiais, de tráfico de pequenas porções, ocorrido uma só vez, não é esse o caso dos autos. As operações imputadas ao arguido e dadas como provadas neste processo mostram-nos um caso de tráfico de grandes proporções, envolvendo vários produtos, durante muito tempo. Daí que, neste caso, seja indiscutível a verificação da circunstância qualificativa, prevista na al. h) do art. 24º do Dec. Lei 15/93 de 22/1».


    Dispõe-se no artº 21º, nº 1 do DL 15/93, de 22/1:

“Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos”.

  Tal pena será aumentada – artº 24º do mesmo diploma - “de um quarto nos seus limites mínimo e máximo se: (…) h) A infração tiver sido cometida (…) em estabelecimento prisional (…)”.

   De outro lado, assim se estatui no artº 25º desse diploma:

“Se, nos casos dos artigos 21º e 22º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:

a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;

            (…)”.

Como se assinala no Ac. deste STJ de 12/10/2016, Proc. 15/13.9PEBJA.E1.S1, “a circunstância de a infracção ter sido cometida em estabelecimento prisional não produz efeito qualificativo automático, antes exigindo a sua interpretação teleológica, por forma a verificar se a concreta modalidade da acção, a concreta infracção justifica o especial agravamento da punição querida pelo legislador. É este o entendimento dominante, podendo citar-se, neste sentido os acórdãos deste Supremo Tribunal referenciados no citado acórdão de 26-09-2012, que se vem acompanhando: de 14-07-2004 (Proc. n.º 2147/04 -3.ª Secção; de 30-03-2005 (Proc. n.º 3963/04 - 3.ª Secção, in CJSTJ 2005, tomo 1, pág. 224; de 21-04-2005 (Proc. n.º 1273/05 - 5.ª Secção; de 28-06-2006 (Proc. n.º 1796/06 - 3.ª Secção, CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 230 (a agravante resultante do tráfico ocorrer em estabelecimento prisional não é de aplicação automática); de 06-07-2006 (Proc. n.º 2034/06 - 5.ª Secção; de 12-10-2006 (Proc. n.º 2427/06 - 5.ª Secção; de 29-11-2006 (Proc. n.º 2426/06 - 3.ª Secção; de 02-05-2007 (Proc. n.º 1013/07 - 3.ª Secção; de 12-07-2007 (Proc. n.º 3507/06 - 5.ª Secção; de 16-01-2008 (Proc. n.º 4638/07 - 3.ª Secção); de 06-11-2008 (Proc. n.º 2501/08 - 5.ª Secção; de 21-01-2009 (Proc. n.º 4029/08 - 3.ª Secção (a detenção de droga, no interior de um estabelecimento prisional, por um recluso, em cumprimento de pena, não é circunstância bastante de per se que agrave automaticamente a punição, qualificando o crime). É preciso que resulte do facto verificado que essa detenção de estupefaciente se traduz numa conduta dolosa do agente com vista a potencial produção do resultado desvalioso que levou o legislador a autonomizar o especial agravamento”.

E essa potencial produção do resultado desvalioso que está na origem da agravação consiste na “perturbação do processo de ressocialização dos reclusos e no grave transtorno da ordem e organização das cadeias que o tráfico comporta” – Ac. STJ de 07/07/2009, Proc. 52/07.2PEPDL.S1 - 3ª Sec.; ou, como impressivamente se refere no Ac. 8/2/2006, Proc. 3790/05 - 3.ª Sec, “no desrespeito pelos objectivos de prevenção e de reinserção ínsitos necessariamente no cumprimento das penas e prosseguidos pela instituição prisional”.

    Ora, no caso em apreço, não estamos perante uma mera detenção de produto estupefaciente; não nos quedamos perante uma tentativa, gorada, de introdução de estupefaciente em estabelecimento prisional; tão pouco nos deparamos com uma cedência ocasional de produto estupefaciente.

    O que os autos evidenciam é que o arguido, durante um período de cerca de 1 ano e 4 meses, no Estabelecimento Prisional de ..., onde se encontrava detido em cumprimento de pena, se dedicou à venda de produtos estupefacientes, designadamente haxixe e heroína, a outros reclusos, a troco de maços de tabaco ou de quantias em dinheiro depositadas ou transferidas para uma conta bancária titulada por uma sua co-arguida.

   Tais pagamentos eram feitos quer pelos próprios reclusos (no gozo de saídas precárias do estabelecimento prisional) ou por familiares ou conhecidos, sendo as quantias depositadas com um valor em cêntimos (01; 02; 03) de forma a identificar a pessoa por quem ou a mando de quem é feito o pagamento, o que é bem demonstrativo da pluralidade de “clientes” assistidos pelo arguido.

     Assente se mostra que naquele período de 1 ano e 4 meses, na citada conta da co-arguida e proveniente da venda de estupefaciente desenvolvida pelo ora recorrente, foi creditada a quantia global de € 10.031,62.

    Como provado se mostra que naquele mesmo período o recorrente vendeu, em diversas ocasiões e entre outros, heroína aos reclusos CC, EE, como vendeu haxixe ao recluso GG, ou heroína e haxixe ao recluso II.

       Em suma: perante uma actuação continuada como a descrita, que se prolongou por um período de 1 ano e 4 meses, envolvendo vários reclusos a quem o arguido vendeu não só haxixe como, também, heroína, uma droga considerada “dura”, movimentando mais de 10.000 euros nesse período, carece de qualquer fundamento legal pretender a qualificação jurídica desses factos como um crime de tráfico de menor gravidade: inexiste, de todo em todo, qualquer facto ou circunstância que diminua, ainda para mais por forma considerável, a ilicitude do facto.

      Bem pelo contrário: o modo de execução do crime, a diversidade de consumidores servidos pelo recorrente, o tipo de droga transacionada e o período de tempo em que teve lugar a sua conduta evidenciam, de forma clara e manifesta, a perturbação do processo de ressocialização dos reclusos e o grave transtorno da ordem e organização das cadeias que o tráfico comporta que são, ao cabo e ao resto, as razões que presidem à agravação do tipo legal de crime a que se procede na al. h) do artº 24º do DL 15/93, de 22/1.

   Correcta se mostra, pois, a qualificação jurídica dos factos efectuada no tribunal recorrido, nessa parte improcedendo a pretensão do recorrente.


 F) O quantum das penas – parcelares e única – aplicadas.


 Entende o recorrente como excessiva a pena de 10 anos de prisão em que foi condenado pela prática do crime de tráfico de estupefacientes agravado, considerando igualmente exagerada a pena única de 11 anos e 6 meses de prisão que lhe foi aplicada, na sequência do cúmulo jurídico daquela pena de 10 anos de prisão com duas penas de 2 anos de prisão, cada, pela prática de dois crimes de extorsão.

            A este propósito, assim se considerou no acórdão recorrido:

«Quanto à medida concreta da pena – 10 anos de prisão – deve desde logo referir-se que a moldura abstracta da pena é de 5 a 15 anos de prisão, resultante do agravamento de 1/4 dos limites mínimo (4) e máximo (12), previstos no art. 21º do Dec. Lei 15/93, de 22/1.

Na determinação da pena concreta, o acórdão recorrido ponderou as seguintes circunstâncias:

“ (…)

Contra o arguido depõem:

.a existência de antecedentes criminais, nomeadamente pela prática de crime de igual natureza e de natureza diversa, mas sempre com uma preponderância para a violência – tráfico, detenção de arma proibida, sequestro, roubo -, o que revela uma personalidade algo desconforme ao direito e conotada com alguma agressividade;

.a reiteração com que insiste na prática do mesmo tipo de crime, de forma cada vez mais grave (agora em contexto prisional), indiferente a condenações anteriores que em nada o fizeram refrear os seus ímpetos e repensar a sua forma de estar em comunidade;

.a ilicitude do facto típico, relativamente ao crime de tráfico de estupefacientes, situa-se num grau muito elevado, considerando, desde logo a qualidade de produto estupefaciente que o arguido detinha e introduziu no estabelecimento, sendo certo que a heroína é uma “droga dura”, com efeitos nocivos nefastos e graves;

(…)

.no que toca à censura ético-jurídica dirigida ao arguido, esta radica na modalidade mais intensa do dolo, o direto (art.º 14º, n.º 1 do Código Penal), que presidiu a toda a sua atuação;

.a falta de interiorização da gravidade dos factos praticados, a não assunção dos mesmos e, portanto, a sua desresponsabilização pela sua prática;

. a inexistência de qualquer perspectiva quanto a uma futura integração social e profissional concreta e segura – sendo certo que a eventual existência de trabalho referida no DGRSP em nada se traduz, em concreto -, facto desestabilizador da sua forma de estar na sociedade, em conformidade com os valores comunitariamente instituídos.

A favor do arguido:

.a sua adequação e ocupação em meio prisional, tendo vindo a registar um percurso prisional positivo, com comportamento consentâneo com as regras e empenhado na aquisição (de) competências;

.o apoio familiar, embora tão só por parte da progenitora.

(…) ”.

Perante tais circunstâncias, o acórdão recorrido condenou o arguido na pena de 10 anos de prisão pelo crime de tráfico de estupefacientes, agravado.

Julgamos que a pena se mostra adequada e justa, tendo especialmente em conta a gravidade do ilícito cometido no estabelecimento prisional, pois a natureza dos produtos estupefacientes transaccionados, o lapso de tempo durante o qual durou o tráfico, a multiplicidade de vendas de tais produtos e a violência exercida na forma como geriu esse tráfico, mostram-nos um comportamento altamente censurável, a justificar uma pena bastante superior ao termo médio. Na verdade, a gravidade do ilícito e o grau da culpa estão num patamar bastante elevado, exigindo a aplicação de uma pena também ela elevada. Nestes termos, entendemos que a pena de 10 anos de prisão, pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, agravado, é adequada e justa».

A aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, sendo que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa – artº 40º, nºs 1 e 2 do Cod. Penal.

No que concerne à determinação da medida da pena, estatui-se no artº 71º do Cod. Penal que a mesma é feita “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” (nº 1), devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente (nº 2) o grau de ilicitude do facto, o modo de execução e a gravidade das suas consequências (al. a)), a intensidade do dolo ou da negligência (al. b)), os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram (al. c)), as condições pessoais do arguido (al. d)), a sua conduta anterior e posterior ao facto (al. e)) e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, quando a mesma deva ser censurada através da aplicação da pena (al. f)).

Como refere Germano Marques da Silva, “Direito Penal Português”, III, 130, “a determinação definitiva e concreta da pena é a resultante de um sistema pluridimensional de factores necessários à sua individualização. Um desses factores, fundamento, aliás, do próprio direito penal e consequentemente da pena, é a culpabilidade, que irá não só fundamentar como limitar a pena. (…) Mas para além da função repressiva, medida pela culpabilidade, a pena deverá também cumprir finalidades preventivas – de protecção de bens jurídicos – e de reintegração do agente na sociedade”.

  Presentes os critérios de determinação da medida concreta da pena enunciados no artº 71º do Cod. Penal, há que atender ao facto de o arguido ter agido com dolo directo, daí que intenso. É considerável, no caso, a “energia criminosa” empregue pelo recorrente, que se prolongou por vários meses, cerca de 1 ano e 4 meses, em condições particularmente adversas (em meio prisional), mas com recurso a alguma organização, como o demonstra o cuidado tido nos montantes depositados para pagamento do estupefaciente vendido (com terminação em cêntimos diferentes, em ordem a permitir a identificação do “depositante”). É intenso o grau de ilicitude dos factos, atenta a natureza (heroína e haxixe) e a quantidade de droga por ele transacionada (evidenciada no montante total depositado nesses 1 ano e 4 meses – mais de 10.000 euros). As consequências nefastas da venda de produtos estupefacientes são de todos conhecidas: a droga é responsável directa ou indirecta por grande parte da criminalidade verificada no nosso País e está na origem da destruição de muitas famílias e do sofrimento de inúmeras pessoas. São significativas as exigências de prevenção geral, traduzidas na necessidade de manter a confiança da sociedade nos bens jurídico-penais violados, particularmente quando tal violação ocorre dentro dos muros de um estabelecimento prisional; como significativas são, in casu, as exigências de prevenção especial, quando é certo que, conforme provado ficou, o arguido havia sido anteriormente condenado, no Juízo central criminal de ..., precisamente pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, numa pena de 9 anos de prisão e, bem assim, no ... Juízo criminal de ..., pela prática de um crime de detenção de arma proibida, de dois crimes de sequestro, de um crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade e de dois crimes de roubo qualificado, na pena única e 9 anos de prisão.

 Simas Santos e Leal-Henriques, “Noções Elementares de Direito Penal”, 2ª ed., 169, escrevem:

“(…) a prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena, não como prevenção negativa, de intimidação, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma, enquanto estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da regra infringida”.

  No ensinamento de Taipa de Carvalho, “Direito Penal, Parte Geral”, Publicações Universidade Católica, 87 - na determinação da medida e espécie da pena o “critério da prevenção especial não é absoluto, mas antes duplamente condicionado e limitado: pela culpa e pela prevenção geral. Condicionado pela culpa, no sentido de que nunca o limite máximo da pena pode ser superior à medida da culpa, por maiores que sejam as exigências preventivo-especiais (…). Condicionado pela prevenção geral, no sentido de que nunca o limite mínimo da pena (ou a escolha de uma pena não detentiva) pode ser inferior à medida da pena tida por indispensável para garantir a manutenção da confiança da comunidade na ordem dos valores juridíco-penais violados e a correspondente paz jurídico-social, bem como para produzir nos potenciais infractores uma dissuasão mínima. Em síntese: a prevenção geral constitui o limite mínimo da pena determinada pelo critério da prevenção especial”.

   Posto isto:

  O crime de tráfico de estupefacientes agravado previsto e punido pelos artºs 21º, nº 1 e 24º, al. h) do DL 15/93, de 22/1, é punível com prisão de 5 a 15 anos.

  Ponderado todo o circunstancialismo supra enunciado, uma pena de 10 anos de prisão, situada no ponto médio da pena abstractamente aplicável, não é seguramente excessiva, antes se mostra justa, equitativa e adequada a satisfazer as necessidades de prevenção geral e especial, razão pela qual deve ser mantida.


  No que concerne à pena única:

    Estatui-se no artº 77º, nº 1 do Cod. Penal:

“1. Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

2. A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

            (…)”.

  No caso concreto, portanto, a pena única a aplicar parte de um mínimo de 10 anos de prisão, não podendo ultrapassar os 14 anos de prisão.

Como bem se refere no Ac. deste STJ de 08-07-2020, Proc. n.º 1667/19.1T8VRL.S1 - 3.ª Secção , “I. A medida da pena conjunta deve definir-se entre um mínimo imprescindível à estabilização das expetativas comunitárias e um máximo consentido pela culpa do agente. II - Em sede de cúmulo jurídico a medida concreta da pena única do concurso de crimes dentro da moldura abstrata aplicável, constrói-se a partir das penas aplicadas aos diversos crimes e é determinada, tal como na concretização da medida das penas singulares, em função da culpa e da prevenção, mas agora levando em conta um critério específico: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente. III - À visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, sucede uma visão de conjunto em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detetar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente. IV - De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente- exigências de prevenção especial de socialização”.

  Na consideração conjunta dos factos, haverá que ter em conta que os mesmos se traduzem na prática de um crime contra a saúde pública e dois crimes contra a liberdade de disposição patrimonial, aliás relacionados entre si, porquanto estes últimos tiveram como objectivo obter o pagamento do estupefaciente que vendeu, no interior do estabelecimento prisional; os crimes de extorsão, como provado ficou, traduziram-se em ameaças de morte dirigidas a reclusos, transmitidas a estes ou a familiares seus (mãe e irmã), caso estes não pagassem o estupefaciente que lhes havia fornecido. Este comportamento denuncia personalidade algo agressiva e de uma preocupante insensibilidade ao sofrimento alheio (particularmente ao de uma mãe que, vendo o seu filho preso, encara com natural e acrescida aflição uma ameaça à sua vida). São, de outro lado, elevadas as necessidades de prevenção geral, traduzidas na necessidade de manter a confiança da sociedade nos bens jurídico-penais violados. Como elevadas se mostram as necessidades de prevenção especial, tendo em conta os antecedentes criminais do recorrente.

Tudo ponderado, a pena de 11 anos e 6 meses encontrada na 1ª instância e confirmada no acórdão recorrido, situada abaixo do ponto médio da pena abstractamente aplicável, mostra-se justa e adequada à realização das finalidades da punição sendo, por isso, de manter.


VI. São termos em que, sem necessidade de mais considerações, acordam neste Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar parcialmente o recurso, no que respeita aos dois crimes de extorsão por cuja autoria o recorrente foi julgado e condenado, à invocação dos vícios da sentença a que alude o artº 410º, nº 2 do CPP e à impugnação da matéria de facto, negando-lhe provimento no restante e confirmando, por isso, o acórdão recorrido.


  Custas pelo recorrente (artº 513º, nº 1 do CPP), fixando-se a taxa de justiça em 6 (seis) UC´s. Pagará o recorrente uma importância correspondente a 4 UC’s – artº 420º, nº 3 do CPP - em razão da rejeição parcial do recurso.



Lisboa, 2 de Dezembro de 2021 (processado e revisto pelo relator)


Sénio Alves (Juiz Conselheiro relator)

Ana Brito (Juíza Conselheira adjunta)

________

[1] Transcrição dos factos provados sob 29.
[2] No mesmo sentido, cfr., a título meramente exemplificativo, os Acs. deste STJ de 10/12/2020, Proc. 936/18.2PBSXL.S1 e de 6/11/2019, Proc. 30/16.0T9CNT.C2-A.S1.
[3] No mesmo sentido, cfr. Ac. STJ de 11/2/2012, Proc. 951/07.1GBMTJ-E1.S2: «Desta forma, como se referiu no acórdão do STJ de 24-02-2010, Proc. n.º 151/99.2PBCLD.L1.S1, “o ciclo da impugnação da matéria de facto fechou-se no recurso interposto para a Relação com a prolação do acórdão respectivo, entidade essa competente para conhecer da matéria de facto em sede de recurso, nos termos do art. 428.° do CPP (...). A decisão recorrida é o acórdão da Relação e não mais a sentença da l.ª instância. Decidido/confirmado pela Relação o substracto fáctico (...), e não sendo mais possível o recurso no segmento da matéria de facto (porque reapreciado já, em segunda e derradeira instância, cumprido, pois, o constitucionalmente previsto duplo grau de jurisdição em matéria de facto), transitou em julgado” (…). No caso de recurso interposto de acórdão da Relação, como ora ocorre, porém, o recurso terá de visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida (a da Relação) em matéria de direito. É, assim, inadmissível a invocação pelo interessado de vícios da decisão previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, sem que isso obste a que o STJ deles conheça oficiosamente, se o traçado quadro fáctico no concreto caso assim o impuser, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto ostensivamente insuficiente, fundada em erro de apreciação, ou assente em premissas contraditórias detectadas por iniciativa do STJ, ou seja, se concluir que por força da existência de qualquer dos vícios não pode chegar a uma correcta solução de direito e devendo sempre o conhecimento oficioso ser encarado como excepcional, surgindo como último remédio contra tais vícios».
[4] No mesmo sentido, cfr. Acs. STJ de 29/4/2020, Proc. 928/08.0TAVNF.G1.S1, 3ª sec., de 14/10/2020, Proc. 315/18.1PAOVR.P1.S1, 3ª sec., ou de 30/3/2016, Proc. 2932/07.6JFSB.C1.S2, 3ª sec.