Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
497/14.1TBVLG.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: DEVEDOR
INSOLVÊNCIA
REPRESENTAÇÃO EM JUÍZO
ACÇÃO DE ANULAÇÃO
AÇÃO DE ANULAÇÃO
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
SUBSTITUIÇÃO
PATRIMÓNIO DO DEVEDOR
MASSA INSOLVENTE
DISPOSIÇÃO DE BENS
ADMINISTRAÇÃO
INCAPACIDADE
ILEGITIMIDADE
CREDOR
INIBIÇÃO DO FALIDO
RECURSO PER SALTUM
MATÉRIA DE DIREITO
NULIDADE PROCESSUAL
Data do Acordão: 11/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / EFEITOS SOBRE O DEVEDOR E OUTRAS PESSOAS / TRANSPARÊNCIA DOS PODERES DE ADMINISTRAÇÃO E DISPOSIÇÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PARTES / PERSONALIDADE E CAPACIDADE JUDICIÁRIA – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA.
Doutrina:
-Manuel Andrade, Teoria geral da Relação Jurídica, II, 113;
-Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6.ª Edição, 94, 103 e 109 a 115;
-Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 7ª Edição, 167.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGO 81.º, N.ºS 1 E 4.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 27.º, 674.º, N.º 1, ALÍNEA B) E 678.º, N.º 2.
Sumário :
I - A razão de ser da privação dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, a que alude o art. 81º do CIRE, funda-se no interesse dos credores, isto é, tem em vista a salvaguarda da satisfação dos créditos.

II - Esta privação não deve ser vista como sendo uma manifestação de qualquer incapacidade ou de ilegitimidade, mas sim como de indisponibilidade relativa.

III - Se os efeitos visados com uma ação judicial não são de molde a colocar em causa a salvaguarda do património do insolvente, então inexiste razão para a aplicação do art. 81º do CIRE.

IV - Nesta hipótese nem o devedor está privado ou inibido de agir, nem se põe a necessidade de representação (substituição) por parte do administrador da insolvência.

Decisão Texto Integral:

Processo nº 497/14.1TBVLG.S1

Tribunal recorrido: Comarca do ...- Juízo Central Cível do ...-Juiz 3

Recurso per saltum

                                                           +

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

AA e mulher BB demandaram, pelo Tribunal Judicial de ... e em autos de ação declarativa com processo na forma comum, CC e mulher DD, e ainda BANCO EE, peticionando os seguintes efeitos (sic):

“- Seja declarado a Nulidade da Sub-rogação do crédito de CC e DD pelo Réu Banco de €124.000,00 (cento e vinte e quatro mil euros). Sub-rogação que se pretendia ter ocorrido no âmbito da insolvência, por força de negócio particular celebrado à margem desse processo de insolvência, por não cumprimento dos requisitos da sub-rogação e ainda por impossibilidade de transmissão na sub-rogação do direito do imóvel, o qual pertença da Massa.

- Seja declarada a favor dos Autores a redução do crédito no âmbito da insolvência relativamente ao Réu BANCO EE. Por extinção de dívida pelo já referido negócio particular, para os €238.662,70 (duzentos e trinta e oito mil, seiscentos e sessenta e dois euros e setenta cêntimos) = (360.868,31 BANCO EE - €122.205,63 – crédito condicional).

- Seja declarada a extinção da dívida condicional dos Réus, DD e CC, no âmbito do processo de insolvência, por novação destes com o Réu Banco (novação esta sem conhecimento ou consentimento prestado pelos Autores). Tudo como decorre do doc. 3 e 10 já juntos”.

Alegaram para o efeito, muito em síntese, que foram declarados insolventes. Haviam contratado dois mútuos com o Réu Banco, garantidos por hipoteca sobre certa fração autónoma, de que foram fiadores os primeiros Réus. Os Réus reclamaram os seus créditos na insolvência, o segundo Réu no montante total de €360.868,31 e os primeiros Réus, sob a alegação de serem credores condicionais (ao cumprimento da fiança), no montante de €122.205,63. Os primeiros Réus compraram (pelo preço de €83.000,00), no âmbito da liquidação do ativo na insolvência, a dita fração dada em hipoteca. Tal negócio (compra e venda) era de objeto impossível e indisponível, e assim nulo. Os primeiros Réus tomaram a iniciativa, o que tudo foi alheio aos Autores e à massa insolvente, de pagar ao segundo Réu a dívida afiançada e reclamada condicionalmente, mas que transformaram em €124.000,00. Feito tal pagamento, pretenderam os primeiros Réus, e assim o fizeram saber na insolvência, ter ficado sub-rogados nos correspondentes direitos do segundo Réu. Tal sub-rogação é, porém, nula, pelas razões que indicam. Mas com o referido pagamento extinguiu-se o crédito pretensamente condicional dos primeiros Réus, e reduziu-se correspetivamente o crédito do segundo Réu.

Contestaram os Réus, concluindo pela improcedência da ação.

Os primeiros Réus mais suscitaram várias exceções, entre estas as da incapacidade judiciária e da ilegitimidade dos Autores, pois que estes haviam sido declarados insolventes e não estavam representados pela Administradora da Insolvência.

Seguindo o processo seus termos, veio, a final, a ser proferida decisão com o seguinte teor:

“Foi proferido despacho a fls. 540, no qual se decidiu que os AA não estavam devidamente representados nesta acção, havendo uma verdadeira irregularidade de representação desde o início do processo, isto é, quando instauraram a presente acção não o podiam fazer a não ser que estivessem representados pela Administradora da Insolvência, pelo que, entendendo o tribunal que essa irregularidade de representação podia ser sanada com a intervenção da Sra Administradora da Insolvência nomeada aos AA/insolventes, nos termos do art. 27º nº 1 e 2 do CPC, desde que esta ratificasse os actos anteriormente praticados pelos AA, notificou-a para o efeito.

Isto porque, diz o art. 27º nº 1 e 2 do CPC, que a irregularidade de representação é sanada mediante intervenção ou citação do representante legítimo, mas se este não ratificar os actos anteriormente praticados fica sem efeito todo o processado posterior ao momento em que a irregularidade foi cometida.

Não tendo a Sra Administradora nomeada aos aqui AA insolventes ratificado os actos por este praticados e, não estanho estes devidamente representados quando instauraram a presente acção, declara-se nulo todo o processado e absolvem-se os RR da instância, ao abrigo do art. 278º al. b) e c) do CPC.”

Inconformados com o assim decidido, recorrem os Autores, per saltum, para este Supremo Tribunal de Justiça.

Da respetiva alegação extraem os Recorrentes oitenta e três conclusões onde, em síntese, sustentam que nada impedia que propusessem por si próprios a presente ação, não havendo lugar a qualquer representação por parte da Administradora da Insolvência, nem, consequentemente, havendo qualquer irregularidade de representação.

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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

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Questão prévia: admissibilidade do recurso per saltum.

Nas suas contra-alegações ambas as partes Rés põem em dúvida a admissibilidade do presente recurso per saltum.

Porém, tal como já havia dito o relator no seu exame preliminar, estão verificados (e para além dos demais requisitos gerais dos recursos e de fundamento específico para a revista [art. 674º, nº 1, alínea b) do CPCivil]) todos os requisitos do art. 678º, nº 2 do CPCivil. Nomeadamente, e contrariamente ao que sugerem os Réus, o que está unicamente em causa é uma pura questão de direito, e esta é precisamente a que acaba de ser sintetizada: a regularidade ou irregularidade da ação enquanto proposta e feita seguir pelos próprios Autores, e a consequente necessidade ou desnecessidade de representação pela Administradora da Insolvência.

Improcede pois a questão prévia da inadmissibilidade do recurso.

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II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou fundamentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

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É questão a conhecer:

- Regularidade da ação enquanto proposta e feita seguir diretamente pelos Autores, Insolventes.

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III - FUNDAMENTAÇÃO

Plano Factual

Dão-se aqui por reproduzidas as incidências fáctico-processuais acima expostas.

Plano Jurídico-conclusivo

Os efeitos que os Autores visam alcançar com a presente ação são, em síntese, os seguintes, tal como já referido:

- Declaração de nulidade da sub-rogação invocada pelos primeiros Réus relativamente ao que pagaram ao segundo Réu a título da dívida afiançada;

- Redução para €238.662,70 do crédito reclamado pelo segundo Réu na insolvência;

- Extinção do crédito reclamado como condicional pelos primeiros Réus por novação.

Não interessa aqui saber se estes pedidos têm ou não fundamento legal (e, pelo menos em parte, se têm alguma utilidade, isto face ao já decidido no âmbito do processo nº 3045/12.4TBVLG.P1.S1, conforme as decisões da Relação do Porto e deste Supremo Tribunal de Justiça documentadas nos autos). Não se está aqui a discutir o mérito dos pedidos.

O que se discute, repete-se, é a questão de saber se a ação é regular enquanto proposta e feita seguir pelos próprios Autores, pois que foram declarados insolventes e os pedidos relacionam-se com interesses dos Réus que têm a ver com a insolvência. O que é dizer, o que se discute é a questão de saber se os Autores estavam legalmente inibidos de propor a presente ação sem ser através da representação da Administradora da Insolvência.

E desde já se diz que nada impedia essa propositura e o prosseguimento da ação, não havendo lugar à representação pela Administradora da Insolvência.

Justificando:

É certo que o art. 81º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) estabelece (nº 1) que a declaração de insolvência priva o insolvente dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente (que são os previstos no art. 46º), os quais passam a competir ao administrador da insolvência, que assume (sem prejuízo para as exceções indicadas no nº 5) a representação do devedor para todos os efeitos de caráter patrimonial que interessem à insolvência (nº 4).

Mas é preciso compreender a motivação subjacente à lei. A razão de ser de uma tal privação (ou inibição) funda-se no interesse dos credores, isto é, tem em vista a salvaguarda da satisfação dos créditos. Visa a lei obviar à prática por parte do devedor de atos que de alguma forma possam comprometer o respetivo património em prejuízo dos credores.

E daqui que só quando esses interesses dos credores estejam em causa se pode ter como observável uma tal privação ou inibição. Dentro desta ideia, diz-nos Menezes Leitão (Direito da Insolvência, 7ª ed., p. 167) que “esta solução [a do art. 81º, nº 1] compreende-se, dado que a declaração de insolvência faz pressupor uma certa desconfiança na capacidade de administração do devedor, dado que aí pode ter residido a causa da sua situação de insolvência”. E Maria do Rosário Epifânio (Manual de Direito da Insolvência, 6ª ed., p. 94) acrescenta que a privação do poder de administração e disposição está “imbuído da finalidade de - em nome da proteção dos credores concursais - conservação dos bens atuais do insolvente (que existam no momento da declaração da insolvência), bem como dos bens que venham a ingressar no património do insolvente (após a declaração da insolvência e até ao encerramento do processo de insolvência)”. Enfim, continuam atuais as palavras de Manuel Andrade (Teoria geral da Relação Jurídica, II, p. 113) quando afirmava que “A inibição imposta ao falido (…) não pode fundar-se na ideia de salvaguardar os interesses do próprio falido. Só pode fundar-se nos interesses da massa falida, isto é, dos credores (…). Só pode ter sido determinada pelo propósito de evitar que o falido pudesse, administrando os bens da massa, alienando-os ou contraindo dívidas pelas quais eles houvessem de responder, causar prejuízo àqueles credores, desfalcando ou precludindo as suas possibilidades (…). Sendo assim, é claro que a inibição deve julgar-se estabelecida e sancionada em correspondência com o motivo que a inspirou, isto é, consoante o exigir a protecção que se quis dispensar aos interesses dos credores. Nada menos do que isso, mas também nada mais do que isso”.

Conexa com esta questão está uma outra, que é a da natureza jurídica da privação que recai sobre o insolvente. Esta privação não deve ser vista como sendo uma manifestação de qualquer incapacidade ou de ilegitimidade, mas sim como de indisponibilidade relativa (v., neste sentido, Maria do Rosário Epifânio, ob. cit., pp. 109 a 115). Nesta medida, pode dizer-se que o administrador da insolvência assume o controlo da massa insolvente essencialmente por razões inerentes ao interesse objetivo da massa (ou seja, essencialmente no interesse dos credores), e não por razões ligadas a qualquer limitação legal - incapacidade ou ilegitimidade - do devedor. Embora a lei (art. 81º, nº 4 do CIRE) se reporte à representação do insolvente (resquício da antiga conceção do insolvente como incapaz) por parte do administrador, a situação é bem de substituição, precisamente porque, como diz Maria do Rosário Epifânio (ob. cit., p. 103) “constitui função (pelo menos primacial) do administrador da insolvência a prossecução dos interesses da massa insolvente e não do próprio insolvente”.

Deste modo, se a atividade do devedor não é de molde a colocar em causa a salvaguarda do seu património em detrimento dos credores, então inexiste razão para a aplicação do art. 81º do CIRE. O que é dizer, nesta hipótese nem o devedor está privado ou inibido de agir, nem se põe a necessidade de representação (substituição) por parte do administrador da insolvência.

Tendo em vista o que vem de ser dito, terá de concluir-se que a decisão recorrida começa por estar um pouco desajustada quando fala em nomeação da Administradora aos Insolventes (“Não tendo a Sra Administradora nomeada aos aqui AA insolventes…”), e quando supõe que se está perante uma situação de incapacidade judiciária, a solucionar no quadro do art. 27º do CPCivil. Mas, à parte isto (que seria de somenos importância), o que é decisivo é que a pretensão dos Autores em nada colide com os interesses gerais dos credores da massa insolvente, mas apenas com os interesses particulares dos ora Réus (tudo em decorrência da alegada atuação negocial extrajudicial que estes desenvolveram entre si). Na realidade, a pretensão está direcionada a defender a redução do volume da dívida no confronto unicamente dos credores ora Réus, e, nessa medida, é uma pretensão destinada a beneficiar os Insolventes (quanto menor for a dívida, melhor será a sua posição enquanto devedores) e os demais credores (quanto menos [ou nada, no caso dos primeiros Réus] receberem os ora Réus, mais remanesce para os outros credores). Recorde-se aqui o pedido que foi formulado, e terá que se reconhecer que a conclusão que antecede não pode deixar de se impor.

Deste modo, não se resolvendo os efeitos visados pelos Autores nesta ação em algo suscetível de comprometer o seu património em detrimento dos interesses gerais da massa insolvente, não regula para o caso o art. 81º do CIRE. E assim, não se concebe a representação (substituição) dos Autores por parte da Administradora da Insolvência e a necessidade de ratificação dos atos praticados. O que significa que a circunstância da Administradora da Insolvência não ter ratificado a presente ação não levou a qualquer nulidade total do processado suscetível de implicar a absolvição dos Réus da instância.

Procede pois o recurso.

IV. DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em conceder a revista, revogando a decisão recorrida e determinando o prosseguimento do processo como ao caso couber.

Regime de custas:

Os Réus são condenados nas custas do recurso, na proporção de metade para cada.

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Sumário:

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Lisboa, 7 de Novembro de 2017

José Rainho – Relator

Graça Amaral

Henrique Araújo