Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1281/19.1T8VCD.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
FIXAÇÃO JUDICIAL DE PRAZO
CRITÉRIOS DE CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE
PRINCÍPIO DO PEDIDO
PEDIDO IMPLÍCITO
CONDENAÇÃO EXTRA VEL ULTRA PETITUM
EQUIDADE
ESCRITURA PÚBLICA
CONTRATO-PROMESSA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
AMBIGUIDADE
DECISÃO SURPRESA
Data do Acordão: 01/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. É admissível nos processos de jurisdição voluntária a decisão mais conveniente e oportuna que o Tribunal entenda dever proferir ainda que não seja aquela decisão que foi pedida, importando, no entanto, que haja uma conexão ao nível da decisão entre o que se decidiu e o que se pediu.

II. Nos processos de jurisdição voluntária não é absoluta a regra do artigo 609 nº1 do CPC tendo sido já admitida (desde há muito) a condenação ultra petitum designadamente no âmbito de processo tutelares cíveis embora essa possibilidade de não restrinja aos que tenham esse objeto.

III. Porque o tribunal nos processos de jurisdição voluntária não está sujeito a critérios de legalidade estrita tal liberdade de ação pode implicar uma condenação qualitativamente diversa justificada por a latitude na indagação e fixação dos factos e a obrigação de uma solução equitativa não pode estar limitada pelo pedido, o qual deve entender-se ser uma indicação.

Decisão Texto Integral:

Relatório

Caleiconde - Serviços e Investimentos Imobiliários Lda. intentou a presente ação com processo especial para fixação judicial de prazo contra AA e mulher, BB alegando que celebraram um “contrato promessa de compra e venda” de um imóvel; os requeridos assumiram a obrigação de proceder “de imediato” ao destaque da área prometida vender e de suportar os seus custos, e ainda de, após deferimento do referido destaque, marcarem a escritura pública de compra e venda e avisarem de tal facto a requerente; a requerente, por diversas vezes, solicitou aos requeridos a marcação da escritura pública de compra e venda; requerente e requeridos não acordaram quanto ao prazo para a marcação da escritura, por isso pede a condenação dos requeridos a proceder à marcação da escritura de compra e venda do prédio em causa, fixando-se o prazo de noventa dias para o efeito.

Os requeridos contestaram e instruídos os autos foi proferida decisão que julgou totalmente improcedente a ação, absolvendo os requeridos do pedido.

O requerente interpôs recurso de apelação desta sentença que veio a ser julgado procedente e, revogando a decisão recorrida, fixou em 180 (cento e oitenta) dias o prazo para outorga da escritura do contrato prometido, a contar da notificação do presente acórdão aos Requeridos/Recorridos, prazo que abrange a conclusão do processo de destaque do prédio objeto do contrato-promessa em causa e todas as demais obrigações secundárias e acessórias face à obrigação principal de outorga do contrato prometido.

É desta decisão que os recorrentes pretendem interpor agora recurso de revista concluindo que:

“ O acórdão proferido está ferido de nulidade.

b. Por um lado, o acórdão proferido trata-se de uma decisão surpresa.

c. O escopo decisório do acórdão excede claramente o pedido, incorrendo em matéria de que o tribunal podia tomar conhecimento, o que importa uma nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil.

d. A vinculação ao princípio do pedido, não fica afastada pela circunstância de estarmos perante um processo de jurisdição voluntária.

e. O processo de jurisdição voluntária não é um processo livre do princípio do pedido, a particularidade destes processos, assenta apenas na atividade inquisitória do juiz.

f. O princípio do pedido, como resulta da sua formulação traduz um limite inultrapassável aos poderes do Tribunal. E isto significa que o Tribunal jamais poderia considerar-se que não estava vinculado pelo princípio do pedido, tal como o fez.

g. Por outro, a decisão acaba por conhecer de objeto diverso do pedido.

h. O pedido do A era alusivo à marcação da escritura e a decisão acaba por atribuir aos ora recorrentes um ónus que nem sequer foi pedido, ou seja, o ónus de fazer cumprir a condição determinada pelas partes.

i. Este tema nunca foi objeto dos autos e, acabou por ser – sem contraditório – objeto da decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto.

j. Por fim, também é nula por existir uma colisão entre a decisão proferida e os factos provados.

k. A obrigação do destaque, bem ou mal, foi realizada, acabando o tribunal a condenar os recorridos em algo que já foi feito.

l. O que torna a decisão ininteligível, pois, a partir do momento em que a pretensa obrigação para qual se fixa um prazo já foi cumprida, há uma contradição lógica no aresto… se está dado como provado que a condição

foi prosseguida – bem ou mal – apenas há que apreciar o incumprimento ou cumprimento e as suas consequências, mas não, cremos, a repetição do que já feito.

m. Mesmo que se considere que o acórdão não está ferido de nulidade, sempre se dirá que a exigibilidade da obrigação de celebração do contrato prometido estava dependente de condição suspensiva, a conclusão com sucesso do procedimento administrativo de destaque do objeto do contrato prometido.

n. Sendo exigível a obrigação de celebrar o contrato prometido, as partes estipularam prazo certo para o seu cumprimento, 15 dias após a receção de comunicação de que tal procedimento estava concluído, com local, dia e hora previstas para a escritura.

o. A fixação do momento em que a obrigação deve e pode ser cumprida, deve ter em consideração, em primeiro lugar, o estipulado pelas partes, e apenas na falta de estipulação se pode recorrer ao artigo 777.º do Código Civil.

p. No caso em apreço, as partes estipularam prazo, pelo que a vontade das partes não pode ser contrariada por via da presente ação especial.

q. Não estamos perante obrigações acessórias ou secundárias, mas uma verdadeira condição.

r. As partes estipularam que a exigibilidade da obrigação principal estava dependente de um facto futuro e incerto, a conclusão com sucesso do procedimento administrativo de destaque.

s. As obrigações acessórias ou secundárias, na medida, que são instrumentais à obrigação principal, preparando o seu cumprimento e execução, apenas são exigíveis quando a obrigação principal também o for.

t. No caso em apreço, o procedimento de destaque foi desencadeado, mas caducou, pelo que não se verificou o evento do qual a exigibilidade da realização da escritura de compra e venda estava dependente.

Conclui pedindo a revogação da decisão recorrida e a improcedência da ação.


Nas contra alegações a recorrida defende a improcedência da revista.

 Colhidos os vistos cumpre decidir.

… …

 Fundamentação

Está provada a seguinte matéria de facto:

1. Por escrito denominado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, outorgado em 11-09-2006, os Requeridos, na qualidade de primeiros outorgantes, e a Requerente, na qualidade de segunda outorgante, declararam celebrar entre si o mencionado contrato, tendo por objeto “(…) a área de 7.347.00 m2, melhor identificados no levantamento topográfico que fica anexo ao presente contrato e que dele faz parte integrante, a destacar do prédio acima descrito, destaque esse a requerer na Câmara Municipal ..., e que correrá por conta dos requeridos” (cláusula 2.º).

2. O prédio descrito no escrito referido em 1) e do qual seria a destacar a área de 7.347.00 m2 é o prédio rústico denominado “Campo ...”, com a área de 31.000 (trinta e um mil) m2, sito no Lugar ..., da Freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...42 de ..., e inscrito na matriz rústica respetiva sob o artigo ...70.

3. O preço estipulado para a compra daquela parcela com 7.347 m2, foi de 82.455,00 € (oitenta e dois mil quatrocentos e cinquenta e dois euros).

4. A Requerente entregou aos Requeridos, na data da celebração do identificado contrato promessa, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de 24.736,50 € (vinte e quatro mil setecentos e trinta e seis euros e cinquenta cêntimos).

5. A restante quantia em divida será paga no ato da outorga da escritura pública de compra e venda.

6. Do escrito mencionado em 1) consta, ainda, na cláusula 5.ª que: “A escritura definitiva de compra e venda realizar-se-á após estar concluído o processo de destaque do prédio prometido, sendo que para o efeito os primeiros outorgantes comunicarão tal facto à segunda outorgante, através de carta registada com aviso de receção, na qual comunicarão também o local, o dia e a hora previstas para a escritura pública, sendo a mesma realizada nos 15 (quinze) dias posteriores ao recebimento da carta pela segunda outorgante, mas sempre após o deferimento do pedido de destaque que irá ser de imediato realizado pelos promitentes vendedores”.

7. A Requerente propôs contra os Requeridos uma ação comum, a qual correu termos do ... Juízo Cível de ... sob o n.º 1546/10...., na qual pediu que os segundos fossem condenados a pagar-lhe a quantia de €49.473,00, mais juros de mora, correspondente ao dobro da quantia entregue a título de sinal no contrato de promessa, invocando o incumprimento do mesmo pelos aqui Requeridos, por não terem procedido ao destaque da parcela nem à marcação da escritura, concluindo que os Requeridos haviam incumprido definitivamente o contratado.

8. No processo referido em 7) foi proferida sentença, em 28-06-2013, a julgar improcedente a ação e a absolver os requeridos do pedido, entre o mais, com o fundamento de ”(…) não tendo a Autora/credor instado os RR./devedores para cumprirem; não se estando perante nenhuma das situações previstas pelo n.º 2 do citado art. 805º em que se considera existir mora do devedor independentemente de interpelação e nada permitindo concluir que a prestação – quer o inicial destaque quer a posterior compra e venda – já não seja possível, inexiste fundamento para concluir que os RR. se encontram em mora quanto ao cumprimento das obrigações a que ficaram adstritos no contrato de promessa em apreço.

9. A Requerente propôs contra os Requeridos uma ação de processo comum, a qual correu termos no Juiz ... do Juízo Central Cível ... sob o n.º 162/17...., na qual pediu a resolução contratual do contrato de promessa e a restituição em dobro da quantia entregue, invocando que os Requeridos nunca levaram a efeito o destaque, não marcaram a escritura de compra e venda, na qual a Requerente perdeu interesse por falta de interessados em comprar e por os preços de mercado terem baixado.

10. A ação referida em 9) foi julgada improcedente por sentença proferida em 24-09- 2018, sem prejuízo do artigo 621.º do CPC, 2.ª parte, e com o fundamento na falta de fixação do prazo para cumprimento.

11. O processo camarário de destaque do prédio prometido caducou em inícios do ano de 2009.

… …

Além de delimitado pelo objeto da ação e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjetivo ou objetivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (art.º 635.º, nºs 2, 1.ª parte, e 3.º a 5.º, do CPC).

No caso, para lá do conhecimento das nulidades da sentença invocadas, a única questão suscitada é a de saber o prazo deveria ser fixado e se o foi corretamente.

… …

Nas suas conclusões os recorrentes protestam que a decisão recorrida constitui uma “decisão surpresa” porque versa sobre tema diferente do pedido apresentado.

Analisando esta alegação lembramos que as decisões surpresa são as proferidas sobre uma questão que, embora previsível, não tenha sido configurada pela parte, sem que a mesma tivesse obrigação de a prever.

Radicando no nº 3 do art. 3º do CPC, a proibição de decisões-surpresa pretende enfatizar a utilidade prática do contraditório ao serviço da administração da justiça, reforçando-se, a colaboração e o contributo das partes com vista à satisfação dos seus próprios interesses na justa composição dos litígios. Considerando a inobservância do contraditório constituir uma omissão grave por representar uma nulidade de natureza processual sempre que tal omissão seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, prescreve-se com a nulidade a decisão (surpresa) quando à parte não foi dada possibilidade de se pronunciar sobre os factos e respetivo enquadramento jurídico, mesmo que adjetivo.

Esta enunciação permite por si mesma perceber a falta de fundamento legal da arguição dos recorrentes nesta matéria porque, se em verdade protestam contra o que classificam de decisão surpresa, de imediato apontam essa falta à circunstância de a decisão recorrida “versar sobre tema diferente do pedido apresentado”. Efetivamente, se a decisão recorrida versou sob tema diverso do pedido não se está em rigor perante uma decisão surpresa, mas sim na previsão do art. 615 nº 1 al. e) do CPC por a decisão recorrida ter condenado em quantidade superior e/ou objeto diverso do pedido, o que os recorrentes arguem juntando esta às nulidades da als. d) e b) do mesmo diploma que igualmente suscitam.

Em resumo os recorrentes apontam a nulidade da decisão recorrida por:

- ter conhecido de questão que não podia conhecer por ter com condenado além do pedido, o que lhe estava vedado

- ser ininteligível e contraditória com os factos provados.

Apreciando estas nulidades tornamos expresso o que se discute nos autos: a autora requereu ao tribunal a fixação de prazo para os réus marcarem a data da escritura pública referente ao contrato promessa que celebraram e cuja marcação cabia a estes pedindo que o prazo fosse de 90 dias;

a decisão recorrida fixou o prazo de 180 (cento e oitenta) dias para outorga da escritura do contrato prometido, a contar da notificação do presente acórdão aos Requeridos/Recorridos, prazo que abrange a conclusão do processo de destaque do prédio objeto do contrato-promessa em causa e todas as demais obrigações secundárias e acessórias face à obrigação principal de outorga do contrato prometido.

As concretas questões apontadas como nulidades, que os recorrentes inscrevam nas diversas alíneas do art. 615 nº1 do CPC traduzem-se em, não poder a decisão recorrida ultrapassar o pedido de 90 dias; não poder incluir essa decisão a alusão a que esse prazo abrange as demais obrigações secundárias ou acessórias; não poder fixar prazo algum (com a consequente improcedência da ação) porque se a obrigação de os réus marcarem a escritura estava dependente de estes diligenciarem pela obtenção de um destaque e se o processo camarário de destaque do prédio prometido caducou em inícios do ano de 2009 isso significa que  significa que a obrigação do destaque foi realizada não podendo a decisão recorrida ordenar que o destaque seja de novo realizado.

A este propósito entendemos que ao ter sido fixado o prazo de 180 dias quando no pedido constava o de 90 não se cometeu na decisão recorrida qualquer nulidade.

No âmbito do pedido tem-se entendido que este não é desrespeitado quando um pedido, embora não expressamente formulado, se deva considerar implicitamente formulado o que é evidente nos casos em que um pedido de condenação numa determinada quantia tem implícito o pedido de condenação em quantia menor, mas o que também ocorre quando o pedido se inscreve no âmbito de um pedido que abranja a totalidade dos elementos do pedido que não foi formulado divergindo-se apenas em razão da qualificação jurídica (v.g. pedido de anulação em vez de nulidade ou declaração de ineficácia em vez de nulidade) – vd. acs. da RL de 3-7-2008 no proc e acs. STJ de 17-2-2005 na revista 89/05 e de 29-11-2006 na revista nº 2210.

O sentido desta admissibilidade assenta em esse pedido, não formulado expressamente, mais não ser que o pressuposto ou condição necessária da pretensão formulada designadamente quando o pedido não pode ser considerado relevante em termos práticos quando autónomo.

Sabemos ainda que em sede de jurisdição voluntária, será admissível a decisão mais conveniente e oportuna que o Tribunal entenda dever proferir ainda que não seja aquela decisão que foi pedida, importando, no entanto, que haja uma conexão ao nível da decisão entre o que se decidiu e o que se pediu. Nestes processos o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes prevalecendo a atividade inquisitória do juiz sobre o princípio da atividade dispositiva das partes.

Por esta razão nos processos de jurisdição voluntária não é absoluta a regra do artigo 609 nº1 do CPC tendo sido já admitida (desde há muito) a condenação ultra petitum designadamente no âmbito de processo tutelares cíveis – acs. RC de 25-5-1977 in,B.M.J. 270-265 ac. RL de 16-1-1986 C.J., 1, pág. 91, ac. RE de 11-12-1975 ,B.M.J.254-246 e ac. RL de 3-7-2008 já citado.

Quer se trate de uma limitação quantitativa (proibição de o juiz ultrapassar em quantidade os limites constantes do pedido formulado) quer se trate de condenar em objeto diverso do que se pediu, ou seja, uma limitação qualitativa, nos processos de jurisdição voluntária a possibilidade persiste porque no plano desta jurisdição, não se verifica uma absoluta intangibilidade dos limites de condenação.

Mesmo que se tenha por referência ôntica que a ultrapassagem dos limites no plano quantitativo será sempre portadora de alguma reserva por se apresentar desvantajosa para a parte vencida, uma alteração qualitativa poderá  ter diferentes leituras porque não será aceitável uma alteração qualitativa que não tenha uma conexão mínima com a pretensão do requerente da providência, “pois isso se traduziria numa injusta, porque inesperada, decisão-surpresa. Mas não choca, bem pelo contrário, parece até razoável aceitar-se condenação em objeto diverso desde que haja entre esta e a mais ampla pretensão formulada relevante elemento de conexão tratando-se de processos de jurisdição voluntária.” - Ac. RL de 3-7-2008 citado, relator Salazar Casanova.

Porque o tribunal nos processos de jurisdição voluntária não está sujeito a critérios de legalidade estrita tal liberdade de ação pode implicar uma condenação qualitativamente diversa, que até poderá ser menos prejudicial do que a decisão que se limitasse a condenar no pedido tout court.

No caso em presença no âmbito da alteração quantitativa conclui-se que ela está autorizada pela natureza do processo de jurisdição voluntária não se podendo entender que a latitude na indagação e fixação dos factos dos factos e a obrigação de uma solução equitativa pudesse estar limitada pelo pedido, o qual deve entender-se ser uma indicação. Aliás, na ação de fixação judicial do prazo o pedido é esse e só esse, o de fixar um prazo que, mesmo não tendo havido contestação o que conduziria às consequências previstas no art. 1027 nº2 do CPC, será tanto mais vantajoso para os requeridos quanto maior seja, como ocorre no caso em que se fixou não o de 90 dias, mas sim o de 180 dias.

No domínio da alteração qualitativa os recorrentes defendem que a decisão recorrida, ao incluir na fixação do prazo a advertência a que nele se contém a conclusão do processo de destaque do prédio objeto do contrato-promessa em causa e todas as demais obrigações secundárias e acessórias face à obrigação principal de outorga do contrato prometido, condena em objeto diverso do pedido.

Não têm razão os recorrentes porque aquilo que era o pedido e finalidade na ação era a fixação e um prazo e foi isso que ficou decidido com a determinação de o prazo fixado ser de 180 dias. A circunstância de a decisão recorrida esclarecer que esse prazo para o cumprimento da obrigação da responsabilidade dos réus - da marcação da escritura - abrangia todas as diligências necessárias a esse cumprimento para lá de ser desnecessária e inócua, não constituindo o estabelecimento de qualquer condição ou obrigação, não descaracteriza de todo e em nada o pedido de fixação do prazo que foi fixado. Obviamente que se o prazo para a marcação da escritura foi fixado em 180 dias tal só pode significar que para o cumprimento dessa obrigação os réus passam a dispor desse prazo sem que possam argumentar protestativamente que antes desses 180 dias começarem o tribunal está a fixar qualquer condição ou nova obrigação. A decisão recorrida é clara no sentido de fixar um prazo para o cumprimento da obrigação discutida (a da marcação da escritura pelos réus) e indicar quando tal prazo se inicia e apenas nisto se traduz.

Não podendo considerar-se, em face do exposto, que houve no caso uma condenação em objeto diverso, sempres se deixa expresso por questões de rigor que, mesmo que tal sucedesse ela seria possível se estivesse conexionada com a pretensão do requerente. Nos processos de jurisdição voluntária pode o tribunal condenar em objeto diverso do pedido quando entre a condenação e a pretensão exista uma efetiva conexão e quando, assim procedendo, se tenha como objetivo realizado uma solução mais adequada para o litígio. Todavia, para que não existam equívocos, no caso não se verifica qualquer condenação em objeto diverso do pedido razões para que se tenham por improcedentes as arguições de nulidade da decisão recorrida invocadas pelos recorrentes.

Numa arguição híbrida, de nulidade e improcedência da ação, os recorrentes concluem que a exigibilidade da obrigação de celebração do contrato prometido estava dependente de condição suspensiva e que as partes estipularam como prazo certo para o seu cumprimento, 15 dias após a receção de comunicação de que tal procedimento condicionante estava concluído, com local, dia e hora previstas para a escritura. E se as partes estipularam que a exigibilidade da obrigação principal estava dependente de um facto futuro e incerto, a conclusão com sucesso do procedimento administrativo de destaque, por o procedimento de destaque ter caducado, impõe que se conclua que a condição foi realizada pelo que não se verificou o evento do qual a exigibilidade da realização da escritura de compra e venda estava dependente não podendo a autora propor a presente ação nem podendo ser fixado um novo prazo contrariando a vontade das partes declarada naquela.

Desta alegação fazem os recorrentes decorrer por um lado a nulidade a decisão recorrida por ininteligibilidade decorrente da contradição entre a decisão e os factos provados e, por outro lado, a improcedência da própria ação no seu mérito.

 Em comentário liminar, o art. 615 nº1 al. c) do CPC fere com a nulidade a decisão em que os fundamentos estejam em contradição com a decisão.  Não se trata da nulidade em razão da falta de fundamentação de facto e de direito - da al.b) - que está relacionada com o comando que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes. Uma fundamentação deficiente, medíocre ou errada, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.

A nulidade da al. c) do nº1 do art. 615 do CPC ancorada contradição entre fundamentos e decisão, na ambiguidade ou obscuridade da decisão proferida, remete-nos para a questão dos casos de ininteligibilidade do discurso decisório, concretamente, quando a decisão, em qualquer dos respetivos segmentos, permite duas ou mais interpretações (ambiguidade), ou quando não é possível saber com certeza, qual o pensamento exposto na sentença (obscuridade). A nulidade do aresto, sustentada na contradição entre os seus fundamentos e decisão, pressupõe um erro lógico na argumentação jurídica, dando conclusão inesperada e adversa à linha de raciocínio adotada, ou seja, apenas ocorre, quando os fundamentos invocados pelo Tribunal deviam logicamente conduzir ao resultado oposto ao que veio expresso no dispositivo do dito acórdão.

Esta enunciação faz concluir sem necessidade de explicações pela improcedência desta nulidade porque a decisão recorrida está isenta desses vícios. Da sua leitura percebe-se com facilidade e sem esforço que os fundamentos apresentados são coerentes com a decisão e com um sentido completo e consistente quando aborda as questões mais sensíveis com grande cuidado ( v.g. as da condenação diversa do pedido). Aliás, em verdade, os recorrentes apontando à ininteligibilidade da decisão recorrida, revelam nas suas conclusões que a perceberam perfeitamente quando começando por afirmar que o conteúdo dela não é percetível consentem que, afinal, o acórdão em revista fixou um prazo e que nesse prazo se contém e contempla o necessário para as diligências necessárias à marcação da escritura pública. Acrescer que sendo inteligível a decisão o que em rigor pode eventualmente ser ininteligível é que as conclusões dos recorrentes pretendam ler na decisão recorrida uma coisa que ela não expressa nem implícita: que se tenham condenado os recorrentes em qualquer obrigação, máxime a de procederem ao destaque. O que a decisão recorrida fixa é, no seu significado útil, exclusivamente, o prazo de 180 dias para os recorrentes marcarem a data da escritura pública. Não tem qualquer acolhimento pretender-se ver na decisão recorrida a fixação pelo tribunal de uma obrigação de os recorrentes procederem ao destaque, de igual modo que nenhuma inteligibilidade existe em professar-se que por a obrigação de realizar um destaque não ter sido cumprida porque o procedimento respetivo caducou, se deve ter o destaque, por conseguido ou essa obrigação por extinta.

Não esquecemos que a alegação dos recorrentes é mais elaborada e almeja convidar a entender que sem o destaque não começa a contar o prazo de 15 dias de que dispunha para marcar a escritura pública e que por o procedimento de destaque ter caducado, a obrigação de deverem proceder ao destaque terminou e, terminando, nunca o prazo para a marcação da escritura pode iniciar-se porque nenhum outro procedimento de obtenção de destaque lhe pode ser exigível. Todavia o que a decisão recorrida realiza é uma indagação correta quanto à necessidade de fixação de prazo, enquanto meio indispensável para, no âmbito do contrato-promessa em questão, a Requerente (promitente-compradora) poder exigir o cumprimento da prestação por parte dos Requeridos (promitentes-vendedores) e, assim, determinar o início da mora.

Com esta linha de construção normativa a decisão recorrida enuncia que o artigo 777 do CCivil se aplica em todas as situações em que as partes não estipularam um prazo e não existe norma legal que imponha um prazo específico para a situação.

Verificando-se no caso em presença a falta de estipulação pelas partes do prazo e ou o dia concreto no calendário em que cumprimento deve ter lugar, justifica-se a fixação do prazo judicialmente porque existe uma incerteza. A falta de fixação de prazo pelas partes ocorre, assim, quando omitem qualquer estipulação sobre o prazo do cumprimento, mas também quando as referências que lhe fazem são insuficientes para conduzir a um prazo certo, o qual continua assim a ser necessário e carecendo de determinação demanda demandar a aplicação desta norma. Como se afirma na decisão recorrida “Acontece isso quando as partes indexam a exigibilidade da obrigação a um evento futuro, mas sem data certa. É o caso dos autos em que as partes fixaram um prazo a contar de algo, mas associaram-no a um evento futuro e incerto (v.g. licenciamento da fração e fase de execução do empreendimento) que se prende com prestações acessórias do promitente-vendedor, em resultado do que a estipulação contratual no seu todo não permite definir uma data exata para o cumprimento, tornando necessária a sua fixação ulterior. (…) Num contrato… só o conjunto de todas as obrigações, principais, secundárias e acessórias permitirá cumprir o plano contratual e alcançar a composição de interesses que as partes tiveram presentes na negociação e em vista com a celebração do contrato”.

Aceita-se que no caso em decisão nenhum prazo certo as partes convencionaram, não existindo porque não se pode afirmar, sequer por referência a critérios auxiliares constantes no contrato, em que data no calendário a escritura deve ser marcada. Tal não é desmentido pela clausula 5ª do contrato-promessa a que se refere nos factos provados, porque a marcação da escritura do contrato prometido ficou a cargo dos promitentes compradores, para data não concretizada, sabendo-se apenas que subsequente à realização de um evento futuro e com data incerta “conclusão do processo de destaque do prédio prometido”, também da responsabilidade daqueles, e dentro dos 15 dias após o recebimento da carta pela promitente-compradora, comunicando a conclusão do dito processo de destaque, carta essa a remeter pelos promitentes vendedores também em data incerta.

Em resumo, os recorrentes ficaram obrigados pelo contrato a marcarem a escritura pública do imóvel sem que se tenha fixado prazo ou data dessa celebração e sem que o próprio contrato forneça elementos para se apurar esse prazo ou data.

Perante isto, o entendimento que os recorrentes professam é o de incerteza quanto ao prazo e data não retirar ao contrato discutido a natureza de um contrato a prazo certo porque nele se diz a escritura será marcada após estar concluído o processo de destaque  e que depois deste obtido os promitentes vendedores/réus comunicarão através de carta registada com aviso de receção, na qual comunicarão também o local, o dia e a hora previstas para a escritura pública, sendo a mesma realizada nos 15 (quinze) dias posteriores ao recebimento da carta pela segunda outorgante, mas sempre após o deferimento do pedido de destaque que iria ser de imediato realizado pelos promitentes vendedores.

Não têm razão os recorrentes, o que se extrai com segurança do contrato é que eram eles, os recorrentes, quem deveria marcar a escritura e cabia-lhes a eles também criar as condições para que a escritura fosse celebrada procedendo à obtenção de elementos necessários ou diligenciando em concreto pelo agendamento da marcação. Se porventura os recorrentes não procederam a alguma das diligências necessárias á celebração da escritura tal deve ter-se por alheio à recorrida porque com o contrato promessa a ela apenas cabia esperar que os promitentes vendedores marcassem a escritura o que estes não fizeram. Foi isto mesmo que se tomou como fundamento nas ações referenciadas na prova, que a autora deveria instar os réus para cumprirem porque sem tal procedimento não se encontrariam estes em mora e, bem assim, como se decidiu na outra ação, que a resolução do contrato e a restituição em dobro da quantia entregue, por invocação de os promitentes vendedores não terem realizado o destaque nem marcado a escritura não era permitida por falta de fixação do prazo para cumprimento.

Em resumo, improcedem na totalidade as conclusões de recurso.

… …

Síntese conclusiva

É admissível nos processos de jurisdição voluntária a decisão mais conveniente e oportuna que o Tribunal entenda dever proferir ainda que não seja aquela decisão que foi pedida, importando, no entanto, que haja uma conexão ao nível da decisão entre o que se decidiu e o que se pediu.

Nos processos de jurisdição voluntária não é absoluta a regra do artigo 609 nº1 do CPC tendo sido já admitida (desde há muito) a condenação ultra petitum designadamente no âmbito de processo tutelares cíveis embora essa possibilidade de não restrinja aos que tenham esse objeto.

- Porque o tribunal nos processos de jurisdição voluntária não está sujeito a critérios de legalidade estrita tal liberdade de ação pode implicar uma condenação qualitativamente diversa justificada por a latitude na indagação e fixação dos factos e a obrigação de uma solução equitativa não pode estar limitada pelo pedido, o qual deve entender-se ser uma indicação.

… …

 Decisão

Pelo exposto acordam os juízes que compõem este Tribunal e, julgar improcedente a revista e, em consequência, conformar a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes


Lisboa, 10 de janeiro de 2023


Relator: Cons. Manuel Capelo

1º adjunto: Sr. Juiz Conselheiro Tibério Nunes da Silva

2º adjunto: Sr. Juiz Conselheiro Nuno Ataíde das Neves